ARTIGO
A era da técnica e a catástrofe
ecológica sob a perspectiva de Martin Heidegger
The technical era and the ecological catastrophe under
Martin Heidegger’s perspective
Elizabete da Costa Ribeiro
José Antônio de Carvalho
Endereço para correspondência:
O trabalho apresentado aborda o problema constituído pela catástrofe ecológica que a ameaça a Terra e a sobrevivência do homem, no contexto de um desvelar próprio da técnica moderna que vê a natureza como reserva disponível. A despeito da crescente conscientização pela comunidade das nações para a gravidade do problema, todos os esforços envidados até o momento para lidar com a situação têm sido de cunho eminentemente tecnológico. A partir da visão do filósofo alemão Martin Heidegger busca-se neste estudo identificar alternativas para lidar-se com a questão, em uma ruptura com o paradigma imposto à civilização ocidental desde Platão. O trabalho fundamentou-se essencialmente em pesquisa bibliográfica, com a utilização de textos deste filósofo, de alguns de seus comentadores, e outros textos produzidos por autores os quais discutem a temática da modernidade e da questão ambiental.
Palavras - chave: Técnica moderna; catástrofe ecológica; Heidegger.
ABSTRACT
The present work targets the problem embodied by the ecological catastrophe that threatens Earth and man in his very survival, under modern technological clearing of nature as standing-reserve. In spite of a growing concern to the community of nations about the seriousness of the problem, all attemps to cope with this situation have been merely technological behavior. In this study alternatives to deal with that question are sought from the German philosopher Martin Heidegger thought, in a deviation from western society paradigma coming since Plato. The work is based on bibliographic research, includind writings of that philosopher, from some of his commentators and other texts of authors concerned with the present age and the environmental question as well.
Key words: Modern technology ; ecological catastrophe ; Heidegger.
Introdução
“Onde mora o perigo é lá que também cresce o que salva”. Hölderlin
Segundo Bauman
(1999), a modernidade tem seu início no século XVII, marcada por
uma série de transformações sócio-estruturais e
intelectuais como o Iluminismo, a revolução científica
e o advento da sociedade industrial. Neste momento histórico pontificaram
expoentes como Galileu (1564-1642), Francis Bacon (1561-1626), René Descartes
(1596-1650), John Locke (1632-1704) e Isaac Newton (1642-1727). As idéias
desses homens incrementaram uma reviravolta no pensamento ocidental, com relevantes
repercussões nos campos da filosofia e da ciência/tecnologia, economia,
biologia, e psicologia, e que se estendem até o momento atual.
Segundo o físico e teórico de sistemas Fritjof Capra (1982), Galileu,
pelos aspectos pioneiros de seu trabalho - a abordagem empírica e o uso
de uma descrição matemática da natureza - é considerado
o pai da ciência moderna. Para realizar tal descrição da
natureza os cientistas deveriam, conforme postulou Galileu, restringir-se ao
estudo das propriedades essenciais dos corpos materiais, ou seja, suas formas,
quantidades e movimento, as quais podiam ser medidas e qualificadas. Assim sendo,
propriedades como som, cor, sabor ou cheiro deveriam ser consideradas meramente
projeções mentais subjetivas e, como, tal, excluídas do
domínio da ciência.
Paralelamente ao trabalho de Galileu, Francis Bacon (apud CAPRA, 1982), filósofo, cientista e político inglês, e um fervoroso adepto da experimentação científica, seria o primeiro a formular uma teoria clara do procedimento indutivo, ou seja, realizar experimentos e extrair deles conclusões gerais, a serem testadas em novos experimentos. Bacon defendeu com vigor e até mesmo com violência o seu novo método, atacando as escolas tradicionais de pensamento. O espírito baconiano, no dizer de Capra (1982), mudou profundamente a natureza e o objetivo da investigação científica, que passou a ser o da busca do conhecimento que pode ser usado para dominar e controlar a natureza. Bacon (apud CAPRA 1982, p.52) afirmava que a natureza tinha que ser “acossada em seus descaminhos”, “obrigada a servir” e “escravizada”. Devia ser “reduzida à obediência”, e o objetivo do cientista era “extrair da natureza, sob tortura, todos os seus segredos”. Em sua obra mais importante, Novum Organum ou Verdadeiras Indicações Acerca da Interpretação da Natureza, Bacon (1999, p.98) prega “que o gênero humano recupere os seus direitos sobre a natureza, direitos que lhe competem por dotação divina”. Segundo Capra (1982), é muito provável que Bacon (em cuja época eram realizados julgamentos de bruxas) tenha transposto as metáforas usadas nos tribunais contra as mulheres para os seus escritos sobre a natureza, que era vista como fêmea. Bacon foi, portanto, um marco na transformação da concepção que se tinha da natureza como mãe nutriente, transformação essa que se completou quando a revolução científica substituiu tal concepção orgânica pela metáfora do mundo como máquina. Bacon, enfim, defendeu a idéia de que o conhecimento científico possibilitou ao homem dominar a natureza. Esse colocar o saber a serviço da dominação da natureza e utilizá-la para melhorar a sorte da humanidade, configura, no dizer de Hans Jonas (2006, p.235), “a ameaça tenebrosa contida no ideal baconiano”.
René
Descartes (apud CAPRA, 1982) é usualmente considerado o fundador da filosofia
moderna. Para ele o universo material seria apenas máquina, nada além
de máquina. Não haveria propósito, vida ou espiritualidade
na matéria. A natureza funcionaria de acordo com leis mecânicas,
e tudo no mundo material poderia ser explicado em função da organização
e do movimento de suas partes. Descartes propiciou ao pensamento científico
do século XVII um esboço de sua estrutura conceitual a concepção
da natureza como uma máquina perfeita, governada por leis matemáticas
exatas. Ele comparou o corpo dos animais a um relógio. Descartes também
compartilhava do ponto de vista de Bacon de que o objetivo da ciência
é o domínio e o controle da natureza, e estendeu sua concepção
mecanicista da matéria aos organismos vivos. E enquanto Bacon criou um
método para interpretar e organizar a natureza, Descartes proporcionou
a moldura conceitual para transformar a natureza em recurso, destituindo-a de
sua subjetividade e substituindo-a por um domínio racional e calculável.
O método concebido por Descartes para se alcançar a verdade é
o analítico, racional, dedutivo, em contraposição ao método
empírico, indutivo, usado por Bacon.
John Locke, filósofo político inglês, partindo da racionalização
da natureza na forma de mensuração matemática assim como
que completou o processo de transformá-la em recurso. Segundo o economista
e pensador social Jeremy Rifkin (2005, p.88), Locke afirmava que “à
terra deixada totalmente à natureza usa chamar-se - e ela o é
efetivamente - um deserto”, e que “a natureza intocada não
tinha propósito algum, salvo o de ser utilizada pelos seres humanos na
melhoria de sua condição”, e, ainda, que “a negação
da natureza é o caminho para a felicidade”.
Finalmente encarregou-se o filósofo e matemático inglês Isaac Newton de tornar possível a realização do sonho de seus predecessores ao descobrir a fórmula matemática para reorganizar o mundo natural. Coube a este homem resolver a competição entre os dois métodos que disputavam a primazia do pensamento científico da época, o indutivo, de Bacon, e o dedutivo de Descartes, ao prescrever uma adequada combinação das duas abordagens. Um de seus feitos foi o enunciado das três leis da matéria e do movimento, que logo exerceram extraordinária influência sobre o pensamento ocidental.
A visão mecanicista de mundo derivada do pensamento científico e filosófico que floresceu no século XVII levou, portanto, à compulsão por dominar a natureza, considerada como um recurso, condicionando o desenvolvimento da atividade econômica de forma a conduzir o planeta a uma devastação ambiental que já coloca em risco a própria sobrevivência da humanidade.
A atividade
econômica conduzida deste modo foi possibilitada pela extrapolação
desta visão mecanicista da vida para a economia, “criando uma racionalidade
filosófica para a exploração comercial do próprio
homem” (RIFKIN, 2005, p.90). Adam Smith, economista do século XVIII
e autor da obra A riqueza das nações, criou a teoria da mão
invisível que rege os mercados, garantindo o funcionamento da vida econômica.
Nessa concepção, tal mão invisível funcionaria de
maneira semelhante ao pêndulo mecânico de um relógio, “regulando
meticulosamente oferta e demanda, trabalho, energia e capital, e garantindo
automaticamente o equilíbrio necessário entre produção
e o consumo de recursos da Terra” (RIFKIN, 2005, p.90). A teoria da mão
invisível pressupõe a necessidade de que os mercados sejam deixados
livres de interferências e regulações externas, pois que
ela própria, uma espécie de moto perpétuo (máquina
que prescinde de energia para manter-se em eterno movimento) proveria a auto-regulação
da economia. Expressões como “mecanismo de mercado” demonstram
que os economistas de hoje continuam a ver o processo econômico baseados
em metáfora cartesiana.
O filósofo alemão Martin Heidegger foi um severo crítico
da modernidade, que ele considerava como constituindo o estágio final
da história do declínio do ocidente, iniciado com Platão
e chegando ao niilismo da era tecnológica em que vivemos. A história
do ocidente seria a história de como a metafísica produtivista
dos antigos gregos degenerou em tecnologia. Para este filósofo, na metafísica
produtivista, conforme comentado por Zimmerman (1990), o fazer é concebido
em termos de “atualizar” ou “efetuar” uma coisa, no
sentido de “causar” que ela se torne presente. Segundo o referido
comentador, embora Heidegger tenha concluído que a existência grega
também tenha sido moldada pela produtividade relativamente às
coisas, o filósofo, por outro lado, acreditava que dentro da própria
tradição grega se poderia encontrar uma alternativa ontológica
apropriada a essa metafísica e a esse conceito de produção.
Essa alternativa, escreve Zimmerman (1990, p.330), Heidegger encontrou na leitura
de pensadores pré-socráticos como Heráclito, que “fala
de produzir como de ‘permitir-se’ e de ‘libertar’ de
modo a possibilitar ao ente tornar-se presente, exibir-se, emergir de modo análogo
ao que uma coisa viva se torne presente”. Heidegger empenhou-se profundamente
no esforço de recuperação deste conceito alternativo de
produção como forma de liberar o ocidente imerso numa era tecnológica.
Em um discurso pronunciado em 1955 em homenagem ao 150º. aniversário de um compositor alemão, e que recebeu o título de “Serenidade”, na tradução portuguesa por nós referenciada, Heidegger (1959, p.12), afirmava que o homem atual “está em fuga de pensamento”, derivada do fato dele não querer ver nem reconhecer essa mesma fuga, negando, mesmo, tal fuga ao pensamento. E que, diante desta asserção, esse homem afirmará o contrário, alegando que em época alguma se realizaram tantos planos avançados, tantas pesquisas, tantas investigações de forma tão apaixonada. Heidegger (1959), embora concordando com esta alegação, e com que o pensamento subjacente a tais empreendimentos seja indispensável, pontua que esse será sempre um pensamento de um tipo especial, um pensamento que calcula. E dá como exemplos deste tipo de pensamento aquele envolvido quando concebemos um plano, investigamos ou organizamos uma empresa, situações em que contamos sempre com condições prévias que consideramos em função do objetivo a alcançar, e nas quais contamos antecipadamente com determinados objetivos. O pensamento que calcula continua a ser um cálculo, mesmo que não opere com números. Trabalha sempre buscando a eficiência econômica, de uma alternativa a outra, nunca pára, nunca chega a meditar. “O pensamento que calcula não é um pensamento que medita ... não é um pensamento que reflete ... sobre o sentido oculto que reina em tudo que existe” (HEIDEGGER, 1959, p.13). O filósofo aborda as críticas feitas à pura reflexão, quais sejam, a de que ela paira sobre a realidade, não tem os pés no chão, não servindo, assim, para finalidades práticas, e a de que a pura reflexão, a meditação persistente, seria uma coisa demasiado “elevada” para o entendimento comum. Ele concede apenas que o pensamento que medita exige, às vezes, um grande esforço, um treino demorado, requerendo cuidados muito delicados, como os do lavrador ao aguardar que a semente desponte e amadureça. Ressalva, contudo, que “qualquer pessoa pode seguir os caminhos da reflexão à sua maneira e dentro dos seus limites” (HEIDEGGER, 1959, p.21).
Uma das características mais marcantes da modernidade de acordo com o filósofo é esta hipertrofia do pensamento que calcula sobre o que medita. Para demonstrar esta condição Heidegger (1959, p.21) também cita em seu discurso uma declaração do químico norte-americano Stanley, proferida em 1955, num encontro internacional de vencedores do prêmio Nobel: “Está próxima a hora em que a vida será posta na mão dos químicos, que irão decompor, reconstituir e modificar a substância viva como lhes aprouver”. Nessa declaração, alertava Heidegger, sem que nos déssemos conta estava contida uma preparação para perpetrar-se, mediante o uso dos meios tecnológicos, uma agressão à vida e à natureza humana, muito superior àquela representada pela bomba de hidrogênio. De forma profética alertava ele que, mesmo na hipótese das bombas de hidrogênio não explodirem e a vida humana permanecer sobre a terra, a era atômica trazia uma inquietante modificação do mundo. No entanto, prosseguia ele, muito mais inquietante do que o fato do mundo se tornar cada vez mais técnico é o fato de que o homem não estava preparado para a transformação em curso, para a circunstância de que o homem ainda não conseguia valer-se do pensamento que medita para lidar adequadamente com a situação que estava a emergir.
Este alerta de Heidegger sobre a desvalia do pensamento que medita, que reflete, vis-à-vis aquele que calcula permanece mais atual do que nunca. Capra (2002) considera que com a velocidade das transformações propiciada pela informática as pessoas não têm mais tempo para refletir com calma, e que como a consciência reflexiva é uma das marcas da humanidade do homem, essa situação tem um efeito profundamente desumanizante. Nessa mesma linha François Peccoud (2002), aponta para a necessidade de se inventar novas tecnologias de informação e comunicação que se ponham ao serviço da humanidade, e não contra, a se investir na formação de espírito crítico por meio de uma educação que compartilhe valores de progresso humano e não apenas técnico.
Uma outra preocupação de Heidegger expressa no aludido discurso de 1955 é quanto à perda do enraizamento do homem atual, que ele considerava ameaçado na sua mais íntima essência. E afirmava que a perda do enraizamento não se deve somente a circunstâncias externas e fatalidades do destino, e nem seria o efeito da negligência e do modo de vida superficial dos homens, mas, sim, proveniente do espírito da época em que nascemos. Para comentar a importância do enraizamento, Heidegger (1959, p.15) cita um escrito do poeta Johann Peter Hebel: “Nós somos plantas que - quer nos agrade confessar quer não -, apoiadas nas raízes, têm de romper o solo a fim de poder florescer no Éter e dar frutos”.
Ao questionar se ainda existiria um habitar tranqüilo do homem entre a terra e o céu, se o espírito que medita ainda reinava em seu país, o filósofo responde que não, pois muitos de seus compatriotas perderam a sua terra natal, foram expulsos, têm que se estabelecer no deserto das zonas industriais, tornam-se desenraizados. E mesmo aqueles que permaneceram na velha terra natal muitas vezes tornam-se mais desenraizados do que aqueles que dela foram expulsos. Isto porque essas pessoas estão a cada hora e a cada dia presas ao rádio e à televisão, semanalmente transportadas pelo cinema aos domínios da representação, apegadas a revistas de caráter lúdico. Os estímulos advindos desses meios de informação estimulam a imaginação do homem, estão muito mais próximos do homem do que o próprio campo, do que o céu sobre a terra, do que a herança do mundo da terra natal. Enaltecendo a vida no campo, e a reflexão que ela propicia, Heidegger (1969) nos descreve um caminho do campo a se estender através da amplidão da terra agreste, ladeado por florestas e encostas de colina. O caminho do campo sempre oferecia boa ajuda quando nenhuma saída se anunciava para os enigmas que assolavam àqueles que por ele caminhavam. Silenciosamente lhes acompanhava os passos pela sinuosa vereda que se espraiava pela amplidão. O caminho faz um apelo, o qual fala apenas enquanto homens nascidos em suas cercanias forem capazes de ouvir a sua linguagem. Ao não ouvi-la, tomando o retumbar do fragor das máquinas que chega aos seus ouvidos como a voz de Deus, o homem, está em perigo. O filósofo chega a afirmar que o homem procurará em vão implantar uma ordenação no globo terrestre por meio de planejamentos se não se colocar disponível ao apelo ao caminho do campo.
A presença do sentido de enraizamento em Heidegger (apud QUINTÁS, 1992, p.21) transparece de forma poética em seu texto As Botas de Aldeã, uma digressão sobre o quadro de Van Gogh. Visto de modo objetivo, o quadro nada mais representa que um par de botas de camponesa, desgastadas, sem qualquer indicação do uso que dela se faz, da utensilidade do utensílio. Por intermédio do quadro de Van Gogh descobre-se a utensilidade do utensílio, um par de botas, e não mediante explicações e descrições do que é e para o que serve um sapato. A pintura simplesmente propiciou a manifestação do que é um útil, a desocultação de um ente através do que os gregos chamam de aletheia: “um ente, um par de botas de camponesa, se instala na obra na luz do seu ser”, como nos diz Heidegger.
A modernidade prima, contudo, pelo desenraizamento do homem de sua terra natal, deslocando-o para grandes conglomerados urbanos e confinando-o em fábricas e prédios de escritórios. Tudo em atendimento aos ditames de um industrialismo que entroniza valores como flexibilidade e eficiência sem qualquer consideração por uma finalidade a qual estivessem a serviço, mas, sim, pelo próprio bem da flexibilidade e da eficiência. “Temos que ser eficientes!”, eis o édito baixado pelos mais altos escalões das empresas e recitado como um mantra pelos empregados. Uma eficiência que faz tornar realidade a máxima da ética de Maquiavel de que os fins justificam os meios. Ficamos extasiados com a maneira como o desenvolvimento da informática produz computadores cada vez mais potentes, velozes e mais baratos, sem saber como utilizar mais do que uma fração mínima do potencial que eles nos oferecem. Da mesma forma, as cadeias de fast-food, fornecendo alimentação barata e prontamente disponível a qualquer hora do dia são consideradas exemplos do triunfo da técnica por sua eficiência e flexibilidade. As fábricas, em sua obsessão por eficiência, uma herança do Iluminismo (a crença no poder da razão para resolver os problemas das sociedades), cada vez mais logram obter de forma descontextualizada reduções no custo unitário de seus produtos, apresentando tais reduções como grandiloquentes exemplos do progresso das tecnologias de gestão empresarial.
Essa busca de eficiência, entendida como atingir-se o “máximo rendimento possível com um mínimo de gasto”, conforme escreve Heidegger (2006, p.19), recebeu, nas palavras do economista Jeremy Rifkin (2005, p.100), uma contribuição fundamental do engenheiro norte-americano Frederick Taylor (criador do sistema de organização do trabalho conhecido como taylorismo) na fundação de um ethos de eficiência que acabaria transformando o mundo como um todo. Os novos valores da “administração científica” - homem e máquina julgados pelo critério único do desempenho invadiram todos os campos da vida. A influência de Taylor na cultura norte-americana foi avassaladora, tendo Rifkin (2005) afirmado que a cruzada da eficiência atingiu até mesmo os lares e as escolas: as donas de casa buscando adotar métodos mais eficientes para o desempenho das tarefas domésticas, e o sistema educacional americano sendo reformulado em busca da eficiência taylorista. Nesse ponto, absolutamente alinhado com Heidegger, Rifkin (2005) considera que a eficiência, um valor instrumental, quando aplicado à vida pessoal, faz com que todas as atividades, sejam humanas ou mecânicas, tornem-se valores para maximizar a produção, e os seres humanos deixam de ser considerados como um fim para ser apenas um meio de fomentar a produção. Rifkin (2005) considera que a máquina já deixara de ser apenas metáfora aplicável ao homem, como a conceberam os filósofos do início da modernidade.
Vale aqui observar que a expressão “administradores de recursos humanos” usada por Rifkin, na citação que dele fizemos acima, está rapidamente sendo substituída por “gestores de pessoas”, e os antigos departamentos de recursos humanos das empresas substituídos por órgãos de gestão de pessoas. É um expediente que visa tão somente escamotear a circunstância de que o trabalhador, em oposição ao discurso das empresas, é de fato tratado cada vez mais como recurso, algo que se desgasta e finalmente se esgota com o uso. No discurso, as novas tecnologias de gestão alardeiam valorizar o homem; na prática, esta valorização se dá na exata medida do atendimento ao objetivo das empresas muito primordialmente a maximização do lucro, em detrimento das metas individuais de seus empregados.
Conforme pondera Zimmerman (1990) as inovações tecnológicas nos são frequentemente apresentadas como geradoras de “poupança de trabalho”, mas, segundo este comentador, na perspectiva de Heidegger quanto mais tempo se ganha pela introdução de um novo instrumento, mais tempo se torna disponível para a produção. Será que o computador, conjectura Zimmerman (1990), efetivamente gera poupança de tempo e de trabalho, ou acontece que origina a possibilidade (e, portanto, a necessidade) de mais burocracia que em tempo algum? Que dizer-se da fotocopiadora? Inquire ele. E conclui afirmando que quando as pessoas estavam limitadas ao uso da máquina de escrever e do papel químico, elas pensavam duas vezes antes de decidir distribuir memorandos a quinhentos destinatários. Nesse sentido também se posiciona Capra (2002), ao sustentar que a carga de trabalho dos executivos nas empresas somente aumentou. Isto porque, a despeito do fato de que as máquinas trabalham mais rapidamente e economizam tempo, este tempo que sobraria é usado para a produção de mais lucro para os acionistas e executivos do primeiro escalão, obrigando-se as pessoas a trabalhar mais para aumentar a produtividade da empresa e para compensar as demissões causadas pelos enxugamentos de quadros.
Heidegger se preocupou com as alterações na vida cotidiana trazida pelo uso das inovações tecnológicas. Zimmerman (1990) toma como exemplo a máquina de escrever, que poderia ser considerada apenas um modo mais eficiente de escrever-se, mas que, no entanto, o filósofo considerava a eficiência como sendo uma medida errada para usar-se em matéria de avaliação da escrita.
Para Heidegger, conforme Zimmerman (1990), as máquinas de escrever tinham a sua utilidade, por exemplo, para reproduzir e preservar coisas já escritas à mão, mas que não havia lugar para escrita à máquina em se tratando de correspondência pessoal. O filósofo considerava que, quando as máquinas de escrever apareceram, as pessoas sentiram-se insultadas por receberem cartas datilografadas. “A escrita à máquina esconde o caráter pessoal do autor da carta, contribuindo dessa forma para a homogeneização da humanidade” (HEIDEGGER apud ZIMMERMANN, 1990, p. 308). O comentador escreve que a objeção de Heidegger à prática da escrita de cartas pessoais à máquina era compartilhada por muitos dos seus contemporâneos, e que, embora a máquina de escrever seja um sintoma da era tecnológica, o filósofo concede (apud ZIMMERMAN, 1990, p.308) “que ela não é ainda uma máquina no sentido estrito de tecnologia moderna, antes é um intermediário entre a ferramenta e a máquina, um mecanismo. A sua produção, todavia, é condicionada pela tecnologia de máquinas”.
A máquina de escrever, por sua vez, foi substituída pelo processador de textos, este um lídimo produto da tecnologia moderna, um gigantesco passo além da escrita à máquina, que já representara um considerável avanço em relação à escrita á mão. Estamos mais uma vez diante de uma radical mudança de conceito de escrever, pois até mesmo o termo “processador de texto” sugere, conforme Zimmerman (1990, p.308), “um massagear, um moldar, uma gestão de palavras, como se elas fossem matéria prima-plástica”.
Heidegger inquietava-se com as conseqüências para o homem advindas do desvelar da técnica moderna como atitude de desafio à natureza. Esta atitude é marcadamente desviante daquela prevalecente na era pré-tecnológica, quando o homem tinha uma postura adaptativa em relação ao mundo, sentia-se parte desse mundo e, não, senhor dele. Até a Idade Média, o homem aceitava a existência de uma ordem no mundo, e que tal ordem havia sido criada por Deus. Com a idade tecnológica, o homem, diferentemente de adaptar-se à ordem natural, passa a desafiar a natureza no mais puro ideal baconiano, a fazer a sua reformulação sempre que ela lhe parecer como revelando-se insatisfatória às suas necessidades.
Zimmerman (1990) observa a ocorrência de uma reformulação de igual teor nas práticas sociais quando novos instrumentos são introduzidos em substituição de outros que de alguma forma revelaram-se ineficientes. E nos apresenta como exemplo (recolhido de um texto de Albert Borgman, professor de filosofia da Universidade de Montana) o que aconteceu quando a fornalha a gás substituiu o fogão à lenha. Quando os lares eram aquecidos por lareira ou fogão à lenha, alguns membros da família tinham a tarefa de encontrar e cortar lenha. Tal prática demandava uma familiaridade com a natureza campestre e uma apreciação econômica do valor e da relativa escassez do tipo de madeira para uso como lenha. Encarregava-se um outro membro da família de acender e manter aceso o fogo. Desta forma, toda a família se reunia em volta da lareira em uma socialização precedente ao surgimento do rádio, televisão ou fonógrafo. Com o advento da fornalha a gás, a função de aquecimento passou, obviamente, a ser realizada de um modo mais limpo, seguro e eficiente. Em contrapartida, no entanto, algumas práticas foram também alteradas. Primeiramente, a família não mais se socializa ao redor da lareira ou de um fogão a lenha. Em segundo lugar, se perde aquela noção de economia e de ecologia adquirida do reconhecimento da escassez dos bens, no caso, madeira para lenha. Isto se dá porque a central elétrica a carvão - que gera a eletricidade necessária ao funcionamento da fornalha, e geradora, também, de gases causadores do efeito estufa e da chuva ácida -, as monstruosas minas de extração de carvão e as florestas que morrem em resultado da chuva ácida estão bastante distantes dos lares das pessoas confortavelmente aquecidas. E essas pessoas ficam alienadas da sua responsabilidade na devastação ambiental pelo uso de um aquecimento que consideram limpo e eficiente. Desta forma, pontua Zimmerman (1990, p.311), “o desaparecimento da lareira familiar, portanto, além de minar importantes práticas sociais, veio a contribuir para o advento de práticas industriais que estão a destruir o mundo natural”. Temos aí uma excelente demonstração da perspectiva de Heidegger (1989) de que alterações dos utensílios geram alterações em importantes práticas da vida. Há uma modificação do ser-no-mundo, no conceito heideggeriano. Para o filósofo, ser-no-mundo configura o modo peculiar do homem dar-se no mundo. Significa ser-em-um-mundo, no sentido de que o homem se acha implantado em seu mundo, vivencialmente em seu mundo, não à maneira dos objetos, mas tecendo relações e atribuindo significados aos entes que lhe vêm ao encontro. No exemplo dado, o homem, ao idealizar, fabricar, dar uma utilidade e sentido à fornalha a gás, trama contra a natureza.
Entretanto Hubert L. Dreyfus (1995), afirma que embora Heidegger não negue que a tecnologia nos traga sérios problemas, seu pensamento se desenvolve no sentido de uma surpreendente e provocativa conclusão: colocar o foco na perda e na destruição causada pela tecnologia é, ainda, um comportamento tecnológico: “todas as tentativas de compreender a realidade existente... em termos de declínio e perdas, em termos de destino, catástrofe e destruição, é meramente comportamento tecnológico” (HEIDEGGER apud DREYFUS, 1995, p.304, tradução nossa). Encarar tal situação como um problema que deva ser resolvido através de uma ação adequada é também tecnológico.
Mas, Heidegger (1959) considera que existe uma situação mais ameaçadora para o homem moderno do que a destruição tecnológica da natureza e da civilização, e que esta ameaça se configura numa restrição de sentido, numa estrita compreensão tecnológica da vida, mais do que a destruição causada por tecnologias específicas. Nessa linha, ele faz uma distinção entre os problemas correntes causados pela tecnologia - destruição ecológica, risco nuclear, consumismo - e pela devastação que resultaria caso a tecnologia resolvesse todos os nossos problemas.
Entretanto, para este filósofo, o risco estaria não na iminência da destruição da natureza ou da cultura, mas em certos modos de pensar e práticas totalizantes e no nivelamento de nossa compreensão do existir. A ameaça não é um problema para o qual nós tenhamos que encontrar uma solução, mas uma condição ontológica que requer uma transformação de nossa compreensão. Heidegger (2006) afirma que a essência da moderna tecnologia é a busca de um ordenamento de todas as coisas de modo a se atingir mais flexibilidade e eficiência, máxima produtividade a custo mínimo. A única meta é o ordenamento ótimo, para o bem do próprio ordenamento.
E ainda, seguindo a análise deste filósofo, o tipo de desencobrimento que rege a técnica moderna configura-se em “uma exploração que impõe à natureza a pretensão de fornecer energia, capaz de, como tal, ser beneficiada, e armazenada” (HEIDEGGER, 2006, p.19). Trata-se de um sentido manifestamente desviante daquele contido na technè dos antigos gregos.
Desta forma desencoberto o Reno não é mais o Reno evocado pelo poema de Hölderlin de mesmo nome, assinala Heidegger (2006, p.20), concedendo que o Reno possa até continuar sendo o rio da paisagem, mas de outra maneira: “à maneira de um objeto dis-posto à visitação turística por uma agência de viagens, por sua vez, dis-posta por uma indústria de férias”. Um outro desvelamento é, contudo, aquele derivado da technè grega. Para entendermos tal sentido desvelador, vamos recorrer à apreciação feita por Heidegger (2006) sobre o processo de fabricação de um cálice de prata, tomado por Aristóteles: o ourives faz o cálice (causa final) trabalhando (causa eficiente) a prata (causa material), em conformidade com um padrão ou modelo (causa formal).
Notadamente a partir da ciência moderna a causa eficiente, a ação do ourives, sobrepujou as outras três causas, tornando-se a maneira dominante de se explicar como as coisas se desvelam. Em sua apreciação do processo Heidegger (2006) transformou a palavra grega empregada por Aristóteles, aition, de sua tradução latina como causa, para aquilo pelo que um outro responde e deve. Assim sendo, as quatro causas passam a ser entendidas como os quatro modos, coerentes entre si, de responder e dever. Assim, a prata responde pelo cálice que, por sua vez, deve à prata aquilo de que consta e de que é feito. O utensílio sacrificial não é devedor apenas da prata, pois nele a prata aparece na figura de cálice e não, por exemplo, na figura de um broche ou de um anel. O utensílio do sacrifício é também devedor de ser o que é ao perfil de cálice. Assim sendo, tanto a prata, na qual entra a forma - o perfil do cálice - , como o perfil em que a prata aparece, respondem, cada um a seu modo, pelo utensílio do sacrifício. Um terceiro modo é, sobretudo, responsável pelo utensílio do sacrifício: aquilo que previamente o define, circunscrevendo o cálice como utensílio sacrificial, finalizando o utensílio, que, desta forma, começa a ser o que virá a ser depois de terminado. O ourives é, finalmente, um quarto modo a responder pela integração do utensílio pronto, mas não mais como causa eficiente, por executar um trabalho que causará o surgimento do cálice. Os três modos anteriores de responder são devedores da reflexão do ourives quanto ao modo em que eles surgem e entram no jogo de pro-dução do cálice sacrificial. Os quatro modos de responder e dever conduzem ao surgimento de alguma coisa, a que algo venha a aparecer, venha a viger, daí esses quatro modos de responder e dever são quatro modos de deixar-viger.
Na modernidade prevalece, contudo, a perspectiva tecnológica, na qual objetivos últimos como servir a Deus, à sociedade, nossos amigos, ou mesmo a nós próprios, não mais fazem sentido. Os homens se tornam um recurso a ser usado, e, mais importante, a ser aperfeiçoado, como qualquer outro. Para mostrar como o homem se torna usado por algo que ele próprio criou, Heidegger (2006) cita o exemplo de um avião moderno que, compreendido em sua essência tecnológica, não é uma ferramenta que nós utlilizemos, não é, de modo algum, um objeto, mas, sim, uma eficiente e flexível peça no sistema de transporte. Dessa forma, nós não somos sujeitos que usam o sistema de transporte; ao invés disso, somos usados por ele para encher os aviões. Por sua vez, o geógrafo político Milton Santos (2001), também um crítico da técnica moderna, nos mostra como os objetos hoje se apresentam diante de nós, na forma de um discurso ideológico que nos convoca, independentemente de nossa vontade, a uma forma de comportamento.
O sociólogo Edgar Morin (2004, p.67) contrapõe aos benefícios da técnica ao permitir “domesticar as energias materiais” o fato de ela ter em paralelo propiciado uma implantação maciça de uma lógica fundada unicamente sobre o cálculo, perfeitamente conveniente às máquinas, mas de resultados desastrosos quando aplicada às sociedades humanas. Reificados, como recurso a ser continuamente aprimorado, desorientados, tornamo-nos presa fácil de todo um séquito de mercadores das fórmulas prontas do salvacionismo individual e coletivo, das quais a infinidade de livros de auto-ajuda e esoterismos de toda sorte constituem a face mais visível desse comercialismo.
Entretanto Heidegger (1959) afirma que podemos ter uma outra relação com os objetos técnicos, que podemos utilizá-los e, ao utilizá-los, permanecer ao mesmo tempo livres deles, de forma que possamos a qualquer momento largá-los, utilizá-los como devem ser utilizados.
A esta atitude de deixar os objetos técnicos entrarem em nosso mundo cotidiano e, ao mesmo tempo, deixá-los fora (a atitude do sim e do não em relação aos objetos) o filósofo designa como a serenidade para com as coisas. Trata-se de usufruir da tecnologia sem ficar-se restrito, dominado por ela. Para explicar como isto poderia ser possível, Dreyfus (1995) recorre a um exemplo do Japão contemporâneo para ilustrar a importante distinção que Heidegger faz entre tecnologia e compreensão tecnológica. Naquele país, práticas tradicionais, não tecnológicas, ainda coexistem ao lado da produção e consumo tecnológico: o aparelho de televisão e as imagens dos deuses da cultura nipônica compartilham a mesma prateleira da estante; os copos de poliestireno coexistem com chávenas em porcelana.
Para que possamos fazer tal diferenciação, Heidegger sustenta que devemos repensar a historia do sentido do ser no ocidente. E que, embora nossa compreensão das coisas e de nós próprios como recursos a serem ordenados, aprimorados, e usados de forma eficiente tenha sido construída desde Platão, nós não estamos fadados a permanecer nessa condição. A resposta apontada por Heidegger está, conforme comentado por Dreyfus (1995), no poder liberador das práticas que ele chama de marginais, justamente por resistirem à eficiência. Como representativas de tais práticas nos são apresentadas a amizade, as caminhadas na mata, o beber vinho com os amigos. Mas estas práticas também podem ser direcionadas para o bem da eficiência, como, no caso, por exemplo, da amizade, que pode ser transformar em rede de contatos. Por esta razão, precisamos proteger esses hábitos simples, ameaçados de extinção. Será necessária a emergência de um novo paradigma que retire as práticas que atualmente são marginais em nossa cultura e as coloque em posição central, alinhadas com as demais práticas que hoje ocupam, de forma exclusiva, esse lugar.
Os geólogos Umberto Cordani e Fabio Taioli (2001), no capítulo A Terra, a Humanidade e o Desenvolvimento Sustentável, da obra Decifrando a Terra, nos retratam a Terra como um sistema vivo, dentro de uma dinâmica evolutiva própria. Num processo cíclico, montanhas e oceanos nascem, crescem e desaparecem. Enquanto os vulcões e os processos orogênicos fazem surgir novas rochas à superfície, os materiais sofrem as intempéries e são mobilizados pela ação dos ventos, das águas e das geleiras. Os rios mudam constantemente seus cursos e fenômenos climáticos alteram periodicamente as condições de vida e o balanço entre as espécies. A Terra, graças ao seu processo evolutivo ao longo de alguns bilhões de anos, propiciou as condições para a existência de vida. Ela é a casa da humanidade, e é sobre ela que vivemos, construímos nossas edificações, e dela extraímos tudo o que é necessário para a manutenção de nossa espécie: água, alimentos e matérias primas para a produção de energia e fabricação de todos os produtos que usamos e consumimos. Em contrapartida, é nela que depositamos nossos resíduos, tanto industriais quanto domésticos.
Conforme pontuam aqueles autores, as primeiras intervenções da humanidade sobre a natureza coincidem com o domínio do fogo, a partir do qual o homem começa a modificar as condições naturais da superfície do planeta. Estima-se que a exploração natural tenha se iniciado há cerca de 40.000 anos. No entanto, os registros mais antigos do uso artificial da Terra e sua exploração mais ativa são de 8.000 anos a.C., com o início da chamada revolução agrícola. Na seqüência, o homem explora os recursos naturais do planeta e modifica a superfície terrestre para atender às crescentes necessidades impostas pelo desenvolvimento das civilizações. Esta constante e crescente exploração dos recursos naturais tem, contudo, ocasionado intensas demandas sobre o ambiente, prejudicando a própria vida. Como exemplos de civilizações que perderam a sua importância por terem degradado o meio ambiente em que viviam nos são apresentados os da civilização da Mesopotâmia e a civilização dos Maia. A primeira, por utilizar um sistema de irrigação que, pelo manejo intenso e impróprio, levou à salinização dos solos e sua conseqüente degradação para a agricultura. A segunda, pela má utilização do solo, o que provocou intensa erosão e escassez de água.
Ainda segundo o trabalho de Cordani e Taioli (2001), a questão ambiental começou a ganhar algum destaque nos meios de comunicação no início da década de sessenta. Em 1972, na Conferência das Nações Unidas sobre o Ambiente Humano, ocorreu o reconhecimento formal pela comunidade das nações do relacionamento existente entre os conceitos de conservação ambiental e desenvolvimento industrial. Posteriormente, em 1987, como produto do estudo realizado por uma comissão criada Organização das Nações Unidas (ONU) para avaliar os problemas globais de ambiente e desenvolvimento, surgiu o conceito de desenvolvimento sustentável. Este conceito preconiza um sistema de desenvolvimento sócio-econômico com justiça social e em harmonia com os sistemas de suporte da vida na Terra. Reconhece-se, desta forma, a necessidade de manutenção do equilíbrio ambiental e do alcance da justiça social, alcançando-se uma melhor qualidade de vida coletiva, com as necessidades básicas da humanidade atendidas a até mesmo alguns de seus desejos, sem que houvesse comprometimento do suprimento de recursos naturais e da qualidade de vida das futuras gerações. Finalmente mencionaremos a Agenda 21, elaborada como resultado da Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, realizada em 1992, no Rio de Janeiro. Tal agenda consubstancia um compromisso político das nações de agir em cooperação e harmonia na busca do desenvolvimento sustentável.
Passados quinze anos [eram pasados quinze anos a partir de 2007], os compromissos da Agenda 21 permanecem longe de ser atingidos. Os paradigmas associados à qualidade de vida continuam aqueles ditados pela sociedade de consumo, com seus conseqüentes desperdícios, injustiça social e degradação ambiental em nível global. As civilizações atuais encontram-se, assim como outras que desafiaram e agrediram o meio ambiente, igualmente ameaçadas pelo crescimento exponencial da população mundial e pelas exigências feitas à natureza numa escala de desafio que lhe é imposta dentro do ideal baconiano.
Uma visão provocativa da evolução da Terra e dos seres vivos que nela habitam vem do cientista britânico James Lovelock (2006), formulador de uma hipótese que ele denominou Teoria de Gaia. Na definição do autor, Gaia é a camada esférica que circunda o interior incandescente da Terra, principiando cerca de 160 km abaixo de sua superfície e avançando outros 160 km pelo espaço afora.
Trata-se, portanto, de uma visão em diametral oposição ao delineamento cartesiano da natureza funcionando de acordo com leis mecânicas. De início rejeitada pela comunidade científica, a hipótese, baseada em observações e modelos teóricos, foi paulatinamente recebendo melhor acolhida na medida em que previsões efetuadas a partir dela foram bem sucedidas. Um importante passo no reconhecimento da teoria foi a assinatura de uma declaração (Declaração de Amsterdam de 2001), por mais de mil delegados representando quatro grandes organizações voltadas para a mudança global, presentes a uma conferência em Amsterdam, afirmando que “O sistema da Terra se comporta como um sistema único e auto-regulador composto de componentes físicos, químicos, biológicos e humanos” (apud LOVELOCK, 2006, p.35). O autor da teoria vê nessas palavras uma abrupta transição da crença convencional unanimemente aceita e sustentada pelos biólogos: a de que os organismos se adaptam aos seus meio ambientes. E pelos cientistas da Terra: a de que as forças geológicas sozinhas poderiam explicar a evolução da atmosfera, crosta e oceanos. Esta clássica divisão do planeta e das ciências da vida em geosfera e biosfera foi ultrapassada pelos cientistas partidários de uma nova disciplina surgida no seio da comunidade da ciência da Terra e denominada Ciência do Sistema da Terra. Nesta conceituação a Terra é considerada uma entidade dinâmica única dentro da qual interagem as partes materiais e vivas. Este princípio, segundo Lovelock (2006, p.36), foi incluído na Declaração de Amsterdam, sem que, lamenta ele, os cientistas que a assinaram enunciassem a “meta da Terra auto-reguladora, que é, segundo a minha teoria, sustentar a habitabilidade”. Assim sendo, sustenta ele, os cientistas, embora se declarando partidários da Ciência da Terra, continuaram modelando e pesquisando de forma isolada, como sempre o fizeram. Em condições normais, esta natural resistência dos cientistas seria rompida em seu devido tempo: os geoquímicos começariam a aceitar o conjunto dos seres vivos como uma parte da Terra reativa e em evolução, e não mais considerando a vida como um reservatório passivo, equiparada aos sedimentos ou oceanos; de sua parte, também os biólogos terminariam por conceber o meio ambiente como algo ativamente alterado pela ação dos microorganismos, e não algo fixo ao qual se adaptavam.
Infelizmente, pontua Lovelock (2006), a velocidade de mudança no pensamento dos cientistas não acompanha a velocidade das transformações que estamos impondo à superfície e à atmosfera de nosso planeta, que agora enfrenta um perigo mortal, com pouco tempo para escapar. Mesmo que neste momento cessássemos as nossas agressões à Terra, tais como subtrair de Gaia mais e mais terras e águas para a produção de alimentos e combustíveis, e deixássemos de envenenar o ar, o nosso planeta levaria mais de mil anos para se recuperar do dano que já lhe causamos, e talvez já seja tarde demais para nos salvarmos até mesmo com a adoção de tão drástica medida. Numa eventual substituição do combustível fóssil (carvão, petróleo) pelo biocombustível, (e apresentamos como exemplo o etanol, da cana-de-açúcar), como defendem os adeptos da energia renovável, as conseqüências poderiam ser ainda mais dramáticas. Pelos cálculos do cientista, ainda que a energia proveniente dos biocombustíveis fosse usada somente para abastecer os nossos meios de transporte, seria necessário um cultivo ocupando a superfície de várias Terras somente para atingir-se este fim. Já tomamos mais da metade da superfície produtiva do planeta para o cultivo de alimentos e de matérias primas, substituindo ecossistemas vitais ao metabolismo da Terra. Consumimos de tal forma que a Terra já não consegue sustentar os padrões de conforto a que nos habituamos, e “agora ela está mudando de acordo com as suas próprias regras internas, para um estado em que já não somos mais bem-vindos” (LOVELOCK, 2006, p.20). Tal é a vingança de Gaia.
Estamos, portanto, como afirma Jonas (2006), sob o pressuposto de que vivemos uma situação apocalíptica, na iminência de uma catástrofe, caso continuemos a seguir o que ele chama de programa baconiano, qual seja, a colocação do saber a disposição da exploração da natureza em benefício da humanidade. Jonas (2006) considera que a dinâmica de êxito de tal programa obrigatoriamente leva aos excessos de produção e de consumo, e que sua aplicação com os parâmetros de racionalidade e retidão que lhe seriam apropriadas já teria feito sucumbir qualquer sociedade. Se a catástrofe ainda não ocorreu, isto se deve ao êxito do programa ter sido até o momento apenas parcial, pelo fato de tal programa não ter sido aplicado, desde as origens, na sua execução capitalista, em rigorosa obediência àqueles parâmetros de racionalidade e retidão. A ameaça de catástrofe contida no ideal baconiano reside, justamente, na medida de seu sucesso, o qual apresenta duas vertentes, a econômica e a biológica, cuja inter-relação, hoje evidente, necessariamente conduz à crise. O grande êxito econômico, durante muito tempo a única vertente visível, redundou na multiplicação da produção de bens per capita em quantidade e variedade e, paralelamente, na redução do trabalho humano e numa crescente elevação do bem-estar social para um crescente número de pessoas. Em conseqüência, experimentou-se um enorme crescimento das trocas metabólicas entre o corpo social e o ambiente natural, o que em si já representava um perigo de esgotamento dos recursos naturais. Todavia a outra vertente do êxito do programa, a biológica - o aumento numérico do corpo coletivo metabolizante, ou seja, o crescimento exponencial da população -, e da qual inicialmente tinha-se menor consciência, potencializou e acelerou o risco de uma catástrofe ecológica. Jonas (2006) aponta que o crescimento populacional não somente potencializa o processo do crescimento econômico como retira qualquer possibilidade de interrompê-lo, pois uma população estática poderia mais facilmente dar um basta nesse processo, mas uma população crescente obriga-se a querer sempre mais.
Dada à severidade da questão, diversas linhas de atuação têm sido contempladas. Uma delas refere-se às propostas dos reformadores ambientalistas visando refrear os efeitos destrutivos da industrialização sobre o meio ambiente. Como pontua Zimmerman (1990), os adeptos da chamada “ecologia profunda” criticam tais práticas reformistas por considerar que elas apenas conseguirão adiar a inevitável catástrofe. A proposta destes “ecologistas profundos” é de colocar questões mais percucientes sobre as origens da crise ecológica que, acreditam, residem no caráter radicalmente antropocêntrico da cultura ocidental. E que este antropocentrismo “representa todos os entes não humanos como matéria-prima útil ao engrandecimento dos projetos humanos” (ZIMMERMAN, 1990, p.355). Para estes ecologistas, portanto, será necessário que a humanidade ultrapasse essa posição antropocêntrica para atingir uma posição de igualitarismo biocêntrico, única forma de evitar-se a catástrofe ambiental.
Outra linha de atuação é aquela buscada pelos países, de forma individual ou coletiva, através de protocolos, dos quais o mais conhecido é o Protocolo de Kyoto, assinado por um grande número de países, porém sem contar com a adesão de Estados Unidos e Austrália. A realidade tem demonstrado ser bastante difícil obter um consenso mundial com relação à tomada de medidas que, de qualquer forma, também se situam apenas no plano técnico e econômico.
Finalmente mencionaremos um terceiro enfoque para o problema. Trata-se, como relata Lovelock (2006), de trabalhar em duas abordagens principais, quais sejam: uma delas consistindo na remoção da quantidade de calor que a Terra recebe do sol, enquanto que a outra se baseia na remoção do dióxido de carbono e outros gases de estufa do ar ou de fontes de combustão. Uma proposta para a primeira abordagem seria a construção no espaço de um pára-sol situado entre o a Terra e o Sol: um disco com aproximadamente 11 quilômetros de diâmetro capaz de desviar a luz do sol, colocado num ponto onde as atrações gravitacionais são iguais e opostas, o que demandaria pouco esforço para manter um tal disco no lugar. Na segunda abordagem conjectura-se sobre como isolar o dióxido de carbono e onde colocá-lo. Tanto a hipótese de soterramento no mar quanto no solo envolvem graves riscos ambientais. Todos esses projetos são de alto custo, de difícil execução e de resultados incertos. De qualquer forma, estaríamos mais uma vez utilizando soluções tecnológicas para enfrentar problemas gerados pela tecnologia, sem considerarmos qualquer mudança em nosso modo de ser.
Mas a ciência está em processo de mudança dos velhos paradigmas. Como assinala Morin (1999) o início do século XX marca uma revolução no campo do pensamento científico de até então, trazendo a substituição das características que o permeavam ordem e certeza pelos seus pares antitéticos desordem e incerteza. Os cientistas descobriram ser o mundo muito mais estatístico que determinista o que, segundo Lovelock (2006), foi uma conseqüência da total incompreensibilidade dos fenômenos quânticos. Com o desenvolvimento dos computadores, foi possível aos cientistas explorar o mundo da dinâmica, a matemática dos sistemas móveis fluidos e vivos. A análise numérica da dinâmica dos fluidos e da biologia das populações levou ao surgimento do conceito do “caos determinístico”.
Para lidar com esta nova realidade, Morin (1999) aponta para a importância do surgimento do conceito de espiral, trazido da cibernética, para rompermos com a nossa habitual crença na causalidade linear. A espiral nos permite pensar na retroação (feedback) que vem a ser um retorno das superestruturas nas infra-estruturas, impensável nas relações determinísticas. Morin (1999, p.33) clama pela necessidade de uma inteligência capaz de “contextualizar e globalizar , situar num conjunto se houver um sistema” (1999, p.33). Trata-se de um pensar complexo capaz de unir e diferenciar, em oposição ao conhecimento que separa ou reduz. A inteligência incapaz de contextualizar é chamada por este pensador de inteligência cega, capaz, por exemplo, de construir a barragem de Assouan no Egito, para propiciar a irrigação e fornecer energia elétrica. Entretanto, ao construí-la, os engenheiros não consideraram dois graves efeitos: a barragem acabou por reter boa parte do limo que fertilizava a baixa planície do Nilo e, ainda, ao reter em suas comportas uma parte dos peixes, afetou a alimentação das populações ribeirinhas na baixa planície. Outros exemplos, muito mais abrangentes dos efeitos da aplicação da “inteligência cega” a problemas complexos, vêm da atividade econômica. Capra (2002) evoca a questão da globalização. Esta doutrina, também conhecida como neoliberalismo ou acordo de Washington, parte de uma série de pressupostos encadeados numa relação determinista: os acordos de livre comércio impostos pela Organização Mundial do Comércio (OMC) a seus países-membros trarão aumento no comércio internacional; como conseqüência, haverá uma expansão econômica global, que, por sua vez, acarretará a diminuição da pobreza, pois seus benefícios, numa reação em cadeia, chegarão ao alcance de todos, até mesmo dos mais pobres. Muito ao contrário, Capra (2002) nos mostra, através da análise de Manuel Castells, como tal raciocínio é fundamentalmente equivocado, pois o capitalismo global, ao invés de promover o prometido alívio à pobreza e à exclusão social, agrava estas condições. Isto porque na formulação do acordo de Washington tais efeitos não foram levados em consideração, uma vez que os economistas empresariais sempre fizeram a exclusão dos custos sociais da atividade econômica de seus modelos de análise. Igualmente, a maioria dos economistas convencionais ignorou o custo ambiental da nova economia, que vem a ser o acelerado aumento da destruição do meio ambiente em todo o planeta, uma situação tão ou mais grave que os efeitos sociais. A globalização contribuiu dramaticamente para a degradação do meio ambiente. Como nos mostra Capra (2002), uma das tônicas desta doutrina é a de que os países pobres devem dedicar-se a produção de uns poucos produtos, essencialmente agrícolas, específicos para exportação a fim de obter divisas (moeda estrangeira) e com elas poder importar a maior parte das demais mercadorias de que necessitem. Isto resultou em diversos efeitos nefastos para esses países: esgotamento de lençóis freáticos pelo uso intensivo da irrigação em culturas que necessitam de água em abundância; redução das terras férteis em função de seu uso excessivo para monoculturas dedicadas à exportação; êxodo rural de um incalculável número de agricultores. E a política de sucateamento da produção local em favor das importações e exportações resulta, como assinala este pensador, em grande aumento da distância “da terra a boca”, ou seja, a comida passa a viajar muito mais.
Sintomaticamente Morin (1999), ao dissertar sobre os parâmetros da nova ciência que surge baseada no pensamento complexo, aponta a ciência econômica como uma daquelas que ainda não fizeram a evolução para o conceito de que a ciência não é mais algo isolado, de que o seu objetivo é o sistema. Esta compreensão já é, entretanto, demonstrada por alguns economistas, como Maurice Allais, Prêmio Nobel de Economia, que declarou: “Em economia tudo depende de tudo e tudo age sobre tudo” (apud MORIN, 1999, p.25).
Contextualizar e globalizar são condições necessárias para o trato das questões da vida cotidiana. Mas que se tornam absolutamente necessárias para o enfrentamento das questões de natureza planetária, aquelas que transcendem o âmbito das nações, nos diz Morin (1999). Resta saber se a nova ciência sistêmica será capaz de lidar com os grandes problemas da nossa era, e de executar, de forma conseqüente, megaprojetos como aqueles que descrevemos. De qualquer modo estaríamos, mais uma vez, nos valendo da tecnologia como exclusivo meio para resolver problemas criados pela tecnologia. E ainda que tais projetos venham a ser coroados de êxito, o resultado seria meramente o adiamento da catástrofe. E isto poderia já ser considerado satisfatório para muitos, pois talvez na verdade não estejamos objetivamente preocupados com aquilo que, pensamos, possivelmente só acontecerá em algumas dezenas de anos. Estamos de tal modo mergulhados na volúpia do consumo dos bens que o capitalismo nos fornece, tão sufocados por uma torrente de informações inúteis que já não somos capazes de processar, que não encontramos tempo para uma reflexão sobre o significado dos sinais de alarme. Uma elevação de 0,43 metros no nível do mar, em cem anos, por exemplo, pode ser considerada coisa com a qual não devemos nos importar agora. Entretanto, tal elevação [, como assinala o referido relatório do IPCC,] (retirar o texto entre colchetes, pois retiramos toda a parte que fala do IPCC) pode ser o suficiente para varrer regiões costeiras e países inteiros do mapa. E ela não surgirá de repente, será um processo construído ao longo dos anos, os efeitos não esperarão cem anos para se fazer sentir. Ademais, todas essas projeções catastróficas são produto da metodologia das ciências naturais, construídas a partir de modelos que tentam reproduzir o irreproduzível: as mutantes condições de Gaia. O “caos determinístico” substituiu as certezas, o que leva a sucessivas reavaliações das projeções fornecidas por estes modelos, à medida que eles vão sendo aperfeiçoados e novas variáveis sendo incorporadas. E estas projeções têm quase sempre sinalizado um futuro crescentemente ameaçador. Assim sendo, a elevação do mar ao nível de 0,43 metros, ou mais, pode muito bem ser atingida em um horizonte de tempo bem mais curto que um século. Ou não. Mas, vale a pena sermos otimistas fazendo esta aposta? Apostas já começam a ser feitas no sentido oposto. Artigo de Michael McCarthy (2007), do Independent, intitulado Visite o mundo antes que acabe, relata que empresas de turismo já se organizam para oferecer pacotes turísticos a lugares ameaçados de extinção, o que já seria chamado de turismo do aquecimento global. Alguns dos alvos já apontados para esse turismo são a ilha do Aquecimento, na Groelândia, surgida após o derretimento da geleira que fazia a ligação com o continente, e o Oceano Ártico, ameaçado de perder a sua cobertura de gelo no verão até o ano de 2020. A ironia desta nova atividade, conforme ressalta o artigo, está em que o afluxo de um novo tipo de turista em suas viagens a tais lugares ameaçados aumentará a queima de combustível fóssil, propiciando o surgimento de muitos outros. É o capitalismo em sua vertente mais anticivilizatória e descomprometida com a vida.
Voltando às considerações de Heidegger, vemos que a visão crítica do filósofo sobre a técnica moderna possibilita, não somente um entendimento do problema ambiental sob uma nova perspectiva, como fornece elementos para pensarmos de forma alternativa àquelas soluções propostas pelo pensamento que calcula. Mas, ao refletirmos nas indecisões e nos desacordos da comunidade das nações a impedir a tomada imediata de providências até mesmo de ordem técnica insuficientes, como já vimos, mas necessárias no curto prazo, pensamos que talvez tenhamos que nos aproximar ainda mais do perigo redentor evocado pelo filósofo no poema de Höderlin. Quem sabe então a natureza, cansada das agressões que lhes estamos impingindo, não nos daria uma última chance antes do Apocalipse? Que chance poderia ser esta? Uma catástrofe sem precedentes, talvez, de tal ordem que alguns bilhões de seres humanos perecessem, retornando a população da Terra a níveis aceitáveis para os mecanismos de auto-regulação de Gaia descritos por Lovelock (2006)? E que tal catástrofe destruísse ainda representativa parte da capacidade produtiva instalada no planeta ao longo de duzentos anos de industrialização descomprometida com o meio ambiente? Admitindo que já não tenhamos passado do ponto de retorno, nessa hipótese retroagiríamos a um padrão de civilização que nos permitiria voltar a viver em harmonia com Gaia, e poderíamos, ainda, quem sabe ainda, retomarmos o nosso futuro rompendo com aquilo que foi chamado de ideal baconiano.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os escritos de Heidegger sobre a técnica já datam de mais de cinqüenta anos e foram feitos numa época em que a ameaça de uma hecatombe nuclear era a preocupação largamente dominante, a possibilidade de um aniquilamento completo do planeta e da humanidade uma coisa bastante plausível. Vivia-se a guerra fria entre as duas potências dominantes, os Estados Unidos e a então União Soviética, e temia-se o apertar do botão nuclear a qualquer instante, fruto de um desatino de uma das partes. A ameaça era algo assim como um “tudo ou nada”: apertando-se o botão, a destruição de tudo; não se apertando, nenhuma destruição. A então ainda incipiente, mas insidiosa poluição e envenenamento do meio ambiente causada por atividades outras que não a nuclear, não era ainda questão que pudesse ser considerada como grave ameaça potencial à humanidade.
Mas foi justamente nesses últimos cinqüenta anos após os escritos de Heidegger que a devastação ecológica do planeta acelerou-se de forma dramática, agora ameaçando, de fato, a sobrevivência da humanidade. O risco nuclear é considerado extremamente minimizado, a guerra fria terminou com a queda do muro de Berlim, em seu lugar preocupamo-nos com o aquecimento global, com o envenenamento das águas, com o degelo da Antártica. Em sua atividade industrial, a humanidade persiste na concepção da técnica como de desafio à natureza, de considerá-la como reserva a ser explorada.
Ainda que refutemos como descabidas as previsões mais pessimistas emitidas cada vez mais amiúde pela comunidade científica, e acreditemos que a despeito da degradação ambiental ainda haja espaço para uma reversão desse processo, devemos ter em mente as considerações de Heidegger segundo as quais a atuação direta sobre a degradação ambiental, embora necessária, é por si só insuficiente. Seria necessário o homem viver sua abertura de sentido, experimentar outras possibilidades de usar a técnica que não seja aquela que o está encapsulando e levando-o, por fim, ao seu próprio aniquilamento. O derretimento das geleiras, a elevação da temperatura do planeta, o aumento do nível dos mares, a extinção de espécies animais, o surgimento de novas doenças e o reaparecimento de outras são alguns dos dramáticos efeitos associados à ação predatória do homem. São temas até há pouco merecedores de atenção apenas de cientistas preocupados com a questão ambiental e de ecologistas. Com a rápida aceleração do agravamento do quadro o assunto vem recebendo cada vez maior exposição por parte da mídia, já parecendo começar a inquietar a uma parcela cada vez maior das populações mundiais. Entretanto, o foco das ações propostas continua sendo meramente tecnológico.
O pensamento que calcula continua mais ativo, sobrepujando o pensamento que medita, e a modernidade tem como atitudes bastante características o consumismo, o individualismo e o hedonismo. As relações se tornam fluidas, são relações de interesse, duram enquanto atenderem às mútuas demandas, enquanto forem mutuamente úteis. Há uma supremacia do ter sobre o ser, a propriedade é considerada uma extensão da personalidade - uma herança do Iluminismo. A modernidade fornece uma série de sentidos “prontos”: o conceito de corpo perfeito, de felicidade plena, de sucesso...
Heidegger permanece atual. Sua apreciação de que os esforços despendidos para resolver os danos causados pela tecnologia são ainda manifestações de um modo tecnológico tornam-se evidentes quando se examinam as soluções para esse fim, quer propostas pela comunidade científica, quer pelos políticos ou pelos grupos ambientalistas tradicionais. Os esforços para deter por meios técnicos a poluição ambiental são obviamente necessários, mas por si só totalmente insuficientes para lidar com a questão. Apenas lograrão adiar o cataclisma que se avizinha.
Heidegger nos ensina que somente quando o homem abandonar a sua postura de desafio à natureza, deixar que o pensamento reflexivo aflore como um contraponto a hegemonia do pensamento que calcula, quando de alguma forma voltarmos a um enraizamento mínimo, poderemos romper com o paradigma filosófico imposto à civilização ocidental desde Platão, e tornado operacional a partir da notável revolução científica do século XVII.
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Endereço
para correspondência:
Elizabete
da Costa Ribeiro
José Antônio de Carvalho
E - mail:bethcostaribeiro@yahoo.com.br/josea.carvalho@globo.com
Recebido em:23/03/12
Aprovado em:04/07/12