ARTIGO


Orientação profissional na abordagem gestáltica: reflexões históricas para uma práxis fundamentada.

Career counselling in the Gestaltic approach: historical reflections for a substantiated praxis

Lauane Baroncelli

 

Endereço para correspondência



RESUMO

A busca pela fundamentação da práxis em orientação profissional e as reflexões sobre as suas possibilidades, limites e contradições deve se efetivar como um processo contínuo e sempre mais aprofundado. Considerando que o aspecto histórico da orientação profissional possui implicações fundamentais na práxis do orientador, partimos, neste artigo, do desenvolvimento de reflexões em relação às suas origens históricas. Em seguida, discute-se como a abordagem gestáltica se posiciona teoricamente no que concerne às questões suscitadas por tais implicações históricas, podendo contribuir para o desenvolvimento do campo da orientação profissional como um todo.

Palavras-chave: Orientação profissional; história; abordagem gestáltica.



ABSTRACT

The substantialization of the career counselling praxis and the reflections on its possibilities, limits and contradictions must be a continuing and ever deeper process. Considering that the historical aspect of the work of vocational guidance has fundamental implications to the counsellour’s praxis, we begin this article by reflecting on the historical origins of this work. Then, we discuss how the Gestalt approach, from its theoretical basis, can respond to the issues raised from the historical implications of the occupational counseling process, which we hope will contribute to the career counseling field as a whole.

Keywords: Career counseling; history; gestaltic approach.

 


INTRODUÇÃO


Estudos com os de Noronha e cols. (2006) revelam que principalmente a partir da década de 1990 o número de publicações na área de orientação profissional no Brasil vem aumentando progressivamente. No entanto, dada à complexidade do campo, a busca pela fundamentação da práxis1 em orientação profissional deve se efetivar como um processo contínuo e sempre mais aprofundado.

Consideramos que o aspecto histórico do trabalho de Orientação Profissional possui implicações fundamentais na ação do orientador. Assim, o desenvolvimento de reflexões e, conseqüentemente, de posicionamentos em relação às origens históricas deste trabalho e da própria escolha profissional torna-se parte de uma contextualização indispensável para a reflexão sobre o tema. Nesta ótica, iniciaremos este artigo com uma breve recapitulação dos marcos históricos da escolha profissional e, a partir dela, do trabalho de orientação profissional para, em seguida, partirmos para a discussão acerca dos posicionamentos gestálticos a respeito da práxis em orientação profissional.

Na busca de compreender a história da escolha profissional, constata-se que nem sempre o homem escolheu seu próprio trabalho. Desde a época tribal, transitando pela Época Antiga até o final da Idade Média, homens e a mulheres concebiam o trabalho predominantemente como obrigação, necessidade e, às vezes como castigo, sendo a profissionalização determinada, sobretudo, por regras rígidas concernentes a posição social (Bock, 2002; Lassance e Sparta, 2003). Neste cenário, o trabalho a ser feito era basicamente determinado pelo “lugar” que homens e mulheres ocupavam na sociedade, de modo que aquilo que hoje entendemos como escolha de uma profissão praticamente inexistia.

É com a instalação do modo de produção capitalista no advento da Idade Moderna, que começa a ser desenvolvido um novo conceito de profissão. Neste, o trabalhador se torna supostamente livre para vender a sua força de trabalho. Contudo, de modo subjacente à nova liberdade alcançada, surge uma relação de dependência com o próprio capital. É nesse contexto de ambígua liberdade que a idéia de escolher uma profissão começa a se desenvolver (Bock, 2002).

Acompanhando os estudos de Bock (2002), Pimenta (1981), Lassance e Sparta (2003), dentre outros, constata-se que com a Revolução Industrial, o capitalismo alcança uma nova fase em que se engendra a divisão técnica do trabalho e princípios como produtividade e o lucro passam gravitar no centro deste sistema. Inaugura-se a idéia do “homem certo no lugar certo” e, com isso, a escolha profissional correta e bem feita passa a ter uma importância central para o desenvolvimento e manutenção do sistema. É, portanto, em um contexto de grande desenvolvimento industrial, em que o trabalho assalariado assume organização repetitiva, fragmentada e a produção assume formato de larga escala, que começam a surgir as primeiras iniciativas mais sistemáticas em orientação profissional. Tais iniciativas pautavam-se, sobretudo, em interesses econômicos bastante claros: era necessário descobrir vocações, selecionando os homens certos para que os objetivos máximos de produtividade e lucro fossem garantidos.

Na lógica da seleção profissional, com a qual o trabalho de orientação profissional era associado na época (Ferretti, 1997), importava a identificação de características individuais que, sendo comparadas às características necessárias para cada atividade profissional indicariam a vocação do indivíduo e, na seqüência, a profissão mais adequada a ele.

Assim, conforme analisado por Bock (2002), a orientação profissional nasce como uma prática cujos objetivos estavam associados ao aumento da eficiência produtiva industrial, tendo como um dos marcos de seu surgimento a criação, entre 1907 e 1909, do primeiro Centro de Orientação Profissional norte-americano sob responsabilidade de Frank Parsons (Rosas, 2000). Frank Parsons, considerado, desde então, o pai da Orientação Profissional, desenvolve na primeira década do século XX uma sistematização teórico-prática pioneira. Por meio desse sistema, a mencionada lógica da adequação entre as características individuais e as exigências das profissões começa a impregnar as práticas desenvolvidas na área. Segundo Uvaldo e Ribeiro (2007), Parsons era envolvido com movimentos progressistas do final do século XIX, opondo-se ao capitalismo considerado por ele um sistema produtor de desigualdades sociais. No entanto, a proposta parsoniana, por meio de uma abordagem racional que associava características individuais com exigências profissionais, acaba reproduzindo a idéia de adaptação do indivíduo à ocupação, associando, numa mesma equação, sucesso profissional e o bem da economia.

Com o desenvolvimento da psicometria, após as duas grandes guerras, o uso de instrumentos de avaliação psicológica ajuda a conformar o que ficou posteriormente conhecido como Teoria do Traço e Fator. Nesta, o orientador aplica diversos testes e, a partir da aferição destes resultados, aconselha o orientando sobre a melhor opção a seguir. Neste sentido, o objetivo do processo, assim como na proposta de Parsons, é definir as áreas profissionais mais adequadas para o indivíduo, ou seja, aquela nas quais suas chances de sentir-se adaptado e produtivo são maiores (Sparta, Bardage & Teixeira, 2006).

Concordamos com a análise de Sparta, Bardage & Teixeira (2006), segundo a qual, com o surgimento de novas teorias em orientação profissional, as abordagens baseadas nas idéias de Traço e Fator não se diluíram completamente. Ainda hoje encontramos vários de seus vestígios nas diferentes práxis em orientação profissional, destacando-se, nesta linha, as propostas que utilizam testes psicométricos a fim de determinar as melhores opções profissionais para o indivíduo por meio da mensuração das diversas habilidades, aptidões, interesses e características de personalidade que formam um determinado perfil profissional.

Assim, embora seja verdade, como analisam Lassance e Sparta (2003), que durante a segunda metade do século XX, o campo da Orientação Profissional como um todo tenha transferido o foco da produtividade para o sujeito de escolha, a procura de tecnologias – clínicas ou psicométricas - para identificar o perfil pessoal do indivíduo, associando-o em seguida às exigências das diferentes ocupações, ainda se impõe como legítima. Nestas propostas, embora o ideal de produtividade se coloque como subsidiário à decisão do indivíduo, a idéia de que indivíduos com características supostamente estáticas devem procurar adaptar-se ao sistema permanece, senão intacta, ao menos fragilmente questionada.

Além disso, conforme autores como Ferretti (1997), Pimenta (1981), Bock (2002), e outros vêm analisando, diversas propostas em orientação profissional, ao focalizarem o papel do indivíduo na escolha, acabam por manifestar os princípios da ideologia liberal. Segundo Ferretti (1997), de acordo com estes princípios, o homem é tomado como um ente sempre individualizado e nunca visto em sua inserção cultural. O indivíduo historicamente proclamado pelo Capitalismo permanece, portanto, embasando perspectivas em orientação profissional que concebem o sujeito como um ser abstrato e autônomo que atualiza uma liberdade apartada de sua existência concreta no mundo. Nessa perspectiva, o sucesso ou insucesso profissional é concebido como resultado, sobretudo, do esforço do indivíduo, esforço este que deve estar associado a uma escolha profissional adequada.

Ecoando o novo ideário liberal subjacente ao capitalismo, a noção de responsabilidade individual se propaga como o parâmetro para entender as realizações dos indivíduos, sendo que considerações acerca das condições que conformam o horizonte individual de opções são tomadas de modo secundário (Willig, 2009; Bauman, 2001).

A orientação profissional, tendo surgido, como apontamos acima, de modo extremamente vinculado às necessidades da ordem sócio-econômica vigente, vêm historicamente deparando-se com a tendência a reproduzir – de modo mais ou menos explícito - a perspectiva liberal, adotando uma visão essencialista e abstrata de homem e de mundo. Essencialista, por considerar ser a essência dos indivíduos que, uma vez “descoberta” e, em seguida, corretamente cultivada, que fundamentalmente explica o desempenho individual. E abstrata, por negligenciar as condições contextuais (concretas) e, mais especificamente, o horizonte de oportunidades sociais e econômicas que, marcadamente, constituem os indivíduos.

Posicionamentos Gestálticos

Na medida em que não caberia no escopo deste ensaio uma apresentação completa e aprofundada da abordagem gestáltica para em seguida estabelecer as devidas conexões com o tema da orientação profissional, focalizaremos nossa atenção nos fundamentos teóricos e filosóficos que permitem esclarecer como esta abordagem se posiciona diante das mencionadas raízes históricas do trabalho de orientação profissional.
Para iniciar, vale ressaltar que tais fundamentos teóricos e filosóficos entram em clara tensão com a perspectiva do mencionado ‘modelo de perfis’, bem como com a lógica liberal de adaptação do indivíduo à sociedade pregnante no campo da orientação profissional até os dias de hoje.

A abordagem gestáltica assume uma perspectiva filosófica existencial-fenomenológica. Nesta, o indivíduo é, dentre outros aspectos, concebido como um ser-em-relação e um existente aberto para as suas possibilidades, sempre em dinâmica transformação e transcendência de si mesmo (Miller, 1990). Por conseguinte, não possui características definitivas que possam ser tomadas como dados imutáveis e absolutos. Com isso, a idéia de um perfil pessoal composto de características dadas que possam destinar um indivíduo para uma determinada função profissional torna-se bastante questionável e problemática no contato com os princípios da abordagem gestáltica. Sendo visto como um vir-a-ser, o existente é um ser se fazendo e, por isso, é capaz de cuidar do próprio ser e de se projetar (Ribeiro, 1985), sendo a sua personalidade atual uma contingência da existência concreta, e não um destino inexorável.

Tais considerações permitem vislumbrar que, na compreensão gestáltica, pretender que o processo de orientação profissional se destine a possibilitar ao cliente o reconhecimento das características que já possui para que então descubra a profissão com a qual melhor se adapta e por meio da qual será mais produtivo, significaria tomar o existente como um ente dado e estático que deveria adaptar-se a um sistema igualmente fixo e transcendente a ele.

De modo contrário a esta perspectiva, um orientador vocacional gestáltico deve considerar que se é verdade que o cliente possui determinadas características construídas ao longo do tempo, estas características são sempre provisórias. Segundo a sua escolha e, ainda, segundo as suas possibilidades e recursos disponíveis, podem ser alteradas. Assim, concordamos com a afirmação de Bock (2002): “A identidade é metamorfose, e essa concepção será a base do entendimento da escolha profissional: o indivíduo modifica-se permanentemente, constrói sua identidade permanentemente, não é e nunca estará acabada sua forma final” (p. 70).

Vale ressaltar, entretanto, que ao afirmar a condição de abertura de um existente de possibilidades, a abordagem gestáltica não desconsidera características pessoais do indivíduo que podem ser guias úteis para a escolha da profissão. Na verdade, no que tange ao processo de orientação profissional, tais características serão levadas em consideração, porém, sem ignorar a capacidade de transformá-las, agregando novas criações de si mesmo ao que já está configurado no momento. Tal perspectiva comunga com a idéia humanista de homem como ser de potencialidades e com a perspectiva existencial de um ser humano nunca acabado (Aguiar, 2005).

Outro aspecto importante a ser considerado é que a concepção gestáltica de liberdade de escolha não concorda com a idéia de indivíduo abstrato e autônomo, inerente, como mencionado anteriormente, à perspectiva liberal. Na realidade, a concepção acerca da liberdade da Gestalt-terapia é complexificada sob a perspectiva de indivíduo relacional e contextualizado. Tal perspectiva se traduz, como analisam Perls, Hefferline e Goodman (1997) no livro inaugural da Gestalt-terapia, na idéia de campo organismo-ambiente:

“Em toda e qualquer investigação biológica, psicológica ou sociológica temos de partir da interação organismo-ambiente. Não tem sentido falar, por exemplo, de um animal que respirar sem considerar o ar e o oxigênio como parte da definição deste, ou falar de comer sem mencionar a comida (...). Não há uma única função, de animal algum, que se complete sem objetos e ambiente (...) Denominemos esse interagir entre organismo e ambiente em qualquer função o ‘campo organismo/ambiente’ e lembremo-nos de que qualquer que seja a maneira pela qual teorizamos sobre impulsos, instintos, etc., estamos nos referindo sempre a este campo interacional e não a um animal isolado” (p.42-43).

Nesta ótica, nenhum ato humano, nem mesmo a afirmação da liberdade dada no ato de escolher, pode ser concebido numa espécie de vácuo independente de qualquer interação com o contexto, pois, se compreendemos um homem em relação indissociável com o meio, configurando um campo organismo-ambiente, qualquer ação humana, incluindo a liberdade de escolha, se desenrola na concretude de uma situação dada. Como definido por Yontef (1998), para a Gestalt-terapia, uma pessoa e seu meio são de-um-campo: “O indivíduo é definido, num dado momento, apenas pelo campo do qual faz parte, e o campo só pode ser definido pela experiência ou do ponto de vista de alguém” (p.190).

A própria noção de self na abordagem gestáltica rompe com a noção de um eu solipsista, plenamente individual, passando a ser concebido como contato e interação contínua com o meio (Robine, 2005). O indivíduo é visto, portanto, a um só tempo, como contextualizado e livre. No âmbito da orientação profissional, se é verdade que a escolha por uma profissão é condicionada pelo contexto social, é igualmente verdadeiro o fato de que o indivíduo também condiciona o ambiente, re-agindo sobre ele de maneira a exercer a sua liberdade. Neste sentido, a compreensão de escolha para a Gestalt-terapia se configura de acordo com uma perspectiva complexa que sugere a correlata complexidade do trabalho de um gestalt-terapeuta que se envolve com a tarefa de orientar o processo de escolha profissional. Não nos filiamos, portanto, nem à lógica liberal que promete que esforço e talento são as chaves do sucesso de um indivíduo concebido como autônomo em relação ao meio, nem à idéia de determinação absoluta pelo contexto. Na verdade, o orientador profissional gestáltico se posiciona no tênue e justo limiar de uma visão holística na qual escolha e responsabilidade estão em permanente e indivisível interação.

No que diz respeito à atuação do orientador, uma prática efetivamente gestáltica não pode polarizar o foco de intervenção nas questões individuais do cliente, como se estas ocorressem de modo independente das questões de sua existência concreta e contextualizada. Isso significa dizer que questões subjetivas e questões objetivas não possuem existência em si mesmas, mas, antes, se interpenetram de um modo integrado em que as faces ‘objetiva’ e ‘subjetiva’ são indistinguíveis num todo que, embora multifacetado, é global e único.

Materializando tais princípios, um cliente que pensa em fazer Enfermagem, por exemplo, pode estar atualizando em sua escolha, simultaneamente, fantasias neuróticas relacionadas com sua história pessoal, padrões rígidos e não-saudáveis de comportamento e escolha, identificações com estereótipos propagados na cultura, preconceitos relativos a gênero, desconhecimento da profissão em questão, evitação de outras possibilidades por medo do desemprego ou de ser reprovado(a) no Vestibular, sentimentos opressivos diante de sua posição na sociedade, dentre outras questões. Todos estes aspectos, entretecidos no campo organismo-ambiente, compõem o cenário no qual tal escolha é realizada e é, portanto, este cenário global que deverá ser levado em consideração. Escolha individual é escolha-individual-no-meio, uma escolha concreta em que o indivíduo precisa negociar e responder às exigências e condicionantes do contexto. Além disso, o sistema vigente, ao invés de manter-se como pólo intocável ao qual o indivíduo deve passivamente se sujeitar, adaptando-se a ele, pode se constituir como alvo de questionamento e discriminação crítica do sujeito que escolhe.

A idéia de adaptação do indivíduo à sociedade, servindo aos fins de produtividade do sistema, se choca com a consideração de um existente livre e, ainda, com a própria concepção de saúde inerente à abordagem. Como analisado por Frederick Perls (1977), adaptar-se à sociedade pode ser um indício de funcionamento neurótico de um indivíduo que rende a responsabilidade na escolha de si mesmo e sua capacidade de questionar e transformar a si mesmo e o mundo, aos impositivos do sistema.

O conceito de ajustamento criativo, centrais para a abordagem, oferece mais nuances acerca do posicionamento gestáltico sobre a idéia de adaptação e, ainda, de modo mais amplo, sobre a relação homem-mundo. Segundo Prestrelo (2008): “Ajustamento consistiria na capacidade/possibilidade de, em determinado espaço-tempo, podermos identificar a melhor forma de interagirmos num determinado momento. Criativa porque elástica, nova, exercício de possibilidades” (p.46). A autora destaca o sentido ativo do conceito. Se na perspectiva adaptativa, um indivíduo isolado se encaixa ou não a algo que lhe é exterior (no caso em estudo, a sociedade), a noção de ajustamento criativo como mecanismo fundante do contato do indivíduo-no-campo, carrega, ao contrário, a noção de interação. Sendo assim, o indivíduo se constitui nestas trocas e negociações intrínsecas com o contexto. Nestas, ao mesmo tempo em que vai sendo constituído no espaço-tempo em que vive, pode lidar criativamente com isso, escolhendo e criando a si mesmo a cada passo. No ajustamento criativo, o indivíduo fará então o possível para equilibrar-se diante da circunstância em que se encontra num balanço criativo entre recursos e possibilidades de si mesmo e do contexto. Com isso, evita-se o equívoco de considerar um indivíduo fora do mundo, numa liberdade metafísica e abstrata, e também, por outro lado, de reduzi-lo à mera conseqüência de suas condições contextuais.

Desta maneira, o indivíduo na concepção gestáltica é visto como irremediavelmente livre para ser, criar, transformar, e, simultaneamente, constituído por características biológicas, culturais, sócio-econômicas, subjetivas, espirituais e, também, pelas características pessoais que desenvolveu nas vicissitudes de sua vida pessoal, por meio dos ajustamentos criativos que vem construindo até então. Vale insistir que, como anteriormente dito, tais características não existem, para a Gestalt-terapia, como elementos isolados nem tampouco estáticos que se somam na existência de cada pessoa. O indivíduo concreto e contextualizado da abordagem gestáltica é a configuração de todos esses elementos entretecidos, um todo único que possui, ainda, espaço e abertura para a liberdade.

No cerne do debate sobre o papel do contexto na constituição do indivíduo está, ainda, a questão do trabalho de orientação profissional com indivíduos oriundos das classes populares. Como analisa Bastos (2005), a orientação profissional, assim como vários outros bens culturais, incluindo a Psicologia, tem historicamente servido e sido pensado para a realidade de jovens oriundos das classes médias e altas da sociedade. Nesta lógica, refletindo uma ilusão de neutralidade técnica, comumente são utilizadas propostas homogêneas independentemente da realidade social para quem se destinam.

Na prática, ignorar a especificidade do trabalho de orientação profissional de acordo com o pertencimento social do orientando apresenta o risco de configurar uma prática absolutamente inócua – porque afastada de reflexões sobre a concretude existencial do cliente - ou, ainda, perversa, limitando a escolha desses jovens a opções de cursos técnicos ou trabalhos operacionais. Neste caso, como analisa Bastos (2005), ignora-se que aquilo que o orientador profissional considera uma escolha deste indivíduo por um curso técnico ou trabalho operacional pode - embora não necessariamente - ser tão somente a possibilidade que restou diante de sua posição na sociedade. Na ótica gestáltica, por sua vez, diríamos que a opção por um curso técnico ou por uma vaga de padeiro, por exemplo, não deixa de configurar uma escolha, mas certamente, é uma escolha situada no campo organismo-ambiente daquele que escolhe.

Nestes casos, a idéia de identificação do perfil profissional para fins de adaptação, mostra de modo mais explícito, seu caráter perverso. Provavelmente, dadas as condições do campo, o perfil profissional de indivíduos pobres estará de acordo com a manutenção das desigualdades do sistema. Assim, se nos limitamos a identificar perfis, sem questionar as forças que configuram o campo, continuaremos a agir como peças para a reprodução dos interesses vigentes, independentemente do serviço às pessoas.

Deste modo, insistimos, não podemos ignorar o fato de que lidamos com uma escolha livre e situada num sistema cultural, econômico e político específico. Com isso, estudar sobre o mundo do trabalho atual, seus aspectos políticos e econômicos, a realidade dos jovens e adultos brasileiros no mercado de trabalho e as oportunidades e obstáculos existentes, além de ter uma visão crítica sobre a concretude da existência do indivíduo que escolhe num contexto dado, dentre outros aspectos, faz parte da formação de um orientador profissional gestáltico tanto quanto sua compreensão e domínio da teoria e metodologia da abordagem.

Para finalizar, gostaríamos de assinalar que o caráter preeliminar deste estudo sugere a necessidade de aprofundamentos e ampliações que dêem conta da especificidade da ação da abordagem gestáltica sobre o trabalho de orientação profissional, em seus mais variados aspectos. No entanto, acreditamos ter iniciado a discussão fundamental sobre as bases que fundamentam o posicionamento da abordagem acerca das questões suscitadas pelas raízes históricas desta ação, contribuindo, ainda, para aprofundar as reflexões sobre o campo da orientação profissional como um todo.


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Endereço para correspondência

Lauane Baroncelli

E- mail:lauaneb@gmail.com

 


Recebido em: 19/02/2012
Aprovado em:
04/07/2012