ARTIGO


A prática clínica individual como desdobramento e reverberação do coletivo

The individual clinical practice as a deployment of the collective reverberation


Laura Cristina de Toledo Quadros



RESUMO

O presente artigo visa discorrer acerca da prática clínica em Gestalt Terapia considerando que a psicoterapia individual é interferida por múltiplas experimentações que representam experiências desdobradas no coletivo.Se a clínica se constitui pelo segredo e ele convoca as emoções para a interiorização, buscamos refletir sobre a necessidade de retomarmos a compreensão de nossa prática como um processo de compartilhar ressaltando a importância desta possibilidade como resgate daquilo que nos aproxima, nos humaniza e nos mantém em relação.

Palavras chave: Prática clínica; Experiência coletiva; Gestalt-Terapia.


ABSTRACT

This article aims to discuss about Gestalt Therapy clinical practice considering that individual psychotherapy is interfered by multiple experimentations that represent collectives expeirences. The clinical practice is sustained by the secret taking the emotions for the internalization. We will think about the necessity of understanding our practice like a process of sharing, emphasizing the importance of this possibility like ransom of what draws us togheter, humanize us and keeps us in relationship.

Key words: Clinical practice; Collective experience; Gestalt-therapy.

Nestes últimos anos me vejo atravessada pelos impactos das experiências vivenciadas em múltiplos espaços: a comunidade, a sala de aula, o consultório, o grupo de amigos, a minha família, a rua, a cidade, o país... Considerando a perspectiva gestaltista ressalto que esse elenco diverso não deve ser compreendido como somatório de experiências, mas sim como uma configuração dinâmica que forma uma totalidade organizada pelo que vivo, sinto, percebo, enfim, pelo que experimento.. Portanto, o que me constitui hoje como terapeuta é uma articulação desses processos que, a meu ver, refazem os contornos de uma existência individualizada e me deslocam do ser-no-mundo para o ser-com- o mundo .

Como pessoas, somos um coletivo. Nascemos de um par. São necessários dois para fazer um. Assim já adentramos nossa existência num coletivo. A despeito da qualidade de participação e interação entre esses membros, somos afetados por eles e também os afetamos. É neste coletivo e a partir dele que nos constituímos. É importante reconhecer que estamos conectados numa rede que nos envolve, nos aprisiona ou nos ampara. O conceito de indivíduo que emerge da dicotomia moderna indivíduo/sociedade, merece aqui uma revisão.

A perspectiva de Bruno Latour (2008),considera fundamental uma releitura do social que, segundo ele, envolve pessoas, materialidades, condições, emoções, constituindo-se num coletivo em rede entrecortado por vários elementos e ações. O social é, então, um processo vivo e ativo. Assim, a noção de indivíduo torna-se igualmente revista, visto que ele não deve ser reduzido nem à própria interioridade nem às condições do meio.

Latour (2000) introduz no âmbito das ciências uma perspectiva de articulação entre as dicotomias clássicas que predominaram nos modelos científicos dos últimos séculos, considerando a inviabilidade de fragmentar as ordens sem descaracterizá-las por completo.

Assim, a marca primordial que funda o pensamento científico moderno e separa ciência de natureza, indivíduo de sociedade, sujeito de objeto, seria uma “ficção” forjada pela necessidade de compreender o mundo a partir de suas relações mecânicas, objetivas e materiais. Esta seria uma pretensão de chegar à essência das “verdades” e, consequentemente, à garantia das certezas onde a ciência seria a legisladora dos modos de organização de um mundo factual, estável, regular , apreensível e explicável.

Embora estejamos ainda apegados ao conforto das certezas que nos permitem “algum” domínio do conhecimento, a evolução da própria ciência aponta para a impossibilidade da primazia de um único método de investigação. Se considerarmos o contexto das ciências sociais, ficará ainda mais evidente a inadequação de uma metodologia puramente experimental, marcada pela lógica cartesiana para abordar os fenômenos produzidos nesta dinâmica. Assim, não há um mundo puramente cartesiano, “arrumado”em sequências ordenadas pela causalidade.

Sob esta ótica, os acontecimentos são movimentos onde objetos e pessoas estão em conexão formando elementos híbridos com uma certa indissociabilidade. Portanto, a ênfase está nas conexões, articulações, alianças, constituindo redes que produzem formas, relações, deslocamentos impermanentes.

Voltando-nos para as mudanças que vêm afetando o homem como ser em relação, é importante destacar que a transição do século XVIII para o século XIX lança este homem num desfio sem precedentes. As novas possibilidades que então despontavam traziam implícita a promessa do progresso e com ele o conforto, a potência, a autonomia. A mecanização traz novas necessidades e com isso outras estruturas sociais que nos afastam dos clãs e das tribos e nos transferem para organizações sociais. As cidades crescem, os espaços públicos tornam-se normatizados e a vida privada vai gradativamente retirando o homem das trocas coletivas espontâneas e dirigindo-o para a interiorização. O progresso redimensiona os modos de construção do sujeito.

Despret (2011) ressalta que os modos de construção do sujeito foram capturados pela compreensão interiorizada e interiorizante aprisionando-o dentro si mesmo em busca da revelação. Essa seria uma das tarefas da clínica que também se encena no espaço privado onde o paciente encontra lugar para expressar seus segredos à alguém que se compromete a guardá-los, utilizando-os como dispositivo para o desenvolvimento do próprio processo terapêutico. É o que chama de “tratar o segredo pelo segredo” (op.cit,).

A autora destaca o delicado terreno que se forma nessa lógica apontando o quanto uma prática que se constitui na premissa do segredo e do secreto torna-se geradora desse tipo de demanda. A clínica se constitui pelo segredo por que as pessoas precisam de um lugar para “tratá-los” ou as pessoas produzem segredos por ser a única alternativa possível para compartilhar nesse espaço? Para Despret,

"Se aceitarmos essa tradução, a questão do segredo muda de registro: não se trata mais de saber o que é um segredo, de compreender a essência, a história ou a função, mas de explorar de maneira muito pragmática o que faz o segredo e o que ele faz fazer" (2011,p.9).

Mais adiante ela ainda acrescenta,

"O segredo não faz oura coisa: ele fabrica seres interiores. O segredo, como dispositivo teórico e técnico, constrói uma forma particular de experiência de desordem. Ele engaja o paciente em viver e em traduzir sua perturbação enraizando-a no mais profundo de sua intimidade Essa tendência será ainda mais forte quando uma boa parte de nossos modelos de doença mental articulam, de maneira cerrada, teorias de distúrbios e teorias de emoções" (op. cit,p.10)


O legado de uma ciência positivista, mecanicista e materialista é bastante desafiador para nós psicoterapeutas. Muitas vezes, a primazia da razão lança a emoção para esse interior, para as profundezas do segredo gerando uma segregação que isola o que pode ser compartilhado daquilo que não pode ser compartilhado. Se o que “não pode” insiste em escapar, não raramente corre o risco de ser classificado numa categoria patológica pela inconveniência e pelo sofrimento de tornar público o que deveria estar resguardado Nesse sentido, a emoção fica indevidamente qualificada ou exilada como um processo necessariamente individualizado e cercado de um certo estranhamento no contexto social.

Numa leitura contemporânea de W. James realizada por V. Despret (1999) , ela destaca a emoção como um processo em fluxo não devendo ser reduzido nem ao “sociologismo” nem ao “psicologismo”, podendo assumir simultaneamente um caráter social e individual.

As emoções acontecem no âmbito das práticas sociais e configuram o espaço de indeterminação, pois não podem ser previstas nem necessariamente provocadas a priori. Elas emergem, são colocadas em cena a partir de dispositivos contextualizados na relação.

Despret (op.cit) nos convida a sermos tocados também pela perspectiva de outras culturas acerca das emoções. Ao chegarmos num universo cultural diferenciado do nosso, podemos explorá-lo desvelando uma leitura que vai sendo construída através de nossa percepção e pelo despojamento de nossas “verdades”. Embora configuremos as coisas sob o nosso ponto de vista, precisamos também nos abrir para novos pensamentos evitando imposições teóricas sobre os modos de ação de outros povos, outras culturas, outros contextos sociais, estabelecendo o espaço da compreensão e da negociação

Numa prática clínica esse processo não deve acontecer de modo tão diferente. Cada história é uma história não apenas por seu caráter subjetivo, mas principalmente pelas múltiplas relações que elas carregam. Portanto, teoria e prática precisam ser articuladas no intervir. Se realizamos uma mera transposição aplicada, perdemos a dimensão do fenômeno e corre-se o risco de imposições desastrosas. Se atuarmos na contraposição, também não conseguiremos sustentar a intervenção. Porém se pudermos construir uma intervenção que se articule sem invalidar nem o conceito nem a relação, é possível atuar de forma simétrica.

Por simetria devemos entender a não imposição de conceitos, verdades ou versões, legitimando o outro como detentor de um saber que devemos conhecer e, sobretudo, nos deixar interferir, ser tocado por ele. Nesse contexto as emoções precisam ser recolocadas como possíveis e legitimas ao invés de serem entendidas como deslocamentos insubordinados ou primitivos. Além dessa perspectiva, uma relação simétrica exige que nos coloquemos num lugar despretensioso onde a potência se mantenha na relação. Embora a Gestalt terapia em sua base fenomenológica nos convoque esta atitude, acredito ser este um dos aspectos mais delicados de nossa atuação.

Quando falamos em clínica remetemo-nos em geral a uma prática entre um terapeuta e um cliente (seja indivíduo ou grupo), sendo que este último precisa de ajuda. Conceitua-se psicoterapia como um tratamento e, portanto, pressupõe-se sofrimento que deve ser identificado/diagnosticado, definido, nomeado, compreendido, enfim, tratado. O psicoterapeuta tem que descobrir o que a pessoa desconhece e saber como lidar com isso.

O psicólogo, em especial o psicoterapeuta esta fortemente referenciado numa idealização de ajuda. Em pesquisa realizada pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e pela Universidade Luterana do Brasil (Magalhães et alli, 2001), confirma-se a ideia predominante entre os estudantes de psicologia que elegem a prática clínica como sendo a atuação fundamental do psicólogo, traduzindo-a como a ação de “ajudar as pessoas” e “curá-las” de seus males emocionais e existenciais. Tal ideia ainda abriga influências evidentes da clínica médica marcada pela busca de resultados e, por que não dizer, pela onipotência de ser o “curador” ou o “salvador” do outro. Esse forte imaginário pode manter uma desigualdade na relação terapeuta/cliente estimulando uma perigosa onipotência também na forma de intervenção.

A manutenção desse tipo de atitude, que abrange desde controle e poder até a necessidade de reconhecimento afetivo, revela-se como uma armadilha do segredo. Os terapeutas também querem ser amados, reconhecidos, apoiados em sua atuação. Amadurecer e reconhecer os próprios limites, bem como confiar no processo terapêutico como uma ação coletiva é fundamental para distribuição de forças que possam contribuir para a saúde em sua totalidade.

O setting terapêutico é interferido por múltiplas variáveis que vão além da dualidade terapeuta/cliente. Em Gestalt Terapia, o princípio da dialogicidade nos confronta com sensibilidades que permanecem dispostas na relação que vai ali se estabelecendo. O cliente traz a sua história, sua família, seus emails, notícias de jornal, fotografias, poesias, músicas, enfim tantas coisas que o atravessam. Essas falas e objetos encontram as nossas bagagens compostas também por falas e objetos que reverberam naquele encontro. É aí que entrelaçamos nossos fios, tecemos nossa rede e é aí que precisamos acreditar que o processo terapêutico não se constitui apenas na relação terapeuta/cliente, mas afeta toda rede de relações na qual estão inseridos seus protagonistas.

Se considerarmos a ideia do homem como um processo de transformações e imprevisibilidades e conectado a uma rede, a psicoterapia constitui-se numa prática política para que o sujeito amplie a consciência de si mesmo e possa reconhecer potencialidades através da fluência do sentir a partir do vivido e de sua inserção no contexto social. Mas será que esta é uma noção transmitida claramente na nossa formação? Poder compreender a prática clínica nessa dimensão é, ao nosso ver, uma postura renovadora. A prática clínica em psicologia deve ser considerada não apenas como instrumento que atua sobre o indivíduo em sua interioridade, mas, sobretudo como uma intervenção que afeta todo um coletivo e também é afetado por ele.

“O homem que pode viver um contato íntimo com sua sociedade, sem ser tragado por ela nem dela completamente afastado, é um homem bem integrado... O objetivo da psicoterapia é justamente criar tal homem” (Perls 1981, p-40).


A Gestalt-Terapia constrói as possibilidades do intervir no espaço entre terapeuta e cliente. O entre é povoado de sentidos e de experiências que tornam esse espaço mais amplo. Se a psicoterapia, mesmo na forma individual não afeta apenas um, é necessário acreditar que é fundamental a disposição para compartilhar. Muito antes da modernidade e do modelo individualista de viver, nossos ancestrais sentavam-se ao redor do fogo para estarem juntos, dividirem e confrontarem. Nesse longo caminho para dentro, algo se perdeu.

Minha experiência nos espaços coletivos fortalece a crença na relação que transforma, acolhe, repara, aceita e instiga. Nenhum sofrimento deve ser desprezado, nenhum questionamento deve ser simplesmente criticado (inclusive os nossos). Problematizar a convivência por vezes nos afasta da espontaneidade de conviver. Necessitamos de reaprender, nesta atuação como terapeutas a experienciar o coletivo despojando-nos da vaidade e ficando mais confortáveis no lugar do não saber. Trabalhar com pessoas implica em correr riscos e as quatro paredes do consultório não nos protegem; ao contrário, podem nos sufocar ou nos embotar. Permitamo-nos ouvir mais, sermos menos sábios, mais ingênuos, compartilhar mais, desfrutar mais desta inominável aventura de estarmos entre pessoas.


REFERENCIAS


CHAUVENET, A., DESPRET, V, LEMARIE, J-M, Clinique de la Reconstrution, L‘Harmattan, Paris, 1996

DESPRET, Vinciene, Ces emotions qui nous fabriquent, Empecheurs Penser en, 1999

_______________,Leitura Etnopsicológica do segredo , Dossiê Despret, in Revista Fractal de Psicologia, v. 23 n.1 jan/abr, tradução de Carlos Alberto MARCONI da Costa, Niterói, UFF, 2011

LATOUR, Bruno, Reensamblar lo Social: Una introducción a la teoría del actor-red Buenos Aires, Manantial, 2008.

______________. Ciência em ação: como seguir cientistas e engenheiros sociedade afora. São Paulo: UNESP, 2000.

______________. Jamais fomos modernos. Rio de Janeiro: 34, 1994.

MAGALHÃES M. et al, 2001, Eu quero ajudar as pessoas: a escolha vocacional da psicologia, em Psicologia, Ciência e Profissão – Revista do CFP, Brasília, Ano 21 – no. 2

MOL, Annemarie, The logical of care: Health and the problem of patient choice,London, Routledge, 2008

MORAES, Marcia. Alianças para uma Psicologia em Ação: sobre a noção de rede -www.necso.ufrj.br/Ato2003/MarciaMoraes.htm.

PERLS, Fritz, A Abordagem Gestáltica e a Testemunha Ocular da Terapia, RJ, Zahar,1981

QUADROS, Laura C. T. e Ribeiro, C., O real e o possível no trabalho social: a experiência de uma OGN referenciada na Gestalt Terapia, in Presença, Revista do Centro Universitário Celso Lisboa, RJ, No. 2, 2002

Endereço para correspondências

Laura Cristina de Toledo Quadros
E-mail: lauractq@gmail.com

 

Recebido em: 25/06/2011
Aprovado em: 27/06/2011