ARTIGO
Gestalt-Terapia e as realidades últimas no cristianismo *
The Gestalt-Therapy and the latest realities in the Christianity
Ênio Brito Pintoy*
PUC-SP
Este trabalho desenvolve idéias acerca do cristianismo como solo para a compreensão e o desenvolvimento da Gestalt-Terapia. Levantam-se aqui alguns encontros entre a Gestalt-terapia e o cristianismo. Estudam-se os valores cristãos como meio de cultura para que a Gestalt-terapia se desenvolvesse como se desenvolveu no Ocidente. Comentam-se as interfaces entre as Realidades Últimas no cristianismo e o processo psicoterápico. Delimitam-se aproximações entre a abordagem gestáltica e o cristianismo.
Palavras-chave: Gestalt-terapia, psicoterapia, Realidades Últimas, cristianismo.
Abstract
This work develops ideas concerning the Christianity as soil for the development
of the Gestalt-therapy. Here some encounters are inventoried between the Gestalt-therapy
and the Christianity. The Christian values are studied as middle of culture
so that the Gestalt-therapy grew as she grew in the Occident. The interfaces
are commented among the Ultimate Realities in the Christianity and the psychotherapeutic
process. Approaches are delimited between the Gestalt-therapy and the Christianity.
Key-words: Gestalt-therapy, psychotherapy, Ultimate Realities, Christianity.
INTRODUÇÃO
Este trabalho nasceu de um pedido para que eu desenvolvesse idéias acerca
do cristianismo como solo epistemológico para a compreensão e
o desenvolvimento da Gestalt-Terapia. Aceito o pedido, logo fiquei curioso por
saber por onde correriam meus pensamentos diante de um tema tão interessante.
Como falar do cristianismo “como solo epistemológico para a compreensão
e o desenvolvimento da Gestalt-Terapia”?
Sabemos da influência do Zen-budismo na abordagem gestáltica, sabemos
do enorme peso de Buber para o ideário gestáltico, mas o cristianismo?
Que pode haver de cristão em uma abordagem criada por um judeu dissidente
que andou, em sua busca pelo sagrado, pisando em solos orientais? A princípio,
pensei em não aceitar a empreitada, pensei que não, não
seria possível abordar esse tema, mas aí eu me lembrei de que
a Gestalt-terapia surgiu e floresceu em uma cultura, o Ocidente, marcadamente
judaico-cristã. Então, deve haver algo de cristão na abordagem
gestáltica, ou não teria encontrado eco suficiente para progredir
e se instalar como uma das mais importantes abordagens da psicologia ocidental.
Dessa maneira, aceitei o desafio de procurar alguns encontros entre a Gestalt-terapia
e o cristianismo. Assim, o que pretendo aqui é olhar para os valores
cristãos como meio de cultura para que a Gestalt-terapia se desenvolvesse
como se desenvolveu no Ocidente. É a partir desse mirante que faço
minhas observações aqui. Há, sim, valores cristãos
nos fundamentos da Gestalt-terapia. Embora não haja apenas valores cristãos
na fundamentação da abordagem gestáltica. Além disso,
há valores gestálticos que provocam e revolucionam a ótica
cristã em alguns aspectos. Mas agora, porque preciso fazer alguma redução
para escrever este artigo, vou me ater aos encontros entre Gestalt-terapia e
cristianismo. Dos desencontros tratarei em outra oportunidade.
Para que eu possa seguir tranqüilo o caminho que apontam minhas observações,
é necessário que, desde já, eu deixe bem clara uma questão.
Quando falo de cristianismo, não me refiro nem me referirei a qualquer
instituição cristã. Não tratarei do catolicismo,
do protestantismo, da ortodoxia, do pentecostalismo, de qualquer vertente ou
igreja do cristianismo em particular, mas, antes, procurarei me apoiar nos valores
básicos do ideário cristão, porque é aí que
poderemos refletir mais claramente e livres de preconceitos.
Nos anais do XI Encontro Goiano de Gestalt-terapia, realizado em 2005, publiquei
um pequeno texto, no qual eu refleti sobre a questão das Realidades Últimas
diante do processo psicoterapêutico. Naquele texto, caracterizei sucintamente
a psicoterapia, apoiando-me no referencial gestáltico, para depois discutir
as relações entre a psicoterapia e a religiosidade; finalmente,
comentei sobre as interfaces entre as Realidades Últimas e o processo
psicoterápico. Agora quero retomar parte daquele raciocínio, para
ampliá-lo um pouco mais.
Comecei aquele texto esclarecendo o que se pode chamar de Realidades Últimas,
uma vez que este termo não é comum na Psicologia. Afirmei que
o estudo das Realidades Últimas propicia, principalmente, comparar religiões,
uma vez que cada religião tem uma visão do que seja o Último.
Defendi que, se conhecedor dos fundamentos das Realidades Últimas, o
psicoterapeuta saberá que, se a espiritualidade conduz às Realidades
Últimas, estas, por sua vez, são as portadoras do sentido último
da vida. São as Realidades Últimas, em última instância,
que possibilitam à pessoa a confiança em um sentido para sua existência,
seres-para-a-morte que somos.
A busca das Realidades Últimas é a busca por coerência,
unidade e ordem no complexo e às vezes caótico mundo. É
a busca da afinidade do finito com o infinito, a exploração dos
propósitos e da justiça sagrados (cf Saldarini, em Neville, 2001).
Em termos mais modernos, Realidades Últimas se referem ao desejo da consciência
humana de transcender seus limites através de compreensão e liberdade
e alcançar felicidade, pureza, transformação; nesse aspecto,
têm relação com o sentido da vida, são, a bem dizer,
o cerne da espiritualidade.
Quando falamos em Realidades Últimas, “Última” diz
respeito a uma fronteira: pode significar primeira causa, último objetivo,
verdade final, mais real, ou aquilo que é mais desejado quando as pessoas
hierarquizam seus desejos. Assim, ao tratarmos das Realidades Últimas,
estamos falando sobre o que as pessoas entendem como o mais importante para
a vida, em termos de religião, face ao que entendem ser a natureza da
realidade. (Neville, 2001, p. 151)
As Realidades Últimas são também a gramática, o
texto básico a partir do qual cada pessoa cria ou descobre seu idioma
pessoal, a maneira como dá um sentido semântico à sua existência.
Este idioma pessoal é sempre dependente das fantasias pessoais acerca
da própria origem (e da origem do mundo) e do próprio fim (e do
fim do mundo) de modo que se torna fundamental para que o psicoterapeuta compreenda
seu cliente no que se refere às Realidades Últimas. Este idioma
pessoal está relacionado com o sentido que o cliente dá à
sua vida, está intimamente relacionado com a religiosidade, a face subjetiva
da religião, do cliente a maneira como ele atravessa suas fronteiras
em relação ao último.
É importante lembrar que a religiosidade, a experiência religiosa
humana, parte da tentativa de lidar com a questão que o ser humano se
coloca quando diante de algo que o transcende, que se apresenta a ele como superior
e até como misterioso, o sagrado. Nesse aspecto, o ser humano tem despertada
muito mais sua emoção que sua razão. (cf Giovanetti, 1999)
Há, entre os psicoterapeutas, um certo medo da religião e da religiosidade,
um medo que sustenta diversos preconceitos, os quais, por sua vez, não
raro aparecem disfarçados em eminente saber teórico. Na Gestalt-terapia,
entendemos o homem como um todo, o que inclui, necessariamente, sua religiosidade.
Por mais que algumas pessoas acreditem que religião e religiosidade não
devam ser assuntos da terapia, não há como nossos clientes deixarem
sua religiosidade na sala de espera enquanto se encontram com seus terapeutas.
O cliente entra na sala de atendimento com sua religião e com sua religiosidade,
ele traz, ainda que não percebida, uma busca pelos sentidos em sua vida,
a qual, necessariamente, passa por sua religiosidade e pela sua visão
das Realidades Últimas.
As
Realidades Últimas no Cristianismo
No cristianismo, assim como no judaísmo, Deus é a Realidade Última.
Deus é o criador incriado de tudo, a base da inteligibilidade ou da sabedoria
sobre o mundo, a excelência superlativa e bondade. A realidade última
de Deus é percebida ou conceptualizada em contraste com as limitações
da vida humana. É pensando nas Realidades Últimas que Hycner afirma
que “o espírito humano só pode crescer se for nutrido por
algo muito maior que ele mesmo. Nossa limitação humana nos abre
para o ilimitado.” (1995, p. 88)
O Deus do cristianismo, ainda que afirmado como independente do mundo, à
semelhança do Deus do judaísmo, é, no entanto, muito mais
próximo do mundo, através de seu filho, Jesus Cristo. Ainda assim,
Deus é conhecido em e através das várias funções
da Realidade Última (como criador, propósito, etc). Diferentemente
dos chineses, os judeus e os cristãos não pensam na natureza sem
o humano e não pensam em nada que não tenha relação
com Deus. Para a bíblia dos hebreus, como para o Novo Testamento, Deus
é colocado como uma força pessoal no mundo e na vida humana, através
do uso de uma variedade de formas poéticas e narrativas literárias.
Isso propicia um misticismo no qual a transcendência divina é focalizada
como revelada e oculta ao mesmo tempo; elementos mais específicos, como
o corpo ou veículo divino, são tidos como simbólicos de
algo mais transcendente. Em cada estágio do caminho dessas duas importantes
religiões, em quase todas as expressões da realidade divina, poder,
atividade, compaixão e justiça, a tradição persistentemente
insiste que Deus não é realmente como os humanos. Deus é
maior, mais poderoso, não sujeito às limitações
humanas e, por fim, completamente além da possibilidade humana de compreensão.
Nas palavras de Mestre Eckhart (Sermão 55, p. 184),
Deus é totalmente uno e simples. Como Ele é uno e simples, o único
atributo que lhe pode ser dado é a negação de todos os
atributos. O espírito humano não pode conhecer senão isto
ou aquilo, as coisas compostas e múltiplas, mas não aquilo que
é uno e simples.
A teologia cristã fez algumas importantes variações na
idéia da divindade, mas seguiu mantendo seu contorno básico e
sua identidade bíblica, o que permite a Paul Tillich afirmar que “Deus
é o próprio ser, não um ser” (cit em May, 1982, p.
174). O mistério da trindade é uma das mudanças básicas
introduzidas pelo cristianismo ao conceito das Realidades Últimas do
judaísmo. Com ela, a idéia de que Cristo morreu para redimir nossos
pecados, o que torna Deus mais próximo dos humanos, digno de reverência,
mas não mais de temor. Essa alteração implica em importantes
mudanças de valores, já que as realidades últimas inevitavelmente
conduzem a uma hierarquia de valores. É fato notório que “a
atitude religiosa da pessoa reside na convicção de que há
valores na existência humana dignos de que se viva e morra por eles.”
(May, 1982, p. 174) Viver por valores significa ter valores, ter uma ética
orientadora do caminhar ao longo da vida, uma ética que é fundamentada
na crença em um sentido para a existência, um sentido que, por
sua vez, se fundamenta nas Realidades Últimas.
Portanto, ao tratarmos de valores, estamos falando de religiosidade e de ética.
E é nesse ponto que entendo que há encontros entre o cristianismo
e a Gestalt-terapia: há alguns valores importantes na sustentação
da prática gestáltica que são também valores cristãos.
Vou tratar aqui de um pequeno número deles, aqueles que me parecem ser
os mais importantes.
Uma das maiores mudanças que o cristianismo trouxe foi uma maior aproximação
entre Deus e o homem. O Deus que nos apresenta Jesus é amoroso e paciente.
Além disso, na mística cristã, Deus vem até o mundo,
consubstanciado em Cristo. Isso traz o homem para o centro do mundo. A mudança
ética que isso traz é imensa: há o resgate, pelo homem,
da capacidade – e da necessidade – da avaliação do
mundo. Avaliar é colocar ou descobrir valor. A partir daí, o homem
precisa descobrir seus valores e afirmá-los perante o mundo, ficando
para sempre, ao menos em tese, impedido de se guiar por valores externos. O
que Cristo propõe é a possibilidade de que as pessoas conheçam
e afirmem seus valores na prática. Como afirma Rollo May (1982, p. 183),
“o ponto essencial da ética de Cristo foi haver deslocado a ênfase
das regras exteriores dos dez mandamentos para as razões de ordem interior.
‘No coração estão as razões de vida’.”
Segundo May, “quando nas bem-aventuranças (Jesus) falava em ‘puros
de coração’ referia-se à integridade do homem cujas
ações externas estão de acordo com seus motivos interiores.”
Há raciocínio mais gestáltico do que esse? É a partir
da vivência, do visceralmente conhecido, que se pode chegar à valorização
das situações e da própria vida.
Se “no coração estão as razões da vida”,
estão abertas as portas para a autenticidade e para a integridade. Mais
do que isso: aqui está o fundamento para a auto-regulação.
A auto-regulação organísmica. Como se não bastasse,
também essa frase dá sustentação para aquele que
é um dos mais importantes valores da abordagem gestáltica, a autonomia,
a auto-orientação a partir do vivido e do sentido, muito mais
do que pelo que é aprendido racionalmente.
Na mesma linha dessa reflexão sobre a autonomia, quero lembrar agora
do magnífico conto de Dostoievski, “O Grande Inquisidor”,
no qual Cristo volta à terra e é preso pelo velho cardeal espanhol,
o Grande Inquisidor. Visitando Cristo na cadeia para anunciar que ele será
queimado na fogueira, o Inquisidor lhe diz que ele jamais deveria ter voltado
à terra, pois há séculos a Igreja lutava para corrigir
o grande erro de Cristo, ter concedido liberdade ao homem. Diz o Inquisidor:
Nisto tinhas Tu razão, porque o segredo da existência humana consiste,
não somente em viver, mas também em encontrar um motivo de viver.
Sem uma idéia nítida do fim da existência, o homem prefere
abandoná-la e, embora estivesse rodeado de montões de pão,
antes seria capaz de suicidar-se do que de ficar na Terra. Mas, que aconteceu?
Em lugar de Te apoderares da liberdade humana, foste alargá-la ainda
mais! Esqueceste que o homem prefere a paz, e até a morte, à liberdade
de discernir o Bem e o Mal? Nada há de mais sedutor para o homem do que
o livre arbítrio, mas nada há também de mais doloroso.
E, em vez de princípios sólidos que tivessem tranqüilizado
para sempre a consciência humana, escolheste noções vagas,
estranhas, enigmáticas, tudo o que ultrapassa a força dos homens;
agiste, portanto, como se os não amasses, Tu, que tinhas vindo para dar
a vida por eles! Aumentaste a liberdade humana em lugar de a confiscares e impuseste
assim, para sempre, ao ser moral as agonias dessa liberdade. (Dostoievski, www.terra.com.br/virtualbooks,
em 29/08/2005)
O livre arbítrio, a possibilidade – eu diria, a obrigatoriedade
– de o homem se postar como construtor de sua liberdade ante o destino
é um dos temas mais caros à abordagem gestáltica, possivelmente
aquele que conduz tantos de nós em nossas lutas pelo desenvolvimento
dessa abordagem. Creio mesmo que este é o tema mais forte na Gestalt-terapia,
o homem como construtor de si. Ao tecer sua história, ao descobrir e
atribuir sentido e significado, o homem é livre, tem uma liberdade tal
que ele pode se tornar livre até mesmo ante o sagrado ou algo que possa
ser superior ou anterior ao homem. Este homem, responsável e possante,
angustiado e realizador, é o homem cristão, é também
o homem que nos apresenta a Gestalt-terapia.
Há quem não acredite nisso e até diga o contrário,
ou seja, que a religião provoca dependência, ou, em outros termos,
infantiliza. Essas pessoas pensam que o ideário religioso é sempre
e necessariamente infantilizador. É certo que ele pode ser infantilizador,
mas não é certo que ele seja infantilizador. A religião
tanto pode aumentar a dependência, mantendo o indivíduo infantilizado,
como queria o Grande Inquisidor de Dostoievski, quanto pode, pelo contrário,
ser instrumento de libertação e de promoção de crescimento.
É por esse aspecto de promoção de crescimento que a Gestalt-terapia
incorpora uma das melhores máximas do cristianismo, qual seja a de que
cada ser é especial e tem o cuidado de Deus. Em Mateus 10, 34-39, Jesus
declara que “o inimigo do homem será sua família”,
enfatizando a necessidade de que, no desenvolvimento de seus potenciais, o ser
humano se afaste de sua família, quer dizer, das leis recebidas, para,
desta forma, criar, através de profundo questionamento e de sensível
experiência, as próprias leis e a própria moral. O “ter
o cuidado de Deus’, nesse aspecto, simboliza que cada pessoa traz em si
a possibilidade de se desenvolver, de desenvolver seus potenciais, se confiar
no fato de que traz consigo o auto-suporte necessário para tanto.
Há ainda mais dois aspectos importantes no cristianismo que encontramos
nos fundamentos da Gestalt-terapia e que quero discutir antes de encerrar essa
parte de nossa conversa. O primeiro está na máxima de Spinoza,
que diz que “quem ama a Deus não deve esperar ser por ele amado”
(May, 1982, p. 169) e dá conta da solidão humana, da inescapável
solidão a que cada um de nós está condenado. O segundo
é o que diz respeito ao maravilhamento que pode haver em um encontro.
Quando Spinoza afirma que “quem ama a Deus não deve esperar ser
por ele amado”, está tratando da necessária integridade
de que se precisa para se enfrentar a solidão proveniente da escolha
de valores. Somente quem pode amar simplesmente, sem finalidade, sem propósito,
amar somente porque o encontro acontece e, nele, o amor se dá, somente
esse está presente. Incondicionalmente presente. Livremente presente.
Esse tipo de fé é característica de quem está engajado
na situação, uma das características do self, ao contrário
da neurose, descrita por Perls, Hefferline e Goodman (1997) como “estado
de emergência crônica de baixa intensidade” . A pessoa que
“ama” a Deus porque tem medo Dele está em emergência
crônica de baixa intensidade porque não pode se entregar nem a
Deus nem à vida. Não pode ouvir aquela que é uma das mais
belas chamadas do Cristo: “vinde a mim as criancinhas, pois delas é
o reino dos céus”.
Quando chama a criança que há em cada um de nós, Jesus
não está propondo que a pessoa se infantilize, mas, sim, que ela
possa conviver com a vivacidade típica da criança ; ele está
propondo que a pessoa possa estar aberta à vida, ao mundo, ao tanto que
há por conhecer e por explorar à nossa volta. A capacidade de
maravilhar-se é chamada nessa frase de Jesus. A desistência de
uma atitude de indiferença ante o mundo é solicitada. É
somente a capacidade de maravilhar-se que permite à pessoa a conquista
da humildade, supremo valor cristão.
Trato aqui da humildade verdadeira, não de uma pseudo-humildade baseada
na submissão. Refiro-me à humildade que aceita a graça
da vida como algo que nos é dado e que nos compete cuidar e saborear
ativamente. A vida é graça, é gratuidade, pois ela nos
é dada sem que tenhamos pedido; estamos nela sem podermos efetivamente
saber de onde viemos e para onde vamos. Ela nos foi ofertada gratuitamente,
sem algum porquê ou para quê explícito. Estamos nela, barcos
feitos ao mar, sempre em busca de rotas nas quais possamos mais e mais nos desvelar
e nos significar, orientados pelo mapa rudimentar das Realidades Últimas.
Para guiar-se por esse mapa, além da coragem óbvia, cada um de
nós precisa também da humildade. Refiro-me à humildade
em seu sentido mais literal, palavra derivada de húmus, a terra, simbolizando
a capacidade de pôr os pés no chão e nele se apoiar para
buscar os sentidos da existência humana e do mundo, o contato com o Sagrado
mais profundo, a Realidade Última.
Essa humildade de que trato fundamenta a inquietude, e, com ela, a possibilidade
de atitudes revolucionárias, mesmo quando sabedores de que as atitudes
verdadeiramente revolucionárias custam tempo, às vezes muito tempo,
para serem compreendidas e elaboradas culturalmente. Nesse ponto e para finalizar,
aponto uma última aproximação entre a Gestalt-terapia e
o cristianismo: são ambas ideologias revolucionárias, ambas fundadas
na crença de que “o homem não foi feito para o sábado,
mas o sábado para o homem”. (Mc 2.27).
EBP/ago/2005
REFERÊNCIAS
DOSTOIÉVSKI, Fiodor. O Grande Inquisidor. disponível no site www.terra.com.br/virtualbooks,
em 29/08/2005
GIOVANETTI, José Paulo. O sagrado e a experiência religiosa na psicoterapia. Em MASSIMI, Marina e MAHFOUD, Miguel (1999). Diante do Mistério: Psicologia e senso religioso (p. 87-96). São Paulo: Loyola
HYCNER, Richard (1995). De Pessoa a Pessoa. São Paulo: Summus
Maître ECKHART. Dieu au-delà de Dieu. Sermões XXXI ao LX. Tradução francesa, por Gwendoline Jarczyk et Pierre-Jean Labarrière (1998), Paris : Ed. Albin Michel.
MAY, Rollo (1982). O homem à Procura de Si Mesmo. Petrópolis: Vozes
NEVILLE, Robert Cummings, editor (2001). Ultimates Realities: A volume in a Comparative religious ideas project. New York: State university of New York Press
PERLS, Frederick S., HEFFERLINE, Ralph e GOODMAN, Paul (1997). Gestalt-terapia. São Paulo: Summus
SALDARINI, Anthony J. Ultimate
Realities: Judaism. Em NEVILLE, Robert Cummings, editor (2001). Ultimates Realities:
A volume in a Comparative religious ideas project. (p. 37 – 59) New York:
State university of New York Press