ARTIGO


Vasculhando as obras de Perls em busca do tesouro perdido – O Existencialismo


Digging through the work of Perls in search of lost treasure - Existentialism


Renata Oliveira Magalhães
Orientador: Professor / Psicólogo Marcelo Pinheiro

Avaliadores
Patrícia Albuquerque Lima
Bruna Cabral Vianna Pinto

Endereço para correspondência


Resumo

Esta monografia vasculhou os escritos de Perls com o intuito de investigar princípios filosóficos do Existencialismo que foram incorporados pela abordagem da Gestalt-terapia. A metodologia utilizada foi a leitura dos principais livros escritos por ele, o aprofundamento do conhecimento sobre o existencialismo e sobre a concepção atual de diferentes autores da Gestalt-terapia. Nas obras de Perls, nenhum autor existencialista fora citado. No final da sua vida, ele menciona pela primeira vez o termo existencialismo, classificando a sua abordagem como terapia existencial porque lida com os problemas da existência total da pessoa. Após a análise dos seus livros, observa-se que Perls atravessou por diferentes fases na sua vida: na primeira fase ele teve uma preocupação maior com a teoria e na segunda fase, parece ter adotado um caráter mais existencial e ter descoberto gradativamente ser um existencialista. Apesar de notar claramente alguns conceitos existencialistas na abordagem que criou, Perls não faz referência a nenhum autor em especial.

Palavras-chave: Existencialismo; Gestalt-Terapia; Filosofia; Psicoterapia.


Abstract

This monograph pored over the writings of Perls in order to investigate philosophical tenets of existentialism that have been incorporated by the approach of Gestalt therapy. The methodology was reading the main books written by him, deepening the knowledge of existentialism and the current conception of different authors of Gestalt therapy. In the works of Perls, no author cited existentialist out. At the end of his life, he mentions for the first time the term existentialism, describing his approach as existential therapy because it deals with the problems of existence of the whole person. After examination of its books, it is observed that Perls crossed through different stages in his life: in the first round he had a bigger concern with the theory and the second phase, seems to have adopted a more existential and have gradually discovered to be an existentialist. Although clearly notice some existentialist concepts in the approach we created, Perls makes no reference to any author in particular.

Keywords: Existentialism; Gestalt Therapy; Philosophy; Psychotherapy.


Introdução

Desde o início da formação em Gestalt-terapia observa-se nos textos de diferentes autores o entrelaçamento de conceitos e temas existenciais utilizados na forma de ver, encarar, estar e fazer psicoterapia com os nossos clientes.

Esta forma apaixonante de estar com o outro no momento terapêutico deixou esta psicóloga em dúvida em relação a qual abordagem escolher e aprofundar a sua formação após a graduação, já que em ambas abordagens ela havia encontrado muita afinidade e convergência de pensamentos.

Após a decisão de iniciar o curso de formação em Gestalt-terapia, qual não foi a sua surpresa em se deparar com autores, textos, conceitos e palestras existencialistas no instituto durante toda a especialização.

Então compreendeu que a escolha pela Gestalt não excluía de nenhum modo o Existencialismo, já que muitos conceitos desta filosofia foram apreendidos, reinterpretados e usados no espaço terapêutico gestáltico, principalmente no modo de olhar e compreender o cliente.

Convém esclarecer que a autora é especialista em Psicologia Clínico-Institucional, tendo realizado a sua formação em Gestalt-terapia e, portanto, não possui conhecimento aprofundado do Existencialismo. Por este motivo, após a orientação com o seu orientador, decidiu-se utilizar prioritariamente as obras de Perls, que foram lidas com curiosidade e interesse, observando temas e influências do Existencialismo na Gestalt-terapia.

Com esta exposição é possível compreender que a escolha do tema se deu através do interesse em aprofundar o conhecimento no Existencialismo, partindo do que foi aprendido na formação de Gestalt-terapia, no sentido de buscar o início e as principais fontes deste casamento tão bem ajustado.

Desde a graduação a autora demonstra interesse e curiosidade pela corrente filosófica e literária do Existencialismo e afinidade com os princípios da abordagem psicoterápica da Gestalt-Terapia, deste modo buscou-se neste estudo investigar e pontuar pontos de convergência em ambas. O ponto de partida usado foi a busca pelas origens deste casamento, ou seja, como aconteceu a influência dos princípios existenciais na Gestalt em seus primórdios, quando esta abordagem foi pensada, criada e disseminada principalmente por Frederick Salomon Perls, o Fritz Perls, como ficou conhecido. Outras pessoas são consideradas importantes e co-fundadoras desta abordagem como Laura Posner, Paul Goodman e Ralph Hefferline.

Este trabalho tem como objetivo principal rastrear princípios filosóficos do Existencialismo na abordagem da Gestalt-terapia. Porém, após a apresentação deste trabalho para a banca do instituto, decidiu-se ampliar um pouco o foco do tema, para abranger de forma adequada o caminho que percorreu este trabalho ao estudar cada livro de Perls.

A metodologia utilizada foi a leitura dos principais livros escritos por Fritz Perls, relacionados a seguir: Ego, Fome e Agressão (1947), Gestalt-Terapy (1952), Gestalt-Terapia Explicada (1969), A Abordagem Gestáltica e Testemunha Ocular da Terapia (1973), Isto é Gestalt (1975) e Escarafunchando Fritz dentro e fora da lata de lixo (1979).

O percurso trilhado foi a busca detalhada e incisiva em cada capítulo dos livros estudados a alguma referência da filosofia existencialista, ou a citação de algum autor ou conceito existencialista específico. Muitos parágrafos foram sublinhados e destacados e muitos filósofos foram estudados para verificar se faziam parte desta corrente filosófica e literária.

Como em alguns livros estas referências não foram encontradas, foi feito um breve resumo informando o que cada obra relatava. Para não se afastar do tema principal e abarcar toda a investigação realizada, decidiu-se alterar o título desta monografia de “Rastreando traços da influência do Existencialismo na Gestalt-terapia” para o título atual “Vasculhando as obras de Perls em busca do tesouro perdido – o Existencialismo.” Tomou-se a liberdade de usar o verbo “vasculhar”, assim como Perls utilizou o verbo “escarafunchar” porque foi desta forma que o trabalho foi escrito, através de muita pesquisa e investigação. A vasta bibliografia pesquisada foi remexida e revolvida diversas vezes, portanto, vasculhada. O termo “em busca do tesouro perdido” pode ser compreendido ao esclarecer que o tesouro refere-se ao Existencialismo que é o tema principal e perdido, porque quase nunca ele foi realmente explicitado. Em poucos livros e pouquíssimas vezes encontra-se o enlace procurado entre as abordagens.

Havia uma interrogação a ser esclarecida: Será que em seus textos encontraríamos de uma forma clara e precisa esta influência existencialista tão observada nos textos gestálticos dos autores atuais? Em todo panorâmico histórico da fundamentação da Gestalt afirma-se com todas as letras a participação do Existencialismo na base desta nova abordagem como será visto no próximo capítulo. Porém, o que parecia ser óbvio de ser encontrado nos textos de Perls, ficou absolutamente obscuro e muitas vezes implícito nas suas falas. Este problema metodológico e a dificuldade para delinear o contorno e o caminho dos conceitos existencialistas se intensificaram pelo descuido ou desinteresse do autor em citar suas referências bibliográficas. Será verificado nos próximos capítulos o que fora encontrado e destacado em cada um dos seus livros.

Cap. 1 – Contando um pouco sobre a Gestalt-Terapia

A palavra Gestalt tem origem alemã e surgiu em 1523 de uma tradução da Bíblia, significando "o que é colocado diante dos olhos, exposto aos olhares". Hoje é adotada no mundo inteiro como um processo de dar forma ou configuração. Gestalt significa uma integração de partes em oposição a soma do "todo".

A Psicologia da forma, Psicologia da Gestalt, Gestaltismo ou simplesmente Gestalt é uma teoria da psicologia que considera os fenômenos psicológicos como um conjunto autônomo, indivisível e articulado na sua configuração, organização e lei interna. A teoria foi criada pelos psicólogos alemães Max Wertheimer (1880-1943), Wolfgang Köhler (1887-1967) e Kurt Koffka (1886-1940), nos princípios do século XX. Funda-se na idéia de que o todo é mais do que a simples soma de suas partes.

Segundo Galli (2009) a Gestalt-terapia poderia ser definida como “a arte da formação de boas formas”. A autora considera que a Gestalt terapia germinou no espírito de Frederick Perls em 1942, na África do Sul. Em 1946 imigrou para os Estados Unidos com sua esposa Laura. Logo integraram-se a um grupo de intelectuais não conformistas com o sistema vigente, entre eles, o anarquista Paul Goodman, Isadore From, Paul Weisz e Ralf Hefferline.

A Gestalt-terapia é considerada pela maioria dos autores, assim como para de Ênio Brito Pinto (2008) uma síntese criativa, coerente e em constante transformação, de algumas correntes filosóficas ou psicoterápicas como o humanismo, o existencialismo, a psicologia fenomenológica, a psicanálise freudiana, os trabalhos de Reich, a psicologia da Gestalt, a teoria organísmica de Goldstein, a teoria de Lewin e alguns aspectos do taoísmo e do budismo.

Para Galli (2007) a Gestalt terapia “fundamenta-se no Existencialismo porque absorveu o que a maioria das terapias existenciais considera importante, o encontro existencial interpessoal.”

Segundo Ginger (1995) pode ser considerado “existencial” tudo que diz respeito à forma como o homem experimenta sua existência, a assume, a orienta, a dirige. A noção de responsabilidade de cada pessoa que participa ativamente da construção de seu projeto existencial em sua relativa liberdade.

Para Guimarães (2005) a Gestalt-Terapia assim como o Existencialismo vê o homem como um ser particular, concreto, com vontade e liberdades pessoais, consciente e responsável e a relação existente entre o ato humano e a intenção é levado em conta, ou seja, todo ato psíquico é intenção e deve ser entendido, compreendido a partir de si próprio. Este autor coloca que:

A Gestalt-Terapia, por fundamentar-se numa visão específica de existência, faz um apelo à liberdade, à individualidade pessoal e coerente. O Gestaltista é, assim como o Existencialista, uma pessoa que se nega a submergir inconscientemente no mundo que o cerca, é uma figura incomodada e que incomoda e, antes de tudo é um ser responsável por si mesmo, sem ser isolado ou egoísta. Sua proposta é que cada pessoa atinja uma real percepção de si como um ser em relação, uma reflexão sobre o tipo de sociedade que vivemos e em que base ética estamos fundamentados. Assim, a Gestalt-terapia não é uma terapia de ajustamento, mas de auto-realização. (GUIMARÃES, 1998, p. 97).


Este escritor entende que crescer como pessoa é buscar desenvolver seus próprios recursos, dons e talentos especiais. Desta forma, o conceito de psicoterapia pode ser entendido e substituído pelo de crescimento. Ampliar a consciência é assumir e aceitar a responsabilidade por suas próprias escolhas; acreditando em nós mesmos podemos acreditar no outro e no mundo.

A seguir, proponho uma breve introdução sobre o que é o existencialismo e a análise de cada livro.

Cap. 2 – Entendendo o existencialismo

“Sozinho e sem desculpas, o homem está condenado a ser livre.”
SARTRE

A Gestalt-terapia tem como base várias teorias do conhecimento humano, entre elas, as mais utilizadas por Fritz Perls, de acordo com Tellegen (1984, p.34) são: análise do caráter de Reich, a fenomenologia, a psicologia da Gestalt, a teoria organísmica de Kurt Goldstein, a filosofia existencial, zen budismo (embora com determinada cautela), a teoria do campo de Kurt Lewin e a psicanálise. Dentre todas estas contribuições, iremos discorrer brevemente acerca do existencialismo.

Para Penna (1990) o movimento filosófico existencialista aconteceu logo após o término da Segunda Guerra Mundial, na Europa. Além de doutrina filosófica, o existencialismo era identificado como um estilo de vida ou comportamento, tornando-se sinônimo de fatos ou pessoas que se desviassem do procedimento usual. Pode ser definido como uma doutrina filosófica que centra sua reflexão sobre a existência humana considerada em seu aspecto particular, individual e concreto. Os antecedentes históricos mais próximos do existencialismo são a fenomenologia de Husserl e a filosofia de Kierkegaard.

Søren Aabye Kierkegaard (1813 - 1855) foi um teólogo e filósofo dinamarquês do século XIX, que é conhecido por ser o "pai do existencialismo." (PENNA, 1990, p. 15) Ele rejeitou a filosofia hegeliana do seu tempo e aquilo que ele viu como o formalismo vácuo da igreja luterana dinamarquesa. Muitas das suas obras lidam com problemas religiosos tais como a natureza da fé, a instituição da fé cristã, a ética cristã e teologia. Por causa disto, a obra de Kierkegaard é, algumas vezes, caracterizada como existencialismo cristão, em oposição ao existencialismo de Jean-Paul Sartre ou ao proto-existencialismo de Friedrich Nietzsche, ambos derivados de uma forte base ateística. As inquietações e angústias que o acompanharam estão expressas em seus textos, incluindo a relação de angústia e sofrimento que ele manteve com o cristianismo – herança de um pai extremamente religioso, que cultuava a maneira exacerbada os rígidos princípios do protestantismo dinamarquês, religião de Estado.

Todo o pensamento de Kierkegaard é desenvolvido a partir do seu íntimo. Uma escolha consciente do pensador por si próprio. Apesar disto, o filósofo experimenta os valores da tradição ou da “moda” filosófica de seu tempo, mas é, sobretudo em sua existência que Kierkegaard encontra elementos considerados por ele como importantes para o seu pensamento. Com uma vida conturbada e com grandes alternativas, o resultado de sua filosofia é uma novidade, muito mais de acordo com suas próprias experiências do que com outros sistemas anteriores há seu tempo. (MESNARD, 1970, p. 17).

Já Edmond Husserl foi um matemático-filósofo conhecido como sendo o fundador da Fenomenologia no seu sentido moderno. “A fenomenologia é uma disciplina que ajuda as pessoas a sair de sua maneira habitual de pensar,para que possam verificar a diferença entre o que é de fato percebido e sentido na situação presente e o que é um resíduo do passado.Seria a exploração ingênua e não desvirtuada pelo aprendizado.” (RIBEIRO, 1998, p. 31)

Husserl propôs que o mundo dos objetos e modos nos quais dirigimo-nos a eles e percebemos aqueles objetos é normalmente concebido dentro do que ele denominou ponto de vista natural, caracterizado por uma crença de que os objetos existem materialmente e exibem propriedades que vemos como suas emanações. Ele propôs um modo fenomenológico radicalmente novo de observar os objetos, examinando de que forma nós os constituimos.

Do ponto de vista fenomenológico, o objeto deixa de ser algo externo e de ser visto como fonte de indicações sobre o que ele é, e torna-se um agrupamento de aspectos perceptivos e funcionais que implicam um ao outro sob a idéia de um objeto particular. A noção de objetos como real não é removida pela fenomenologia, mas posta entre parênteses como um modo pelo qual levamos em consideração os objetos em vez de uma qualidade inerente à essência de um objeto fundada na relação entre o objeto e aquele que o percebe.

Penna (1990) no seu livro sobre o que é o existencialismo afirma que refere-se a várias doutrinas porque cada filósofo existencial defende uma idéia que lhe é própria. Dentre os diversos filósofos do existencialismo temos Buber, Heidegger, Nietzsche e Sartre e será relatado brevemente suas principais concepções filosóficas, já que não está no mérito deste estudo nos aprofundar nos pensamentos de cada filósofo.

Buber (1878-1965) foi um filósofo judeu que desenvolveu a categoria do diálogo como a integradora entre a vivência e a reflexão e propiciadora da criação de comunidades humanas. Trata das atitudes básicas da existência humana: a atitude Eu-Tu, caracterizada pelo envolvimento e dotada de reciprocidade, imediaticidade, presença e responsabilidade; e a atitude Eu-Isso, caracterizada pela separação ou distanciamento e necessária para a produção teórico-científica.

Penna afirma que Heidegger (1889 – 1973) iniciou o movimento do existencialismo, embora exista controvérsias. A sua obra mais importante é “Ser e tempo” (1927) em que buscou elaborar uma analítica existencial ou uma teoria do Ser.

Preconiza que a vida do ser humano está continuamente ameaçada, além de ser limitada,gerando uma angústia oriunda de sua estrutura básica que é a preocupação. Com isto a existência é levada para as bordas do abismo que é o nada ou a morte, e que portanto o ser humano é um ser para a morte, um “estar aí” – “Dasein”. (PENNA, 1990, p. 89)

Segundo este mesmo autor, Nietzsche (1844-1900) questiona os valores norteadores da civilização afirmando que eles são ilusórios. Estes valores são o verdadeiro, o belo e o bom. Diz que o homem não possui estes valores, sendo que o homem só quer o desejo de mando e de poder. Ele foi o primeiro a pregar que esta vontade de potência do homem é o resultado da morte de Deus. Acredita que o sentido de viver é o próprio viver. Foi considerado o filósofo maldito.

Sartre nasceu em 1905 e coloca o homem como o único responsável pelas suas escolhas e comportamento, retirando a culpa das mãos de Deus e transferindo-a totalmente para a mão do homem que conduz a sua própria vida. Essa imensa responsabilidade é motivo de intensa angústia e também de possibilidade de livre escolha, já que nada impede o homem de fazer o que quiser, desde que assuma as conseqüências de seus atos. A frase fundamental de Sartre é a de que “a existência precede a essência” (PENNA, 1990, p. 110), que significa que o homem irá se tornar aquilo que ele escolher ser e somente a ele compete dar um sentido a sua vida.

Cap. 3 – Investigação e análise das obras escritas por Perls

Neste capítulo iremos mapear de que forma ocorreu a influência deste movimento nos escritos de Perls, se realmente ocorreu, se isto é expresso de uma forma clara, se o autor utiliza esta denominação ou faz referência a algum filósofo, tema ou conceito existencialista.

3.1 - Ego, fome e agressão – Uma revisão da teoria e do método de Freud


“... sem assumir total responsabilidade, sem transformar ossintomas neuróticos em funções egóicas conscientes, nenhuma cura é possível.”
Perls


Este foi o primeiro livro escrito por Fritz Perls publicado em 1942 na África do Sul. Frazão (2002) coloca que o autor o escreveu com base na experiência e nas suas insatisfações com a teoria psicanalítica de Freud.

Inicialmente ele tentou transformar as suas discordâncias em contribuições, porém não teve a receptividade esperada por ele perante os colegas psicanalistas. Então escreveu esta obra que tinha como subtítulo “Uma revisão da teoria e método de Freud.” Nela encontram-se as razões que afastaram Fritz da psicanálise e a sua proposta teórica da Terapia de Concentração.

Frazão (2002) ressalta que Perls estava muito insatisfeito com a ênfase ortodoxa colocada no inconsciente, nas pulsões e na função da repressão. Ele acreditava que outros elementos da personalidade humana como o instinto de fome, a agressão biológica e a necessidade de gratificação foram subestimados. Dessa forma, “Perls transformou insatisfação na criação de uma nova e revolucionária abordagem psicoterapêutica - a Gestalt-terapia.” (FRAZÃO, 2002, p. 10)

Para Araújo (2002), este livro possibilita ir às raízes desta nova abordagem e investigar como Perls articulou o seu arcabouço técnico e teórico-conceitual, baseado em sua experiência clínica, representando a transição da psicanálise ortodoxa para a abordagem gestáltica.

Nesse sentido, trechos foram destacados e investigou-se a influência do pensamento filosófico na teoria de Perls. Boris (1993, p.19) afirma que “é clara a ligação de Fritz Perls com a psicanálise, além de ser influenciado também pela psicologia da gestalt, pela teoria organísmica e o pelo existencialismo”. Diz ainda que:

Assim, Fritz amplia o trabalho do “Congresso”, inclui elementos úteis de sua prática com Reich e do pensamento existencial e, em 1940, conclui o manuscrito de Ego, hunger and agression que, originalmente, tinha como subtítulo A revision of Freud´s theory and method. (BORIS, 1993, p. 21).

Boris (1993), tradutor deste livro, o apresentou dividido em três partes:

A primeira parte chama-se “Holismo e psicanálise” e Perls adota um enfoque holístico. Critica e evita a utilização de termos psicanalíticos. Nessa parte encontra-se o que mais nos interessa quando ele descreve seu contato com as obras de Freud e com a filosofia da indiferença criativa de Friedlaender.

Nesta revisão da psicanálise ele pretende substituir um conceito psicológico por um organísmico, substituir a psicologia da associação pela psicologia da gestalt e aplicar o pensamento diferencial, baseado na indiferença criativa de Friedlaender. Perls afirma:

O pensamento diferencial, baseado na “indiferença criativa”, de Friedlaender, apresenta semelhanças com a teoria dialética, sem suas implicações metafísicas, distinguindo a dialética como conceito filosófico das regras úteis aplicadas pela filosofia de Hegel e Marx. Estas regras coincidem com o pensamento diferencial. (PERLS, 2002, p. 23).


Perls (2002) acrescenta que o livro Creative indifference de Friedlaender apresenta a teoria de que:

Todo evento está relacionado a um ponto-zero, a partir do qual ocorre uma diferenciação em opostos. Esses opostos apresentam, em seu contexto específico, uma grande afinidade entre si. Permanecendo atentos no centro, podemos adquirir uma habilidade criativa para ver ambos os lados de uma ocorrência e completar uma metade incompleta. Evitando uma perspectiva unilateral, obtemos uma compreensão muito mais profunda da estrutura e da função do organismo. (PERLS, 2002, p. 45-46).


Fritz exemplifica esta teoria na esfera psicológica através do sistema prazer/dor. Seu ponto zero é o equilíbrio do organismo. Qualquer distúrbio deste equilíbrio é experienciado como doloroso, e o retorno e a ele como prazeroso. O ponto-zero é dado sempre por dois opostos como prazer e dor.

Friedlaender diferencia o desapego desinteressado e a indiferença criativa. A indiferença criativa é plena de interesse, se estendendo na direção dos dois lados da diferenciação. Terá sempre um aspecto de equilíbrio.

Propõe o pensamento diferencial e substitui o “por que” pelo “como” – como método fenomenológico mais adequado a sua resolução. Diz que é melhor perguntar “como?” em vez de “por quê?” porque a explicação causal se aplica apenas a uma série isolada de eventos.

Segundo Müller-Granzotto (2007), Perls começou sua obra de 1942 apresentando duas teses de Friedlaender, filósofo neokantiano, vinculado à escola Bauhaus. Além de reconhecer em Friedlaender um exemplo de integridade humana, Perls atribuía a ele a autoria de uma das mais importantes releituras do emprego romântico da noção de dialética – em proveito da descrição do “modo” como os fenômenos efetivamente acontecem em nossa experiência cotidiana.

Conforme Perls, Friedlaender queria apenas descrever as operações envolvidas na vivência de um fenômeno. Isso o teria levado a reconhecer uma espontaneidade criativa, cujo sentido não seria outro senão equilibrar tensões opostas, em proveito dessas unidades provisórias no tempo, que são os fenômenos. Friedlaender chamava de “indiferença criativa” essa criatividade espontânea, situada a meio caminho entre orientações materiais opostas, por ele denominadas de “formas” ou “pensamento diferencial” da realidade. (MÜLLER-GRANZOTTO,2007, nº 1)

Perls vislumbrou, nas noções de “indiferença criativa” e “pensamento diferencial da realidade”, os elementos funcionais, por meio dos quais ele poderia não só descrever a dinâmica dos “todos” holísticos, como distinguir esses “todos” de episódios contingentes. Perls (1942) faz uma tentativa de aplicação das teses de Friedlaender às formulações que importara de Goldstein. A Perls interessava apenas o fato de que, na noção de indiferença criativa era possível encontrar uma apresentação da espontaneidade criadora vigente em cada campo holístico.

No capítulo chamado “Neurose”, menciona que o organismo não está em condições de se concentrar em mais de uma coisa de cada vez e que esta deficiência, baseada no conceito de figura-fundo, é parcialmente reparada pela tendência holística da mente humana pela luta por simplificação e unificação. Afirma que:

O conflito mais importante que pode levar a uma personalidade integrada ou a uma neurótica é o conflito entre as necessidades sociais e as biológicas do homem. Contra as leis biológicas de auto-regulação a humanidade criou a regulação moralista- a regra da ética, o sistema de comportamento padronizado. (PERLS, 2002, p. 105).

Para Fritz, a defesa envolve uma grande proporção de evitação que leva a deterioração holística. Pela evitação, nossas esferas de ação e nossa inteligência se desintegram.

Nesse sentido, o propósito de todo tratamento psicoterapêutico é facilitar o equilíbrio organísmico, restabelecer as funções ótimas, eliminar as adições e compensar as deficiências.

Em seguida, Perls aplica o pensamento diferencial à compreensão do funcionamento psicológico do organismo, enfatizando a perspectiva holística para explicar a totalidade corpo-alma-mente. Sugere ainda modificações na técnica e no pensamento psicanalítico.

Na segunda parte denominada “Metabolismo mental”, Fritz esboça uma teoria da personalidade a partir da psicanálise, da psicologia da gestalt, da teoria organísmica de Kurt Goldstein, da perspectiva holística de Smuts e de outras influências. Na época, Smuts era o primeiro-ministro da África do Sul e foi o autor de Holism and evolution, um livro que causou significativa impressão em Perls.

Para Müller-Granzotto (2007), Smuts (1926) propusera um programa de investigação denominado holismo. Segundo tal programa, a ciência deveria interessar-se não tanto pelas características atômicas dos fenômenos estudados, mas pela configuração global formada por elas. Tal configuração, todavia, não corresponderia ao resultado do somatório das partes envolvidas. Tratar-se-ia, antes, de uma organização autônoma que, nem por isso, seria indiferente àquelas partes. Se uma delas se alterasse, todas as demais se alteravam, até que uma nova estrutura unificada se restabelecesse.

Por tal motivo, Smuts advogava em favor de uma metodologia integrativa, que não discriminasse entre aspectos mais relevantes e aspectos menos relevantes para a consecução de uma pesquisa. Todos os dados – fossem eles quantitativos ou qualitativos - de alguma maneira, contribuiriam para a análise do sentido de totalidade que formavam.

Ainda conforme a opinião de Müller-Granzotto (2007), Perls adota esse aspecto do holismo em sua dinâmica integrativa do campo – o que não quer dizer que assumisse integralmente o holismo de Smuts.

Nessa parte foi apresentada também a teoria na luta da sobrevivência em que a necessidade mais importante torna-se figura e organiza o comportamento do indivíduo até que seja satisfeita, depois ela recua para o fundo e dá lugar à próxima necessidade mais importante agora.

A terceira parte chama-se “Terapia de concentração” e contempla a proposta de uma técnica terapêutica do autor, baseadas na substituição do método psicanalítico de associações livres pela concentração. Esta técnica é a meta para recuperar a awareness .

No prefácio à edição de 1945 da Knox Publishing Company, o autor agradece a sua esposa Dra. Laura Perls pelas contribuições valiosas ao trabalho, ao professor Kurt Goldstein pelo seu primeiro contato com a teoria da gestalt e a Reich que o fez prestar atenção na função do sistema motor como couraça na medicina psicossomática.

Nessa última parte do livro é importante destacar a influência e contribuição de Russel no capítulo “Senso de Realidade”. Bertrand Arthur William Russell foi um dos mais influentes matemáticos, filósofos e lógicos que viveu no século XX. Um importante político liberal, activista e um popularizador da Filosofia. Russell elaborou a Filosofia Analítica constituída de diversas teses destacando-se a tese da lógica simbólica e de fundamentação da Matemática. Segundo Russell, todas as verdades matemáticas poderiam ser deduzidas a partir de umas poucas verdades lógicas, e todos os conceitos matemáticos reduzidos a uns poucos conceitos lógicos primitivos.

Fritz coloca nesse capítulo que a maior parte do contato humano é feita por meio da linguagem, porém ela é uma ferramenta mal usada porque as palavras contêm significados múltiplos.

Russel distingue três possibilidades na linguagem que têm sua relação específica com o tempo:

1- Uma fala expressiva pela qual nós nos expressamos e por meio de descarga emocional efetuamos uma mudança dentro de nós mesmos (ação autoplástica). Uso no tempo presente;
2- Fala intencional ou sugestiva, que pretende efetuar uma mudança na mente de outra pessoa (ação aloplástica). Tende em direção ao futuro;
3- Fala descritiva. Uso no presente.
(RUSSEL, 2002, p. 293).

Deste modo, concluí-se que neste primeiro livro escrito por Perls, observa-se a influência filosófica de Friedlaender e Smuts, sendo que em nenhum momento, o autor faz referência ao Existencialismo.

Nota-se que esta primeira obra foi escrita de maneira mais sóbria e formal, talvez pelo intuito de reformular a teoria freudiana. Fritz estava comprometido em descrever a sua teoria, a sua visão, alterando e criticando diversos pontos da psicanalise clássica.

3.2 - Gestalt-Terapia

Este livro foi escrito por Perls, Ralph Hefferline e Paul Goodman e publicado em 1951 nos Estados Unidos. Representa o marco de início da Gestalt-terapia e é reconhecida como obra fundamental para a construção da identidade da Gestalt-terapia e para o seu rompimento com a psicanálise.

Segundo Frazão (1997), esta obra seria por muitos considerada “a bíblia da Gestalt”, porém a demora para viabilizar a edição brasileira ocorreu devido à necessidade da permissão dos herdeiros para publicá-la, já que os três autores são falecidos.

Inicialmente esta obra era constituída por dois volumes; o primeiro a respeito dos fundamentos teóricos da Gestalt-terapia e o segundo apresenta os conceitos através de experimentos. Porém, ambos foram editados em um único livro e a sua ordem foi invertida.

Na apresentação a edição brasileira, Frazão (1997) coloca que Perls foi influenciado de forma marcante pelo filósofo Friedlaender como vimos no capítulo anterior, Buber, Tilich e outros como Goldstein, Lewin, Reich, Moreno, Smuts, Korzybski e pelo movimento psicanalítico da época. Nesse sentido, investigaram-se as marcas da influência filosófica nos escritos do autor.

A autora aponta que uma das mais importantes contribuições da Gestalt-terapia refere-se à visão holística do homem, o qual é concebido como ser bio-psicossocial, sempre em interação com seu meio.

Disto decorre outra contribuição, influenciada pelo pensamento de Buber, que é a de levar em conta na situação terapêutica não apenas o cliente, mas a relação que se estabelece entre ele e o terapeuta, como fenômeno do campo no qual ocorre o processo terapêutico.

No prefácio os autores colocam que o propósito desta obra era desenvolver uma teoria e um método que ampliassem os limites e a aplicabilidade da psicoterapia. Afirmam que para “entender o livro, o leitor precisa ter uma mentalidade ‘gestaltista’ e para adquiri-la precisa entender o livro.” (PERLS; HEFFERLINE; GOODMAN, 1997, p. 32).

Este livro está dividido em três partes: Introdução; Realidade, Natureza humana e Sociedade; e Teoria do Self.

Na introdução os autores afirmam que a experiência se dá na fronteira entre o organismo e seu ambiente, considerando que todo contato é criativo e dinâmico. Para eles, todo contato é ajustamento criativo do organismo e ambiente e a psicologia pode ser definida como o estudo dos ajustamentos criativos.

Ao falar brevemente de self, citam Immanuel Kant, um filósofo alemão considerado como o último grande filósofo dos princípios da era moderna. Kant considerava o self uma unidade sintética, o self é precisamente o integrador. Para Perls, Hefferline e Goodman a descrição de saúde e doença psicológicas é uma questão das identificações e alienações do self.

Na segunda parte “Realidade, Natureza humana e Sociedade” encontra-se novamente a influência do filósofo Kant com o tema da antropologia. O tema da antropologia é o relacionamento entre a anatomia do homem, sua fisiologia e faculdades, e sua atividade e cultura. Rapidamente, as principais características da antropologia kantiana podem ser resumidas da seguinte maneira: uma ciência empírica, cosmopolita e pragmática. Dessa forma, os autores dão importância para a indagação antropológica “O que é o Homem? para a psicoterapia. Ao comentar sobre os primeiros antropólogos filosóficos dos tempos modernos, nos séculos XVII e XVIII, citam Rousseau que falava geralmente de indivíduos condensando a sociedade.

Na última parte desta obra os autores explanam sobre a Teoria do Self, descrevendo o ajustamento criativo , a perda das funções de ego e fazem críticas às Teorias Psicanalíticas do Self.

Esse capítulo foi apresentado como uma colcha de retalhos em que foram transcritos somente os trechos encontrados que poderiam ter alguma relação com a filosofia, ou mesmo de longe com o existencialismo. Porém, pode-se notar que não é possível definir nesta obra uma influência clara de algum filósofo marcante nos conceitos teóricos apresentados pelos autores deste livro. O autor apenas menciona Kant e Rousseau.

Este livro tem uma linguagem mais robusta e acadêmica, às vezes de difícil entendimento, talvez por ter sido escrita por três autores e nota-se visível diferença no linguajar para os subseqüentes livros de Perls. Neste livro, encontra-se pouquíssima referência a filosofia de modo geral, e os autores citam brevemente Immanuel Kant e a sua antropologia.

É preciso explanar que não foi objetivo da autora fazer resenhas dos livros apresentados ou descrever metodicamente o que contém teoricamente em cada parte da obra.

3.3 – Gestalt-Terapia explicada

Este livro foi publicado em 1969, um ano antes de Fritz morrer aos 76 anos. Tellegen (1976) apresenta este livro como sendo um encontro que pode gerar uma transformação, já que o contato com Perls sempre causou um certo impacto. Esta autora coloca que “Perls assimilou indiretamente o pensamento existencialista de Buber, Tillich e Scheler, na época radicados na mesma cidade”. (TELLEGEN, 1976, p.10).

O autor na introdução esclarece que a sua abordagem promove o processo de crescimento e desenvolve o potencial humano. Pela primeira vez menciona o termo existencialismo em vez de filosofia e enfatiza a necessidade de compreender a sua base “... uma rosa é uma rosa. Eu sou o que sou, e neste momento não posso ser diferente do que sou.” (PERLS, 1977, p. 17).

No primeiro capítulo desta obra, Perls esclarece que chama a sua abordagem de existencial porque não lida apenas com sintomas ou estrutura de caráter, mas com os problemas da existência total da pessoa. “Nós existimos como um organismo, como um molusco, como um animal, e assim por diante, e nos relacionamos com o mundo exterior como qualquer outro organismo da natureza.” (PERLS, 1977, p. 20).

Ele considera a Gestalt-terapia um dos três tipos de terapia existencial, ao lado da Logoterapia de Frankl e a Terapia do Dasein, de Binswanger.

A Gestalt-terapia é a primeira filosofia existencial que se apóia em si própria. Concebe existencialismo como uma filosofia que deseja se libertar dos conceitos, e trabalhar com o princípio da “presentificação” (awareness), com a fenomenologia. O entrave das demais filosofias existenciais é a necessidade de se apoiarem em outras fontes como Buber do judaísmo; Tillich, do protestantismo; Sartre, do socialismo e Heidegger na linguagem. (PERLS, 1977, p. 33)

Para o autor, a Gestalt-terapia tem sua base na sua própria formação, em que a formação da gestalt, a emergência de necessidades é um fenômeno biológico primário. Desse modo, ele considera o organismo como um sistema que está em equilíbrio e deve funcionar adequadamente. Qualquer desequilíbrio é experienciado como uma necessidade de ser corrigido. Nesse momento, Perls apresenta um dos principais conceitos da sua abordagem: auto regulação versus regulação externa. Ele afirma que: “... a tomada de consciência em si – e de si mesmo – pode ter efeito de cura.” (PERLS, 1977, p. 34).

Depois formula que o amadurecer é transcender ao apoio ambiental para o auto apoio. Significa assumir responsabilidade pela própria vida, de ser por si só. Faz também uma ótima comparação entre o psicótico, o neurótico e o saudável: “A pessoa louca diz ‘Eu sou Abraham Lincoln’, o neurótico diz ‘Eu gostaria de ser Abraham Lincoln’ e a pessoa sadia diz ‘Eu sou eu, e você é você.” (PERLS, 1977, p. 64).

No capítulo em que Fritz descreve a neurose, o autor a subdivide em camadas:

A primeira é a dos “clichês” e a segunda dos papéis que são desempenhados. Ele denomina essa segunda camada de nível sintético que precisa ser trabalhado e ultrapassado, para experienciar a anti-existência, ou seja, o nada, o vazio. Ele traduz a dialética: tese, antítese e síntese para existência, anti-existência e existência sintética. Coloca que a maior parte da nossa vida é um meio termo entre a anti-existência e a existência. (PERLS,1977, p. 84)


Porém, ele interrompe a sua análise e não descreve mais profundamente seus conceitos e comparações nesta obra. Depois ele discorre sobre a necessidade de assumir responsabilidade perante cada emoção, cada movimento, cada pensamento e não jogar a responsabilidade em cima de mais ninguém. Para o autor responsabilidade significa ‘“eu sou eu” e “eu sou o que sou”. Uma das responsabilidades mais importantes é assumir a responsabilidade pelas nossas projeções, reidentificarmo-nos com estas projeções e nos tornarmos aquilo que projetamos, integrando-as a nossa pessoa.’ (PERLS, 1977, p. 97).

Os problemas da existência são, para o autor, claramente indicados por sonhos. “Os sonhos são a criação humana mais espontânea, refletindo fragmentos das nossas personalidades” (PERLS,1977, p. 98). Ele explica que em Gestalt-terapia, os sonhos não devem ser interpretados, eles precisam ser revividos no presente. “O sonho é uma excelente oportunidade de descobrir os furos da personalidade.” (PERLS, 1977, p. 102).

Em seguida, ele descreve o seminário de trabalho com sonhos que ocupa a maior parte desta obra. Interessante notar que na introdução deste seminário ele explana sobre a sua função naqueles atendimentos: “Minha função como terapeuta é ajudar vocês a tomarem consciência do aqui e do agora, e frustrar vocês em qualquer tentativa de fugir disto.” (PERLS, 1977, p. 107).

Até o presente momento esta é a obra em que o autor faz uma ponte entre a Gestalt terapia e o Existencialismo, explicando os motivos pelos quais considera a sua abordagem como sendo “existencialista”. Perls está no final da sua vida e menciona pela primeira vez o termo existencialismo, classificando a sua abordagem como terapia existencial porque lida com os problemas da existência total da pessoa.

3.4 – A abordagem Gestáltica e testemunha ocular da terapia


A Abordagem Gestáltica e Testemunha Ocular da Terapia (1969) são dois livros que Fritz estava escrevendo na época da sua morte. Desse modo, podem ser lidos separadamente ou em conjunto. No prefácio deste livro, Spitzer (1973) afirma que Perls escreveu esta obra porque não estava mais satisfeito com seus dois trabalhos anteriores: Ego, Fome e Agressão (1947) e Gestalt Terapia (1952) por estarem ultrapassados e serem de difícil leitura.

Na época o autor morava em Esalen e depois mudou-se para Cowichan, na Colúmbia Britânica do Canadá. Fritz pretendia criar um estilo que encorajasse o aumento da consciência, com cada pessoa integrando partes repudiadas de sua personalidade e se responsabilizando por seus próprios sentimentos. Queria criar um centro onde terapeutas pudessem viver e estudar vários meses.

Na introdução deste livro o autor coloca que o homem está num estado de baixo grau de vitalidade e pouco sabe da vida criativa. Ele vagueia sem objetivo, não sabe o que quer e, por isso, não consegue imaginar como alcançá-lo. Afirma ainda que:

[...] este livro... foi escrito a partir da crença de que o homem pode viver uma vida mais plena e rica de que a maioria vive agora. Foi escrito a partir da convicção de que o homem não começou ainda a descobrir o potencial de vida e energia que nele repousa. (PERLS, 1988, p. 13)

Para ele, a Psicologia e a Psiquiatria são ciências que têm como meta ajudar-nos a atingir o auto-conhecimento, a satisfação e a auto-sustentação.

A primeira parte chama-se “A Abordagem Gestáltica” e começa com os seus fundamentos teóricos em duas premissas:

1ª Premissa: é que a organização de fatos, percepções, comportamentos ou fenômenos, e não os aspectos individuais de que são compostos, que os define lhes dá um significado específico e particular.
2ª Premissa: todos os comportamentos são governados pela homeostase. O processo homeostático é aquele pelo qual o organismo mantém seu equilíbrio e satisfaz as suas necessidades, conseqüentemente, sua saúde sob condições diversas. (PERLS, 1988, p. 18-20)


O autor chama de doutrina holística a forma de enxergar o homem como um organismo unificado que funciona no nível do pensar (atividade de fantasia) e no nível do agir, descrevendo a sua atividade mental.

Introduz a seguir o conceito de campo unificado, um conceito holístico que fornece um instrumento para lidar com o homem global, verificando como que as ações mentais e físicas do homem estão entrelaçadas. Em nenhum momento o autor define teoricamente este conceito ou refere-se ao autor que originou ou criou essa denominação.

Para Perls, a psicoterapia torna-se uma experiência no presente, onde o paciente aprende a integrar seus pensamentos, sentimentos e ações. “A psicoterapia deixa de ser uma escavação do passado para se tornar uma experiência de viver no presente. (PERLS, 1988, p. 30)

A seguir ele explana sobre limite de contato em que o organismo e meio se mantém numa relação de reciprocidade. Afirma que nem todo contato é saudável e nem toda fuga é doentia. Depois descreve os mecanismos neuróticos: introjeção, confluência e retroflexão, o que não nos interessa aprofundar nesse momento, porque continuaremos investigando a influência filosófica em seus escritos.

O capítulo “E Aqui temos o neurótico” é iniciado pelo autor dessa forma:


E agora vem nosso neurótico – ligado ao passado com modos obsoletos de agir, vago quanto ao presente porque vê apenas de óculos escuros, torturado em relação ao futuro porque o presente lhe escapa. Seja qual for a sua aparência, o paciente vem para tratamento porque está numa crise existencial. (PERLS, 1988, p. 57)


Para Perls, o neurótico chega à terapia com seus meios de manipulação que nutrem mais a sua desvantagem do que o ajuda a se livrar dela. Sua capacidade de manipular é o seu ponto forte e a falta de capacidade para enfrentar sua crise existencial é o seu ponto fraco. Define neurose como “um estado de desequilíbrio no indivíduo, que surge quando ele e o grupo do qual é membro vivenciam, simultaneamente, necessidades distintas, e o indivíduo não sabe dizer qual é a dominante.” (PERLS, 1988, p. 64)

O autor prefere falar do não-percebido-neste-momento do que falar do inconsciente. Trabalha com sonhos de forma diferenciada da Psicanálise porque em vez de interpretá-lo, solicita aos pacientes que vivam o sonho da forma mais extensiva e intensa, para descobrir o paradoxo.

Depois ele descreve a sua proposta de terapia aqui e agora. Para Gestalt, o neurótico é uma pessoa que tem um problema contínuo, aqui e agora, no presente. Desse modo, o objetivo da terapia deve ser lhe dar meios para que possa resolver seus problemas atuais e qualquer outro problema que surja depois. O paciente poderá ver como está provocando as suas dificuldades e ajudar-se a resolvê-las.

A terapia gestáltica é uma terapia experiencial porque pede-se aos pacientes que reexperienciem seus problemas e traumas, que são situações inacabadas no presente, no aqui e agora. Isso exige que o paciente experiencie a si mesmo tanto quanto possa. (PERLS, 1988, p. 76)


Nesse capítulo Perls fala sobre o “eu existencial” que seria esse dar-se conta usando a frase “agora percebo conscientemente”. Ele explica que o “eu” é usado como antídoto para “esta” ou “aquela” parte minha e desenvolve o sentido de responsabilidade por seus sentimentos, pensamentos e sintomas. Diz que o “eu sou” é um símbolo existencial. O “conscientizar-se” fornece ao paciente a compreensão de suas próprias capacidades e habilidades.

Esse “conscientizar-se” leva ao processo de auto-realização em que o paciente se dá conta de todas as suas escolhas, desde pequenas decisões patológicas até a escolha existencial de dedicação a uma causa ou profissão. (PERLS, 1988, p. 78)


A seguir Fritz disponibiliza técnicas de conscientização através de cinco perguntas auto-apoiadoras: “O que você está fazendo?”, “O que você sente?”, “O que você quer?”, “O que você espera?” e “O que você evita?”. Essas questões só podem ser respondidas à medida que o próprio conscientizar-se do paciente o torne possível. Descreve também outras técnicas que podem ser usadas como psicodrama , ir e vir, e confusão.

O terapeuta não tem o papel de fazer descobertas para o paciente, porém pode facilitar o seu processo de conscientização. A idéia de frustrar as perguntas dos pacientes se destina a devolver ao paciente a seus próprios recursos. Por isso, ele pede que o cliente converta as suas perguntas dirigidas ao terapeuta em afirmações.

Nesse momento, o autor fala novamente sobre responsabilidade porque quando o cliente faz uma pergunta ao terapeuta, ele esquiva-se da responsabilidade por seu comportamento, como se a responsabilidade fosse uma acusação. Embora o autor não faça uma ligação direta com o existencialismo, não podemos deixar de mencionar que o existencialismo sartriano concede importante relevo a responsabilidade em que cada escolha carrega consigo a obrigação de responder pelos próprios atos, um encargo que torna o homem o único responsável pelas consequências de suas decisões. E cada uma dessas escolhas provoca mudanças que não podem ser desfeitas, de forma a modelar o mundo de acordo com seu projeto pessoal. Assim, perante suas escolhas, o homem não apenas torna-se responsável por si, mas também por toda a humanidade. Essa responsabilidade é a causa da angústia dos existencialistas. Essa angústia decorre da consciência do homem de que são as suas escolhas que definirão a sua essência, e mais, de que essas escolhas podem afetar, de forma irreversível, o próprio mundo. A angústia, portanto, vem da própria consciência da liberdade e da responsabilidade em usá-la de forma adequada.

Na segunda parte – Testemunha Ocular da Terapia, o editor Robert Spitzer coloca que Fritz escreveu esta obra para o estudante estudar os filmes e transcrições do livro detalhadamente, encorajando um estudo introdutório sério. Não encarava seu trabalho como miraculoso. O autor esperava que os filmes e os livros desmitificassem o culto a Fritz Perls.

Inicia a obra dizendo que a idéia da Gestalt-terapia é transformar pessoas de papel em pessoas reais. Afirma que tornamos-nos fóbicos em relação à dor e ao sofrimento. Assim, fugimos de qualquer frustração e o resultado é a falta de crescimento.

“A Gestalt quer ser completada. Se a Gestalt não for completada, ficamos com situações inacabadas que pressionam para serem completadas. Elas emergem e para se livras delas é preciso se dar conta do óbvio. O neurótico não vê o óbvio.” (PERLS, 1988, pag. 132)


Perls brinca que para trabalhar só precisa de seis componentes: sua técnica, a cadeira quente, a cadeira vazia, lenços, seus cigarros e cinzeiros; causando descontração na platéia que o assiste. Depois, logo são iniciadas as transcrições de seus atendimentos com a peculiaridade de cada caso.

Ele escreveu este livro já na época da sua morte e explica porque a sua terapia é experiencial. Fala também acerca da necessidade do paciente conscientizar-se para compreender suas capacidades e habilidades. Desenvolve o conceito de responsabilidade em que o homem precisa se responsabilizar pelas sua emoções,pensamentos e sintomas. Embora possamos suspeitar da reflexão de Sartre sobre o tema da responsabilidade em que o homem é o que escolhe ser, é bem pouco provável que Perls tenha lido Sartre e não menciona este filósofo em nenhuma das suas obras.


3.5 - Isto é Gestalt


A primeira edição deste livro foi nos EUA em 1975. É uma coletânea de artigos de diversos autores sobre o desenvolvimento da Gestalt-terapia, organizado por Stevens. Neste capítulo serão avaliados somente os artigos escritos por Frederick S. Perls.

Barros (1977) afirma no prefácio que “a Gestalt se constitui numa das expressões mais enérgicas e vitalizadas de busca dos valores humanos e existenciais dentro do panorama psicoterapêutico nos últimos dez anos”. (BARROS, 1977, p. 9).

Segundo Barros (1977), Perls utiliza-se de expressões tais como satori e koan da filosofia oriental. Isto se deve em parte à grande penetração da filosofia e práticas orientais na cultura americana. Porém, para este autor, as afinidades da abordagem da Gestalt com estas orientações têm outras origens. Lembra que Perls pensava em denominar sua abordagem de Terapia da Concentração em vez de Gestalt-terapia e que a fim de obter espontaneidade, precisa-se, como no Zen, de uma disciplina rígida.

Na introdução desta obra, John Stevens e Barry Stevens (1975) afirmam que ela contém todos os escritos de Perls que foram publicados isoladamente nas décadas de 50 e 60. Os textos mostram importantes aspectos do desenvolvimento da Gestalt nesse período. Para eles Gestalt é, antes de ser uma terapia profissional, uma prática pessoal, uma forma de vida.

O primeiro artigo de Perls nessa coleção chama-se “Gestalt - terapia e potencialidades humanas”. O autor inicia este texto fazendo uma ponte entre a Gestalt e o existencialismo. Veja a seguir:

Gestalt-terapia é uma das forças rebeldes, humanistas e existenciais da psicologia... Ela é ‘existencial’ num sentido amplo. Todas as escolas do existencialismo enfatizam a experiência direta, mas a maioria delas tem uma moldura conceitual. Kierkegaard com sua teologia protestante, Buber com seu judaísmo, Sartre com seu comunismo e Biswanger com a psicanálise. A gestalt-terapia é ontológica (estudo da essência do ser), pois reconhece tanto a atividade conceitual quanto a formação biológica de Gestalten. É. Portanto, auto-sustentada e realmente experiencial. (PERLS, 1977, p. 19).


Perls afirma que o objetivo do terapeuta é ampliar o potencial humano através do processo de integração. Isto é feito apoiando os interesses, necessidades e desejos do indivíduo. O problema é que muitas das necessidades individuais se opõem à sociedade.

O autor afirma que a filosofia básica da gestalt-terapia é como a da natureza: diferenciação e integração. Só a diferenciação leva a polaridades que lutarão e se paralisarão. Integrando os opostos, tornamos a pessoa completa de novo. Assim, a pessoa poderá ver uma situação total sem perder os detalhes e lidar com a realidade, mobilizando seus próprios recursos.

Neste capítulo, Perls vê o sonho como uma mensagem existencial porque diz ao paciente qual é a situação de vida e especialmente como modificar o pesadelo da sua existência, tornando-se consciente e assumindo seu lugar histórico na vida.

Depois compara o núcleo da neurose ou ponto doente com o que ele denominou de impasse na Gestalt-terapia.

“Quando o terapeuta aborda o impasse existencial, o paciente entra num turbilhão e fica paralisado. O paciente sente o desespero que Kierkegaard chamou de ‘náusea de viver’”. Para ele, o impasse existencial é uma situação onde o apoio ambiental não está disponível e o paciente acredita ser incapaz para lidar sozinho com a vida. E fará qualquer coisa para se agarrar ao ‘status quo’ em vez de crescer e usar suas próprias forças. (PERLS, 1977, p. 34).



A seguir, explica que a exteriorização é importante para nos conscientizarmos mais do que somos e do que está presente. Exteriorizar não quer dizer viver realmente, seria algo mais próximo da encenação.

Nos próximos capítulos, Fritz explana sobre temas como moral, fronteira do ego e agressão. Coloca que estes elementos estão essencialmente ligados e que a agressão é essencial para a sobrevivência e o crescimento.

Menciona que os conflitos irreais, projetados, deslocados devem ser eliminados. Para Perls, por trás de cada conflito falso, há um conflito verdadeiro, uma oposição de forças reais. Desse modo, o objetivo da psicoterapia é tornar presentes os conflitos não-percebidos e eliminar os conflitos falsos.

Embora não tenha obtido sucesso, Perls afirma em seu último texto desta obra que a sua ambição era criar uma teoria de campo unificado na psicologia. Explora a resolução da gestalt fechada com uma unidade em vez da divisão.


3.6 - Escarafunchando Fritz dentro e fora da lata do lixo

“Sem consciência nada há. Sem consciência há vazio.”
Fritz Perls

Nascido e criado em Berlim, Perls formou-se em medicina e se especializou em Psiquiatria. Em 1926, foi assistente de Goldstein no Instituto de soldados com lesões cerebrais, sendo influenciado por suas concepções holísticas quanto ao funcionamento do organismo. Em 1933, mudou-se para Viena e iniciou sua formação psicanalítica.

Este livro traz sua autobiografia. Fritz “escarafuncha” a lata de lixo (mental), local onde ele encontra pessoas, fatos, teorias e etc. Entende-se, desse modo, porque não se preocupa em ter uma seqüência lógica na transmissão de suas idéias e críticas. Isto pode ser verificado pela ausência de capítulos; o autor escreve livremente todos os seus pensamentos conforme eles vão surgindo, sem se preocupar com o julgamento de seus leitores e com a linguagem utilizada.

Inicialmente, a sua intenção era escrever para si mesmo com o objetivo de fazer a sua terapia, investigar o seu hábito de fumar, suas tendências exibicionistas e outros sintomas.

Nesta obra o autor conta suas decepções com Freud e faz severas críticas ao sistema psicanalítico. Fritz ficou prisioneiro dos tabus psicanalíticos até romper com a psicanálise em 1936, quando foi designado para dar uma palestra no Congresso Internacional de Psicanálise na antiga Checoslováquia. A palestra sobre resistências orais que tinha por objetivo transcender Freud encontrou profunda desaprovação. Fritz ficou chocado e desapontado.

Apesar de diversos autores afirmarem categoricamente que Perls fora influenciado por Buber, Tillich e Scheler, na sua autobiografia ele nega qualquer contato com estes filósofos porque estava demasiadamente focado na psicanálise. Perls explica que estava tão absorto com a psicanálise em Frankfurt, que não se envolveu com os existencialistas ali presentes: Buber, Tillich e Scheler. Mas alguma coisa tinha entrado:

A filosofia existencial exige que se assuma responsabilidade pela própria existência. Mas qual das escolas existenciais tinha a Verdade com V maiúsculo? Já que nenhuma filosofia existencial se apóia sobre seus próprios pés. (PERLS, 1979, p. 78).


Embora esta afirmação de Rosenfeld tenha controvérsias, ele coloca que Laura Perls teve contato e sofreu influências dos teólogos existencialistas Martin Buber e Paul Tillich. Dessa forma, há uma indicação de que as influências existenciais e fenomenológicas na Gestalt-terapia vieram dela, porém o crédito foi limitado porque ela escrevia muito pouco em seu nome. (ROSENFELD, 1978)

Conta que foi para a África do Sul em 1934. A chegada de Hitler e a sua fuga para Holanda em 1936 interromperam o seu treinamento como analista. Em Amsterdã, residiu com outros refugiados numa casa oferecida pela comunidade judaica. Ao emigrar para a América, abriu uma clínica e fundou o Instituto Sul-Africano de Psicanálise. Relatou suas experiências com seus analistas Harnick, Clara Happel e Reich.

O autor gostaria que a Gestalt fosse uma filosofia viva e exata sem ser rígida. O objetivo é que ela seja coesa e aplicável a todos os eventos que ocorrem. É uma essência que está aí e que desaparece se o todo for fragmentado em seus componentes. A tomada de consciência é o ponto central da sua abordagem, definida por ele como integrativa e não analítica. Reconhece a fenomenologia como o passo básico e indispensável no sentido de sabermos tudo que é possível saber.

Perls conta sobre seu amigo Friedlaender e a sua influência já foi observada no seu primeiro livro - Ego, fome e agressão (1942).

Friedlaender ganhava dinheiro escrevendo histórias engraçadas sob o nome de Mynona. Seu trabalho filosófico Indiferença Criativa teve tremendo impacto sobre mim. Como personalidade, ele foi o primeiro homem pelo qual sentia-se humilde e cheio de veneração. (PERLS, 1979, p.95)

Cita a oposição de Laura e de amigos ao uso do termo Gestalt-terapia para sua abordagem, mas diz que para ele, era uma questão de tudo ou nada.

No final do livro, Fritz reconhece sua admiração por Freud devido à tenacidade demonstrada em salvar o sexo de seu status de pecado na cultura Ocidental. Reafirma, entretanto, a necessidade de adaptar a teoria freudiana ao século XX, preenchendo os buracos existentes.

Encerra o livro dizendo que o escreveu em três meses e que precisava ser a prova viva da sua teoria. Curioso notar que ele se considera um existencialista ao dizer: “O tópico fundamental para nós existencialistas é, naturalmente, o todo do self, autenticidade, ser real e estar todo aí.” (PERLS, 1975, p. 335).

Este livro é interessante porque o leitor tem a sensação de realmente estar conhecendo o seu autor por meio de uma linguagem clara, simples e por vezes rude. Ele conta suas vivências com um excesso de franqueza e honestidade, deixando transparecer sua prepotência em algumas situações. Trata-se de uma proposta ousada e inovadora em que o autor expõe seus conflitos através do diálogo entre o dominador (top dog) e o dominado (under dog). Assemelha-se a um mosaico de memórias e reflexões sobre sua vida, bem como um relato de como surgiram as idéias e conceitos que deram origem e fizeram evoluir a Gestalt-terapia.

Cap. 4 – A interação entre a Gestalt-Terapia e o Existencialismo

Neste capítulo será abordado de que forma os autores clássicos da Gestalt fazem o link com os conceitos existencialistas.

Segundo Ribeiro (1985) os princípios e pressupostos do existencialismo nos ajudam a fazer a transposição para a Gestalt já que para ambos a existência é a grande interrogação.

A visão que a gestalt tem a respeito do homem é de forma muito semelhante ao existencialismo, ou seja, como um ser particular, concreto, com vontade e liberdade pessoais, consciente e responsável. Considera também que a consciência é viva, livre, intencional e orientada para as coisas. (RIBEIRO, 1985, p. 37.)


Este autor menciona que para Sartre “o homem é um ser existindo permanentemente à procura da sua essência, do seu completar-se, que só se realiza na morte. Neste sentido, o homem é o que escolhe ser e o psicoterapeuta torna-se um consultor deste projeto” (RIBEIRO, 1985, p. 49). Ele faz o link com a gestalt através da permanente luta para fechar situações ou “projetos” inacabados.

Observa-se que Ribeiro faz a transposição das idéias existencialistas para a Gestalt terapia através de uma afinidade de ideais, conceitos e olhar acerca do homem. Para este autor, o existencialismo oferece pressupostos para um método analítico-reflexivo que permite analisar fenomenologicamente a existência. Ao consultar a referência bibliográfica utilizada nota-se que não há referência aos textos de Perls, e constam as obras de Jaspers, Kierkegaard, Penna e Sartre.

Para RIBEIRO (1985, p. 76) a partir dos conceitos existencialistas de projeto, escolha do agir e liberdade, “a função da psicoterapia é levar o cliente a tomar consciência do seu projeto, de como vem sendo realizado e como levá-lo avante. Fazer como que o homem se interprete e encontre seu próprio lugar no mundo”.

Segundo Ginger (1995) a Gestalt-terapia reteve do existencialismo o primado da vivência concreta em relação aos princípios abstratos. Pode ser considerado existencial tudo que diz respeito a forma como o homem experimenta sua existência.

A singularidade de cada existência humana e a noção de responsabilidade de cada pessoa que participa ativamente da construção de seu projeto existencial e confere um sentido original ao que acontece e ao mundo qua a rodeia, criando sua relativa liberdade. (GINGER, 1995, p. 15)

Yontef (1998) inicia a sua obra afirmando que a Gestalt Terapia (GT) é uma terapia existencial fenomenológica. A visão existencial coloca que as pessoas estão infinitamente refazendo-se ou descobrindo a si mesmas e desse modo, a GT propicia uma maneira de ser autêntico e responsável por si mesmo.

O trabalho fenomenológico da GT é feito por meio de um relacionamento baseado no modelo existencial do Eu e Tu-Aqui-e-Agora. De acordo com este modelo, terapeuta e cliente trabalham juntos para experimentar, a fim de aumentar a capacidade do cliente de experienciar por conta própria. (YONTEF, 1988, p. 56)


Este autor não cita nenhum outro escritor, somente Buber e também faz a ligação da GT com o existencialismo através da analogia de ideais.

Um outro autor bastante interessante é Claudio Naranjo que é chileno e aprendeu Gestalt com Perls, pertecendo a equipe original do Instituto de Esalen na década de 60. Ele coloca que Perls conhecia bem Buber e que a linguagem buberiana ingressou lentamente no discurso gestáltico. Naranjo (1993) coloca que Perls foi um experiencialista anti-teórico que através do seu exemplo transmitiu as pessoas como é possível encontra-se consigo mesmo através da tomada de consciência. Na década de 60 a imagem pública de Fritz era a de um rebelde, simpatizante dos valores da contra-cultura. Naranjo descreve um Fritz sem apelido, desnudo de teorias e iconoclasta.

Apesar da crescente inclinação anti-teórica de Perls e paradoxalmente a filosofia existencial ter recorrido ao intelecto em seu ataque ao intelectualismo, a terapia gestáltica pode ser considerada existencial pela sua ênfase na autenticidade, na tomada de consciência das próprias emoções, impulsos e resistências do processo terapêutico. Trata-se mais de uma visão do que de uma teoria.(NARANJO, 1993, p. 84)

Em uma Conferência realizada em Madrid em 1996 sob o título “La Gestalt como un Existencialismo Dionisiaco”, Naranjo critica a visão que aponta Husserl influenciando Perls com a sua fenomenologia. Ele diz que Perls nunca teve paciência para ler Husserl, nem outros filósofos acadêmicos, por mais importantes que fossem. Coloca que se Perls for considerado um filósofo, será em um sentido pouco comum da palavra e não buscou soluções intelectuais. As obras citadas de Naranjo não apresentam o capítulo básico da referência bibliográfica, o que dificulta muito os estudos e a nossa investigação, apesar dele ter dito em sua obra que leu Heidegger, Jaspers e Sartre.

Laura comentou que Fritz ficou ressentido com Rollo May porque ao publicar seu livro “Existência” não o incluiu. Para Naranjo apresentar a Gestalt como um existencialismo pode ter sido um desejo de Fritz que queria que a Gestalt fosse uma filosofia existencial.

“A mim sempre me soou como certo isto da Gestalt ser uma terapia existencial porque assuntos como autenticidade e a responsabilidade estão conectados com o existencialismo: o ser autêntico e o ser inautêntico são categorias básicas em Heidegger.” (NARANJO, 2007, p. 174)


Naranjo disse que depois que leu “Assim falou Zaratustra” (1885) ficou visível a ressonância de Friedrich Nietzsche sobre Perls.

O livro narra as andanças e ensinamentos de um filósofo, que se auto-nomeou Zaratustra após a fundação do Zoroastrismo na antiga Pérsia. Para explorar muitas das idéias de Nietzsche, o livro usa uma forma poética e fictícia, freqüentemente satirizando o Novo testamento. (NARANJO, 2007, p. 135)


Porém, depois Naranjo se contradiz afirmando que não é seguro dizer que Fritz tenha sido um leitor de Nietzsche. O espírito nietzschiano pode ter chego a Perls através de Freud ou Reich. Observa-se que os principais autores clássicos da Gestalt inferem a repercussão da filosofia existencialista nesta nova abordagem, apesar de Perls pouco ter escrito sobre isso. A simpatia e similitude entre os conceitos e atitudes do homem diante da vida aproximaram estes duas correntes.

Cap. 5 – Considerações finais

Após a análise das suas obras, verifica-se que Perls atravessou por diferentes fases na sua vida: na primeira ele viveu em Nova Iorque com Laura, Paul Goodman e outros colaboradores, tendo uma maior preocupação com a teoria, talvez por precisar argumentar e expor para psicanalistas. A segunda fase foi no começo dos anos 60 quando ele foi para a Califórnia e estava mais maduro, na esfera profissional e pessoal. Nesta época, parece que ele adotou um caráter mais existencial e foi descobrindo gradativamente ser um existencialista.

Se o próprio fundador classifica a sua abordagem como sendo existencialista, o que isto nos faz pensar? Aborda e explica os motivos para entender a Gestalt como tal, por sua atitude experimentalista que convida o outro a vivenciar, apenas não faz referências teóricas a determinado filósofo ou conceito específico.

Durante meses, fiquei investigando e escrevendo sobre o nada encontrado ou sobre o “tesouro perdido”. Pensei muitas vezes em desistir ou alterar o tema da monografia, pois como poderia desenvolver um trabalho sobre o nada que foi escrito e encontrado nas obras de Perls? Terminou sendo desta forma e, ao invés de mudar o tema, este foi ampliado com o intuito de apreender grande parte do conteúdo transmitido pelo autor, de modo a compreender as diferentes fases pela qual este passou e vivenciou.

Se Perls não bebeu das fontes do existencialismo, certamente ali se inspirou. Apesar de não sabermos se ele se aprofundou nas obras de Husserl, Heidegger ou Jaspers que foram os existencialistas do seu tempo, observa-se que ele critica severamente as filosofias existenciais de Kierkegaard, Buber, Tillich e Sartre pela necessidade de se apoiarem em outras fontes. Também afirmou que muitas vezes se sente como Heidegger e compara o sentimento do paciente com o desespero que Kierkegaard chamou de náusea de viver.

A Gestalt ratifica a premissa em que cada ser humano é visto como sendo o único responsável pelas suas escolhas, e esse modo de pensar influencia de modo relevante as intervenções do terapeuta na prática clínica. Existe uma outra importante contribuição do existencialismo que é o viver a experiência no aqui-e-agora.

Apesar de notar claramente os conceitos de holismo e do aqui e agora, Perls não faz referência a nenhum autor em especial como podemos observar em outras partes da sua obra, como por exemplo, quando menciona Goldstein e a questão da regulação organísmica.

Fritz faleceu em 14 de março de 1970, nos Estados Unidos e deixou como legado uma das mais importantes abordagens da Psicologia e da psicoterapia atual, uma abordagem em constante desenvolvimento e em constante luta por um mundo mais humano e mais simples.

Ao acompanhar a trajetória de vida de Perls e seus questionamentos, é curioso saber que ele se considerava um existencialista. Apesar de nem todos os seus livros terem sido traduzidos, observa-se uma obra inacabada e fragmentada. Seus textos não possuem referência bibliográfica, dificultando a pesquisa sobre suas possíveis influências e estudos. Por outro lado, pode-se pensar que Fritz não estava preocupado com o sentido acadêmico ou teórico da sua abordagem, embora tenha escrito diversos livros por acreditar que os primeiros como Ego, fome e agressão estavam obsoletos.

Este problema metodológico foi encontrado também nos livros de Gestalt-terapia atuais que explicam como que alguns temas existencialistas foram incorporados na Gestalt-terapia, mas não possuem uma referência técnica de como aconteceu este entrelace. Parece que o casamento aconteceu por simples afinidade de idéias em que o fundador jogou a semente ao nomear a sua abordagem de existencialista e deixou para os autores subseqüentes frutificarem e interpretarem a sua forma de fazer terapia.

Se por um lado esta fragmentação gera um espaço para criação e transformação da abordagem gestáltica, por outro lado, corre o risco de sofrer críticas severas por parte de outras abordagens e pode chegar a ser desacreditada ou mal avaliada por não se basear em fundamentos conceituais sólidos e claros.

Também o nosso papel de gestalt-terapeuta disseminar a nossa abordagem através de um suporte teórico mais visível, forte e seguro já que temos na contemporaneidade inúmeras contribuições das ciências humanas em nosso favor, fazendo crescer cada vez mais o número de publicações da nossa produção acadêmica e nos familiarizando com as novas necessidades do mundo moderno.

Pessoalmente, eu não só acredito na influência do Existencialismo na Gestalt-terapia através de diferentes caminhos e pessoas, como também o fato de que ela deve ser considerada uma abordagem existencialista como o próprio fundador Fritz desejou. Isto se explica pelo motivo da Gestalt ocupar-se acima de tudo, do ser humano, do encontro existencial interpessoal, assim como a corrente existencialista e utilizar-se do método fenomenológico.

Para Perls, é mais importante descrever do que explicar: o “como” precede o “porque” e neste sentido a Gestalt-terapia é fenomenológica por ser centrada na descrição subjetiva do sentimento (awareness) do indivíduo.

A maioria dos adeptos da Gestalt percebe esta abordagem como sendo fenomenológica pelo fato do terapeuta estar inteiramente disponível para acolher e estar com a outra pessoa, deixando todas as suas emergências e preocupações fora daquele espaço ou em segundo plano. Esse estar completo com a pessoa a deixa mais confiante, acolhida e respeitada por poder ser ouvida com tanta atenção.

Os principais temas Existencialistas são angústia, solidão, crises existenciais, liberdade, escolha, risco, compromisso, encontro, responsabilidade, autenticidade, diferenças individuais e projetos de vida. Estes temas também são objeto de trabalho dentro do consultório e o modo de intervir do terapeuta responsabilizando o cliente pelas suas escolhas são demasiadamente parecidos. Até a forma de se referir a determinados conceitos como cliente ao invés de paciente de outras abordagens, encontro em vez de sessão terapêutica e etc. são semelhantes.

Quando estamos com o nosso cliente buscamos revelar e sobressair as suas potencialidades, contornando as limitações. Existe um compromisso do terapeuta que acredita com otimismo no ser humano autêntico, criativo e com capacidade para retornar ao seu equilíbrio organísmico. Agimos como um facilitador que auxilia no reencontrar-se e redescobrir-se do cliente.

Dentro deste contexto, o cliente é capaz também de fazer as suas escolhas existenciais, escolhas responsáveis pelos seus caminhos e futuras consequências. Isto gera um sentimento de responsabilidade pela própria vida e condução da sua liberdade. Podemos nos surpreender com as escolhas e decisões do cliente, fazendo-o refletir sobre as suas dificuldades e opções, ampliando a sua consciência quanto às polaridades e extremos das suas escolhas. Ampliar a consciência é assumir e aceitar a responsabilidade pelas suas próprias escolhas.

Fazer psicoterapia é saber trilhar junto com o cliente seus percalços, contornando as dificuldades, sabendo esperar nos momentos em que o obstáculo não pode ser ultrapassado, entendendo seus desejos e vontades, respeitando as suas escolhas e estar sempre ali na superação de uma limitação, na repetição de um sintoma que ainda é necessário. Abrir um espaço privilegiado para construir uma relação que possa fazer florescer a criação de novas ferramentas, novos talentos, novos recursos, novas formas de lidar com as relações humanas e de estar no mundo. Seu objetivo é o crescimento do cliente.

Para concluir, vejo mais similitudes do que disparidades, respeitando as devidas diferenças técnicas e específicas da Gestalt-terapia e do Existencialismo. Enquanto o Existencialismo é mais voltado para o pensamento e para a filosofia; a Gestalt-terapia parte de uma filosofia existencial que se volta para a aplicação, para a práxis deste pensamento.

Referências

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Endereço para correspondência

Renata Oliveira Magalhães

E-mail: renatmaga@hotmail.com

Recebido em: 28/05/2011
Aprovado em: 02/06/2011