ARTIGO

Fenomenologia: Uma discussão acerca da articulação entre Husserl e Gestalt-terapia

Phenomenology: a discussion about the articulation between Husserl e Gestalt-therapy

Cristiane de Figueiredo Costa

Endereço para Correspondência

 


 

Resumo


Este trabalho traz à discussão a abordagem da Fenomenologia elaborada por Edmund Husserl com o objetivo de examinar se existe alguma relação entre este método e filosofia de Husserl e a base fenomenológica abordada na Gestalt-terapia. Para isso, abordamos o desenvolvimento histórico do conceito de Fenomenologia; percorremos a história pessoal e profissional de Husserl, acompanhando a construção dos principais conceitos da Fenomenologia husserliana com o intuito de compreendermos a existência ou não de correlação com os conceitos adotados pelos Gestalt-terapeutas.

Palavras chave: Fenomenologia; Husserl; Gestalt-terapia.



Abstract

This work brings into discussion the Phenomenology approach developed by Edmund Husserl scoped to examine whether there is any relationship between this method and philosophy of Husserl and phenomenological addressed in Gestalt therapy. To do this, we discuss the historical development of the concept of Phenomenology; go through the personal and professional history of Husserl, accompanying the construction of the main concepts of Husserl’s Phenomenology to understand the existence or not of correlation with the concepts adopted by gestalt therapists.

Keywords: Phenomenology; Husserl; Gestalt-therapy.

 


 

Introdução


O interesse inicial pelo tema que será abordado neste trabalho surgiu a partir de inquietações provenientes da enorme dificuldade de compreender quais seriam as principais influências da filosofia na Gestalt-terapia e, mais especificamente, se haveria alguma interlocução da Fenomenologia de Edmund Husserl com esta abordagem.

Percorrendo este caminho, surgiu a possibilidade de elaboração do presente trabalho com o intuito de estabelecer uma relação mais próxima com um tema extremamente fecundo, mas que por sua vez, também bastante complexo. Devido a sua dificuldade de compreensão, foi escolhido então como objeto de estudo de uma monografia do curso de especialização com o escopo de, durante este percurso, tornar mais compreensível, mais claro e objetivo um tema tão nebuloso.

Fenomenologia: este é o tema central do referido trabalho.

Husserl: o principal personagem/autor a ser compreendido através de diversos interlocutores que leram, estudaram e até mesmo conseguiram captar a essência de sua magnífica e enorme obra.

Gestalt-terapia: a abordagem que embasou a busca por este tema e que possibilitou uma articulação com a filosofia, na tentativa de descobertas e desvelamentos a respeito do uso e da aplicação da Fenomenologia na referida abordagem.

Desta maneira, a proposta inicial é acompanharmos os caminhos trilhados pela Fenomenologia desde sua primeira concepção até o estabelecimento do método e filosofia elaborados por Edmund Husserl, perpassando por sua história de vida pessoal e, principalmente, profissional.

Posteriormente, analisaremos os principais conceitos da Fenomenologia husserliana. Feito isso, no terceiro capítulo, faremos uma reflexão sobre a possibilidade de articulação com os conceitos fenomenológicos utilizados pela Gestalt-terapia.

Diante desta proposta, questiona-se, então: Existe relação entre a Fenomenologia Husserliana e aquela utilizada pelos Gestalt-terapeutas em sua teoria e prática clínica? Será que a Fenomenologia de Husserl influenciou no estabelecimento das bases epistemológicas da Gestalt-terapia? Como entender a Fenomenologia através dos Gestalt-terapeutas?

 

1. Fenomenologia: A origem de uma filosofia e de um método


Nesse capítulo iremos abordar a trajetória pessoal, mas especialmente a história profissional do filósofo Edmund Husserl, com o intuito de compreendermos quais os fatores e eventos que influenciaram a construção da filosofia e do método elaborado por ele, que será abordado no decorrer deste trabalho: A Fenomenologia.

Edmund Gustav Albrecht Husserl, que era filho de pais judeus, nasceu no dia 8 de abril de 1859, em Prossnitz na Morávia – pertencente, na época, ao Império Austro-Húngaro, atual República Tcheca (MARCONDES, 2002).

Em relação à questão educacional, diversos relatos dos professores de Husserl confirmam que ele sempre se mostrou um aluno pouco estudioso, que costumava dormir nas aulas, não se empenhando quando o assunto era estudo. Entretanto, bem cedo, sua predileção pelas matemáticas já se afirmava, destacando-se sempre nesta disciplina (DEPRAZ, 2007).

Quando estava com 17 anos, Husserl investiu em sua formação na universidade de Leipzig, onde se matriculou no curso de matemática, cursando também disciplinas de física, astronomia e filosofia – na qual participava das aulas de W. Wundt (DEPRAZ, 2007). O interesse de Husserl pela matemática e a admiração pelos estudiosos Kronecker e Weierstrass, o enviou em 1878 para universidade de Berlim na Alemanha, reconhecida pelo ensino dedicado a esta disciplina (CAPALBO, 2001).

Em 1881, Husserl se inscreveu na Universidade de Viena. Nos anos seguintes, afirmou-se cada vez mais seu interesse pela filosofia e pela ideia de uma investigação dos princípios do conjunto das matemáticas. Husserl descobriu um tipo de filosofia que até então ignorava, que era o empirismo de Hume. Até que em 1884, Husserl descobriu sua vocação filosófica sobre a influência decisiva de Franz Clemens Brentano (1830-1917) que o introduziu na psicologia descritiva (DEPRAZ, 2007).

Husserl baseado e influenciado pela psicologia descritiva de Brentano elaborou suas concepções filosóficas, dentre elas a Fenomenologia. Essa influência é confirmada por Husserl ao escrever em 1932: “sem Brentano eu não teria escrito uma única linha de filosofia” (SMITH apud BRUNS, 2007, p.28).

Desta forma podemos dizer que Franz Brentano foi um dos precursores da psicologia fenomenológica, podendo ser considerado um de seus fundadores (BRUNS, 2007). Brentano era um filósofo especialista na tradição aristotélica e no estudo dos textos gregos e opunha-se com veemência à psicologia iniciada por Wilhelm Wundt de tradição experimental, objetiva e mensurante. Brentano, com o intuito de distinguir a psicologia da filosofia, confrontava uma possibilidade de psicologia empírica, subjetivo-objetiva e rigorosa (PENA, 1985).


Recomendado por Brentano, Husserl foi, em 1886, para Halle com o objetivo de acompanhar os cursos do filósofo e psicólogo C. Stumpf que era aluno e colaborador direto de Brentano. Husserl interessou-se pela percepção e pela imaginação, mas examinou de maneira crítica os fundamentos introspectivos e experimentais da psicologia (DEPRAZ, 2007). Em 1887, Husserl apresentou sua tese de habilitação à carreira universitária que versava sobre o cálculo de variantes, conseguindo com isso ser responsável por dois cursos na universidade de Halle (DEPRAZ, 2007 e KARWOWSKI, 2005).


Em 1891, ele publicou sua primeira obra intitulada Filosofia da Aritmética - muito criticada pelos estudiosos da época por ter influência do psicologismo - onde ele analisa o conceito de número, o método usado pela matemática e o caráter lógico de seus conceitos e princípios (CAPALBO, 2001). Nesta obra, quando Husserl propôs estabelecer uma clarificação dos conceitos fundamentais da lógica e da matemática, ele percebeu que seria preciso retornar a Brentano. Afinal, a tese brentaniana de que toda representação objetiva está fundada num representante psíquico pré-mental é integralmente apropriada para pensar a origem dos objetos matemáticos. Entretanto, três anos mais tarde, ainda de acordo com o autor supracitado, Husserl em seus Estudos psicológicos, além de admitir a distinção brentaniana entre fenômenos psíquicos e fenômenos físicos, dá um novo tratamento à noção de intencionalidade, encaminhando uma transformação no modo de se entender esta distinção (GRANZOTTO, 2007).


Em torno de 1900, Husserl publicou os dois tomos das seis Investigações Lógicas (Pesquisas Lógicas), em que se propõe não apenas a clarificar os conceitos da lógica por meio da descrição das propriedades intencionais inerentes aos juízos, mas também a esclarecer o sentido em que ele mesmo emprega o termo intencionalidade. O que antes era um projeto de fundamentação da lógica e da matemática, então se torna um tratado de teoria do conhecimento, cujo tema capital é a noção de intencionalidade (GRANZOTTO, 2007).


Capalbo (2001) afirma que nesta obra se pode ver a formulação das bases da Fenomenologia e as críticas ao psicologismo.


Husserl fez de seu trabalho uma crítica à tendência da sua época em reduzir a verdade ao empirismo e ao psicologismo, duas importantes linhas filosóficas daquele período. Desta forma, a Fenomenologia criada por ele vem se apresentar como um método crítico a tais vertentes filosóficas. Husserl quis atingir a verdade originária, algo que não pudesse gerar a menor margem de dúvida, um conhecimento certo que não possibilitasse erro. Portanto, ao invés de buscar teorias que o afastassem da verdade, deveria voltar-se para as coisas em si mesmas, para a realidade que se mostra: o fenômeno (RODRIGUES, 2000).


Em 1901, Husserl foi nomeado professor ordinário, em 1906 tornou-se professor titular em Goettingue, sendo designado no ano de 1916 professor da Universidade de Freiburg na Alemanha, onde influenciou decisivamente uma gama de pensadores como Martin Heidegger e Karl Jaspers ao inaugurar uma das maiores correntes filosóficas do século XX: A Fenomenologia (CAPALBO, 2001).


Neste momento, Husserl implantou um modo de pensamento radicalmente novo, tomando como ponto de partida dois campos científicos centrais à época, que são as matemáticas e a psicologia (DEPRAZ, 2007).

 

Da psicologia, ela retém uma atenção escrupulosa dirigida às vivências psíquicas singulares de um sujeito dado, assim como a seus diferentes atos de consciência; da matemática, e mais amplamente da lógica, ela retoma o rigor da elaboração das categorias de descrição adequadas à experiência a ser descrita. Quer dizer que o retorno à experiência do sujeito e o método de descrição são os dois traços que caracterizam, desde o início, o método fenomenológico. (DEPRAZ, 2007, p.7)

 

Segundo os autores Karwowski (2005) e Capalbo (2001), a palavra fenomenologia foi utilizada pela primeira vez no século XVIII (1764) pelo filósofo e matemático alemão Johann H. Lambert em um estudo sobre o problema do conhecimento publicado em Leipzig, na quarta parte de seu trabalho Novun Organum, sob o título fenomenologia ou teoria das aparências com a intenção de nomear a “ciência das aparências”. Segundo os autores supracitados, a fenomenologia, neste trabalho, aparece com uma descrição etimológica que lhe dá uma constituição de teoria acerca de como o fenômeno aparece, ou da forma de aparecer do fenômeno.


A palavra fenomenologia no sentido etimológico é compreendida por fenômeno e logia, ou seja, indica o estudo do fenômeno, palavra que provém do grego “phainomenon” e é literalmente entendido como o simples aparecer dos entes ou aquilo que se mostra por si mesmo, tal como preconizado por Lambert na teoria da aparência acima referida. Assim, fenômeno é tudo aquilo, material ou ideal, de que podemos ter consciência, de qualquer modo que seja, como por exemplo: O conhecimento (KARWOWSKI, 2005).


Entretanto, a acepção etimológica estrita invalida o exato entendimento do que hoje se denomina Fenomenologia, já que a construção filosófica posterior modifica seu sentido. Afinal, se Fenomenologia fosse o estudo daquilo que se mostra por si mesmo, qualquer abordagem que trabalhe com aquilo que aparece se diria fenomenológica. Com efeito, desde a criação do termo por Lambert seu uso foi adquirindo sentidos diferenciados (KARWOWSKI, 2005).


Em 1804, Fichte compreende Fenomenologia como teoria da aparência, mas em um sentido diferente de Lambert, no qual aparência significava a manifestação de algo real, verdadeiro, uma revelação (CAPALBO, 2001).


Posteriormente, em 1807, este termo foi empregado por Hegel em sua obra “ciência da experiência da consciência” ou também chamada “Fenomenologia do espírito”. E será com ele que a Fenomenologia se definirá como um método e uma filosofia. A tarefa da Fenomenologia para Hegel consistiu precisamente em saber discernir as manifestações válidas, verdadeiras, das manifestações ambíguas e falsas. Desta forma, a Fenomenologia passou a ser a ciência que conduziria ao espírito absoluto (CAPALBO, 2001 e KARWOWSKI, 2005).


Foi seguindo esta tradição, no entendimento de Capalbo (2001), que Husserl se inspirou para definir o teor filosófico definitivo e atual do termo, afirmando-se assim como o pai da Fenomenologia, e influenciando muitos pensadores que acabaram trilhando um percurso baseado em sua teoria, como por exemplo, Maurice Merleau-Ponty e Jean-Paul Sartre na França e Martin Heidegger na Alemanha.


A autora afirma ainda que a Fenomenologia irá se afirmar com Husserl, combatendo o psicologismo reinante, que pretendia explicar todo o pensamento como resultado da ação das condições psicológicas do indivíduo. O pensamento se transformava, portanto, em um fenômeno residual e a ciência uma conseqüência dos atos psicológicos dos cientistas.


Em Husserl, Fenomenologia irá designar “um sistema filosófico que pratica a filosofia como busca fenomenológica, ou seja, eliminando as características reais e empíricas dos fenômenos, elevando-os ao plano das generalidades essenciais” (KARWOWSKI, 2005, p. 59). Desta forma, a Fenomenologia rigorosa e no sentido hoje entendido consiste em fazer filosofia buscando aquilo que se mostra no que aparece, indicando um procedimento mais preciso, em direção a uma verdadeira intuição das essências.


Husserl faz da Fenomenologia um método para a busca da verdade e ao se questionar a respeito de como poderíamos perceber a verdade, conclui que antes de perceber a “verdade” ou “qualquer coisa”, ele percebeu que percebe e entende, a partir disso, que o ato mais originário, mais prioritário na apreensão da verdade é o ato de “perceber o percebido” (RODRIGUES, 2000).


Com a aposentadoria de Husserl em 1929, Heidegger o substituiu. Em 27 de abril de 1938, aos 79 anos, Edmund Husserl faleceu. Entretanto, sua produção não ficou perdida, o Padre franciscano Van Breda transportou os seus manuscritos à Universidade de Louvain, na Bélgica, onde permanecem até hoje (CAPALBO, 2001).


Conforme Marcondes (2002) e Karwowski (2005), dentre as principais obras de Husserl estão: Investigações lógicas (1900-01), A filosofia como ciência rigorosa (1910), Idéias para uma Fenomenologia pura e uma filosofia fenomenológica (1913), Lógica formal e lógica transcendental (1929), Meditações cartesianas (1931) e A crise das ciências européias e a Fenomenologia transcendental (1936).

 

São poucos os que desafiam o embate dos diferentes entendimentos sobre o que é fenomenologia e ousam referir-se a esse termo complexo e polêmico. Complexo porque exige grande cuidado teórico e empírico do pesquisador: não é fácil estabelecer um diálogo entre evidência, intuição e lógica. Polêmico porque a proximidade da fenomenologia com existencialismo, empirismo, racionalismo e romantismo leva a mal-entendidos que expõe o pesquisador a críticas nem sempre justificadas. (BRUNS, 2007, p.7)

 

A Fenomenologia, conceito elaborado por Husserl no início do século XX na Alemanha, teve grande repercussão em todo o mundo, e tem exercido uma influência considerável no pensamento filosófico e científico contemporâneo (CAPALBO, 2001).



2. Principais conceitos da Fenomenologia em Husserl


No primeiro capítulo abordamos o desenvolvimento histórico do conceito de Fenomenologia, suas diversas significações até a conceituação do termo proposta por Edmund Husserl. O objetivo desse capítulo é percorrer o caminho elaborado por Husserl, enfatizando os principais conceitos do método e da filosofia criados por ele: a Fenomenologia.


Diante desta tarefa, nos defrontamos com a necessidade de recorrer às referências primárias acerca da Fenomenologia como as primeiras publicações de Husserl. Entretanto, quando buscamos a leitura destes textos nos deparamos com uma forma de redação extremamente complexa e árida, o que gera uma grande dificuldade de definir de maneira clara as ideias que o autor pretende expressar. Talvez parte desta falta de clareza se deva a questões ligadas a tradução destes textos e livros para a língua portuguesa. Sendo assim, se fez necessário encontrar outros meios de acessar essas informações e conceituações. Desta maneira, além de recorrermos aos livros e artigos de filósofos e estudiosos que têm grande conhecimento a respeito de Husserl, lançamos mão também de vídeos e palestras de autores voltados ao estudo desse tema.


Como pudemos ver no capítulo anterior, Husserl foi descobrindo, durante seu percurso, que a filosofia poderia ser um campo fecundo de estudos se fosse tornada uma ciência plenamente rigorosa. Desta forma, decidido a dedicar-se inteira¬mente às pesquisas filosóficas, estabeleceu para si como ideal, fundamentar cientificamente a filosofia, ou seja, torná-la uma ciência em seu sentido pleno conferindo-lhe um estatuto de saber, com o objetivo transformá-la numa ciência universal, tornando-se assim uma espécie de ciência das ciências (PENA, 1985).


A questão essencial que conduziu o pensamento de Husserl foi, portanto, a de como fundamentar, de forma absolutamente segura, o conhecimento. Para Husserl, os esforços filosóficos de Descartes e Kant não haviam sido suficientes para assegurar essa fundamentação necessária (SÁ, 2007).


O ponto de partida de Husserl foi a crítica que dirigia às teorias científicas, particularmente as de inspiração positivista, excessivamente apegadas à objetividade, à crença de que a realidade se reduz aquilo que percebemos pelos sentidos (PENA, 1985).


É nesse momento que Edmund Husserl propõe para a filosofia uma atitude radicalmente crítica, em que para que algo seja admitido, exige-se que se mostre com toda sua evidência (SÁ, 2007). Nessa perspectiva é que a Fenomenologia irá se colocar, tendo a preocupação em mostrar, em explicitar as estruturas em que a experiência se verifica, em deixar transparecer na descrição da experiência as suas estruturas universais, visando, desta forma, mostrar e descrever com rigor (CAPALBO, 2001).


O objetivo de Husserl não consistiu em erguer uma ciência exata da Fenomenologia, mas sim uma ciência rigorosa, já que é uma ciência eidética que procede por descrição e não por dedução. A Fenomenologia se ocupa dos fenômenos, que são os vividos da consciência, os atos e os correlatos desses atos de consciência (CAPALBO, 2001).


Husserl investigou sobre as condições da ciência, partindo do pressuposto de que a ciência é concreta/empírica e tendo como foco de seu interesse saber onde ela tem o seu ponto de partida e de sustentação, sabendo que toda ciência é percebida e dada a conhecer em uma consciência, ou seja, que toda ciência se dá a conhecer como fenômeno que aparece à consciência (CAPALBO, 2001).


Foi nesse contexto de transição — ou de crise, como afirmam alguns — no campo do conheci¬mento científico que Husserl desenvolveu suas ideias. A Fenomenologia surge, portanto, no processo de revisão de verdades tidas como cientificamente inabaláveis, no momento em que as ciências, ao nível da investigação, assumem um significado humano (PENA, 1985).


Retomando o que foi introduzido no capítulo anterior, a primeira tentativa sistemática de exposição dos problemas e do método fenomenológico é encontrada em Idéias diretrizes para uma fenomenologia e uma filosofia fenomenológica puras de 1913, onde encontramos em destaque o projeto a que propõe a Fenomenologia e os seus temas principais, que serão discutidos nesse capítulo (CAPALBO, 2001).


Edmund Husserl introduziu a noção de intencionalidade, que veio ocupar um lugar de postulado básico da Fenomenologia, e se caracterizou por ser a característica fundamental da consciência, pois é através dela que aquilo que um objeto é se constitui espontaneamente à consciência. Este conceito de intencionalidade estabelece uma nova relação entre o sujeito e o objeto, o homem e o mundo, o pensamento e o ser, ambos inseparavelmente ligados.


Conforme ressalta Pena (1985), com a introdução do termo intencionalidade Husserl pretendeu derrubar um pressuposto básico da psicologia clássica, que afirmava que a consciência abriga imagens ou representações dos objetos que afetam nossos sentidos, nela se depositando como uma espécie de conteúdo, como se os objetos que se encontram no mundo exterior penetrassem na consciência e aí permanecessem sob a forma de imagens.


Husserl é contrário a tal concepção, pois aceitá-la significa reduzir a consciência à mera passividade, quando, na verdade, ela é liberdade, é ativa, cabendo-lhe por isso mesmo dar um sentido às coisas. A consciência, desse modo, se encontra voltada para os objetos, orientada em sua direção de forma imediata, dirigida para alguma coisa, isto quer dizer que todos os atos psíquicos, tudo que se passa em nossa mente, visa um objeto, por isso, não ocorre no vazio (PENA, 1985).


Husserl mostrou consistentemente que toda consciência é consciência de alguma coisa. Isto significa que não há consciência que não seja posicionamento de um objeto transcendente, ou que a consciência não tem “conteúdo’’. É preciso renunciar a esses “dados” neutros que, conforme o sistema de referências escolhido, poderiam constituir-se em “mundo” ou em “psíquico”. Uma mesa não está na consciência, sequer a título de representação, mas sim no espaço, junto à janela. O primeiro passo de uma filosofia deve ser, portanto, expulsar as coisas da consciência e restabelecer a verdadeira relação entre esta e o mundo, a saber, a conciência como posicional do mundo (SARTRE, 1997).

 

Toda consciência é posicional na medida em que se transcende para alcançar um objeto, esgotando-se nesta posição mesma: tudo quanto há de intenção na minha consciência atual está dirigido para o exterior, para a mesa; todas as minhas atividades judicativas ou práticas, toda a minha afetividade do momento, transcendem-se, visam a mesa e nela se absorvem. Nem toda consciência é conhecimento (há consciências afetivas, por exemplo), mas toda consciência cognoscente só pode ser conhecimento de seu objeto. (SARTRE, 1997, p. 22)

 

Husserl entende que a “atitude natural” – que inclui tanto a atitude científica quanto a do senso comum – considera as coisas como existentes em si mesmas, independentemente de sua relação com a consciência. Esta concepção trata-se de uma atitude ingênua, já que supõe gratuitamente uma natureza em si, cujo caráter de algo simplesmente dado, antes de qualquer relação com a consciência, é aceito sem nenhuma problematização, já a “atitude fenomenológica” ou filosófica no sentido próprio é entendida contrariamente, pois deve ater-se apenas àquilo que se dá à experiência tal como se dá: ao que chamamos de fenômeno (SÁ, 2007).


Desta forma, compete à Fenomenologia descrever a coisa, o fenômeno, o dado que é apresentado, revelado à consciência, que nos faz pensar e falar nele, da mesma forma em que ele se faz conhecer (CAPALBO, 2001).


A Fenomenologia de Husserl enfatiza também a prioridade da intuição - que é a via de acesso ao fenômeno - sobre o pensamento conceitual. Para a tradição filosófica, este termo designa a visão direta e imediata de um ente, seja ele sensível ou não. A intuição significa a maneira suprema segundo a qual algo pode ser dado ao sujeito, à sua consciência. Husserl distingue o dado enquanto simplesmente pensado e enquanto dado em si mesmo. A função da intuição é trazer o que é pensado à automanifestação, ou seja, ela é o cumprimento, a realização de uma pura intenção. O pensamento é abstrato, em relação à intuição, precisamente porque ele tem apenas intenções não realizadas. Tudo, e não só o sensível, pode ser intuído, e isso constitui a soberana forma de seu conhecimento. O mesmo objeto pode ser, portanto, dado à consciência do homem de diferentes modos. A intuição é a revelação plena do ser, e por isso só nela está realmente a coisa no seu ser próprio. O verdadeiro é o intuído.


É através da intuição que se dá o âmbito de interesse mais próprio da Fenomenologia: a correlação entre sujeito e objeto. O estudo dessa correlação se constitui enquanto análise descritiva das estruturas da consciência, não no sentido de uma psicologia introspectiva, como a de Wundt, ou dos atos mentais, como a de Brentano, pois por ter a intencionalidade como característica essencial, a consciência não é mais compreendida como interioridade psíquica, ela remete sempre para um mundo cuja constituição apenas se dá nessa referência (SÁ, 2007).


A Fenomenologia pode, portanto, ser compreendida como descrição das estruturas gerais da consciência, não do sujeito empírico estudado pela psicologia, mas do sujeito transcendental, que é, para Husserl, a condição ontológica de possibilidade das experiências humanas concretas nos diversos níveis e regiões de realização da existência (SÁ, 2007).


Uma das principais ideias da Fenomenologia é a de que toda consciência é consciência de alguma coisa, definindo-se a consciência, essencialmente, em termos de intenção voltada para um objeto, portanto, perceber não é receber sensações na psiquê, não nos sendo possível separar fenômeno e coisa em si. O fenômeno é conhecido diretamente, sem intermediários, ele é objeto de uma intuição originariamente doadora (CAPALBO, 2001).

 

Não há fenômeno que não seja fenômeno para uma consciência de algo e não há consciência sem que ela seja consciência de algo, sem que ela seja determinada como uma certa maneira de visar os objetos, o mundo (CAPALBO, 2001, p.14).

 

Precisamente, intencionalidade não designa apenas as ocorrências pré-mentais ou imanentes aos atos intuitivos, que são os fenômenos psíquicos ou o fato de estas ocorrências poderem antecipar ou estabelecer uma orientação para os atos intencionais (GRANZOTTO, 2007).

 

Intencionalidade também designa o fato de a consciência se aperceber que ao anteciparem uma orientação objetiva aos atos intencionais atuais, os fenômenos psíquicos revelam uma ligação espontânea com algo não atual, que ainda não está dado na imanência dos atos da consciência, mas que é para esta uma potencialidade, uma possibilidade fornecida pelo mundo (GRANZOTTO, 2007, p.45).

 

E conforme Husserl dirá mais tarde: “Intencionalidade designa a ‘participação psíquica’ da consciência nos modos de ‘doação de sentido’” (Apud GRANZOTTO, 2007, p.46).


Husserl define a Fenomenologia como “uma direção de nosso olhar se voltando das realidades experimentadas para o caráter de serem experimentadas” (CAPALBO, 2001, p.29). Este ato libera nosso olhar para a análise das experiências puramente vivenciais, do vivido, que não poderá ser definido, apenas descrito. Portanto, Husserl se interessará pela descrição dos atos mediante os quais eu percebo, julgo, imagino, amo os objetos, etc.


A Fenomenologia busca captar a essência mesma das coisas, descrevendo a experiência tal como ela se processa, de modo a que se atinja a realidade exatamente como ela é, e para que se possa chegar a isso, Husserl propõe que o indivíduo suspenda todo o juízo sobre os objetos que o cercam (PENA, 1985).


Isto significa que é importante que nada se afirme nem negue sobre as coisas, adotando uma espécie de abandono do mundo e recolhimento dentro de si mesmo, o que na linguagem husserliana é denominado de redução fenomenológica ou epoquê (epoché), palavra grega que significa suspensão, cessação. Husserl foi buscar o termo na filosofia medieval, que chamava de epoquê o estado de repouso mental através do qual nada afirmamos nem negamos (PENA, 1985).


A famosa afirmação de Husserl para que voltemos às coisas mesmas tem como meta superar a clássica oposição entre essência e aparência. O criador da Fenomenologia diz que as coisas são tais como os fenômenos as apresentam à nossa consciência. Portanto, os fenômenos, ao mesmo tempo que são objetivos, só nos revelam essa condição quando se manifestam em nossa consciência, enfatizando-se assim a tese de Husserl, já referida anteriormente, de que as ideias só existem porque são ideias sobre coisas. Desta forma, consciência e fenômeno não existem separados um do outro (PENA, 1985).


Através da epoché, o mundo objetivo, real, é colocado, na expressão de Husserl, entre parênteses na experiência fenomenológica, permanecendo na consciência apenas aquilo que, por sua evidência, é impossível de ser negado. Por exemplo, “eu existo”. A realidade, portanto, deve ser descrita tal como se apresenta à observação pura.


Ao lado de epoché, Husserl utiliza ainda dois outros termos: Noese e Noema com os quais designa, respectivamente, o pensamento e o objeto desse pensamento.


Husserl chamará Noesis àquilo que corresponde o lado das vivências subjetivas, a certa modalidade de consciência. A cada um desses atos significativos para o sujeito, como foi citado mais acima, se verifica uma maneira original dos objetos se darem à percepção, imaginação, etc. A essa maneira Husserl chamará de Noema, que corresponde o lado das vivências objetivas, a todo objeto (CAPALBO, 2001).


Descrever o Noema é descrever as diversas maneiras como o objeto se mostra quando é intencionado, significativo. Por isto, Husserl dirá que a cada Noesis corresponde um Noema correlativo. Como podemos ver neste exemplo: “à imaginação teremos o correlato imaginário, ao ato de amar, teremos o correlato objeto amado” (CAPALBO, 2001, p.29).


Outro ponto relevante abordado por Husserl é a intuição da essência e as regiões do ser, isto quer dizer que a representação não produz o ente, mas sim o ser-objeto de um ente. O objeto será alvo de descrição por parte da consciência, e nele se verá que existe um núcleo central invariante que permanece ao longo de todas as variações imaginárias. Essa estrutura invariante é chamada de Eidos ou essência, cuja presença permanente define a essência do objeto. A visão das essências é uma intuição, isto é, um ato de conhecimento direto, sem intermediários, que nos põe em presença, num face a face ao objeto “em pessoa”. Husserl chamará de ontologia regional ou material (relação fenomenológica entre objeto, mundo e campo) àquelas que constituem o domínio do percebido, do imaginário, da natureza física, da região da consciência, eidos dos objetos materiais, culturais, etc (CAPALBO, 2001).


Em outro momento, Husserl traz também a questão do ego transcendental. De acordo com Capalbo (2001), a colocação entre parênteses será não só relativa à tese do mundo como uma realidade em si, mas também relativa ao eu empírico, à subjetividade ligada às experiências existenciais, ao corpo, com tais sentimentos, etc. A suspensão da tese do mundo e da subjetividade empírica deixa como resíduo um Eu Puro ou Transcendental. A relação entre sujeito e objeto não é, então, uma relação entre duas realidades externas independentes, mas sim entre dois pólos correlativos da relação intencional na consciência. “Perceber um objeto é intencioná-lo e torná-lo significativo. O ego transcendental é visto como o fundamento, a origem de toda significação. Ele é doador de intenção e de significação” (CAPALBO, 2001, p.17).


Outro tema significativamente levantado por Husserl e muito persistente em sua obra é sobre as reduções da Fenomenologia. E após definirmos os principais conceitos da Fenomenologia, os traços próprios a ela, como por exemplo, o retorno à experiência e o privilégio da atitude descritiva, convém realçarmos o que esta filosofia e método têm de mais original. De acordo com Depraz (2007), é a redução que forma a pedra angular do edifício fenomenológico.


Segundo Casa Nova (2009), redução é uma redução para uma consciência fenomenológica que é uma consciência que se estrutura a partir de atos que trazem consigo campos de mostração. Mostração é um termo não vernacular que aparece nos textos de Heidegger, Husserl, entre outros. Quando se fala em forma de mostração o que se quer dizer é a forma com eu a partir do ato sou. O meu ato é que abre um campo de mostração que é correlato a esses atos.


A redução fenomenológica, na expressão de Husserl, é o processo que desloca a consciência natural, imediata e coloca “entre parênteses” a existência dos conteúdos da consciência, ou das vivências, e também do eu, enquanto sujeito psicofísico ou suporte existencial da consciência, assim reduzida ao eu puro ou transcendental (CAPALBO, 2001).


A redução eidética nos permite distinguir fatos e essências, colocando entre parênteses o fato, deixando surgir a ideia, o sentido e permitindo-se assim que o eidos do fato, a sua essência, a sua significação, se revele em situação. Entretanto, não se pode pensar que pela redução eidética eu reduzo o mundo a uma ideia. Ao contrário, ela deve deixar transparecer o mundo tal qual ele é. Pela redução transcendental ou fenomenológica o mundo é visto como correlato da consciência (CAPALBO, 2001).


A proposta de Husserl é estabelecer a redução da psicologia à filosofia transcendental (a qual ele genericamente denominou de redução fenomenológica). Por um lado, Husserl tem em vista superar o naturalismo da “tese” da atitude natural, por cujo meio somos levados a admitir a vigência de uma natureza determinada como “pura coisa” ou “coisa-em-si”, independentemente da experiência que dela possamos ter, como se ela pudesse ser apenas por si ou para si. Contra essa tese, Husserl quer resgatar o primado da experiência intencional, a qual inclui, por um lado os atos intencionais da consciência e por outro os correlatos, sejam eles perfis, lados, aspectos, objetos intuitivos ou categoriais (GRANZOTTO, 2007).


A primeira grande conquista que a redução fenomenológica propiciou a Husserl foi a explicitação daquilo que já estava em obra nas Investigações Lógicas, mas que só agora ganhou status de predicado fundamental de toda e qualquer eidética, de toda e qualquer Fenomenologia das essências, precisamente o a priori de correlação entre os atos por cujo meio a consciência visa essências e essas essências elas mesmas apresentadas como objetos intencionais.


A epoché, para Casa Nova (2009), significa suspender todo e qualquer posicionamento ontológico, toda e qualquer pressuposição de que algo é.


E de acordo com Husserl, operando a epoché colocamos entre parênteses ou “fora de circulação” tudo aquilo que espontaneamente consideramos como possuindo uma validade aos nossos olhos. Desta forma, observamos que a característica específica da epoché fenomenológica é interromper o curso natural de nossos pensamentos habituais, de nossas ações as mais cotidianas, com o objetivo de motivar uma possível conversão do olhar ou ainda uma variação eidética. Neste sentido, conclui-se que a epoché é o gesto redutivo de base: ele intervém suscitando essa suspensão daquilo que para nós, normalmente, é evidente. Entretanto, essa ruptura na trama incessante de nossa atividade mental ou prática é por sua vez motivada, seja de modo voluntário e interior ou de forma externa, por um evento que me leva a esta tomada de consciência (DEPRAZ, 2007).


O gesto próprio da epoché como suspensão é também uma atividade contínua e definitiva que corre sob cada outro ato. Enquanto a redução eidética permanece pontual e local, na medida em que ela se exerce a propósito de tal ato ou vivência singular, a respeito de tal fato dado, “a epoché concerne em definitivo ao mundo em sua integralidade: suspendo a realidade, a existência do universo, ao ponto de imaginar sua possível aniquilação” (HUSSERL apud DEPRAZ, 2007, p. 39).


A partir de tal hipótese radical de aniquilação da realidade é que surge a possibilidade de uma reconquista do mundo, que passa pelo sentido que atribuo enquanto ego, a esta mesma realidade mundana. Sendo assim, o mundo não é exterior a nós mesmos, independente de nosso modo de ser; ele possui um sentido para nós, ele nos é dado sem seu sentido antes que em seu ser, ou melhor, seu ser reside em seu sentido (DEPRAZ, 2007).


Essa parte da monografia se propôs abarcar aqueles conceitos essenciais da Fenomenologia Husserliana e após percorrermos diversos autores, finalizamos com uma afirmação de Forghieri (2001) que conclui que a Fenomenologia de Husserl contribuiu consideravelmente para a possibilidade de estabelecer uma relação entre a filosofia e a psicologia, pois embora Edmund Husserl tivesse a intenção de chegar ao fundamento do próprio conhecimento e de todo saber, tomou o mundo vivido como ponto de partida para realizar este seu ideal.



3. Fenomenologia e Gestalt-terapia


Nos capítulos anteriores seguimos um percurso importante. No primeiro deles destacamos a construção histórica do método e da filosofia elaborada por Edmund Husserl, percorrendo os passos de sua vida pessoal e profissional. No segundo capítulo enfatizamos os principais conceitos englobados na Fenomenologia Husserliana. No presente capítulo discorreremos sobre como a Fenomenologia é entendida dentro da Gestalt-terapia, percorrendo os olhares dos autores ligados a esta abordagem. A partir dessa construção buscaremos entender se há algum ponto de interseção entre a Fenomenologia Husserliana e a Gestalt-terapia.


Durante a elaboração deste trabalho muitos autores foram pesquisados e estudados, o que nos possibilitou encontrar alguns estudiosos que versam sobre este mesmo tema. E foi nesta pesquisa que encontramos uma importante afirmação de Rodrigues (2000) que sustenta que uma das principais bases filosóficas sobre a qual a Gestalt-terapia se apóia e de onde emergem suas formas de fazer é a Fenomenologia. Nesta parte, observamos que o autor identifica uma intrínseca relação entre a Gestalt-terapia e a Fenomenologia. É baseado neste ponto de vista e a partir dele que discorreremos e desenvolveremos o capítulo que se inicia.


Pesquisando sobre esta articulação, nos remetemos ao Dicionário de Gestalt-terapia (GRANZTTO In D´ACRI; LIMA e ORGLER, 2007, p.110), que nos traz a informação de que a primeira vez que a palavra Fenomenologia apareceu na literatura da Gestalt-terapia foi no prefácio do livro “Gestalt-terapia” de Perls, Hefferline, Goodman – conhecido como o texto inaugural dessa abordagem. Neste prefácio, os autores não aprofundam nem esclarecem o uso do termo, apenas o citam de forma superficial. Entretanto, o que se pode concluir é que, desde a primeira produção teórica e o estabelecimento da Gestalt-terapia, o termo Fenomenologia já fazia parte deste cenário.


Para iniciarmos essa parte do trabalho citaremos uma frase trazida por Bruns e Holanda (2007, p.9): ´´(...) a Fenomenologia é uma abordagem adequada para se entender o humano – o que implica afirmar que, na clínica, uma atitude fenomenológica seria de grande auxílio para o terapeuta´´.
Ao articularmos essas duas disciplinas – Fenomenologia e Gestalt-terapia – encontramos uma afirmação importante que diz:

 

(...) no campo da prática clínica a noção de Fenomenologia se presta a designar uma postura de disponibilidade do terapeuta em relação àquilo que se mostra na sessão como algo ‘óbvio’, mas não necessariamente ligado a uma causa ou a um agente determinado. (GRANZOTTO In D´ACRI; LIMA e ORGLER, 2007, p.111)

 

A Gestalt-terapia, dada a riqueza de suas propostas, oferece muitas possibilidades de ser operacionalizada. Existem, no entanto, alguns elementos que a distinguem de qualquer outra forma de terapia e três princípios base que a definem (YONTEF apud RIBEIRO, 1994). O primeiro desses princípios é que a Gestalt-terapia é fenomenológica, sua única finalidade é a consciência e sua metodologia é a da awareness. O segundo princípio afirma que a Gestalt-terapia é baseada completamente no existencialismo dialógico, isto é, no processo Eu-Tu. E o terceiro e último princípio diz que o conceito básico da Gestalt-terapia e sua visão de mundo são baseados no holismo e na teoria de campo (YONTEF apud RIBEIRO, 1994). Podemos ver, portanto, nesta passagem que há uma ênfase da perspectiva fenomenológica na Gestalt-terapia e que esta se encontra intrinsecamente ligada à Fenomenologia.


Diante destas afirmações um impasse se impõe: de que Fenomenologia está se falando?


Trabalhar fenomenologicamente é tentar ficar com a realidade como é em si, é trabalhar a partir dela. É ver o fenômeno como a realidade primeira e só a partir dele caminhar para a compreensão do que significa ir além do fenômeno. Isto significa que a experiência única e imediata do sujeito precede toda tentativa de classificação ou julgamento e que se deve estar diante da realidade sem a priori, deixando-se acontecer na coisa, com a coisa e através dela. Desta forma, descrever o processo é mais importante que interpretá-lo (RIBEIRO, 1994).


Essa passagem pode ser articulada com o que foi trazido pela filósofa Capalbo (2001) no capítulo anterior ao afirmar que compete à Fenomenologia descrever - e não interpretar - o fenômeno, a coisa, o dado que é apresentado, que é revelado à consciência da mesma forma em que ele se faz conhecer. Desta maneira, Fenomenologia tem como prerrogativa a busca das essências, não se limitando apenas a uma abertura para o fenômeno. Nesse momento a visão do Gestalt-terapeuta Ribeiro (1994) nos parece compatível com a concepção fenomenológica husserliana trazida pela filósofa Capalbo.


A Fenomenologia é uma disciplina que ajuda as pessoas a saírem de sua forma habitual de pensar, para que possam verificar a diferença entre o que está de fato sendo percebido e sentido na situação presente e o que é um resíduo do passado. A exploração gestáltica respeita, usa e qualifica a percepção imediata, “ingênua”. A Gestalt-terapia trata tanto o que é sentido “subjetivamente” no presente, como o que é “objetivamente” observado, como dados reais e importantes. Isso contrasta com abordagens que tratam o que o paciente experiencia como “meras aparências” e usam a interpretação para buscar o “significado verdadeiro” (YONTEF, 1998).


Este entendimento de Yontef sobre a Gestalt-terapia pode ser relacionado e complementado com a idéia trazida por Granzotto (2007), no início deste capítulo, ao afirmar que no campo da prática clínica a noção de Fenomenologia se presta a designar uma postura de disponibilidade do terapeuta.


A experiência e a vivência imediata representam o momento de entrada na realidade, contendo a chave do passado e do futuro e respondem às questões mais sutis de como o tempo se concretiza e o espaço se temporaliza. Isso é fenômeno (RIBEIRO, 1994).


A maneira como a pessoa se torna aware é crucial para qualquer investigação fenomenológica. O paciente deve aprender a ampliar a awareness. De acordo com Fernandes e Arruda (in D’ACRI, LIMA E ORGLER, 2007), a primeira referência a essa palavra foi trazida por Perls. Quando escreveu o livro “Gestalt-terapia” trouxe uma nova definição para esse termo em que diz que “awareness caracteriza-se pelo contato, pelo sentir (sensação/percepção), pelo excitamento e pela formação de Gestalten”. (PHG in D’ACRI, LIMA E ORGLER, 2007, p.32).


Na Gestalt-terapia, os dados não disponíveis à observação direta do terapeuta são estudados pelo enfoque fenomenológico, pela experimentação, por relatos dos participantes e por intermédio do diálogo. Portanto, a maneira pela qual o terapeuta e os pacientes experienciam seu relacionamento é uma preocupação especial na Gestalt-terapia (YONTEF, 1998).


A Fenomenologia é uma busca de entendimento, baseada no que é óbvio ou revelado pela situação, e não na interpretação do observador. Os fenomenólogos referem-se a isto como “dado”. A Fenomenologia trabalha entrando experiencialmente na situação e permitindo que a awareness sensorial descubra o que é óbvio/dado. A atitude fenomenológica é reconhecer e colocar entre parênteses (colocar de lado) ideias preconcebidas sobre o que é relevante, entendendo que uma observação fenomenológica integra tanto o comportamento observado quanto relatos pessoais, experienciais e que a exploração fenomenológica objetiva uma descrição cada vez mais clara e detalhada do que é (YONTEF, 1998).


A Gestalt-terapia está baseada na assimilação do uso dos sentidos do paciente para explorar por si mesmo e aprender a encontrar as soluções para seus problemas. É ensinado ao paciente o processo de ficar aware daquilo que ele está fazendo, e como está fazendo, em vez de falar sobre o conteúdo, ou seja, como ele deveria ser ou por que ele é do jeito que é, isto quer dizer, que damos ao paciente um instrumento, ou seja, ensinamos a cozinhar em vez de lhe dar uma refeição (YONTEF, 1998). Neste momento fala-se de uma possibilidade de se aproximar da realidade de modo coerente com a forma como se mostra, sem julgamentos e valores pré-concebidos e de forma a possibilitar a experimentação.


Ao refletirmos sobre o que é trazido por Yontef nas passagens acima, observamos uma coerência com a concepção da Fenomenologia no que se refere a aproximação terapêutica e no que diz respeito ao convite que o Gestalt-terapeuta faz ao seu cliente no sentido de se aproximar das coisas como elas se mostram, ou dito de outra forma, efetuando uma ampliação da awareness.


Aguiar (2005) – autora com extenso percurso em psicoterapia infantil – afirma que o método de abordagem do ser humano utilizado pela Gestalt-terapia é o fenomenológico, que se caracteriza pelo uso de uma linguagem descritiva, que se opõe à linguagem interpretativa e a prescritiva. O método descritivo da Gestalt-terapia, de acordo com essa autora, possibilita que a criança, através das intervenções descritivas do psicoterapeuta, construa gradativamente o significado do material que traz para a sessão terapêutica, sem a interferência de qualquer a priori do terapeuta, seja ele de caráter teórico ou oriundo de seus próprios valores.
Para se realizar uma atitude fenomenológica, ou seja, intervenções descritivas sem a priori, é imprescindível que mantenha suas crenças, seus valores, e suas necessidades entre parênteses. Isso implica em uma suspensão de seu juízo de valores tanto na compreensão, quanto na condução de qualquer situação terapêutica (AGUIAR, 2005).


Ao falar do método fenomenológico da Gestalt-terapia, Aguiar (2005) não só se refere às intervenções puramente descritivas do material trazido pela criança como também àquelas do psicoterapeuta na forma de perguntas ou propostas, que funcionariam como um “convite” para a criança descrever sua experiência e, com isso, expandir suas fronteiras e alcançar novos significados para aquilo que foi descrito inicialmente.


De acordo com a autora supracitada, o processo terapêutico se desenvolve com a utilização do método fenomenológico, mas salienta que é um grande desafio para qualquer psicoterapeuta da Gestalt-terapia estar atento a redução fenomenológica, pois só conseguimos “reduzir” momentaneamente, em prol da experiência do cliente, mas jamais excluir totalmente ou aniquilar nossa forma particular de perceber o mundo. Nessa passagem do texto a autora traz a ideia de redução fenomenológica como suspensão do juízo de valores.


Nas passagens acima observamos uma ênfase dada à concepção de que ter uma postura fenomenológica seria estritamente suspender os valores e crenças, se aproximando das coisas como elas se mostram. No entanto, como vimos no capítulo anterior, a Fenomenologia husserliana enfatiza a ideia de suspensão da realidade, momento em que o mundo é colocado entre parênteses. O entendimento da abordagem fenomenológica husserliana abrange a suspensão do juízo de valores, mas não se limita a isso.


A posição de Husserl é que é preciso suspender todas as pretensões de que alguma coisa seja para além das vivências que eu tenho das coisas, ou seja, eu preciso suspender todos os pressupostos relativos exatamente a essa assunção inicial de que existem coisas dotadas de ser e sentido (CASA NOVA, 2009).
Ribeiro (1985) traz em seu livro “Gestalt-terapia: Refazendo um Caminho” um grande debate sobre a relação estabelecida entre a Fenomenologia e a Gestalt-terapia, nos concedendo uma relevante informação a respeito dos grandes teóricos da Gestalt-terapia: Perls que afirma que “A Gestalt-terapia é baseada em uma abordagem fenomenológica” (apud RIBEIRO, 1985, p.42). Para ele, a Fenomenologia é uma filosofia, é uma metodologia, implicando em uma específica visão do mundo.

 

Perls buscou na Fenomenologia suporte, princípios e pressupostos para uma melhor compreensão da Gestalt-terapia como uma filosofia, como um processo, uma técnica e até mesmo como um modo de se expressar e ver o mundo. (RIBEIRO, 1985, p.42)

 

Ribeiro (1985) enfatiza ainda que ao procurarmos um método de compreensão da realidade, nada melhor do que a Fenomenologia para nos ajudar a ler, descrever e interpretar o que está presente para os psicoterapeutas. A Fenomenologia é entendida também como o estudo da constituição do mundo da consciência, ou seja, é preciso remontar pela intuição, na consciência, até a origem do sentido de tudo que é. O fenômeno não pode e não deve ser considerado independentemente das experiências concretas de cada sujeito. Essa passagem nos remete ao que foi citado, no capítulo dois, por Sá (2007) quando ele afirma que a Fenomenologia de Husserl enfatiza a prioridade da intuição sobre o pensamento conceitual e que esta - a intuição - é a via de acesso ao fenômeno.


Ribeiro (1985) traz ainda um questionamento quando assegura ser difícil estar diante das coisas, com uma postura de observador que se coloca à distância, com o intuito de ver melhor, e mesmo nesta situação não se mistura com elas. Ele nos indaga: “O que significa ir às coisas mesmas, quando estamos diante de um cliente? Que significa ‘reduzir’, para encontrar a essência mesma do que se procura?” (RIBEIRO, 1985, p 44) e segue respondendo que se não reduzirmos, terminamos fazendo terapia de nós mesmos e não de nossos clientes. Observa-se que ‘reduzir’ aqui significa:

 

(...) encontrar-se com o cliente nele, com ele, através dele. Significa encontrar, intuir tudo que ele é em si, sem nenhuma mistura de nada daquilo que nós somos. Significa perceber-lhe a essência e com ela familiarizar-se, significa descobrir-lhe a totalidade e concomitantemente descobrir o sistema de correlação que minha consciência estabelece com ele. Significa, enfim, chegar à sua essência. (RIBEIRO, 1985, p.44)

 

O entendimento de Karwowski (2005) sobre este tema é de que suspender os a prioris significa colocar entre parênteses todos os entendimentos e explicações anteriores que se possa ter acerca do fenômeno em questão, renunciando a qualquer forma prévia explicativa, por mais privilegiada que possa parecer, isso implica em dizer que as elaborações e explicações oferecidas pela ciência possuem um caráter de mediaticidade, impossibilitando a emergência do sentido imanente ao fenômeno.


De acordo com Karwowski (2005), uma forma de saber a respeito das coisas é ouvir e compreender as elaborações e explicações produzidas acerca delas, principalmente em seu caráter de universalidade que é função da ciência. Outra é operar a epoché que é, para ele, colocar entre parênteses qualquer juízo a respeito do fenômeno em questão, sem afirmar ou negar nada, deixando emergir o sentido a partir da compreensão estabelecida entre o sujeito e o objeto.


A epoché irá referir-se a uma suspensão na crença no mundo tal como é concebido pelo senso comum que crê nos objetos como se existissem em si, independentes de qualquer ato de consciência. Essa atitude citada acima, denominada por Husserl como atitude natural, implica um entendimento de que o mundo existe por si, que já estava aí antes da existência de qualquer homem já a atitude fenomenológica é suspender a crença na realidade do mundo exterior para colocá-la como consciência transcendental, que é a condição de aparição desse mundo e que é doadora de seu sentido (DARTIGUES apud KARWOWSKI, 2005).
Nesta dimensão, o fenômeno deixa de ser um fato, um objeto e passa a ser um modo de existir, uma maneira de escolher e compreender. A simples análise de um fato ou das coisas pode nos fornecer uma gama de informações, no entanto, dificilmente poderá nos conduzir a essência do fenômeno, já que estes são reações ou modos de reagir do homem com relação ao mundo (RIBEIRO, 1985).


É nesse momento que o psicoterapeuta recebe uma grande lição da Fenomenologia. O gestaltista pode reduzir-se a um simples fenomenista, ou seja, lidar com o que acontece como, por exemplo, com as aparências de uma emoção sem colocar este fenômeno dentro de um ser maior, deixando assim de perceber o sentido existencial daquela emoção com a totalidade do cliente. Portanto, assim como a Fenomenologia, a ação do psicoterapeuta não pode ser uma simples descrição do que se vê, mas uma interrogação do todo que aparece, isto é, “não se trata de espetáculo a ver, mas de um texto a compreender” (RIBEIRO, 1985, p.45). Assim é o objetivo da Fenomenologia:

 

(...) captar a essência mesma das coisas e para isto ela procura descrever a experiência do modo como ela acontece e se processa. Para tanto é preciso, como diz Husserl, colocar a realidade entre parênteses, suspendendo todo e qualquer juízo. Não afirmar, nem negar, mas antes abandonar-se à compreensão é o modo de atingir a realidade, assim como ela é. Ao fazer isto, estamos nos voltando às coisas mesmas, assim como são, como se apresentam, sem nenhum juízo a priori, estamos superando a oposição entre essência e aparência. Estamos fazendo uma redução fenomenológica. (RIBEIRO, 1985, p.47)

 

Neste contexto se coloca uma questão importante: em muitos textos ligados à psicologia observamos a proposição de que a aproximação fenomenológica se daria através da colocação das crenças, valores e necessidades do observador entre parênteses. No entanto, ao estudarmos os filósofos que tratam da Fenomenologia husserliana nos deparamos com a ideia de que a aproximação fenomenológica passa pela colocação da realidade entre parênteses. Reafirmando tal assertiva, retomemos uma passagem expressa por Husserl (apud CAPALBO, 2001) no capítulo anterior que diz que o mundo real é colocado entre parênteses na experiência fenomenológica, permanecendo na consciência apenas aquilo que, por sua evidência, é impossível de ser negado. Por exemplo, “eu existo”. Para ele, a realidade deve ser descrita tal como se apresenta à observação pura.


Assim, conforme Casa Nova (2009), na Fenomenologia a suspensão dos preconceitos é a suspensão dos posicionamentos ontológicos, ou seja, a suspensão da pressuposição de que algo é, exatamente para partir desta suspensão encontrar aquilo que efetivamente foi evidenciado. O que importa na Fenomenologia é que se acompanhe a própria constituição dos campos de vivencias. No interior desses campos de vivência não se pode colocar em questão aquilo que se apresenta, porque aquilo que se apresenta é propriamente o que se apresenta no campo do vivenciado.


Granzotto (2005), em suas palestras, enfatiza a concepção de que suspender a realidade seria se afastar da experiência empírica buscando fazer surgir as essências operativas e categoriais, isto é, os atos de consciência e os correlatos destes atos. Estas essências são idealidades, a Fenomenologia husserliana é um idealismo transcendental. Desta forma, a idéia de redução fenomenológica passa por uma aproximação a idealidades, não ao mundo empírico.


Em contrapartida, colocar os pré-conceitos entre parênteses nos remete a uma busca de aproximação da realidade de uma forma o mais aberta possível para que se possa reter esta realidade como ela se mostra sem interferência desses possíveis conceitos prévios.


No decorrer deste texto nos deparamos com diversas elaborações do que seria a Fenomenologia, como podemos observar nesta citação: “a Fenomenologia é uma tentativa de clarificação da experiência humana (...). Ela tende a revelar aquilo que não se manifesta, tende a ir à essência mesma das coisas” (RIBEIRO, 1985, p. 50).


Em outra passagem encontramos a seguinte afirmação: “A Fenomenologia é uma específica visão do mundo (...) é um modo de pensar o ser (...) é um modo de conhecer a existência (...) é uma glorificação da experiência humana” (RIBEIRO, 1985, p. 58).


Segundo o autor mencionado acima e remontando suas concepções para a prática clínica ele enfatiza que o gestaltista na busca constante da totalidade das coisas se defronta, constantemente, com a opacidade própria de todo ser. Desta forma, ele sublinha que “a postura fundamental do gestaltista é aquela de estar aberto à realidade, tentando colher nela todos os caminhos, todas as pistas que revelam sua intencionalidade interna” (RIBEIRO, 1985, p.55).


Ao se voltar para o processo psicoterápico, Ribeiro (1985) afirma que podemos compreendê-lo enquanto uma relação de encontro, de um revelar-se de uma totalidade. Enquanto psicoterapeuta, ao prestarmos atenção ao cliente como um todo podemos observar que ele é uma auto-revelação permanente. O psicoterapeuta tem que se postar diante dele, e a partir disso, descrevê-lo compreensivamente para si e para ele próprio. Desta forma, o fenômeno é o ponto de encontro da relação com. É neste momento que cliente e psicoterapeuta se encontram, como totalidade e se fazem inteligíveis um para o outro.

 

Desvendar o fenômeno é, portanto, chegar à essência mesma das coisas. Esta intuição fenomênica, este chegar aos sentidos e à percepção tem muito a ver com todo um esforço que se faz em psicoterapia no sentido de não lidar com partes, com sintomas exclusivamente, mas com a relação entre o subtodo e a totalidade. O psicoterapeuta, neste caso, é o facilitador do fenômeno, enquanto anúncio do ser. O cliente, freqüentemente, está em contato com o externo das coisas, tendo uma postura de ver o que está acontecendo, mas ele não consegue perceber o seu ver, ou o ser do seu fenômeno. As aparências, muito mais do que o fenômeno, escondem o ser. A psicoterapia separa aparência e fenômeno, procurando ir à essência mesma das coisas (RIBEIRO, 1985, p.49).

 

Ao observamos esta citação encontramos semelhanças nas concepções trazidas por este Gestalt-terapeuta com a Fenomenologia husserliana. Desta forma, destacamos uma passagem trazida por Sá (2007) que enfatiza que o fenômeno é aquilo que se dá a experiência tal como se dá.


Enfatizamos ainda uma passagem citada por Capalbo (2001) que diz que não podemos separar fenômeno e coisa em si. O fenômeno é conhecido diretamente sem intermediários, não existindo fenômeno que não seja para uma consciência de algo.


Podemos dizer então que o psicoterapeuta, ao trabalhar com o quê e o como, vai além das aparências, procurando com isso um contato direto com o fenômeno. Assim como no exemplo trazido por Ribeiro (1985) ao falar que as manifestações externas de um cliente - como um choro, uma emoção, as palavras - nos colocam a caminho do fenômeno, da revelação do ser, onde de fato estão as fobias, as necessidades, que são o objeto do trabalho psicoterapêutico.


Estas reflexões mostram um esforço para se compreender o processo psicoterapêutico como um processo de conscientização.

 

O psicoterapeuta, assim como o filósofo, deve colocar-se diante do fenômeno numa situação de escuta do ser, desvelando-se ao mesmo tempo em que este também se desvela, recusando-se a instalar-se na verdade ou no seu sistema de verdades e certezas para compreender a realidade fora de si próprio. A fluidez, a espontaneidade, o não-saber, o não-determinar, mas apenas o estar-com são elementos desta atitude de escuta do ser, por onde se consuma a essência (RIBEIRO,1985, p. 57).

 

Essa citação nos faz pensar sobre a ideia de relação terapêutica enquanto encontro existencial e a expressão da postura fenomenológica no interior da prática gestáltica. Se pensarmos na idéia do desvelamento, tanto do cliente quanto do terapeuta na busca da aproximação das essências, encontramos uma grande proximidade com um conceito extremamente valorizado na Gestalt-terapia que é a ideia do encontro existencial genuíno entre terapeuta e cliente.

 

O ato psicoterapêutico se converte, então, em um ato criativo, numa busca a dois, se converte numa procura paciente de descrever, de compreender e analisar a realidade como vem ao meu encontro. O que se tem a fazer é abrir os braços e caminhar na sua direção, para poder, estando com ela e nela, vivenciá-la plenamente (RIBEIRO, 1985, p.57).

 

Retomando a ideia central de Ribeiro (1985) que é a influência da Fenomenologia sobre a psicoterapia, podemos dizer que esta se fundamenta na relação onde o encontro acontece. Segundo ele, neste sentido, não basta descrever o fenômeno para se saber o que ele é. O contato com o seu próprio acontecer é que revela sua importância e significação – que se encontra na totalidade da relação.


Nesse momento, surge uma visão mais ampla do processo psicoterapêutico como necessidade básica de autocompreensão e de auto-regulação. O encontro deve ser baseado na espontaneidade, na fluidez, no presente, de tal forma que psicoterapeuta e cliente estejam numa postura de entendimento crítico e real do mundo e de si próprios. “Nenhuma forma de psicoterapia que desconsidere a realidade, a relação organismo-ambiente, pode, de fato, ser uma resposta adequada” (RIBEIRO, 1985, p.58).


Do ponto de vista deste autor, o gestaltista deve se colocar numa postura de uma permanente escuta do ser, do fenômeno em que ele mesmo se inclui com seu cliente, de maneira paciente, espontânea e livre, sob pena de não apreender nada da realidade que acontece diante dos seus olhos e na qual ele está permanentemente envolvido.

 

A coerência fenomenológica não poderia ir a outro lugar, pois o homem é a expressão dele todo. Não há como dicotomizar, seja separando mente e corpo, sujeito-objeto, seja valorizando mais a um que a outro. A Fenomenologia tenta recuperar o homem todo, prestando especial atenção ao seu corpo que é o visível do invisível, que é o tocável do intocável, que é o experimental do inexprimível (RIBEIRO, 1985, p. 60).

 

Enquanto muitos autores acreditam que há alguma influência da Fenomenologia husserliana na Gestalt-terapia, existem outros pesquisadores que discordam deste pensamento e defendem a ausência de relação entre essas duas abordagens, como podemos ver abaixo.


De acordo com Granzotto (2010), a Fenomenologia husserliana trata do mundo ideal, das condições de possibilidade do conhecimento e para chegar a isso passou por muitas transformações desde a ideia de intencionalidade de Brentano à psicologia eidética e depois, com a redução fenomenológica, à filosofia transcendental.


Conforme sublinha Granzotto (2010), isso não é e nunca vai ser Gestalt-terapia, que é antes uma ética no sentido do acolhimento ao estranho, ao outro eu mesmo e ao outro de nosso semelhante, situação singular própria da clínica e que não é tratada somente num plano conceitual como reza a Fenomenologia husserliana. Para Robine (apud GRANZOTTO, 2007, p.170) são nessas filosofias que podemos encontrar os conceitos fundamentais (como por ex. o de intencionalidade) a partir dos quais Paul Goodman desenvolveu a peça mais fenomenológica da Gestalt-terapia, a saber, a teoria do self. Como podemos ver no fluxograma completo elaborado por Granzotto em seu livro (2007, p. 159):

 

 

Visualizando o fluxograma acima, observamos o principal rol de influências que, de forma direta ou indireta, contribuiu para a construção da clínica gestáltica, chamada à época por Perls de terapia da concentração, mas que logo veio a chamar-se, de acordo com Granzotto (2007), Gestalt-terapia a partir de Paul Goodman. Essa afirmação não é consensual, vários autores divergem em relação a essa concepção, dizendo que o verdadeiro criador do termo Gestalt-terapia é Frederick Perls.


Apesar de explicar a contribuição da produção de Husserl para elaboração da clínica gestáltica, os autores de Fenomenologia e Gestalt-terapia (GRANZOTTO, 2010) se colocam contra a utilização da filosofia ou das fenomenologias como fundamento da Gestalt-terapia ou de qualquer outro corpo teórico que tenta tratar do que é empírico.


Granzotto (2010) acredita que para os propósitos da Gestalt-terapia, a Fenomenologia não é uma metodologia empírica, nem mesmo uma postura teórica, mas sim uma postura ética, por meio da qual se privilegia a descrição daquilo que se mostra desde si, precisamente, as Gestalten.
Existem alguns autores que concordam com este ponto de vista, e afirmam uma não proximidade da Gestalt-terapia com a Fenomenologia de Husserl, como podemos constatar na palestra proferida por Fonseca (2008) no Instituto de Gestalt-terapia, na qual destaca a iniciação dos teóricos Norte-Americanos desta abordagem na tematização da Fenomenologia do ponto de vista de Husserl, ao que diz:

 

Husserl é o descaminho em termo de Gestalt. A Fenomenologia de Husserl não é uma Fenomenologia existencial, então, procurar Gestalt-terapia em Husserl é procurar chifre em cabeça de cavalo, porque Husserl não é, não faz uma Fenomenologia existencial e a Fenomenologia da Gestalt é eminentemente existencial, quer dizer, eles agora estão tentando puxar Husserl. Eles vão passar por uma fase que a gente já passou; Quem é que reduz quem? É o cliente que reduz o terapeuta ou é o terapeuta que reduz o cliente, quem faz a redução? O cliente está sentindo saudade, aprofunde no sentimento dessa saudade. Qual é o sentido dessa saudade? Qual é a essência dessa saudade? Tudo isso é pré-história em Gestalt-terapia no sentido fenomenológico do termo porque é uma Gestalt-terapia supostamente fundamentada numa Fenomenologia husserliana, ou seja, numa Fenomenologia eidética, numa Fenomenologia das essências. A questão da gente não é essa, a questão da gente é a questão da existência e não a Fenomenologia eidética. Não faz sentido Husserl em Gestalt-terapia. E eles ainda estão começando esse momento de Husserl na Gestalt-terapia, estão mais perdido do que cego em tiroteio (FONSECA, 2008).

 

Para Fonseca (2008), podemos fundamentar a Gestalt-terapia na Fenomenologia sim. O que não podemos fazer é fundamentar a Gestalt na Fenomenologia eidética husserliana.


Fonseca afirma veementemente que a Gestalt tem raízes muito claras e singulares na Fenomenologia, na filosofia da vida de Nietzsche, no empirismo fenomenológico de Brentano, sendo, portanto, uma vertente da tradição fenomenológica que tem sua originalidade, mas nem conceitual, nem historicamente se sustenta como uma tradição autônoma, pois decididamente a Fenomenologia eidética de Husserl não contribui com a originalidade da Gestalt-terapia. “Não podemos querer que mangueira dê jaca, pois procurar Gestalt-terapia em Husserl é procurar chifre em cabeça de cavalo” (FONSECA, 2008).


E quando Fonseca (2008) refere-se a Fenomenologia mais próxima à Gestalt-terapia, ele afirma que a própria Gestalt é uma Fenomenologia, é uma corrente fenomenológica, tendo implicações muito importantes já que ela radicalizou no sentido da experimentação, no sentido fenomenológico existencial que, de acordo com ele, vem de Nietzsche. Segundo Fonseca (2008), a própria Gestalt-terapia tem alguma coisa a dizer à Fenomenologia, acreditando que com o decorrer do tempo isso venha a aparecer. De acordo com este autor, “a raiz da Gestalt-terapia é Brentano, ou melhor, é o empirismo fenomenológico de Brentano”.


A Gestalt-terapia também se origina da filosofia da vida do Nietzsche, ou como o próprio autor afirma, da Fenomenologia do Nietzsche. Para ele, Brentano e Nietzsche são as raízes não só da Gestalt-terapia como também das teorias de Heidegger que, de acordo com ele, não é um precursor da Gestalt-terapia, mas tem origem nas mesmas raízes (FONSECA, 2008).


Para Fonseca (2008), a Fenomenologia existencial de Heidegger, apesar de não ser uma raiz, é muito útil para esclarecer e para desdobrar a Gestalt-terapia. Para ele, a Gestalt precisa se entender como uma tradição dentro da Fenomenologia, quer dizer, não deve se basear em Heidegger, Husserl, nem em Brentano, mas sim na própria Gestalt-terapia especificamente (FONSECA, 2008).


Apesar das suposições levantadas, principalmente, por Fonseca a respeito da ausência de articulação entre a Fenomenologia husserliana e a Gestalt-terapia e mesmo sabendo que esta não é definitivamente uma concepção majoritária, consideramos importante trazer este pensamento ao debate, já que o intuito deste trabalho não é defender uma tese, mas possibilitar uma aproximação e reflexão a respeito desta Fenomenologia abordada na Gestalt-terapia.


Assim, mesmo diante de tal concepção tão diversa daquelas que encontramos nas produções de outros autores, pudemos observar no desenvolver desse estudo que a maioria dos teóricos da Gestalt-terapia acredita numa intrínseca interlocução e influência da Fenomenologia de Husserl nas bases epistemológicas e, consequentemente, na prática clínica da Gestalt-terapia.

 

4. Considerações Finais


Quando surgiu a oportunidade de dedicar esta monografia de conclusão do curso de especialização ao estudo deste assunto de extrema relevância e complexidade imaginamos que seria um trabalho árduo, mas não tão difícil quanto se mostrou no decorrer de sua realização. Ainda mais considerando o parco conhecimento de filosofia. Ainda sim, com persistência e com a contribuição de alguns estudiosos da área foi possível finalizar este trabalho.


No primeiro capítulo trouxemos a baila os pontos principais da vida de Edmund Gustav Albrecht Husserl e mostramos a inter-relação de suas produções teóricas com as sua escolhas feitas durante a formação acadêmica e sua aproximação de determinados estudiosos como, por exemplo: Wundt, Brentano e Stumpf. Assim, pudemos perceber a influência de suas vivências em seus trabalhos científicos e em sua obra.


No capítulo seguinte, enfatizamos através do olhar de diversos teóricos aqueles conceitos que se tornaram fundamentais para o entendimento do que se caracterizou como uma filosofia e um método husserliano. A posteriori, na última parte, enfatizamos as produções dos Gestalt-terapeutas sobre as questões das bases fenomenológicas, levantando questionamentos sobre a existência ou não da influência da Fenomenologia do filósofo Edmund Husserl na fundamentação e desenvolvimento das bases epistemológicas da Gestalt-terapia.


Desta forma, foi possível perceber que muitos autores, como Ribeiro, Yontef e Karwowski, estabelecem relações importantes e até intrínsecas entre essas duas “abordagens” – a Fenomenologia e a Gestalt-terapia. Muitos estudiosos acreditam nesta interlocução e na influência da Fenomenologia husserliana na história da Gestalt-terapia.


Para Ginger (Apud GRANZOTTO, 2007), as principais lições da Fenomenologia husserliana que permaneceram na Gestalt-terapia foram: é mais importante descrever do que explicar; o essencial é a vivência imediata; a percepção do mundo é dominada por fatores subjetivos irracionais; a importância da tomada de consciência do corpo e do tempo vivido como experiência única de cada ser humano.


Entretanto, encontram-se também estudiosos que discordam desta afirmação, e ao contrário, acreditam que a Gestalt não tem qualquer fundamento na Fenomenologia eidética husserliana e, mais ainda, que não há qualquer relação possível entre a Fenomenologia de Husserl e a Gestalt-terapia, como vimos nas colocações de Fonseca (2008) que afirma veementemente que “Husserl é o descaminho em termo de Gestalt” e na assertiva de Granzotto (2007) que mantém uma postura contrária a utilização da filosofia ou das fenomenologias como fundamento da Gestalt-terapia ou de qualquer outro corpo teórico que tenta tratar do que é empírico.


Mas mesmo diante dessa afirmação, Granzotto (2007) sustenta, no decorrer de seu livro Fenomenologia e Gestalt-terapia, a importância histórica da produção de Edmund Husserl na elaboração da teoria do self, como pudemos confirmar na elaboração do fluxograma reproduzido integralmente neste trabalho.
“A Teoria do Self, inspirada no formato transcendental da discussão fenomenológica, é o principal operador conceitual da Gestalt-terapia para pensar a indivisão do homem e da natureza.” (GRANZOTTO, 2007, p. 236).


Além de toda discussão e estudo realizados acerca da produção husserliana e, apesar de não haver, para alguns estudiosos, uma correspondência direta da Fenomenologia elaborada por Husserl e daquela utilizada pela Gestalt-terapia um ponto parece ser consenso: é incontestável a existência de um caminho de influências que culminou na criação dessa abordagem, sendo o principal deles, de acordo com o entendimento entre os teóricos pesquisados, o empirismo fenomenológico de Brentano.


A concepção de Brentano perpassou e influenciou a obra de Husserl, que a partir das investigações lógicas propôs uma psicologia eidética (fenomenológica) que por sua vez forneceu subsídios para Wertheimer, kohler e koffka fundarem a primeira geração da Psicologia da Gestalt que novamente recebeu interferências de Husserl com a concepção de redução fenomenológica, influenciando Lewin, Gelb e Goldstein na segunda geração da Psicologia da Gestalt que diretamente serviu de base para Perls construir suas concepções sobre a Terapia da Concentração e em seguida embasou Paul Goodman que, influenciado por diversas vetores, elaborou a teoria do Self.


Neste trabalho de conclusão de curso não enfocamos o empirismo fenomenológico e nem Brentano. Devido a importância e ao valor deste autor e de sua respectiva produção para Gestalt-terapia fica aqui uma sugestão de nova pesquisa.




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Endereço para Correspondência


Cristiane de Figueiredo Costa

E-mail: cricafcosta@hotmail.com

Recebido em: 07/10/2010.
Aprovado em: 28/10/2010.