ARTIGO

 


Recriando histórias: o desabrochar da capacidade criativa em crianças a partir da gestalt-terapia

Recreate history: the flowering of creative ability in children from gestalt therapy

Danielle Cavalcanti Almeida de Oliveira

Endereço para Correspondência

 


 

Resumo

O trabalho clínico desenvolvido com crianças tem sido recorrentemente abordado devido a grande dedicação e interesse das diversas áreas da psicologia em explorar o universo infantil. A partir da vivência clínica em consultório particular e na área escolar, foi possível contactar com crianças e compartilhar de suas experiências, adentrar pelas suas fantasias, e também dificuldades. Foi possível verificar também as particularidades que envolvem o trabalho com crianças, e principalmente a possibilidade de acompanhar o processo de desenvolvimento da capacidade criativa destas diante das mais diversas situações de ajustamento ao ambiente, as situações de vida. Observou-se assim, a capacidade da criança, através do processo psicoterapêutico alicerçado nos princípios éticos e estéticos sob a perspectiva da gestalt-terapia, de desenvolver a criatividade como uma alternativa que fomente outras formas de atuação, de ser-no-mundo descobrindo possibilidades, podendo resignificar e recriar sua história.

Palavras-chave: Crianças; Criatividade; Psicoterapia; Gestalt-terapia.

 


 

Abstract

The clinical work developed with children has been repeatedly addressed due to the great dedication and interest in the various areas of psychology to explore the infant universe. From the clinical experience in private practice and in education, it was possible contact with children and share their experiences, by entering your fantasies, and also difficulties. It was also verified that the specific involve working with children, and especially the possibility of monitoring the process of developing the creative ability of those facing the most diverse situations of adjustment to the environment, life situations. It was observed as the ability of the child, through the psychotherapeutic process grounded in ethical and aesthetic principles from the perspective of gestalt therapy, develop creativity as an alternative that encourages other forms of performance, of being in the world discovering possibilities and can reframe and recreate their history.

Keywords: Children; Creativity; Psychotherapy; Gestalt-therapy.

 


 

A partir da práxis clínica realizada tanto em consultório particular quanto em escola pela via da gestalt-terapia, foi possível contactar com crianças que vivenciam ou vivenciaram dificuldades, situações de fragilidade, e perceber a recorrência de comportamentos que limitavam as possibilidades de crescimento destas devido a repetição de modos de funcionar cristalizados .


O desafio observado nos trabalhos clínicos desenvolvidos com essas crianças parece ser justamente devolvê-las a condição de recriar seus caminhos a partir de novas formas de funcionamento. A possibilidade de recriar a forma de funcionar de tais crianças encontra espaço para acontecer no momento em que são fomentadas intervenções que possam facilitar esse processo de reencontro com novos caminhos, para que, segundo Gondar (2003, p. 18) “o indivíduo possa experimentar sua capacidade de crer, não apenas em alguém mas em si mesmo, na legitimidade de suas percepções sobre si e sobre o entorno, e naquilo que o singulariza”.


Diante de tais constatações obtidas tanto com a vivência prática quanto com as leituras realizadas, pensou-se em construir uma produção teórica que contemplasse a temática do trabalho clínico com crianças, com ênfase na possibilidade de ampliar a capacidade criativa de tais crianças sob a perspectiva da gestalt-terapia.

 

Psicoterapia de base gestáltica com crianças


O trabalho com crianças requer muita disponibilidade pois exige do terapeuta um contato com suas emoções mais primitivas... um reencontro com a criança que foi um dia e que se revela na sua forma de ser e estar no mundo, um contato com o processo de pensamento primário.


Acreditamos que as crianças pensam o mundo de um jeito especial e muito próprio. É a partir das relações que estabelecem com a realidade em que vivem, com o meio familiar e com as pessoas com quem necessitam se relacionar no cotidiano que elas passam a compreender o mundo. Desta forma, é de grande importância o olhar do profissional para a criança, o modo como compreende e lida com crianças.


A criança sob a ótica da gestalt-terapia é vista como uma totalidade singular, que se desenvolve através da relação ativa e constante com as forças do campo do qual é parte integrante e só pode ser entendida dentro desse contexto. É um ser-no mundo que influencia e é influenciado por pequenos e grandes sistemas (família, escola, sociedade), um sujeito desejante, que interage de maneira dialética com o mundo, que tem interesses e necessidades individuais. Tal possibilidade de compreender o universo infantil perpassa também por observações do momento histórico em que vivemos, com todo avanço tecnológico, com mudanças ético-sociais que implicam numa forma de olhar a criança como de fato, um sujeito social, um sujeito com direitos, que de acordo com Frabboni, 1998:

 

“é séria e concentrada, empenhada em ampliar — por si mesma — seus próprios horizontes de conhecimento (através de uma constante atividade exploradora e interrogativa), que possui grande voracidade ’cognitiva’... que sabe observar o mundo que a cerca, sabe perscrutar e sonhar com horizontes longínquos.” (p. 69).

 

Encontramos, nesta concepção gestáltica, uma ideia de que a criança é protagonista da sua própria história, que é capaz de interagir com adultos e com outras crianças, assim como influenciar ambos significativamente. Este princípio norteador atribui um caráter diferenciado ao processo terapêutico embasado pela referida abordagem.


Na psicoterapia com crianças também lidamos com questões relacionadas ao processo de desenvolvimento maturacional que na gestalt-terapia adquire um sentido distinto daquele proposto pela dualidade cartesiana de acreditar no homem imerso em fases de desenvolvimento segregadas. O processo de desenvolvimento, neste sentido, aparece como uma permanente ação humana de tornar-se, indicando uma continuidade, uma fluidez que implicaria assim, segundo Soares (2005) “no desdobramento de perspectivas existenciais, ampliação de recursos pessoais e relacionais, de atualização de possibilidades e da continuidade do fluxo de awareness... como um sinal de vitalidade organísmica.” (p. 02).

Faz-se necessário ressaltarmos que esse processo de desenvolvimento está também relacionado com as condições do contexto do qual a criança é parte. Contexto imbricado principalmente nas suas relações familiares. A partir destas relações é que a criança vai construindo sua imagem, seu autoconceito. É nesse ciclo de interação que tais seres passam a formular a ideia de quem são, do que gostam, das habilidades e dificuldades que possuem.

A necessidade de um processo psicoterapêutico torna-se mais nítida quando a criança vem apresentando algum comportamento que começa a ser apontado muitas vezes pelos pais, mas na maioria das vezes pela escola, já que este é um grande espaço de construção de subjetividade também. É possível observarmos que as crianças, ainda, se retraem diante de pessoas e ambientes difíceis, desenvolvendo formas de atuação que possibilitam uma resposta criativa ao ambiente. No entanto, nem sempre estas respostas criativas conseguem levar a um desenvolvimento saudável, podem gerar algum tipo de atuação que finde em limitar a fluidez do movimento de crescimento e amadurecimento dessa criança. Tal fato não necessariamente precisa ser visto como negativo apesar de ser geralmente o que sinaliza a necessidade de se buscar ajuda. Porém, pode sinalizar ainda que naquele momento talvez aquela forma de atuação seja a única possível para aquela criança. Oaklander (1980) afirma que

 

“Percebo a criança que se envolve em comportamentos hostis, intrusivos, destrutivos, como uma criança que possui sentimentos de rejeição, insegurança e ansiedade, sentimentos de mágoa, e muitas vezes um senso de identidade difuso... o que lhe falta internamente é a habilidade de lidar com um ambiente que a deixa com raiva e com medo. A criança não sabe como lidar com esses sentimentos, que são gerados dentro dela pelo seu ambiente hostil. E assim, quando agride o ambiente de uma certa maneira, o faz porque não sabe que outra coisa fazer.” (p. 233).



A opção por ingressar num processo terapêutico não vem da criança. Os pais ou os cuidadores são os responsáveis por esse primeiro contato entre a criança e o processo psicoterapêutico. É comum percebemos o quanto a demanda da criança se torna secundária diante da necessidade dos pais que muitas vezes precisam mais de ajuda, de uma escuta, um direcionamento. O momento de levar um filho para um psicólogo implica na possibilidade de admitir que algo não vai bem com a criança, ou com a família. E este primeiro contato é permeado por fantasias, medos e expectativas.


Na abordagem gestáltica, a forma de receber a criança no setting psicoterapêutico configura-se como um acolhimento daquele pequeno ser na forma como ele se apresenta. É um encontro entre dois mundos distintos (terapeuta e cliente) mas que vão caminhar juntos construindo um percurso por algum tempo. É uma relação dialógica, em que há um interesse real pelo outro em sua singularidade. Tal interesse se faz concreto a partir da disponibilidade em que um sujeito (adulto) se coloca diante de outro sujeito (criança) para um encontro entre mundos fenomenológicos diferentes. É enfocado então o fenômeno como ele emerge, através de uma relação que deve ser alicerçada na confiança, para que aconteça o estabelecimento do vínculo terapêutico.


A forma de conduzir a sessão é bem particular pois está diretamente vinculada com as necessidades e interesses da criança, e tem como finalidade ainda oportunizar experiências estimuladoras que favoreçam o crescimento. É importante atentarmos para a possibilidade de explorar primeiramente o que é confortável para criança, para depois adentrar pelo que é mais difícil. Tais experiências acontecem muitas vezes permeadas por um processo lúdico que envolve o ambiente da psicoterapia, que tem como principal ferramenta de interação o brincar.


A brincadeira ocupa um lugar de grande importância pois é através dela que são reveladas, experienciadas e integradas diversas situações, sentimentos, que constituem o mundo da criança. O modo como a criança brinca fala muito de sua forma de ser-no-mundo. No entanto, na gestalt-terapia interagimos com a criança sem que haja um caráter interpretativo de sua brincadeira. Há uma preocupação com a descrição dos fenômenos que emergem, de devolver o que se revela para que seja integrado, com o próprio fenômeno indicando o caminho para uma compreensão.


A brincadeira é algo que pertence à criança, à infância. Através do brincar a criança experimenta, organiza-se, regula-se, constrói normas, cria e recria o mundo que a cerca. É mais uma possibilidade da criança saber que existem limites a serem respeitados. O brincar é ainda uma forma de aprendizagem no sentido de descoberta, de reconhecimento, de criação. Perls, Hefferline e Goodman (1997), comentam a questão do brincar afirmando que

 

“...É a sensação vivida e a brincadeira irrestrita destas (crianças), aparentemente sem objetivo, que permite a energia fluir espontaneamente e chegar a semelhantes invenções fascinantes...é a integração sensório-motora, a aceitação do impulso e o contato atento com material ambiental novo que resultam numa obra de valor” (p. 59).

 

A partir do contato entre o terapeuta e a criança intermediado pela ação lúdica do brincar é que se vai construindo uma ideia de como aquela criança está sendo agora. Desta forma, lembramos que ao começar o trabalho com a criança é necessário percebê-la aos poucos, sem apegos a imagens pré-estabelecidas, para que o encontro possa acontecer entre o terapeuta e a criança, despertando a conscientização. A fomentação de experiências que levem a ampliação da consciência é condição fundamental para que se configure um processo de mudança. Assim como a adequação no momento de intervir, respeitando os limites e resistências da criança. Oaklander (1980) coloca que

 

“Tal consciência facilita de fato a mudança. À medida que se desenvolve a consciência da criança, podemos começar a examinar as opções e escolhas disponíveis, experimentar novas formas de ser, ou lidar com os temores que a criança tem ocultos, que a impedem de fazer novas escolhas que poderiam mudar a sua vida” (p. 75).

 

Quanto à estruturação do setting terapêutico para crianças, a abordagem gestáltica não impõe nenhuma condição maior, mas compreende que alguns materiais ou recursos podem fazer parte desse ambiente como agentes facilitadores na construção de brincadeiras. Percebemos que o mais significativo talvez, seja a possibilidade de favorecer a criação, a libertação do seu próprio processo criativo, através do uso de fantasias, de recursos expressivos, de acordo com os interesses de cada criança.
Especificamente em relação à fantasia encontramos referências a estimulação destas como possibilidade de lidar com determinadas situações da realidade. Perls, Hefferline e Goodman (1997) explicitam esta questão:

 

“Uma criança diferencia perfeitamente bem entre o sonho e a realidade. De fato, distingue quatro coisas, a realidade, o como-se, o faz-de-conta e o vamos-fingir... pode ser um índio de verdade usando uma vara como se fosse uma arma, e ainda assim se desviar do automóvel real. Não observamos que a curiosidade ou a habilidade de aprender das crianças seja prejudicada pela livre fantasia delas. Ao contrário, a fantasia funciona como um meio essencial entre o princípio do prazer e o princípio da realidade...” (p. 110).

 

A gestalt-terapia com crianças tem como objetivos, portanto, auxiliar no processo de construção do senso de eu da criança, fortalecer suas funções de contato,e restaurar o fluxo do movimento figura-fundo. Percebemos assim que o maior desafio no trabalho com crianças é justamente estar conectado com a responsabilidade de compartilhar das histórias e sentimentos mais primitivos e espontâneos, e auxiliar no processo criativo de construção de sentido dessas crianças.

 

O desabrochar da capacidade criativa em crianças a partir do olhar da gestalt-terapia

 

“Conhecer a flor é tornar-se a flor, florir com ela, usufruir do sol e da chuva. Então a flor nos fala, nos entrega toda sua vida, tal como ela é, vibrante no mais fundo dela mesma” (GINGER, 1995, p. 91).”

 


O desenvolvimento do processo psicoterapêutico com crianças sob a perspectiva da gestalt-terapia se configura como um processo de crescimento em que o potencial criativo da criança vai ser utilizado para devolvê-la a condição da capacidade de escolha. Falamos devolvê-la pois entendemos que a partir do momento em que a criança chega para a terapia há uma sinalização de que algo está interrompendo a sua forma de ser-no-mundo, a fluidez do processo de formação figura-fundo que impulsiona e movimenta a vida.

Criatividade X Cristalização: interação saudável homem/mundo para gestalt-terapia


Ao compreendermos o processo psicoterapêutico de base gestáltica como um espaço de ressignificação e desenvolvimento de potencialidades, estamos atribuindo a esta possibilidade de atuação um caráter integrador e não adaptativo. Neste processo não pensaremos numa forma de tornar o cliente (criança ou adulto) um ser adaptado as situações do seu contexto no sentido de adequá-lo ao que está sendo solicitado. E sim, trabalharemos com a intenção de desenvolver sua possibilidade de escolha, de ser que se apropria da vida e pode agir por si.


Acreditamos então no que chamamos de potencial criativo do ser humano, como um caminho a ser trilhado para que se possa começar a fazer diferente. Faz-se necessário compreender que falamos numa perspectiva de criatividade que não está imbricada apenas num fazer original, e sim numa criatividade que de acordo com Safra (2004) “possibilita o acontecer e o aparecimento do singular de si mesmo” (p. 61).


Em gestalt-terapia trabalhamos o conceito de criatividade como algo que pode estar vinculado a visão de homem, a ideia de saúde e a metodologia desta prática. Compreender o homem como um ser criativo é atribuir a este ser a capacidade de recriar sua história, de construir caminhos, de encontrar novas possibilidades de ser-no-mundo. Ciornai (1995) reforça tal ideia ao afirmar que “... o indivíduo não pode ser visto apenas como um ‘produto’ do meio, pois com ele pode sempre interagir de forma criativa, inusitada e transformadora” (p. 01). Há, portanto, uma ideia de constante troca criativa com o meio que implica numa construção do autoconceito. Na criança podemos observar claramente essa construção na relação que estabelece com o seu contexto, a partir da interação que estabelece com pessoas significativas desse contexto, proporcionando-a uma formulação do modo como funciona no mundo. Tal formulação pode estar alicerçada numa base sólida, o que fortalece o senso de eu da criança ou pode estar vinculada a ideias que fomentem o aparecimento de alguma sintomatologia já que, segundo Zinker (2001), “a criança aprende quem ela é na relação com os outros, na saúde e também na aquisição da disfunção” (p. 41).


Falar em criatividade para gestalt-terapia é também falar de ajustamento criativo pois ambos estão entrelaçados, não havendo como conceber um sem o outro. Só o ato criativo não basta para que haja crescimento, mas a criatividade somada ao ajustamento criativo revela algum tipo de mobilização para mudança. O ajustamento criativo abarca uma ideia de momento de contato criativo, em que há uma abertura para conscientização pois implica num contato criativo com o meio. Conforme abordado por Perls, Hefferline e Goodman (1997):

 

“A criatividade sem um ajustamento expansivo torna-se superficial, nesse caso, primeiro porque não se nutre do excitamento da situação inacabada, e o mero interesse no contato decai. Em segundo lugar, é ao manipular o resistente que o self se torna envolvido e comprometido; o conhecimento e a técnica, e uma parte cada vez maior do passado acabado são postos em ação e questionados; em breve as dificuldades “irrelevantes” (a irracionalidade da realidade) comprovam ser o meio de explorar a si próprio e descobrir o que realmente pretendemos” (p. 212).

 

É preciso lembrarmos, contudo, que nem sempre os processos de ajustamento criativo implicam em processos de crescimento saudáveis. Em determinadas situações observamos que a criança pode apresentar algum tipo de forma de funcionar que pareça justamente ser inadequada, que cause incômodo. Tal fenômeno não acontece com uma intencionalidade, mas diante do contexto em que se encontra, talvez esta seja a única possibilidade para a criança continuar a ser e existir no mundo. Oaklander (1980) afirma que:

 

“As crianças fazem o que podem para ir em frente, para sobreviver. A investida das crianças é em direção ao crescimento. Em face da ausência ou interrupção no funcionamento natural, elas adotam algum comportamento que parece servir para fazê-las avançar...não há limite para o que a criança pode fazer na tentativa de atender as suas necessidades” (p. 74).

 

O comportamento aparentemente inadequado configura-se então como uma tentativa de sobrevivência, ainda que apresente algum caráter psicopatológico, pois compreende-se que todo o esforço desprendido implica num movimento para vida. Observamos ainda que esta forma de ser-no-mundo assume um caráter repetitivo, denominado de figura inacabada. A figura inacabada consiste numa interrupção na fluidez figura/fundo devido a uma não satisfação das necessidades daquela criança. Não se chega a uma homeostase porque há uma fixação numa única possibilidade de atuação, há uma cristalização do comportamento que impede a criança de crescer. Essa é uma forma bem particular da gestalt-terapia lidar com a sintomatologia, com as dificuldades que a criança pode apresentar. Sobre tais questões, Zinker (2001) coloca que:



“A gestalt-terapia visualiza a ‘patologia’ como interrupções no processo natural que levam a esforços repetidos, e muitas vezes corajosos, para resolver o problema. A patologia é conceituada como uma interrupção do processo – um impasse – que, por sua vez, é apenas parcialmente bem sucedido na solução do problema. Desse modo, todo sintoma, toda doença, todo conflito é um esforço para tornar a vida mais tolerável...” (p. 52).

 

Chegamos assim na ideia de saúde e doença para gestalt-terapia. Conceitos antagônicos que na referida abordagem não são vistos como contrários. A ideia de saúde e doença na psicopatologia e na psicologia como um todo segue ainda um modelo cartesiano de fragmentação, o que reverbera numa atuação em que muitas vezes se observa apenas a sintomatologia. Dentro de uma perspectiva holística a atuação torna-se distinta pois há uma preocupação com a contextualização desse sintoma, com a forma como ele se apresenta e se sustenta.


O funcionamento saudável para gestalt-terapia configura-se então como a prevalência de um fluxo contínuo da experiência de awareness, em que o sujeito (criança ou adulto) interage criativamente no seu campo vivencial, utilizando-se das suas funções de contato, desenvolvendo novos recursos para lidar com as situações de vida que compõem tal campo. O ser saudável segundo Forghieri (2002), teria uma tendência a aceitar e enfrentar os paradoxos e restrições da existência, enxergando novas possibilidades, ampliando suas potencialidades. Já o ser adoecido, estaria limitado a uma só possibilidade, configurando-se como um ser restrito, que enfatiza e amplia suas dificuldades, tornando-as dominantes. O funcionamento não saudável se caracteriza portanto por interrupções, inibições, pela formação de figuras que se cristalizam e não proporcionam um contato criativo com o meio.


Assim, quando o cliente chega para o processo psicoterapêutico está sinalizando que não consegue lidar sozinho com aquela dificuldade, às vezes até já consegue compreender como funciona, o que o impede, mas não consegue agir de forma diferente. No caso da criança é ainda mais delicado esse primeiro contato com o processo pois ela não escolhe estar ali, a escolha que faz é por permanecer ou não no processo psicoterapêutico mas a chegada é quase sempre imposta. Adentra num espaço completamente desconhecido mas carrega consigo a sensação de que algo não funciona bem.


O momento de acolhimento dessa criança no processo terapêutico é um momento de aceitação do seu ser na forma como se apresenta já que é compreendido que seu comportamento, ainda que inadequado, traduz um movimento para saúde. É um momento em que as formulações e especulações acerca das razões para a cristalização dessa forma de funcionar ter se instalado são suspensas, cedendo lugar para a compreensão do comportamento em detrimento das razões pelo qual ele acontece. Assim, Oaklander (1980) reforça que “é preciso começar com a criança a partir de onde ela está comigo, independentemente de qualquer outra coisa que eu ouça, leia ou diagnostique” (p. 208).

 

A estética da clínica favorecendo o desabrochar da criatividade em crianças


Abordamos a ideia da criatividade vinculada a forma de compreender o homem e concepção de saúde/doença para gestalt-terapia. No entanto, há ainda um outro vértice dessa criatividade no contexto da abordagem. A criatividade está imbricada também na estética da clínica conduzida pela perspectiva gestáltica, pois configura-se como uma ferramenta de atuação.


Falamos em estética pois compartilhamos da concepção de gestalt-terapia trazida por Laura Perls de que a gestalt é constituída por conceitos estéticos e filosóficos, e não técnicos, o que caracteriza a construção de uma forma de atuar calcada em alguns princípios que formulam uma figura nítida, bela. Segundo Zinker (2001) a “boa forma”, a estética da clínica gestáltica está principalmente vinculada a concepção da estética das relações humanas, pois é na relação terapeuta–cliente que o processo vai acontecer. É necessário que haja uma abertura, um acolhimento que proporcione a experiência e abertura para que se possa “ser” da forma que se é.


Neste sentido, a gestalt-terapia vem para auxiliar a criança a liberar a energia que retém em figuras inacabadas, favorecendo o encontro com o que ela é no aqui e agora, utilizando-se da criatividade como uma ferramenta de intervenção. Muitas vezes ao falarmos em gestalt-terapia, estamos fazendo ressoar a ideia de que não se configura como técnica pré-determinada, mas sim é uma abordagem, uma forma de ser com o outro que implica na construção de uma relação em que serão resgatadas a espontaneidade, a liberdade de escolha e a responsabilidade que abrange tudo isso.


A estética da clínica gestáltica então está vinculada a ideia de que somos narradores da nossa história, e nesse espaço de ressignificação que é o processo terapêutico podemos recriar tais histórias, através da percepção de novas possibilidades que levam, consequentemente, a novos caminhos, ao fazer diferente. Fazer diferente aí se refere a fazer de forma criativamente nova e não simplesmente agir ou ser de forma oposta ao que se apresenta. Fazer diferente é poder contar a história de um outro jeito, com apropriação, com construção de significados, tornando as figuras mais nítidas e possíveis de serem completadas. A psicoterapia então vai ajudar o cliente a rever suas histórias e recriá-las permitindo uma compreensão das origens e significados de suas dificuldades atuais, favorecendo uma mudança concebível, alcançável e acreditável.


No processo psicoterapêutico com crianças, observamos que o fluxo livre criativo começa a aparecer quando intervimos no sentido de deixar essa criança ser o que pode ser, sem querer moldá-la ou adaptá-la a alguma realidade distante daquela da qual faz parte. O mundo de sentidos e imaginações de uma criança é único e só tem significado para quem o constrói. Percebendo isto, vemos o quanto é necessário deixar essa criança expressar os seus mais difíceis sentimentos muitas vezes sem ter a dimensão disso. Deixar o outro ser não é tarefa fácil para o psicoterapeuta, pois é necessário que ele esteja presente junto ao cliente nesse percurso de recriação. Segundo Zinker (2001):

 

“Estar presente significa estar totalmente centrado para permitir que o sistema-cliente emerja, brilhe, se envolva, e seja assimilado...a presença é ao mesmo tempo um estado psicológico e uma abertura espiritual, é a abertura dos olhos e ouvidos, mas também uma abertura do coração. Nós nos transformamos em eu-como-testemunha” (p. 57).

 

A experiência construída no processo terapêutico proporciona a criança episódios de desenvolvimento, de autonomia, já que favorece um autoconhecimento, uma integração de aspectos de sua personalidade que não são bem aceitos, mas que fazem parte do que ela é. Esbarramos agora, portanto na concepção do processo de mudança para gestalt-terapia que está completamente envolto na teoria paradoxal da mudança descrita por Beisser (1973) em que afirma que “a mudança ocorre quando uma pessoa se torna o que é, não quando tenta converter-se no que não é” (p. 110). Tal ideia alicerça também a estética da clínica gestáltica e fomenta contatos criativos com o campo vivencial. Pois, de acordo com Ginger (1995):

 

“A gestalt me encoraja, de certa maneira, a navegar no sentido de minha própria corrente e não a me exaurir lutando contra ela: observar as profundas correntes internas de minha personalidade, explorar os ventos variáveis de meu meio, e ainda mantendo a responsabilidade vigilante pelas velas e pelo leme, para realizar aquilo que sou e traçar meu rastro efêmero na superfície do oceano, conforme o caminho que escolhi para mim” (p. 19).

 

A criança precisa, portanto, integrar que pode ser como é sem sentir-se inferior ou superior por isso. A conscientização de tal aspecto culmina numa possibilidade nova de interação com o mundo, possibilidade permeada pela relação de confiança e respeito que acontece no espaço da terapia e que acaba por reverberar em outros espaços quando atinge seus objetivos, momento em que a terapia deixa de ser necessária, e passa a fazer parte da história recriada da criança que pode ser ouvida e trabalhada para que pudesse caminhar sozinha, não solitariamente, mas com autonomia, podendo ser artista e construtora de sua própria caminhada. Pensar nessas possibilidades, faz com que utilizemos também enquanto terapeutas, a nossa capacidade criativa de estar-com essa criança a partir do que ela pode nos trazer, e principalmente, a partir do que ela pode acessar e tornar-se consciente para seu próprio desenvolvimento. Estar criativamente junto com a criança nesse processo, significa respeitar sua condição, seja ela configurada como uma psicopatologia mais específica, ou com ajustes situacionais diante de situações de mudança de rotina, ou adversidades. Ser criativamente com o outro para que ele utilize sua criatividade num ambiente continente, em que sinta-se acolhido e respeitado possibilitando a recriação de sua história pessoal nos diversos contextos em que possa se inter-relacionar, remete-nos a ideia de que o terapeuta, enquanto agente facilitador do autoconhecimento, precisa estar recriando também a sua história, estando disponível para o outro no sentido de estar aberto ao que irá encontrar. Nessa ressonância que só a relação terapeuta/cliente favorece, percebemos então a necessidade de vivenciarmos e nos tornarmos conscientes da nossa própria capacidade criativa, para auxiliar essas crianças a potencializarem também a criatividade, e ampliarem possibilidades de ser, sentir e estar agora.

Referências


BEISSER, A. Teoria Paradoxal da Mudança. In FAGAN, J. e SHEPHERD, I. Gestalt Terapia Teoria Técnicas e Aplicações.Rio de Janeiro: Zahar, 1973.

CIORNAI, S. Relação entre criatividade e saúde na Gestalt-terapia. Revista do I Encontro Goiano de Gestalt-terapia. 1995, 1:72-75. Goiânia, Instituto de Treinamento e Pesquisa em Gestalt-terapia de Goiânia.

FORGHIERI,Y.C. Psicologia Fenomenológica: fundamentos, métodos e pesquisas. São Paulo: Ed. Thomson Pioneira, 2002.

FRABBONI, F. A escola infantil entre a cultura da infância e a ciência pedagógica e didática.In: ZABALZA, M. Qualidade em Educação Infantil. Porto Alegre: Artmed, 1998.

GINGER, S e GINGER A. Gestalt – uma terapia do contato. São Paulo: Summus, 1995.

GONDAR, J. (2003). Clínica, desejo e política.Cadernos do Espaço Brasileiro de Estudos Psicanalíticos, A clínica como Prática Política, 3 (3), 13-18.

OAKLANDER, V. Descobrindo crianças: abordagem gestáltica com crianças e adolescentes. São Paulo: Summus, 1980.

PERLS, F. HEFFERLINE,R. e GOODMAN, P. Gestalt – terapia. São Paulo: Summus, 1997.

SAFRA, G. A po-etica na clínica contemporânea. São Paulo: Ed. Ideias e Letras, 2004.

SOARES, L. L. M. Um convite para pensar sobre desenvolvimento em Gestalt-Terapia. Revista IGT na Rede Vol. 2, nº 3, 2005, disponível em http://www.igt.psc.br/revistas/seer/ojs/viewarticle.php?id=58&layout=html acesso em 20/05/2007.

ZINKER, J. A busca da elegância em psicoterapia. São Paulo: Summus, 2001.


Endereço para Correspondência

Danielle Cavalcanti Almeida de Oliveira

E-mail: danicavalcanti_dc@hotmail.com


Recebido em: 15/08/2010.
Aprovado em: 26/10/2010.