ARTIGO

 

Atitude fenomenológica e psicoterapia


Phenomenological attitude and psychoterapy


Letícia Reis de Andrade Souza
Ihana Ferreira de Almeida Leal
Roberto Novaes Sá

 

Endereço para correspondência

 


 

Resumo


Este trabalho tem como objetivo investigar a atitude psicoterápica, e sua metodologia foi inspirada nas entrevistas de explicitação de Pierre Vermersch. Entrevistas foram realizadas com psicólogos clínicos de diferentes linhas teóricas, e em suas análises posteriores observou-se características interessantes da atenção clínica, diferenciadas da atenção cotidiana pelos entrevistados. Dentre tais características, destaca-se a presença de uma atitude mais contemplativa e de espera, em oposição a uma ansiedade investigativa mais intervencionista. Há também um olhar mais ampliado, mais voltado para o contexto relacional do que para seus elementos particulares e, principalmente, uma atenção mais direcionada para a experiência dos clientes do que para a suposta objetividade do conteúdo narrado. Tais características evidenciadas no estudo reforçam a aproximação entre a “atitude psicoterápica” e a “atitude fenomenológica”, descrita por Edmund Husserl.

Palavras-chave: Fenomenologia; Psicologia clínica; Entrevista de explicitação; Atitude psicoterápica; Cotidiano.

 


 

Abstract


This study aims to investigate the pychotherapist`s attitude. The methodology was inspired on Pierre Vermersch`s debriefing interviews. The interviews were conducted with clinical psychologists of different theoric views. In the analisis of such interviews, we were able to oberve intersting aspects of the clinical care, which were distinguished from the daily life care by the interviewees. Among this aspects, we highlight the presence of a more contemplative attitude, a waiting one, instead of a investigative anxiety that searchs for interventionism. We found as well a wider look, more directed to the relational context than for it´s particular elements and, above all, a major atention for the client´s experiences than for the supposed objectivity of the content recounted. This aspects observed in the study, reinforce the aproch between the “psychoterapical attitude” with the “phenomenological attitude”, described by Edmund Husserl.


Keywords: Phenomenology; Clinical psychology; Debriefing interviews; Therapist attitudes; Daily life

 


 

Introdução


O grupo de pesquisa “Filosofia e Psicologia Clínica”, em sua linha “Fenomenologia Hermenêutica e Clínica Psicoterápica”, no qual se insere a presente pesquisa, vem, desde o ano de 2002, desenvolvendo projetos relacionados à interlocução entre Fenomenologia e Clínica. As contribuições da abordagem fenomenológica para o campo de formação e de prática clínicas mostram-se atuais e de grande relevância no presente contexto de transformações históricas, em que os profissionais são demandados a cada momento por situações sociais e institucionais complexas e irredutíveis aos modelos explicativos de inspiração cientificista. Esta crescente diversificação das modalidades de seu exercício e dos contextos em que são realizadas, faz com que seja cada vez mais difícil caracterizar o âmbito próprio das práticas psicológicas clínicas, partindo apenas de reflexões que se atêm a uma dimensão meramente técnica em sentido estrito.


O presente estudo tem como tema a atitude psicoterápica, que busca ser compreendida e sistematizada a partir de uma metodologia fenomenológica. Procura-se, neste momento especificamente, investigar a possível relação entre a “atitude psicoterápica” e a “atitude fenomenológica”.

A atitude fenomenológica se caracteriza, na concepção de Husserl (1986), pela suspensão do juízo. Esta suspensão ganha um termo próprio, resgatado da filosofia grega: épochè. Husserl sustenta que na atitude natural e cotidiana um fenômeno geralmente não é apreendido por si mesmo, mas sim a partir de um juízo prévio. A suspensão do juízo na atitude fenomenológica promove uma abertura de sentido diante do fenômeno apreendido.

Este tipo de suspensão pode também ser visto na psicoterapia através da suspensão e desconstrução de identidades restritivas do sujeito. Acreditamos que esta suspensão pode ser bastante profícua para o sujeito em atendimento, possibilitando-lhe uma ampliação da experiência de sentido e, consequentemente, maior liberdade.

A tematização da atitude psicoterápica à luz da atitude fenomenológica pode potencializar a produção deste efeito, favorecendo a atenção, o cuidado e a consciência de si. A análise do campo proporcionará uma visão mais adequada das reais possibilidades, dificuldades e limitações deste tipo de atitude clínica. Possíveis aplicações desta atitude em outros contextos do campo da Psicologia que não o psicoterápico strictu senso — tal como nas supervisões clínicas e formações acadêmicas — também poderão ser geradas.

Este estudo visa, portanto, contribuir para a clínica psicológica como um todo, além de contribuir para a elaboração teórica da atitude clínica de base fenomenológica.

 

Fundamentação teórica


Tomando como referência Husserl (1992), a “atitude natural” — que inclui tanto a atitude científica quanto a do senso comum — considera as coisas como existentes em si mesmas, independentemente de sua relação com a consciência. Ora, trata-se de uma atitude ingênua, já que supõe gratuitamente uma natureza em si, cujo caráter de algo simplesmente dado, antes de qualquer relação com a consciência, é aceito sem nenhuma problematização.

Contrariamente, a “atitude fenomenológica”, ou filosófica no sentido próprio, deve ater-se apenas àquilo que se dá à experiência, tal como se dá: o que chamamos de fenômeno.

A atitude fenomenológica se caracteriza então, na concepção de Husserl (1986), pela épochè. A suspensão do juízo promove uma abertura de sentido diante do fenômeno apreendido.


Este retorno da atenção para a esfera da experiência, com a concomitante suspensão do mundo subsistente “em-si” que a transcende, realiza-se num primeiro momento como redução psicológica, isto é, como um deslocamento da atenção para o conteúdo psíquico imanente à vivência do “eu empírico”. Para Husserl, este primeiro nível de redução da experiência leva-nos apenas ao âmbito de uma psicologia fenomenológica, mas não ainda àquele da fenomenologia pura propriamente dita. O eu empírico ou psicológico que desse modo se atinge não satisfaz às pretensões husserlianas de fundamentação absoluta do conhecimento, e ainda é considerado um ente que existe no interior do mundo. Ou seja, sua existência transcendente à experiência da consciência que não foi suspensa. Permanecemos, portanto, presos à atitude natural.

A imanência da experiência psíquica é ainda transcendente com relação à imanência da consciência pura. A existência do “eu empírico” com seus conteúdos deve também ser posta em suspensão. Assim como o mundo, toda a esfera psíquica deve ser tomada apenas como fenômeno, e ser reduzida ao âmbito de conteúdo experiencial imanente à consciência pura. Deste modo, superamos realmente a atitude natural e nos colocamos na atitude propriamente fenomenológica. Essa consciência pura e transcendental em relação à imanência meramente psicológica não pode ser pensada como uma coisa dentro do mundo — tal como o sujeito empírico —, pois ela é a própria abertura originária de sentido, a condição ontológica de possibilidade para que qualquer coisa se dê como objeto dentro de tal mundo.

Neste ponto, um importante ramo da fenomenologia, influenciado principalmente pelas interpretações de Heidegger, afasta-se do idealismo transcendental de Husserl. Substitui a compreensão da abertura originária de sentido à que a redução nos conduz, enquanto um sujeito transcendental, por aquela de “ser-no-mundo”, “ser-aí” (Dasein) ou “existência”.

Em Heidegger, podemos dizer que a suspensão da atitude natural, a epoché, atinge um grau de radicalismo ainda maior do que na fenomenologia husserliana. A própria consciência do sujeito, suposta como transcendental por Husserl, é suspensa, igualmente à objetividade do objeto. A relação sujeito-objeto, considerada a mais geral pela tradição, é vista por Heidegger apenas como uma das possibilidades históricas de sentido da relação do homem com a coisa. O ser do homem é pura abertura de sentido, Dasein (ser-aí), existência, ser-no-mundo. A fenomenologia de Heidegger não é, portanto, transcendental como a de Husserl, mas sim hermenêutica. O sentido que se desvela através do homem nunca se dá a partir de algum a priori transcendental, ele só é na medida em que se desvela historicamente.


Husserl dissolveu a noção de ser em-si que imperava na tradição, tanto em relação aos entes que não têm o modo de ser do homem, como em relação ao próprio sujeito psicológico. Mas o ‘simplesmente-dado’ da tradição manteve-se entrincheirado na noção de um “sujeito transcendental”. Para Heidegger, contrariamente, o que caracteriza o modo de ser do homem é justamente o fato de que seu sentido está sempre em jogo no tempo.


Como podemos pensar o exercício clínico então, a partir da atitude fenomenológica compreendida por Heidegger?


Se nos referirmos à intervenção clínica num sentido amplo, como a um campo de atividades profissionais concernentes à transformação da existência humana a partir de suas relações de sentido, o recurso à atitude fenomenológica fornece uma base de referência extraordinariamente fértil. Tanto para uma melhor elaboração compreensiva do horizonte comum a essas atividades, quanto para a investigação e a proposição de atitudes ou modos de disposição propícios ao seu exercício prático.

A atividade clínica, no sentido aqui presente, diferencia-se da mera transmissão de informações conceituais, por envolver sempre certa mudança de atitude na relação de sentido consigo mesmo e com o mundo, tanto da parte dos terapeutas quanto dos clientes. Seja nas práticas de inspiração cognitivo-comportamentais, psicanalíticas ou naquelas derivadas das influências existencialistas, está sempre em jogo algum nível de apropriação para os sujeitos envolvidos. Seus papéis na constituição de sentido daquilo que lhes era antes apreendido, numa atitude ingênua, como simplesmente dado, é colocado em relvância. Este “deslocamento-de-si” nunca se reduz à simples mudança de ponto de vista teórico, trata-se de uma verdadeira transformação existencial, pois implica em uma desestabilização e em uma “des-identificação” dos nossos modos cotidianos de ser. Numa linguagem fenomenológica, diríamos que se trata de suspender os preconceitos intelectuais e afetivos da atitude cotidiana de ocupação utilitária de si e do mundo, para deixar vir ao encontro aquilo que se mostra, tal como se mostra a partir de si, em suas múltiplas possibilidades de sentido.

A dificuldade de tal ‘disposição compreensiva’ reside no fato de que esse “deixar o ente ser assim como se mostra” só é possível na medida em que o próprio terapeuta realiza esse deslocamento de si, experienciando-se como abertura de sentido, como Dasein, e a partir daí iluminando toda a realidade humana, não se identificando com nenhuma objetivação inadequada sobre o modo de ser do homem (HEIDEGGER, 2001, p. 236). O quanto isto é uma dificuldade foi mostrado na analítica da cotidianidade mediana do Dasein, feita em “Ser e Tempo”. O Dasein tende, de início e na maior parte das vezes, a ser absorvido por seu mundo, tomando a si mesmo por aquilo que ele não é, um ente cujo modo de ser fosse simplesmente-dado. Se a atitude fenomenológica é intuitiva, no sentido de se ater ao imediato dar-se das coisas a partir de si mesmas, tal possibilidade é, no entanto, sempre mediada por um esforço paciente e um treinamento persistente na experiência da serenidade. Tal experiência pode ser pensada como o aguardar na abertura ao sentido, como o pensamento meditativo ou como a realização das possibilidades de ser em um modo próprio e pessoal do Dasein.

A relação da fenomenologia hermenêutica com a clínica não pode ser a de um novo método que venha substituir os antigos. O “deixar-ser” fenomenológico deriva daquilo que caracteriza essencialmente a existência humana, daquilo que é ontológico, não dizendo respeito aos aspectos ônticos desse ente que perfazem o âmbito das ciências e das metodologias da pesquisa científica. Por outro lado, cada fenômeno que vem à luz no diálogo clínico deve ser discutido a partir do contexto factual concreto em que surge, e nunca reduzido genericamente a uma estrutura existencial.

O que caracteriza o exercício clínico da atitude fenomenológica não é, portanto, o método que ela emprega enquanto disciplina antropológica ou psicológica, mas o fato de que, seja qual for o método utilizado — caso algum o seja —, ele deve estar sempre subordinado a uma compreensão fenomenológico hermenêutica da existência. Não se deve pensar este tipo de caminho como um método ou técnica no sentido usual, mas antes como uma postura de desapego para a qual nada se encontra a priori supervalorizado ou excluído a partir de uma postulação teórica de fundamentos. A atenção serena seria uma disposição de abertura que não exclui por princípio possibilidade alguma, nem mesmo aquela da intervenção técnico-científica, embora aqui já descaracterizada em sua pretensão de hegemonia e superioridade.

É importante enfatizar que o mais fundamental da postura fenomenológica jamais se reduz aos procedimentos metodológicos ou técnicos dela derivados ou aos seus resultados, mas à possibilidade de uma realização consciente e própria daquela atitude de disponibilidade amorosa e desapegada à misteriosa alteridade do ser dos entes, que diferencia de modo essencial o existir humano. Sem perder de vista essa compreensão, podemos abrir um vasto campo de investigação e experimentação sobre os procedimentos empregados nas práticas educacionais e terapêuticas que visam à transformação dos modos de existência humana.

Evidentemente, não estamos propondo uma simples aplicação da atitude fenomenológica stricto sensu — em sua formulação filosófica rigorosa — à situação clínica. Trata-se de perceber que o que chamamos aqui de atitude clínica tem por fundamento a mesma possibilidade humana pré-filosófica que a fenomenologia desenvolveu de forma sistemática enquanto metodologia de investigação da experiência. A partir da diferenciação entre atitude natural e atitude fenomenológica, e da discriminação dos momentos constitutivos desta, a dinâmica dos encontros clínicos enquanto sessões de explicitação da experiência de ser-no-mundo pode ganhar contornos de análise compreensiva que contribuam para o próprio fazer, e também para a explicitação e elaboração temática da experiência clínica enquanto tal.

 

Metodologia


Nossa pesquisa tem como principal fonte de dados o material colhido através de entrevistas. Elas foram realizadas com profissionais identificados com diversas abordagens teóricas, e tanto com psicoterapeutas com longo tempo de experiência quanto com recém-formados e graduandos com atuação em clínica.

As entrevistas foram feitas seguindo a metodologia fenomenológica de Pierre Vermersch (1994), que cunha para estas o termo “entrevista de explicitação”. Tal metodologia foi criada para possibilitar a verbalização de uma ação procedural que se deseja analisar a fundo. Por exemplo, a entrevista pode ser utilizada em escolas para entender erros cometidos por alunos, com o objetivo de poder ajudá-los, ou em ambientes de produção, analisando causas de acidentes ou formas mais profícuas de trabalho.

Neste modelo de entrevista, o entrevistador participa ativamente de uma introspecção guiada, mas não dirigida, convidando aqueles que participam à prática da atitude fenomenológica e à explicitação de sua experiência. Os relances do entrevistador buscam facilitar o participante a suspender seus juízos e representações prévias para deixar vir uma “fala encarnada”, na qual a experiência fale através do entrevistado, e não o entrevistado fale sobre a experiência. A ideia é que ele não use conceitos já formados, julgamentos ou opiniões. No “domínio conceitual” (VERMERSCH, 1994, p. 35), aquele que fala se afasta da experiência encaixando-a em categorias. No “domínio descritivo”, almejado neste tipo de entrevista, há uma circularidade entre a fala e a própria experiência. O participante fala da experiência de modo descontínuo, alternando entre o relato desta e suas reflexões sobre a mesma, que podem ratificar ou retificar o que foi dito anteriormente. Busca-se, portanto, obter-se uma descrição menos automática e mais reflexiva.

É interessante pontuar que a análise quanto à existência ou não de explicitação não cabe ao entrevistado e sim ao entrevistador. Essa é feita no momento mesmo da entrevista — o que o auxilia a conduzi-la neste sentido — e após a mesma, analisando seu conteúdo diferentemente, conforme considerar ter havido ou não explicitação.

No encontro com os entrevistados, é importante iniciar com um “contrato”, explicitando oralmente todas as especificidades da entrevista que se deseja realizar. O contrato é um elemento fundamental para que a entrevista atinja os propósitos desejados. Ele deve ficar claro, podendo ser retomado diversas vezes durante o processo, caso se faça necessário assegurar que o entrevistado esteja bem situado sobre os propósitos da mesma.

No contrato, buscamos explicitar qual é o nosso objeto de pesquisa — a atenção na clínica — e o que desejamos que seja explicitado através de nossa facilitação — a experiência do psicoterapeuta em sua prática. Isto é, de que forma ele está presente durante um atendimento ou, ainda, como é o seu modo de atenção e sua atitude durante estes.

Esclarecemos que o que estamos buscando é a sua experiência, e não o seu saber ou sua opinião; isto deve ficar bem claro. Garantimos também o anonimato do material recolhido. Para formalizar esta garantia, bem como a possibilidade de divulgação em eventos acadêmicos do conteúdo das entrevistas, pedimos que o entrevistado assine um termo de consentimento livre e esclarecido.

Ao final do contrato, devemos nos assegurar que o entrevistado está de acordo e tem interesse real em participar da pesquisa. É sempre prioridade neste momento a resposta não verbal, pois na situação formal da entrevista é mais difícil que haja recusas explícitas do entrevistado.

Havendo acordo, a primeira questão que propomos é se o entrevistado consegue perceber alguma diferença entre seu modo de atenção no exercício clínico e o seu modo de atenção em outras atividades cotidianas. Como já explicado anteriormente, segundo Husserl (1992), as atividades cotidianas em geral são preenchidas pela atitude natural. A ideia aqui é descobrir se, na terapia, a atitude difere desta natural, ou seja, se se trata de uma atitude fenomenológica.

Caso os entrevistados afirmem perceber esta diferença, seguimos então pedindo para que a explicitem, buscando observar de forma imediata a própria experiência de atenção clínica.

É importante que o entrevistado esteja em um nível de memória que Vermersch (1994) chama de “memória concreta”. Nesta, o entrevistado não fala a partir de um saber que tem sobre o passado, mas o revive ali naquele momento. Alguns elementos podem indicar se o indivíduo está neste nível de memorização ou não, e eles também podem ser utilizados como forma de facilitar sua chegada a este modo. São eles: mudança no foco do olhar; diminuição do ritmo da fala; coerência entre verbal e não-verbal (linguagem corporal); uso de um vocabulário mais descritivo, ligado a conotações sensoriais; uso de verbos no presente e na primeira pessoa (eu); diminuição evidente de modalizações epistêmicas (ex: eu creio, eu penso, eu acho, etc.), descrição do vivido em detrimento de seus comentários sobre ele (cf. VERMERSCH, 1994).

É possível ajudar o entrevistado a entrar neste modo de consideração, fazendo-o diminuir o seu ritmo de fala, orientando-o para falar no seu próprio tempo ou pedindo-o que especifique o que diz — criando para isso a necessidade de um acesso interno. É, no entanto, importante ressaltar que de forma alguma o entrevistado deve se sentir em esforço para lembrar de algo. O esforço, na verdade, dificulta a entrada no modo de suspensão.

É preciso também sempre buscar que o entrevistado fale de algo específico, concreto, que tenha vivido, e não de algo geral, abstrato, que diga mais respeito ao que ele pensa do que à sua própria experiência.

 

Resultados e discussão


Para discutirmos as entrevistas, as agrupamos no que apresentavam em comum e depois nomeamos tais agrupamentos, separando assim as falas de forma didática. Queremos ressaltar que estas são possíveis divisões, podendo haver outras que também façam sentido em diferentes olhares. Há, portanto, um entrecruzamento entre os grupos, que não podem ser tomados como categorias isoladas, já que são núcleos de sentido e emergem de um mesmo contexto.

Atenção e cotidiano

Muitos entrevistados apontaram diferenças entre a atenção na clínica e aquela do cotidiano:

“Hum... é... é uma atenção diferente... porque a atenção na clínica é uma coisa trabalhada, programada, cada dia de atendimento você vai construindo... você vai trabalhando em cima disso... A atenção do dia a dia é uma atenção natural, completamente espontânea... é uma coisa que vai acontecendo sem você perceber, sem pensar... é uma atenção que simplesmente você tá aqui, tá vivendo, tá se relacionando com as pessoas e tal...” (entrevistada E)

“Quando eu tô escutando um paciente eu tô bem mais atenta. Tô ali ligada, assim. É... Quando eu tô no dia a dia, eu tô na rua, tô olhando uma árvore, um num sei o que, é outro tipo de, de lugar, de relação, de tudo. (pausa longa) Eu acho bem difícil, assim...”

“Quando eu tô conversando com alguém na rua eu sou eu pessoa, assim, eu tô ali, eu falo o que eu acho, o que eu faria, enfim, o que eu penso eu falo. Uma pessoa na rua, um amigo ou um desconhecido, não sei, não tem o menor problema. No consultório é um outro enquadre, né? Eu não to ali pra dizer o que o paciente deve ou não fazer, como ele deve ou não agir, qual é o certo, como, “não, nesses casos você deveria fazer assim”, num é mesmo por aí.” (entrevistada F)

“Diria assim... ah... quando eu tô atendendo, no atendimento com a pessoa ali, eu busco é.. reparar em mais coisas do que realmente... a minha atenção está diferenciada mesmo, só que assim... é diferenciada porque a teoria que me dá substância... ela tá presente ali, e em outros momentos ela não tá... e assim, como eu tô voltado para a pessoa somente, e praquilo que ela está dizendo, eu consigo é... sentir mais o que ela tá falando, de uma forma diferente. Por exemplo, quando eu tô conversando com outras pessoas no meu cotidiano, primeiro a teoria não tá presente, e a outra coisa que acontece é que tem outros pensamentos passando pela minha cabeça...” (entrevistado G)

Um tema recorrente é a diminuição de estímulos aos quais o terapeuta tem que responder dentro da clínica, se comparado ao cotidiano, o que o permite colocar sua atenção mais diretamente em seu cliente. Tal tema será novamente abordado quando pensarmos situações em que a presença de estímulos externos se dá dentro da própria clínica, mas vejamos agora alguns trechos:

“É mais fácil pra mim ficar totalmente presente aqui do que na vida cotidiana. A vida cotidiana te exige uma rapidez que você não tem tempo, porque no atendimento você tem um tempo, um tempo que se expande... Tem uma coisa da expansão do tempo. A hora clínica ela é expandida. (...) de alguma maneira protege o cliente do tempo. Porque naquele momento não tem tempo, nem dia, nem noite, nem começo, nem fim, é um momento pleno”. (entrevistada C)

“Quisera eu poder estar atenta às pessoas como eu sou para os meus clientes. É… não é ser terapeuta de todo mundo, não, né? Não é querer cuidar de todo mundo, mas estar presente porque acho que esse trabalho, eu acho até que isso, que eu me sinto cada vez mais parecida com quem sou… quando estou atendendo.”

“ eu acho que a minha vida tem se beneficiado desse, dessa atenção que eu desenvolvo no trabalho. No trabalho como psicóloga. E, com os filhos eu vejo, com parentes meus que eu estou, que a pessoa está falando aquilo e eu estou achando aquilo um saco. E aí eu estou sem saco de ouvir. Aí eu páro, “pô, sacanagem, né, H.”, coloca a tua atenção, ouve essa pessoa, ouve a tua prima, a tua vizinha, que está falando um negócio, uma abobrinha chata para chuchu, e eu, “está bom, vou tentar” e isso, aí eu me coloco… cara, e sai uma coisa legal daquele encontro. Eu acho que o meu trabalho tem me ensinado isso. Em que muitas vezes eu não estou, estou mecanicamente ali, ausente.” (entrevistada H)

A entrevistada B também falou da possibilidade de ter no cotidiano uma atitude mais semelhante à sua atitude clínica:

“[O cotidiano] é mais automatizado. Eu acho que a gente não pensa tanto nas pequenas coisas da rotina. (...) agora eu não sei, você tá falando e eu tô pensando um pouco no reverso. De quanto seria uma experiência interessante trazer essa atenção mais apurada das coisas do dia a dia, assim...”

Para a entrevistada D, sua presença no cotidiano é diferente de sua presença clínica; no primeiro, ela está preocupada em como responde e age em relação a quem encontra. Já no segundo, ela pode estar em uma postura de escuta, mais voltada para a fala do outro do que para sua própria.

“É diferente do cotidiano. Em que você tem de se fazer presente mesmo. Seus amigos não vão querer conversar com você se você não participar, né? Se você não tiver atenta no que ele falou, com que ele ta preocupado”.

“(...) na clínica você está ali para escutar, no cotidiano, você está ali não somente para escutar, mas, assim, para mostrar sua presença para alguém. Tem que se fazer presente, mostrar-se disponível... Na clínica o principal não é se mostrar presente, o principal é escutar, é que ele seja escutado”.


Atenção e esforço

Os entrevistados relacionam um esforço à atenção que têm na clínica, de modo que descrevem esta atenção não como uma atitude de tranquilidade, mas como uma postura que exige concentração e trabalho para ser mantida:

“(...) trabalhar 1 hora e terminar e afhhh (suspira), parece que trabalhei o dia inteiro.” (entrevistada A)

“O tempo todo ligada naquela fala, no que ele está trazendo. É um esforço mesmo, acho que tem momentos em que o terapeuta ele faz um esforço (...)”

“(...) eu sinto que quando eu saio do consultório, depois de um dia de muitos atendimentos, que existiu realmente um esforço de atenção”. (entrevistada B)

“(...) ali foi um esforço pra ficar atento... o que o paciente tava dizendo, pra focar nele... pra ficar ali, pra o meu pensamento não sair ali da sessão... porque... às vezes realmente é muito difícil né... ter atenção...” (entrevistada E)

“(...) eu gosto de atender. Mas tem sempre... Não é uma coisa tranqüila, não é uma coisa que se faça ‘Ah, estou aqui tranquilamente’. Não. Exige” (entrevistada F)

Do esforço à tranquilidade

Identificamos também nas falas dos entrevistados um outro movimento da atenção que parece ser favorecido, segundo estes, pelo tempo de experiência. Esta atenção passa de um modo investigativo, mais ativo, para um modo de espera, mais passivo.

Heidegger (2000) diferencia dois modos de pensamento comparáveis a estes movimentos encontrados. Trata-se do pensamento calculante, análogo ao modo de atenção investigativa, e do pensamento meditativo, relativo ao modo de atenção de espera. O primeiro se caracteriza por visar um resultado, fazendo um recorte de dados, selecionados de acordo com os pressupostos de onde parte. Já o segundo não busca por algo definido, mas pela reflexão sobre o sentido do que se experiencia.

Também Depraz, Varela e Vermesch (2006) falam sobre um movimento de atenção diferenciado que denominam ‘deixar-vir’. Este consiste no não-preenchimento imediato da experiência, permitindo uma abertura para que algo não definido previamente possa emergir.

Vejamos as falas dos entrevistados:

“(...) com o tempo isso vai ficando mais leve. (...) vai ficando mais leve no sentido que é uma dinâmica, é uma relação como outra qualquer, se um detalhe passou num dia, volta no outro e aí vai se construindo. E aí vai ficando mais gostoso inclusive”.

“(...) a pessoa chega com elementos de uma vida inteira. (...) esse é o momento de respirar um pouco: peraí que essa história vai voltar e eu não preciso entender todo mundo e saber quem são todas as pessoas ao mesmo tempo, todos os nomes... e isso vai voltando.” (entrevistada A)

“Então hoje em dia acho que você fica um pouco mais relaxado em relação a isso. Eu hoje não me cobro ter que fazer uma intervenção a todo momento, Ter que dar uma resposta a todo momento, não, porque tem coisa que não, né? Naquela hora não tem, eu tenho que escutar, eu tenho que... na hora certa, quando eu achar que... hoje eu tenho mais segurança dessa hora, eu posso ficar mais tranquila, eu tô escutando, não me sinto mais nessa cobrança, nessa necessidade, né? Como você tivesse mais feeling pra perceber, que, menos ansiedade, pra perceber, sim agora sim tá na hora de devolver, de... no mais eu vou acompanhando, eu vou acompanhar, né? Eu vou acompanhando e as coisas vão acontecendo”. (entrevistada B)

“O que ele não quiser contar, eu não vou perguntar. Vou esperar para saber mais tarde. E com a atenção assim meio livre, sabe? Sem prestar muita atenção no detalhe, no ponto que ele falou, ah, alguma coisa sobre a família, sem fixar, começar a perguntar da família dele. Eu vou deixar ele falar. O que que ele vai trazer com aquilo...”

“você tá com uma atenção meio livre pra não tentar, assim, focar em nada específico.” (entrevistada D)

Direcionamento da atenção

Percebemos nas falas dos entrevistados diferentes direcionamentos da atenção. Um destes se assemelhou ao que Depraz, Varela e Vermesch (2006) definem como redirecionamento da atenção. Estes autores, através do estudo de Husserl, comentam a respeito de uma mudança no direcionamento da atenção do objeto para o ato. Se trata de uma atenção desinteressada do ‘mundo’ e voltada para as representações mentais e afetivas. Isto pode ser comparado a atitude relatada pela entrevistada A:

“Quando a pessoa chega, eu acho que a atenção é de uma forma, por que é mais pra um todo pra entender em que situação social aquela pessoa se encontra, que situação familiar, de que dinâmica que ela participa, qual é o trabalho dela, que relação que isso tem com o que ela está trazendo. E depois eu acho que vai ficando mais refinado, no sentido que eu acho que a gente começa a abrir essa escuta que é muito de uma rotina, de um cotidiano, de uma vida comum, concreta, pra algo que é mais do sentimento dela, da vivência dela, das representações que ela faz, como ela simboliza”.

Outros direcionamentos também foram observados, mas neles não se mostrou claro se a mudança se faz do objeto para o ato — fenômeno — ou para um objeto diferente. Vejamos as falas abaixo:

“Às vezes tem algum detalhe importante que ele comenta, aí, isso aí você não pode deixar passar em branco, aí você fala “mas como que é isso mesmo?”. Alguma coisa que chama a atenção. Começa, assim, a dar mais atenção a alguma coisa que chama a atenção no meio do discurso, não no discurso todo”.

“Você não vai focar em nada, mas tem que estar concentrado ali”. (entrevistada D)

“Bom... a atenção... a atenção que eu tinha lá no hospital psiquiátrico era uma atenção mais de o que eu vou fazer o que eu devo fazer... era uma atenção mais pro funcionamento geral da enfermaria... já no SPA... minha atenção não tava tão focada no que fazer e como fazer, mas sim em escutar o paciente né... como escutar melhor esse paciente... como devolver pra ele o que ele tá me contando... é uma atenção assim mais singular que depende de cada caso, como pensar cada caso, cada sessão... no Jurujuba era mesmo mais uma preocupação geral com o funcionamento e no SPA não, é uma atenção mais particular de cada paciente, cada atendimento. E por ser muito singular, minha atenção também tá voltada muito pro estar ali disponível, pra aquele paciente, pra aquele caso...” (entrevistada E)

Tempo de experiência clínica

Os entrevistados falam que, independentemente do tempo de experiência profissional e atendimento a um paciente, e por mais que se sintam mais preparados quando este tempo é maior, precisam sempre estar atentos a novidades que surgem. Constatamos que o despertar da atenção pode ocorrer tanto frente a elementos novos e situações ainda não experimentadas — um caso novo ou o início da experiência profissional, por exemplo — como pela vontade do terapeuta de renovar sua atenção a cada momento. No caso da novidade, a atenção vem como algo mais natural, enquanto que em um atendimento de rotina, esse movimento precisa ser mais ativo.

“De um modo geral, acho que a gente sempre tem de estar atento. Não tem alguma coisa aí que a gente saiba e ponto a priori. Eu sei, eu me formei, eu fiz tal curso e agora eu sei atender, eu sei... Não. Não sabe. A cada vez que você entrar em contato com o paciente, que o paciente te procurar; cada sessão, cada atendimento é uma nova história, um novo começo e você não sabe nada. Daquele paciente você não sabe absolutamente nada. Você vai ter que ouvir, vai escutar...”

“Acho que de repente a tendência é, fica, não digo mais fácil, mas da gente tá, pela experiência, um pouco mais preparado pra cada situação. Num sei. Eu não acredito que um dia você vai estar preparado, pronto, vai saber o que fazer e que nada vai deixar você surpresa. Não. Eu sempre acho que vão ter várias surpresas, a cada atendimento, a cada... Num é porque você atende aquela pessoa há um ano e meio que: “Ah, tá tranquilo”. Não acho. Não acho mesmo. A cada vez, a cada sessão, a cada escuta é todo um trabalho de atenção, de presença, de pensar qual é a história da pessoa, que lugar é esse que ela tá, repetindo, repetindo, mudou, mudou...” (entrevistada F)

Fica claro, portanto, através das entrevistas, que o modo de atenção específico da clínica não é algo natural, mas que vai, aos poucos, sendo construído pelos profissionais. A entrevistada C fala mais explicitamente disto:

“E (entrevistador) — Mas você acha que pra entrar neste modo de presença é uma coisa natural ou...
P (psicólogo) — Eu acho que não. Eu acho que precisa ser treinado. Eu acho que eu tinha isso como talento, como dom natural, mas eu acho que tem que ser desenvolvido.
E — Você pensa que com os anos, assim, ficou mais fácil pra você?
P — Muito mais. Muito mais. Isso a gente aprende.”

Pode-se perceber que este aprendizado não é simplesmente de um conteúdo sobre a teoria psicológica ou sobre o paciente, mas sim de uma sabedoria sobre a experiência clínica:

“Essa segurança não quer de forma alguma dizer que eu me sinto sabendo de tudo e que pode chegar qualquer pessoa que eu vou dar conta e qualquer história que eu vá saber lidar. (...) eu me sinto inteiramente disponível. Eu acho que essa é de onde vem a segurança, de eu me sentir cada vez mais disponível pra entender esse outro que chega, pra acompanhar e tal. E aí eu acho que isso dá mais tranquilidade e aí a atenção apesar de muito grande sempre, se torna mais leve. Essa jornada fica mais leve”. (entrevistada A)

“Como é que eu faço aqui”? “Eu fiquei sentada naquela cadeira, sem saber muito bem onde é que eu colocava os meus braços, o que eu fazia (risos)”. Muito estranho, assim, aquele, aquele lugar ali. Enfim... E eu acho que hoje em dia eu não me sinto mais tão estranha.”.

“Eu sempre acho que por mais que você estude uma linha, uma abordagem, cada um vai ter o seu jeito de atender, que você vai construindo ao longo das suas práticas, estágios, aulas, textos lidos, vida, mergulhos no mar, enfim... A gente vai inventando mesmo um jeito de atender que aos poucos vai virando um jeito seu.” (entrevistada F)

No entanto, a questão da atenção poder se tornar mais automatizada com o passar do tempo também é colocada:

“E — E você acha que por ela [a atenção] estar sendo leve ela pode se tornar automática?
P — Acho que acontece com muitos profissionais, sim.
E — E com você?
P — Eu não quero que aconteça não (risos). Estou atenta para que não aconteça. Porque aí eu acho que empobrece muito (...) — Ah, beleza — é todo mundo igual, todo mundo que tem essa questão tem as mesmas representações disso, não pode ser automático de forma alguma.” (entrevista A)

“(...) acho que faz diferença o fato de eu estar começando a atender agora. Acho que com o tempo a presença diminui, o terapeuta entra mais no automático. Por enquanto, pra mim, é muito interessante, mas acho que isso deve mudar, se tornar repetitivo”.

“(...) você começa a escutar coisas, assim, que vão ficando familiarizadas, e tal, você começa a identificar, assim, algumas coisas. No cotidiano você não para pra fazer isso, né”? (entrevista D)

Atenção e Postura Investigativa

Os entrevistados associaram o esforço que sentem na clínica a uma postura investigativa, que se caracteriza pela pressa em entender o paciente e em reter o máximo de informações sobre este.

“(...) o cansaço vinha da necessidade que eu tinha de ter muita concentração para estar ali, e uma preocupação que eu tinha de logo estabelecer algum tipo de entendimento sobre aquele sujeito”.

“(...) é muito difícil no sentido que é muito cansativo, por que são muitos elementos pra eu prestar atenção. Muitos elementos pra trazer, pra eu entender que sujeito é aquela pessoa, do que realmente ele está falando, como é que essas queixas e essas demandas todas se articulam”.

“(...) uma ansiedade minha de querer prestar atenção em todos os detalhes, querer acompanhar da melhor forma”. (entrevistada A)

“(...) eu acho que quando você começa você fica mais ansioso, né? Pra descobrir, “oh não!” o que está atrás disso, o que não tá, eu acho que tem uma carga um pouco mais estressante”. (entrevistada B)

“(...) nos primeiros atendimentos, eu tava muito preocupada, assim, em ouvir tudo e no quê que eu devo perguntar, o quê que ele vai falar que é importante eu lembrar, perguntar sobre o que ele falou... Eu ficava muito preocupada com isso. Muito tensa. Aí o paciente falava um monte de coisa e eu prestava atenção, assim, em tudo que ele falava, escrevia tudo, tentava pensar em cima de tudo (...) Perguntava tudo para ele. Questionava tudo.” (entrevistada D)

“Eu to pensando, assim: qual é a dificuldade para essa pessoa, como é que eu posso ajudar essa pessoa nessa dificuldade. Eu vou tentando montar, assim, o que ela tá me dizendo agora que tem a ver com o que ela já vem falando e aí tento remeter a alguma coisa disso, assim, retornar alguma coisa pra essa pessoa disso. Mas é muito difícil, porque às vezes as pessoas chegam assim com uma historia, você vai se perdendo...” (entrevistada F)

Atenção e influências externas

Uma das variáveis que influenciam o modo de atenção nos atendimentos, e que localizamos nas falas dos entevistados, foi a presença de algum fator externo ao encontro clínico que atravessa a atenção do psicoterapeuta:

“Você tá com uma outra imagem na sua cabeça, coisa que você tem que resolver, ou... ou até mesmo em relação ao cliente, você ficar voltando pra coisas que ele já trouxe, anteriormente em vez de você estar ali naquele momento”. (entrevistada B)

“Quando eu fico mais aérea? (...) quando eu posso, em alguns momentos, me preocupar com alguma coisa de antes ou depois”.

“Você está pensando em alguma coisa antes, ou alguma coisa depois e, naquele momento você perdeu aquele momento”. (entrevistada C)

“ah... eu lembro assim de uma vez, logo no início do estágio, uma vez eu tava na sessão e... que de repente eu percebi ‘nossa, to viajando aqui!’ No meio da sessão eu percebi que eu tava ausente, eu tava pensando em outras coisas... me toquei ali que eu não tinha ouvido nada do que ele falou e fiquei pensando ‘não... o que é que ta acontecendo?’, e voltei ali pro atendimento...” (entrevistada E)

O entrevistado G mostra como que ao longo do tempo de atendimento consegue separar melhor o momento do atendimento das influências externas, como pensamentos e experiências de sua vida pessoal:

“Porque no início, era muita comparação com minha vida, assim, com minhas experiências, e agora isso não acontece mais tanto, eu consigo ficar mais no paciente. Isto independente se é uma pessoa que eu já estou acompanhando ou se é um caso novo, de agora.”

“Então, no início eu tirava muito da minha experiência pessoal de vida pra poder tecer pensamentos, pensar interpretações e tal, e hoje em dia eu tento ver possibilidades independente disso. A minha experiência também aparece ali, eu penso coisas na hora, só que elas não viram o meu alicerce pra buscar outras interpretações junto com a outra pessoa. Ela é só mais uma. Então é isso que tá diferenciando o início pra agora, entendeu?”

Este mesmo entrevistado mostra que uma opinião alheia também pode funcionar como um fator de desatenção:

“É, e eu tenho dificuldade de manter atenção, que toda hora que eu tô com a criança, vem à presença aquilo que a responsável fala. Então eu não consigo me colocar com a criança. Eu tô sempre me colocando com a criança com o atravessamento da responsável na minha cabeça, e isso que acho que prejudica minha atenção. Então é uma coisa que eu não tô conseguindo lidar muito bem ainda.”

Atenção como atributo profissional

Outra variável que parece afetar a atenção dos entrevistados é o fato de que se sentem mais responsáveis por sua escuta devido ao fato de estarem ligados profissionalmente ao cliente. Estar em um âmbito profissional desperta nos entrevistados esta responsabilidade para com o seu trabalho e para com o outro:

“(...) eu sinto que quando eu saio do consultório, depois de um dia de muitos atendimentos, que existiu realmente um esforço de atenção, porque quando a gente está escutando, é, com uma escuta profissional, a gente tá trabalhando, tá exercendo a nossa profissão”. (entrevistada B)

A preocupação com o outro e suas expectativas se mostra em outra fala da entrevistada B, quando esta se refere às ocasiões em que percebe que não estava atenta:

“(...) aí eu faço um esforço pra não deixar que aquilo aconteça de novo. Porque aí eu fico incomodada. Dá até um, um baque, assim, o coração fica acelerado quando você percebe que você deu uma desligada, aí eu procuro retomar, correr atrás. Eu fico muito constrangida. Eu fico constrangida que o cliente perceba isso”.

A entrevistada B aponta também a sensação de ansiedade pela busca da intervenção correta:

“(...) quando você está recém-formado você está muito inseguro, né? Então você tá prestando atenção inclusive em você, em tudo que você fala. (risos) O tempo todo. Você tá muito ali, às vezes você fica até um pouco travado, se quer ter muita certeza de tudo, né? Quer fazer a intervenção mais adequada, né?”

“E — Na clínica você tem que fazer um esforço maior?
P — Não é nem pelo esforço, mas pela responsabilidade, né? Porque, assim, tem um porquê ela tá falando aquilo para você. O que ela fala, e o que ela não fala, vai ter muita importância para a vida dela. E a forma como você vai escutar isso também, né (...) Já no cotidiano não é assim. Você não tem responsabilidade, né, por aquela pessoa”. (entrevistada D)

“Quando eu comecei a receber os pacientes novos, eu senti mais a diferença. De receber alguém... Porque na DPA a pessoa procura a instituição e não você, você é um estagiário da instituição, depois que ela vai saber quem é que vai atender ela [....] E (pausa) no consultório foi completamente diferente. A pessoa pra começar já liga pra você. Alguém te indicou, então já tem uma coisa ali que foi direto pra você enquanto profissional e não pra instituição e aí, bom, isso muda tudo. Eu já acho completamente diferente. É uma outra responsabilidade desde o início.

Não que na DPA não tivesse responsabilidade, claro que tem.” (entrevistada F)


Atenção e corporeidade

Os entrevistados falam do modo como percebem ou potencializam sua atenção através do corpo na clínica.

A corporeidade como existencial é pensada como um caráter fundamental do Dasein e absolutamente inseparável dele, integrando todas as suas relações no mundo, contrariamente à ideia de ‘corpo físico’ como condição de possibilidade de existência (HEIDEGGER, 1989).

O Dasein é corporalmente afetado pelo que há no mundo, todos os estímulos estão disponíveis para o homem por que ele é o “aí” que corporalmente acolhe tudo. É o que podemos notar nas falas dos entrevistados, quando, a partir de sua experiência no momento da terapia, seu corpo responde de determinada forma:

“(...) se eu ficar olhando, ficar acompanhando, escutando, fixando o meu olhar, eu consigo ficar mais, mais atenta”. (entrevistada B)

“Como é que eu me sinto? Eu me sinto... Completamente presente. Presente significa na minha respiração, eh, na minha atenção... plena. Então, eu estou completamente presente somaticamente.”

“Acho que você traz sempre pra onde você ta sentindo, o que você está sentindo no seu corpo, na tua respiração, que área do seu corpo está mais sensível.”

“Então às vezes você ta sentindo que o grupo, o grupo ou você, não tá sintonizando, tem alguma coisa, vamos então, sintonizar, vamos então dar holding para este processo, afinal a gente pode fazer isso e tem maneiras de a gente fazer isso, respirando junto, falando disso, soltando a voz, mexendo com o corpo, pra gente poder estar mais presente. Às vezes, o cliente vai embora. Como é que a gente vê isso? No olhar. A gente vai embora ou ele vai embora.” (entrevistada C)

“Eu quero contar uma coisa que eu faço quando eu percebo que estou dispersa, e que aquilo não faz muito sentido, eu não consigo entender, eu, às vezes estou sentada assim, ouvindo a pessoa, e aí, saco assim, “caramba, não estou conseguindo prestar atenção. Que é que está acontecendo?” Aí eu mudo a postura, alinho a minha coluna, sento em cima dos isquios, né, é… coloco a minha atenção na base do meu corpo, coloco a minha atenção na minha respiração — a pessoa está falando, eu estou ouvindo, mas eu começo a me trabalhar no meu próprio corpo para me centrar em mim mesma e me colocar disponível para ouvir de novo.”

“Ah, mas eu não escuto só. Eu escuto, eu ouço, eu toco… eu trabalho com vários sentidos…”

“E aí eu ia dizer sobre o meu corpo. Foi aquela coisa do bem-estar no meu próprio corpo, afetando a qualidade do meu trabalho.”

“E eu com meu cliente, o meu corpo também responde às emoções, os sentimentos e as sensações do cliente.” (entrevistada H)

A seguir, os entrevistados falam de como o cansaço físico influencia na qualidade de sua atenção:

“Eu sei, por exemplo, que eu prefiro muito mais atender de manhã do que à noite, porque depois das 5 horas da tarde eu preciso de um esforço... das 5 não, das 6 eu preciso de um esforço bem maior pra me manter atenta, é mais fácil fazer isso pela manhã e à tarde, por que eu sou uma pessoa do dia, não sou da noite. À noite eu não tenho um bom foco de atenção.” (entrevista B)

“Quando eu fico mais aérea? Quando eu to cansada, quando eu tô mais cansada...” (entrevista C)

“E… quando passou o mestrado, eu fiz um comentário com ela de que eu estava me sentindo mais disponível, né, mais presente, que o período de mestrado tinha sido um período muito difícil para eu manter a clínica, e o trabalho de pesquisa. Eu acho até porque foi o início. Mas que agora, era mais o cansaço físico que o mental. No início, de começar a trabalhar com pesquisa, tinha muita aprendizagem, tinha muita novidade naquilo tudo (...) E quando você está muito cansada, por mais que você seja é… muito carinhosa, atenta, interessada no outro, né, tem uma limitação energética mesma que existe, que está dentro de nós.” (entrevistada H)

Disponibilidade afetiva e vínculo terapêutico

Percebemos, através das entrevistas, que os psicoterapeutas relacionam a qualidade da atenção na clínica ao vínculo terapêutico que possuem com seus clientes, e também à disponibilidade afetiva na qual se encontram para os atendimentos.

Podemos pensar esta disponibilidade afetiva para o encontro clínico compreendendo-o como possibilidade de cuidado. Sobre a noção heideggeriana de cuidado (Sorge), podemos dizer que este é constitutivo da existência, que é a característica desta que permite que todos os modos de relação se dêem. Isto é, cuidado é condição de possibilidade do ser do homem em relacionar-se com o mundo; é ser-com-o-outro, dado que é uma abertura do existir humano na qual o sentido aparece como desvelamento dos entes que lhe vêm ao encontro. (HEIDEGGER, 1989)

Segundo as falas dos entrevistados, a relação entre atenção e vínculo terapêutico se dá na medida em que o foco de atenção é facilitado pela maior disponibilidade afetiva para atender um cliente. E, ao mesmo tempo, aparece uma dificuldade em se manter atento quando o psicoterapeuta não se sente muito disponível para dado cliente, e/ou quando o vínculo não é forte. Lopes (1999) diz que cuidar é condição necessária ver, prestar atenção. A partir disto, é possível compreender como o vínculo entre psicoterapeuta e cliente pode interferir nos modos de atenção na clínica. Vejamos alguns exemplos abaixo:

“[Entrar em sintonia com o paciente] eu acho que é a melhor hora, acho que é aí que se estabelece realmente o vínculo. É aí que eu sinto que eu posso entender a tua linguagem, eu posso te acompanhar realmente, eu acho que aí que começa o trabalho terapêutico de fato. Porque é como se a gente dissesse: Tô contigo nisso, posso ir no teu ritmo, tentar ir te acompanhando.”

“Existem clientes que estão no seu processo terapêutico, mas eles não se apropriam disso. Então ele não fala dele... É claro que isso você vai devolvendo, você vai... mas mesmo assim é uma constante ou ele fica sempre muito preso a um determinado, a uma determinada questão.

Então isso às vezes é cansativo, pra mim é cansativo.” (entrevistada B)

“Ah, tem clientes que você tem dificuldade de estabelecer vínculo, né? Então, é mais difícil você estar totalmente presente.”

“Eu acho que a presença, acho que tem a ver com uma entrega a uma situação”

“Você precisa entregar um pouco o que você está sentindo.”

“(...) quando eu falo estar totalmente presente é de alguma maneira aceitar totalmente a situação” (entrevistada C)

“Eu acho que... é mais difícil estar atento ao seu paciente quando você não tá muito envolvido com o caso... no caso desse paciente que eu comentei era um caso assim que a gente não tinha um vínculo terapêutico muito forte, um caso que não me tocava muito então... era mais difícil pra eu estar ali prestando atenção nele...”

“... uma paciente que procurou tratamento num momento de muita crise... que chegou pra mim muito fragilizada e então é um caso que me chamava mais, que demandava uma atenção especial... é um caso que minha atenção tava totalmente ali, que eu me coloquei totalmente disponível pra aquele paciente [...] eu acho que quando você tá muito envolvido com o caso essa atenção é quase que natural, seja a atenção durante a sessão, ou seja, a atenção assim como um cuidado... atenção de estar cuidando e trabalhando aquele caso dentro ou fora do atendimento, mesmo distante...” (entrevistada E)

“Acho perigoso dizer isso, mas eu acho que... Eu sinto... Quando eu atendo os meus pacientes... Tem pacientes que eu tenho... Não sei se é mais facilidade, mas que a coisa rola mais tranquila do que outros. Têm outros que pra mim são mais difíceis. Não sei se, não significa que o problema seja dessas pessoas, que essas pessoas sejam mais graves, não. Pra mim, alguma coisa ali...” (entrevistada F)

“ No ano passado, por exemplo, eu não recebi nenhum cliente novo. Quando você está disponível… eu acho que o fato de eu não ter recebido nenhum cliente novo, os clientes são os que já estavam desde o ano anterior, eu acho que é sinal de que alguma coisa em mim não estava tão aberta para receber gente nova.”

“É, para mim essa profissão, ela me trouxe uma possibilidade de intimidade com as pessoas, com cada cliente, com cada história, como ver a emoção daquela pessoa, estar junto, que é rara na vida.” (entrevistada H)

 

Considerações finais


O objetivo da nossa pesquisa foi investigar a especificidade da atenção na clínica. Através das entrevistas encontramos dados que nos ajudam a pensar temas relativos a esta atenção específica. Apesar de termos abordado diretamente o tema do cotidiano em um dos tópicos, esse assunto perpassa toda nossa investigação, já que a comparação é sempre entre a atitude clínica e a cotidiana.

Um dado importante, devido ao fato de termos entrevistado profissionais de diversas abordagens teóricas, foi a implicação com que todos responderam ao questionamento sobre o tema da atenção. Independentemente de suas abordagens, os profissionais tiveram discursos profícuos sobre tal indagação, mostrando ser esse tema algo de muita presença em suas práticas. O pedido de que as respostas fossem dadas baseadas em suas experiências — e não em teorias aprendidas — foi fortemente atendido. Inclusive em teorias que não abordam diretamente o tema da atenção, o profissional depara-se, na prática, com esta questão, sentindo seu atravessamento relevante no processo psicoterapêutico. Ainda em teorias que abordam mais contundentemente o tópico da atenção, percebemos que cada entrevistado encontra aspectos diferentes da mesma no exercício da clínica, sendo o 'método' quase que individual e construído a partir de sua experiência. Dessa forma, a teoria e a formação profissional se mostram com uma necessidade de apropriação, sendo talhada e modificada individualmente.

Alguns entrevistados revelaram que a atenção na clínica não é tão natural quanto no cotidiano. Não designamos 'natural' aqui como algo inato ou instintivo. O que foi presente na fala dos entrevistados e que foi nomeado como tal, é algo referente a uma postura igualmente construída àquela da clínica, mas de forma distraída e desapropriada. Esse modo de atenção atual, desprovido de cuidado, foi, com o tempo, naturalizado por aqueles que o aprenderam; se mostrando ser aparentemente mais fácil de ser exercido do que o modo de atenção clínico aqui discutido. Os entrevistados remetem seu modo 'natural' a um modo sem esforço, esforço este que precisa ser feito durante os atendimentos, requerendo por isso um treinamento ou formação para alcançarem este tipo diferenciado de atenção. Os entrevistados apontam também alguns fatores que podem facilitar ou dificultar a entrada neste modo citado.

Alguns deles falaram deste modo diferenciado como algo sereno, tranquilo. Apesar de ser necessário para a entrada neste um direcionamento específico da atenção — muitas vezes chamado de 'esforço' —, o modo em si é caracterizado pelo deixar-vir, pela espera. Tal atenção é análoga ao que Heidegger chama de pensamento meditativo.

O tempo de experiência profissional é visto tanto como um agente facilitador para a atenção diferenciada, como algo que pode provocar a automatização da atitude clínica. Por isso, é necessária a constante renovação da atenção psicoterapêutica.
Alguns entrevistados falaram sobre a possibilidade de transformar seu modo de atenção cotidiano a partir da experiência clínica. A atitude suspensiva que acontece muitas vezes nesta é tida como um benefício na relação com o outro, sendo atrativo colocá-la em outros cenários. Trazê-la para o cotidiano não o tranformaria em clínica ou faria desaparecer a diferença entre os dois; essa ampliação da atitude é feita respeitando os contextos específicos.

 

Referências


DEPRAZ, N., VARELA, F. & VERMERSCH, P. (2006). A redução à prova da experiência. Arquivos Brasileiros de Psicologia [online]. 58 (1). Disponível em: http://www.psicologia.ufrj.br/abp/ Acesso em: 5 jul. 2009.

HEIDEGGER, M. Ser e Tempo. Parte I. Petrópolis, RJ: Vozes, 1989.

____________. Seminários de Zollikon. Petrópolis, RJ: Vozes, 2001.

____________. Serenidade. Lisboa: Instituto Piaget, 2000.

HUSSERL, E. A Ideia da Fenomenologia. Lisboa: Edições 70, 1986.

___________. Conferências de Paris. Lisboa: Edições 70, 1992.

LOPES, Raul Guimarães. Psicologia da Pessoa e Elucidação Psicopatologica. Porto: Higiomed Edições, 1999.

VERMERSCH, P. L’entretien d’explicitation. Issy-les-Moulineaux: ESF éditeur, 1994.

 

Endereço para correspondência

 

Letícia Reis de Andrade Souza
E-mail: le.reis1@gmail.com

Ihana Ferreira de Almeida Leal
E-mail: le.reis1@gmail.com

Roberto Novaes Sá
E-mail: robertonovaes@psicologia.com.br

Recebido em: 31/07/2010
Aprovado em: 26/10/2010