ARTIGO

 

 

A Gestalt-Terapia diante do amor nas relações afetivas heterossexuais


Gestalt therapy in the face of love in heterosexual love relationships


Margarida Florencio Dantas

 

Endereço para correspondência


RESUMO

De início, estudar o amor pode parecer algo fácil, mas existe uma certa complexidade implícita no entendimento do sentimento em questão visto que os indivíduos sentem o amor de diferentes formas. O amor romântico e o amor erótico são umas das formas de vivenciar o amor em relações heterossexuais, onde o amor romântico representa à serenidade, o respeito, aquilo que é sublime. Enquanto o amor erótico representa as práticas sexuais, ou seja, o que é pudico, impróprio, imoral, cultural e socialmente falando. Tais formas de vivenciar o amor serão cobradas aos indivíduos de acordo com os papéis sociais por eles desempenhados na sociedade em que vivem. O presente artigo expõe um estudo bibliográfico sobre as influencias culturais na vivência amorosa de homens e mulheres e como a abordagem gestáltica entende como a atitude mais saudável a escolha pela maneira que mais se adequa a forma de ser de cada indivíduo.

Palavras-chave: Amor; Homens; Mulheres; Papel social; Gestalt-terapia.


ABSTRACT

Initially, studying love may seem easy, but there is some complexity in understanding the implicit feeling concerned, once the individuals feel the love in different ways. Romantic love and erotic love are some of the ways of experiencing love in the heterosexual relationships, where the romantic love represents the serenity, respect, something that is sublime. However, the erotic love represents the sexual practices, which means what is modest, forbidden, immoral, culturally and socially speaking. Such ways of experiencing the love will be charged to individuals according to the social roles they played in their society. This article presents a bibliographical study on the cultural influences in the experiences of loving men and women and how the Gestalt approach considers as the healthiest choice by the way that best suits the way of being of each individual.

Keywords: Love; Man; Woman; social roles; Gestalt-therapy.


Introdução

De acordo com Ginger (1995), Gestalt é uma palavra alemã, cujo termo mais correto é Gestaltung, palavra esta que, no conceito de Ginger (1995,p. 13), “implica em um processo de dar forma, uma formação”. Fadiman e Frager (1979, p. 129) consideram como sentido geral da palavra Gestalt “uma organização específica de partes que constitui um todo particular” e citam como o principio mais importante, a proposta de que “uma análise das partes não significa uma compreensão do todo, uma vez que o todo representa as interações e interdependência das partes”.

Na concepção de Rodrigues (2000), a gestalt-terapia tem uma visão holística de homem, isso quer dizer que considera o homem como um todo. Nesta ótica holística, o indivíduo é percebido como um conjunto de partes, de acontecimentos. Estas partes integram o presente, momento atual da vida do indivíduo; o passado, momentos que marcaram a vida deste indivíduo, o que proporciona a tal indivíduo aprendizagem a partir da experiência vivida; e o futuro, representado pelas aspirações deste indivíduo.

Entretanto, de acordo com o conceito de holismo para a Gestalt, o todo é diferente da soma de suas partes. O todo é a relação destas partes com cada fenômeno vivenciado pelo indivíduo. O referido autor compreende a interação de partes como a possibilidade de cada indivíduo perceber o fenômeno apresentado, o fato, o acontecimento, de maneira única, ou seja, o resultado da relação entre o fenômeno e as partes que integram o indivíduo será diferente em cada indivíduo.

Para Rodrigues (2000) o indivíduo, na perspectiva gestáltica, é capaz de perceber a saída mais satisfatória para enfrentar as adversidades diárias, tal indivíduo pode escolher como se comportar diante de todas as situações apresentadas ao mesmo.

Em contra partida, Perls (1977) acredita que cada grupo cultural, cada sociedade, cria conceitos e imagens de comportamento social ideal, onde é dever do indivíduo funcionar dentro desta estrutura de referências para obter uma aceitação social. Tal criação de conceitos e imagens de comportamento social ideal impede o indivíduo de agir, diante das situações diárias, da forma que melhor satisfaz este indivíduo. Perls (1977, p. 21) critica a criação acima referida, pois “quanto mais o indivíduo aceita conceitos prontos, menos capaz tal indivíduo é de usar os seus sentidos e intuição”.

Um destes conceitos prontos criados pela sociedade patriarcal para induzir o indivíduo à forma de comportamento social ideal é a maneira como homens e mulheres se relacionam amorosamente na heterossexualidade. De início, estudar o amor pode parecer algo fácil, mas existe uma certa complexidade implícita no entendimento do sentimento em questão. A própria definição do amor é questionável, visto que os indivíduos sentem o amor de diferentes formas.

Costa (1998) define o amor como uma crença que pode ser mantida, alterada, dispensada, melhorada, piorada ou abolida. Esta percepção do amor como uma crença emocional permite a quem ama uma liberdade para perceber e se relacionar com o amor de uma maneira própria, o que possibilita aperfeiçoar as convicções amorosas sem a preocupação de atingir a perfeição em tais convicções, mas com o objetivo de melhorar a qualidade das relações amorosas.

Erick From (apud Cardella, 1994) conceitua o amor não como uma relação com uma pessoa específica, mas como uma atitude, uma orientação de caráter, que determina a relação de alguém para com o mundo como um todo e não para com um ‘objeto’ de amor.

De acordo com Schettini Filho (2000), nas relações interpessoais, a grande conquista é o amor pelo outro e não o amor do outro. Visto que buscar o amor do outro dá idéia de querer possuí-lo, dominá-lo. Já buscar o amor pelo outro, sem que deste outro seja cobrado nada, há um respeito à liberdade do outro.

O autor acima citado afirma que dessa maneira a relação estabelecida entre quem ama e quem é amado é uma relação de afeto, onde quem ama tem sempre presente em si o ser amado, se entrega a este ser conscientemente e respeita a aceitação ou rejeição que tal entrega pode provocar.

Schettini Filho (2000) ressalta que quem ama, mesmo com a constante presença em si do ser amado, continua a ter sua individualidade, o que faz agradar o outro sem desagradar a si próprio. Para tal autor o amor não pede refúgio na fantasia e negação dos defeitos de quem se ama. Ao contrário, o amor possibilita uma aceitação do outro, um estar disponível ao outro.

Cardella (1994), sobre esta disposição ao outro, diz ser o amor a polaridade oposta do egocentrismo e do sofrimento de natureza emocional. E cabe neste estado de disposição ao outro a imposição de limites entre si e o outro. A autora supracitada destaca que estar disponível ao outro e, ao mesmo tempo, impor limites na relação entre si e o outro, implica uma satisfação mútua, tal satisfação está diretamente ligada com as formas de manifestação de amor vivenciadas por quem ama e quem é amado.

Assim, homens e mulheres experimentam constantemente as manifestações de amor em suas relações amorosas, tais manifestações assumem a forma de amor romântico e amor erótico.


O encontro das diferenças na heterossexuailidade

A maneira como homens e mulheres vivenciam as relações amorosas na heterossexualidade recebe forte influência da sociedade patriarcal, influência esta vinda através da educação dada a homens e mulheres e imposta pela sociedade, a qual educava os homens para serem vorazes e ativos no âmbito sexual e as mulheres para serem recatadas e passivas diante das práticas sexuais.

De acordo com Rocha Coutinho (1994), no período colonial, existia uma organização patriarcal dupla com relação aos laços matrimoniais. Ou seja, o casamento servia para fazer alianças política e econômica entre as famílias patriarcais. A autora em questão afirma que em tais casamentos imperavam a hierarquização e desigualdade de gênero, onde as mulheres eram dominadas pelos homens. A sociedade patriarcal funcionava com os homens no domínio público, que englobava a economia, a política e o lazer. A masculinidade estava associada ao poder e a virilidade, esta exercida com concubinas e escravas. Enquanto as mulheres ficavam no domínio privado, responsáveis pela criação dos filhos, gestão da casa e cuidado com doentes e idosos. A mulher de respeito devia ser ingênua e permanecer distante das práticas sexuais, as quais eram destinadas apenas à procriação e realizadas somente depois do casamento.

Boff e Muraro (2000), com relação as diferenças do masculino e do feminino no corpo e na maneira de ser, acreditam que tanto o homem como a mulher projetam, ao seu modo, a existência. Ou seja, têm suas maneiras de construir as relações, de integrar as rupturas existenciais e sociais e de elaborar um horizonte próprio. Assim, os referidos autores defendem que atitudes como trabalho, agressão e transformação são maneiras de ser atribuídas aos homens, mas também encontradas nas mulheres, enquanto cuidado, coexistência e comunhão com a realidade são maneiras de ser atribuídas às mulheres, mas que também fazem parte dos comportamentos masculinos.

Na concepção de Koss (2000), na idade média a maneira de ser do indivíduo era uma resposta aos papeis que este indivíduo desempenhava diante da sociedade vigente e dos familiares. Como o homem era visto com capacidade para o trabalho, foi confiado a ele o papel de provedor e protetor do lar, o qual era responsável pelo sustento da família, cabendo à mulher servi-lo, honrá-lo e merecê-lo. Ela, por sua vez, era responsável pelos cuidados domésticos e criação dos filhos. Nessa forma de estruturação familiar a mulher ocupa um lugar de submissão em relação ao homem, submissão esta que se estendia até o âmbito sexual. Dessa forma, era esperado da mulher que a mesma fosse recatada e contesse seus impulsos sexuais. Já os homens eram incentivados a dar vazão ao desejo sexual. Eles vivenciavam experiências sexuais antes do casamento para provar sua virilidade e era cobrado deles a continuidade da linhagem, ou seja, filhos. Para Koss (2000), tais comportamentos marcam a vivência do amor cortês, o qual era dedicado às damas “pura”, virgens; e do amor profano, vivenciado pelos homens quando estes satisfaziam seus desejos sexuais com as mulheres ditas como promíscuas pela sociedade vigente. Nesse sentido, as práticas sexuais tomaram significados não apenas como parte na construção de uma hierarquia de homens e mulheres, mas como uma interpretação da natureza de cada indivíduo, onde está presente nas relações heterossexuais o amor e o poder.

Strey (2002) afirma que a hierarquia entre homens e mulheres é um rótulo criado por teorias normativas explícitas ou implícitas. Os indivíduos na função de pertencerem a uma determinada raça, classe social ou gênero, perdem a possibilidade de vivenciar a experiência humana em sua plenitude. Segundo a autora supra citada “pessoa” é um ser em relação com outro ser, considerando um ponto de ação, que representa sua intencionalidade e a atuação e um ponto de vista representado pela cognição e percepção. Assim Strey (2002) compreende a existência pessoal como originalmente e continuamente uma existência compartilhada.

De acordo com Anton (2000), a hierarquia existente nas relações entre homens e mulheres representa uma significativa dificuldade na concretização de uma relação de amor. A grande responsável por tal dificuldade é a inferioridade sexual, presente na relação entre homens e mulheres. Essa inferioridade diretamente ligada à dificuldade de construir um bom vínculo na relação dual diminui a responsabilidade e alivia o peso sentidos pelo indivíduo no momento da escolha do sexo oposto, visto que um vínculo harmoniosos é construído na relação entre o casal e não apenas na escolha do cônjuge. Para Anton (2002) a escolha certa do indivíduo diante das relações amorosas não acontece por acaso. A adoção de posturas e as opções feitas ao longo da vida sofrem marcantes influências de fatores internos, dos quais o indivíduo não tem consciência. Cabe, então, ao indivíduo se definir perante os estímulos apresentados e integrar os estímulos de ordem externa com os de ordem interna. A partir da identificação com cada estímulo e da maneira como tais estímulos se apresentam ao indivíduo, este indivíduo escolhe seus meios de se relacionar com os estímulos.

A autora em questão considera a relação de uma pessoa com outra dependentes das relações que ambas estabelecem com seus self. Visto que é a partir da integração entre o organismo, ser humano em sua individualidade, e o meio, sociedade na qual este ser humano está inserido, que homens e mulheres se relacionam e buscam uma satisfação pessoal e uma aceitação social. Entretanto, é necessário que haja um harmonia entre tal satisfação pessoal e aceitação social. É esta harmonia que é buscada por homens e mulheres em suas formas de amar nas relações duais.


A descaracterização do amor romântico e a popularização do amor erótico

De acordo com Giddens (1993), na idade média, época da sociedade patriarcal, os ideais do amor romântico faziam parte mais das vivencias amorosas das mulheres do que das relações amorosas dos homens, embora estes homens tenham sofrido, igualmente às mulheres, as influências de tais ideais de amor. Esta diferença na forma de amar, como o ideal implícito pela sociedade, acompanha os indivíduos até os dias de hoje, em que vivemos uma igualdade no que diz respeito aos direitos de homens e mulheres.

Mas apesar da sociedade continuar cobrando atitudes diferentes dos indivíduos, atitudes estas que se relacionam com seus papéis sociais, a igualdade dos direitos femininos e masculinos marca a transformação das vivências amorosas, o que permite a intimidade do casal, a relação sexual, ser uma negociação transacional de vínculos pessoais independente do casamento.

Entretanto a mudança na maneira de agir causa ainda um certo desconforto tanto para homens como para mulheres. Isso porque os papéis sociais de provedor e protetor do lar para o homem e cuidadora da casa e dos filhos para a mulher continuam fortemente introjetados. A mulher aparece mais segura e decida com relação às práticas sexuais e ao mesmo tempo insegura sobre o que o homem pensa dessa atitude moderna, já o homem aparece mais receptivo a essa segurança feminina e igualmente inseguro sobre a fidelidade e lealdade dessa mulher. Mas mesmo com as inseguranças, a valorização da vida sexual pelo casal moderno centraliza as relações amorosas de homens e mulheres no prazer e desconstroe a relação baseada no poder e nas vantagens, representadas pelos dotes da mulher e pelo sobrenome do homem.

Para Giddens (1993) o amor romântico ou confluente é considerado “eterno”, pois, do ponto de vista social, não existem pendências em tais relacionamentos. O casal se completa e atinge o equilíbrio. Em contrapartida não existe uma intimidade entre o casal que possibilite a ampliação do conhecimento mútuo e profundo sobre o outro. Já o amor erótico considera a igualdade na doação e no recebimento emocional, a relação é desejada e não obrigada, prometida. O amor erótico desconstroe as categorias “para sempre” e “único” dos ideais do amor romântico e se desenvolve até o ponto em que se desenvolve a intimidade, até o ponto em que cada parceiro está disposto e preparado para manifestar preocupações e necessidades em relação ao outro e está vulnerável a este outro na mesma medida. Giddens (1993) considera o amor erótico essencial para o relacionamento puro, uma vez que o que mantém este relacionamento puro é a aceitação, por parte de cada um dos parceiros, de que cada um destes parceiros obtenha da relação benefícios suficientes que justifique a continuação desta relação.

Cardella (1994), sobre o fato de o amor erótico objetar apenas o bem estar dos parceiros evolvidos na relação amorosa, caracteriza este amor erótico como:

"Uma fusão de dois seres integrados, maduros e independentes, que não se unem com o propósito de satisfazer apenas necessidades e desejos, nem de serem amados, mas sim, de amar e compartilhar o amor que sentem." (p.28)

Com tal afirmação, a referida autora apresenta o amor erótico como um amor que permite e apóia o crescimento de ambos os parceiros envolvidos na relação, o que possibilita tanto ao homem quanto à mulher a realização como indivíduo singular.

De acordo com Cardella (1994), esta realização como indivíduo singular é possível no amor erótico quando os indivíduos, homem e mulher, realizam o processo de integração das polaridades. Tal processo ocorre quando os indivíduos integram à sua personalidade os aspectos da personalidade do sexo oposto já existentes, porém, projetados.

Assim, o homem se torna capaz de vivenciar os aspectos positivos que projetava na mulher, como a aceitação e expressão dos sentimentos e das necessidades, a receptividade, sensibilidade, afetividade, vulnerabilidade, suavidade, intuição, compreensão interiorização. Enquanto a mulher se torna capaz de experimentar seus aspectos positivos, os quais projetava no homem, como independência, atividade, estabelecimento de metas, aspirações, segurança, racionalidade, concentração e determinação.

Dessa forma a relação dual se torna compartilhada pelos indivíduos inseridos nela e bem mais prazerosa para tais indivíduos.

Para Cardella (1994) o amor romântico está relacionado com a idealização do ser amado, esta idealização mascara a verdadeira identidade do ser idealizado, exclui a sinceridade e a aceitação do ser amado, como ele é, pelo outro. Tal idealização constrói uma imagem perfeita, porém falsa, do ser amado. Em contrapartida, no amor erótico a sinceridade e aceitação do ser amado sem máscaras é que transforma a relação amorosa em um relacionamento puro, seguro, intenso.

Cardella (1994) afirma que o amor romântico representava, na época da idade média, a paixão entre o casal, enquanto o amor erótico visava apenas o sexo. Entretanto, é no amor erótico, através da capacidade de entrega ao outro, que o verdadeiro sentimento de paixão é sentido pelos parceiros nas relações amorosas heterossexuais. No amor erótico tal paixão é sentida tanto pela mulher quanto pelo homem, pois, há um envolvimento significativo entre o casal que permite a fortificação da relação e dos sentimentos presentes nesta relação. Já no amor romântico, a paixão é um sentimento voltado para a mulher, visto que é esta mulher que demonstra algum sentimento na relação amorosa do casal, enquanto o homem se preocupa em proteger e prover o sustento da família.


A Gestalt-Terapia e as relações amorosas entre homens e mulheres

A análise deste estudo sobre as relações amorosas entre homens e mulheres teve por base a Gestalt-terapia, abordagem da psicologia da linha fenomenológica. Para Rodrigues (2000) a Gestalt-terapia entende o ser humano como um ser individualizado, capaz de encontrar a saída mais satisfatória para as dificuldades que são apresentadas a este indivíduo, e não existem saídas certas e/ou erradas, visto que depende de como a dificuldade se apresenta ao indivíduo e de como este indivíduo reage a tal dificuldade. Ou seja, o indivíduo, chamado pelo referido autor de percebedor, deposita na situação apresentada ao mesmo, chamada de fenômeno pelo autor em questão, seus conteúdos pessoais, o que possibilita ao fenômeno se apresentar de uma maneira única a cada indivíduo e cada indivíduo se apresentar de uma maneira única a cada fenômeno.

Assim, Rodrigues (2000) afirma que quando o indivíduo, o percebedor, descreve algo que observa, não é exatamente o objeto observado que está sendo descrito, mas sim a relação que este percebedor estabeleceu com o objeto observado.

Ao relacionar o conteúdo acima exposto com as formas de vivenciar as relações amorosas heterossexuais, se percebe que, tanto na idade média quanto nos tempos atuais, existem pessoas adeptas do amor romântico e do amor erótico. Isso significa que os indivíduos escolhem a maneira que mais os satisfaz para se relacionar com o sexo oposto. Entretanto, o indivíduo pode se perceber em conflito entre os valores patriarcais, fortemente introjetados, e o desejo de buscar a satisfação das necessidades sexuais e ir de encontro aos valores acima referidos.

De acordo com os Pôster (2001), no momento em que se instala o conflito supracitado o indivíduo se percebe insatisfeito. Os autores em questão afirmam que, diante de tal insatisfação, o gestalt-terapeuta faz uso de experiências que aumente o senso de “eu” do indivíduo, que cristaliza suas introjeções, com o objetivo de desfazer tais introjeções. Ou seja, o gestalt-terapeuta permite aos homens e mulheres a ampliação do auoconhecimento por parte destes seres humanos, o que possibilita a estes seres diferenciar os valores patriarcais introjetados das necessidades sexuais sentidas pelos indivíduos e facilita a satisfação das necessidades dos mesmos.

Uma possibilidade de intervenção nesse caso seria o gestalt-terapeuta pedir que o indivíduo forme frases pra si mesmo e para o terapeuta, inicialmente com o pronome eu, e depois com o pronome você, tal intervenção visa fazer com que o indivíduo entre em contato com o que são conteúdos seus e o que são conteúdos introjetados.

Os Polster (2001) afirmam que ao desfazer a introjeção, o gestalt-terapeuta deve objetivar que o indivíduo estabeleça dentro de si um senso de escolhas e estabeleça o poder, que tal indivíduo tem, para diferenciar os conteúdos que fazem parte da personalidade deste indivíduo e os conteúdos que são introjetados por tais indivíduos. Assim, o indivíduo é capaz de reagir, de maneira única e satisfatória, a um determinado fenômeno.

Kiyan (2001) explica que a gestalt-terapia compreende o homem e a mulher como seres integrados e organizados. Tal integração e organização permitem que qualquer coisa que ocorra com uma parte destes indivíduos afete o todo. Entretanto, este homem e esta mulher integrados e organizados possuem necessidades a serem satisfeitas a todo momento, necessidades estas que podem ser fisiológicas ou psíquicas. Quando o indivíduo identifica uma dessas necessidades e tenta satisfazê-las, tal indivíduo está em busca da auto-regulação organísmica, ou seja, procura readquirir o equilíbrio, fisiológico e psíquico, que tinha antes da necessidade surgir.

De acordo com Kiyan (2001), esta necessidade é a figura que emerge, é o que chama a atenção do indivíduo para uma solução num dado momento. E o fundo é todo o resto do indivíduo que não demonstra necessidade de atenção. No momento em que a necessidade é satisfeita, passa a ser fundo e dar lugar a outra necessidade que vai emergir. Kiyan (2001) classifica o processo estabelecido na dinâmica figura/fundo, para obter satisfação de necessidades, de ciclo de contato. E denomina ajustamento criativo as maneiras possíveis entre o indivíduo e o meio de satisfazer as necessidades emergentes.

Para os Ginger (1995) tal ciclo de contato acontece na fronteira de contato entre o indivíduo e o meio. Entretanto, os autores supracitados afirmam que este ciclo de contato pode ser interrompido devido ao aparecimento de resistências em diversos momentos do ciclo. Tais resistências impedem o indivíduo de responder as suas necessidades da maneira mais satisfatória para o mesmo, pelo fato de possibilitar o ajustamento criativo do indivíduo diante da satisfação das necessidades de tal indivíduo.

Os Polster (2001, p. 183) ressaltam que é “no momento em que o poder da necessidade e a força da resistência são aproximadamente iguais, que o impasse acontece”. Ou seja, quando o indivíduo está em conflito entre a satisfação de uma necessidade e uma resistência que impede tal satisfação. Nesse momento de impasse, o papel do gestalt-terapeuta é possibilitar ao indivíduo conflituoso o contato com o conflito, através da awareness, a qual, de acordo com Rodrigues (2000), tem como objetivo fazer o indivíduo descobrir o mecanismo pelo qual tal indivíduo aliena parte do seu self, o que evita a consciência deste indivíduo sobre si e o meio. Na concepção dos Ginger (1995), um indivíduo saudável é aquele que se ajusta criativamente para satisfazer suas necessidades.

Nas relações amorosas, o ciclo de contato, realizado pelo indivíduo, acontece quando este indivíduo, por exemplo, se percebe com necessidades sexuais e satisfaz tais necessidades do modo que considere melhor, o qual se ajusta criativamente com a necessidade emergente e fica auto-regulado, equilibrado consigo mesmo. Entretanto, este indivíduo pode resistir a satisfazer suas necessidades sexuais e passar a vivenciar um impasse entre a satisfação das necessidades sexuais e a resistência em obter tal satisfação.

Neste momento, tal indivíduo pode fazer uso de mecanismos de defesa, os quais eliminam o impasse e possibilita a satisfação. Um mecanismo de defesa possível para satisfazer a necessidade sexual é a retroflexão, a qual é definida pelos Polster (2001) como a ação onde o indivíduo faz com ele mesmo aquilo que gostaria de fazer com o outro. Assim, este indivíduo pode se masturbar, para satisfazer as suas necessidades sexuais e respeitar, ao mesmo tempo, a resistência em obter esta satisfação através de uma relação a dois.

Tal maneira de lidar com o conflito só não é considerada uma saída saudável se for um comportamento cristalizado. No caso de tal comportamento se tornar cristalizado, ou seja, a única saída, na concepção do indivíduo, para a resolução do conflito, o gestalt-terapeuta deve estar atento e inerver com o objetivo de fazer com que o sujeito que cristalizou o comportamento entre em contato com esta cristalização e tenha uma awareness, a qual é uma ampliação da consciência, que possibilita ao indivíduo a visualização de outros meios que permitem a satisfação das necessidades deste indivíduo, isto é, o ajustamento criativo.

Este indivíduo, no momento que satisfaz suas necessidades, desloca estas necessidades, que estão como figura, para o fundo. Assim, Kiyan (2001) afirma que as necessidades, sentidas pelo indivíduo, e não satisfeitas, passam a ser situações inacabadas, as quais, de acordo com os Ginger (1995, p.125), são “dificuldades de ajustamento entre o indivíduo e seu meio”. Estas situações inacabadas são transferidas para o fundo, mas, por estarem inacabadas, tais situações voltarão sempre, na tentativa de serem resolvidas. E como cada indivíduo reage de maneira única a um fenômeno, os mecanismos de defesa utilizados dependem do funcionamento do self do indivíduo. Por exemplo, as mulheres solteiras das sociedades patriarcais, por terem obrigação, perante a sociedade vigente, de conter os impulsos sociais, liberavam as energias não gastas em trabalhos domésticos, quando ajudavam as mães com os afazeres domésticos e criação dos irmãos e irmãs menores, mas tais mulheres continuavam insatisfeitas, pois, a situação continuava inacabada até o momento em que tais mulheres permitiam que os impulsos sexuais retomassem seu curso e alcançassem a inteireza. Ou seja, de acordo com os Polster (2001), a satisfação só ocorre quando o indivíduo consegue satisfazer a necessidade que está como figura e transformar esta necessidade em fundo.

Para tanto, tal indivíduo, com a ajuda do gestalt-terapeuta, precisa ter consciência da necessidade emergente e da resistência que impede a satisfação de tal necessidade, isto é, o indivíduo precisa entrar em contato consigo mesmo e ter uma awareness. Entretanto, por o gestalt-terapeuta trabalhar na linha fenomenológico-existencial, as intervenções acima citadas são possibilidades que podem emergir do encontro cliente-terapeuta, nada é uma obrigatoriedade de acontecimentos.

O processo estabelecido na dinâmica figura/fundo pode ser relacionado com a teoria paradoxal da mudança, teoria esta que se inclui nos conceitos da gestalt-terapia. Na concepção de Beisser (in Fagan e Shepherd 1980, p.110), a teoria paradoxal da mudança consiste no fato de que “a mudança ocorre quando a pessoa se torna o que é, não quando tenta converter-se no que não é”. O autor acima referido acredita que tal mudança não acontece de forma coerciva, e sim quando o indivíduo, que muda, dedica tempo e esforço para ser o que é e não o que os outros querem que este indivíduo seja.

De acordo com Fagan e Shepherd (1980), o conflito, em que se encontra o indivíduo que busca mudanças, envolve o que tal indivíduo “deveria ser” e o que este indivíduo pensa que “é”. Neste momento, o gestalt-terapeuta age não de forma a transformar o indivíduo, pois o profissional acima referido rejeita o papel de “transformador”, mas encoraja tal indivíduo a ser o que é, visto que, o gestalt-terapeuta acredita que a mudança ocorre quando o indivíduo abandona o que gostaria de ser e tenta assumir o que é.

Assim, na concepção de Fagan e Shepherd (1980), o gestalt-terapeuta faz com que o indivíduo conflituoso entre em contato com sua maneira de ser e identifique os fragmentos alienados, o que permite ao indivíduo integrar tais fragmentos alienados à sua personalidade e identificar estes fragmentos alienados como material introjetado, o que permite a este indivíduo ignorar o que gostaria de ser (para agradar a sociedade) e ser como é. Uma possibilidade de intervenção nesse caso seria o gestalt-terapeuta pedir para o indivíduo investir totalmente nos seus papeis, o que tal indivíduo gostaria de ser e como o mesmo é, um de cada vez. Por tais papeis representarem conflitos para o indivíduo, este mudará de papéis com rapidez, nesse momento o gestalt-terapeuta pede que o indivíduo seja o que é neste momento e possibilita a tal indivíduo uma experienciação de ser como é.

Ao relacionar a teoria paradoxal da mudança com as vivências amorosas heterossexual de homens e mulheres, se percebe o quanto estes indivíduos agem da maneira que gostariam de ser e não da maneira que são, por buscarem uma aceitação social. Se nas sociedades modernas atuais existem indivíduos que abdicam a maneira que são, por valorizarem a maneira que gostariam de ser em prol do respeito social, nas sociedades patriarcais, tais comportamentos eram exigidos e não uma opção.

Cardella (1994) ressalta que o amor erótico é, atualmente, mais vivenciado do que o amor romântico por possibilitar aos parceiros a liberdade de buscar a própria satisfação e de poder ser quem realmente é. Diante desta liberdade, os indivíduos se permitem compartilhar o amor que sentem pelo outro, numa relação heterossexual, sem medo, vergonha ou pudor.

Diante do que foi exposto é possível uma relação da Gestalt-Terapia com a forma de amor erótica, visto que esta possibilita aos indivíduos envolvidos maior liberdade na relação, enquanto o amor romântico é uma atitude cobrada da sociedade, repleta de obrigações, deveres e pouco prazer nas relações, no sentido de plenitude. Entretanto, o estudo possibilitou concluir que mesmo o amor romântico, se for vivenciado de forma assumida e satisfatória, pode ser muito prazeroso para o casal. O ideal é estar de acordo com as próprias convicções e não se deixar levar por imposições sociais e a partir disso viver livremente o amor, seja de maneira romântica e/ou erótica.

 


REFERENCIAS

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Endereço para correspondência

Margarida Florencio Dantas

E-mail: margamdantas@hotmail.com


Recebido em: 09/06/2010
Aprovado em: 17/06/2011