ARTIGO

As relações amorosas à luz dos mecanismos neuróticos

Loving relations in the light of the neurotic mechanisms

Isabela Defilippo Hansen

 

Endereço para correspondência


Resumo

Este trabalho analisa, sob a lente da Gestalt-Terapia, como os Mecanismos Neuróticos colocados por Perls em seu livro “A Abordagem Gestáltica e Testemunha Ocular da Terapia” (1988) estão presentes nas relações amorosas. Procura descrever essas resistências e sugere possibilidades de intervenções clínicas. Não vai contra esses mecanismos, mas defende que possamos identificá-los e ajudar nossos clientes a fazer o mesmo, os fazendo entrar em contato, se conscientizar, analisando o que é produtivo ou não nesta forma de estar na relação. Dar a chance de descobrir outras formas de relação com o ser amado. Analisa como estes mecanismos funcionam na pessoa e o quanto e como são utilizados em suas relações amorosas. Ou seja, a lente proposta é a lente da relação amorosa. Não procura culpados na relação, pois se um faz uso de um ou mais dos mecanismos é porque o outro favorece de algum jeito. Conclui que, mesmo sendo uma defesa neurótica, esses mecanismos podem igualmente ser aliados e não apenas vilões. O olhar deste trabalho é um olhar do todo. E o todo, neste caso, é a relação amorosa.

Palavras-chave: Mecanismos de defesa; Introjeção; Projeção; Retroflexão; Deflexão; Confluência; Relacionamento amoroso.


Abstract

This study aims to analyze how Neurotic Mechanisms are present in loving relations under the lenses of Gestalt therapy, as in the book The Gestalt Approach and Eye Witness to Therapy, by Perls (1988). Far beyond just appreciating the mechanisms bonus and onus, this study intend to describe those resistances and open possibilities of clinical interventions. It was concluded that, even being a neurotic defense, those mechanisms can also be allies, not only villains. It is not meant to fight against those mechanisms, but identify them and help our patients to do the same, helping them get in touch with the problem, become conscious of it, analyze what is productive or not in this way of being in a relationship. Believing that human being is always on mutation, give our patients the opportunity to realize other ways of having a relationship with the beloved. Our purpose is to analyze how neurotic mechanisms operate on people, and how and how much they are effectively used in their loving relations. That means, the proposed lens is the lens of the loving relation, because it is possible to have relations with others whom have no relations with us. And there is also no intention to find who is guilty in the relationship, since one can make use of one or more of the mechanisms because the other favors it in some way. The point of view of this study is view of it all. And it all, in this case, is the loving relation.

Keywords: Defense mechanisms; Introjections; Projection; Retroflection; Deflection; Confluence; Loving relation.


Introdução

“O medo de ferir, o medo de ser rejeitado está na origem de muitos silêncios do casal”
(Salomé, 1992)

Objetiva-se tratar aqui as definições, análises e como os mecanismos neuróticos estão presentes nos vínculos amorosos. Entretanto, antes abordar-se-á estes mecanismos em um contexto geral e as várias maneiras de se fazer as escolhas amorosas.

Tem-se como propósito analisar e pensar estas resistências como mais uma ferramenta de ajuda no processo daqueles que assistimos. Para embasar este estudo foi realizado um levantamento bibliográfico.

Utilizando a visão gestáltica, é sabido que o ser humano não deve ser visto como alguém a ser qualificado com este ou aquele diagnóstico, como uma máquina que é produzida em série e vista como todas as outras. Assim, não se quer neste trabalho ter uma postura reducionista, pensando tais mecanismos como rótulos a serem colocados em nossos clientes e sentenciá-los como normais ou doentes.

Perls (1988) descreveu quatro maneiras de resistir e desviar sua forma de estar no mundo: 1) Introjeção; 2) Projeção; 3) Retroflexão; e 4) Confluência. Neste trabalho foi dada preferência a estes considerados por Perls e mais um, a Deflexão, descrito pelos Polsters (1979) por terem suas definições mais consistentes na bibliografia utilizada.

Como gestalt-terapeuta, acredito no ser em relação e nada mais proximal que um relacionamento amoroso , e é nesta interação que cada indivíduo se mostra, revelando como age também nos seus outros contatos além do vínculo amoroso.

Nas relações amorosas, quando há o uso dos mecanismos neuróticos, se pode, geralmente, perceber que não está havendo a capacidade dos dois ou de um deles de encontrar o equilíbrio saudável entre o casal e a individualidade de cada um. E qualquer confusão entre a fronteira de contato da relação com a fronteira de suas individualidades pode sugerir a produção da neurose e/ou a evidência de um dos mecanismos de defesa, pois, muitas vezes, para serem funcionais, os limites destas fronteiras devem ser fluidas e flexíveis.

A vida compartilhada própria das pessoas que se amam é construída mediante nova linguagem, novas regras que definem a peculiaridade do casal. Na vida conjugal existe um ritmo de autonomia e dependência mútua que, mesmo sem comunicação explícita, favorece o “viver com” de um lado, e a vivência da individualidade do outro. Num momento, surge o indivíduo com suas questões pessoais, únicas, particulares; noutro, surge o par, e desaparecem as fronteiras entre o “eu” e o “não-eu”. Uma relação criativa inclui, por conseguinte, movimento. Pelo e por amor, expande-se, transcende-se, cria-se, transforma-se e retorna-se renovado; o criar, assim, é prazer que liberta e expande as fronteiras do eu. (DA SILVEIRA, 2007, p. 203)

Por conseguinte, este casal, em geral, entra em desequilíbrio quando, concomitantemente, um indivíduo deste par e a própria relação vivenciam necessidades diferentes. Portanto, quando há uma demanda pessoal de um deles, onde há uma ruptura nos encaixes da relação, se tem a chance de começar o conflito. Consequentemente, podem buscar apoio terapêutico que, por vezes, não objetiva (o casal ou um dos parceiros) acabar com o mecanismo utilizado, mas voltar a fazê-lo dar certo.

Delimitado por uma fronteira, quando duas pessoas se casam, constroem uma nova totalidade. A fronteira do “nós” ou da conjugalidade estabelecerá os limites do que é vivido em comum [...] O terapeuta favorece com seus recursos, que também devem ser criativos, a eclosão da criatividade no par. Para isso há que pôr em evidência as evitações de temas conflituosos, os bloqueios, as resistências, chegar às situações inacabadas e encontrar, quando possível, novas formas de contato. (Ibid, p. 201 e 202)

Serão propostos alguns caminhos para trabalhar com o cliente , mas não se deseja aqui fazer um manual, ou seja, um livro de receitas para diagnosticar e melhor trabalhar em nossos consultórios, pois tenho a clareza que meu foco é o cliente que, por sua vez, é alguém ímpar e não uma máquina como qualquer outra a ser consertada e pronto.

A terapia pode ajudar os casais a aprender a viver em meio a esses conflitos e crises e a usar a criatividade para resolver problemas e crescer como casais e como pessoas. Caso optem pela separação terão a possibilidade de promover encontros mais sadios e enriquecedores. Na terapia, trava-se uma luta complexa em que a tolerância à angústia e a presença da dor abrem a possibilidade da dupla refletir, experimentar novas regras e estabelecer novas formas de contato. Em meio a conflitos e crises, o trabalho terapêutico favorece uma maior clareza entre o que é do âmbito pessoal e o que é âmbito conjugal. (SILVEIRA, 2000, p. 13)

 

E por falar em mecanismos neuróticos...

Entre a dor e o nada, o que você escolhe?
Mário Quintana

No livro Ego, Fome e Agressão, 1942, Perls ainda não utiliza a expressão “Mecanismos Neuróticos”, mas usa o termo “inibições essenciais” para expor algumas formas de funcionamento do ego: repressão, introjeção, projeção e retroflexão. (D’ACRI, LIMA e ORGLER, 2007, p. 147).

Mais tarde, em 1951, Perls, Hefferline e Goodman chamam de “caracteres neuróticos” os seguintes mecanismos: confluência, introjeção, projeção, retroflexão e egotismo. (PERLS, HEFFERLINE e GOODMAN, 1997, p. 252)

Em 1973, no livro A Abordagem Gestática e Testemunha Ocular da Terapia, Perls faz a apreciação destes mecanismos, excetuando o egotismo. Mas em 1979 Miriam e Erving Polster adicionam mais um, a Deflexão. E neste trabalho farei uso destes cinco mecanismos para pensar as relações amorosas.

Ao introjetar, a pessoa toma para si, sem a menor triagem, o que está no mundo. Ao projetar, joga no mundo algo que lhe é insuportável. Ao retrofletir, faz consigo aquilo que gostaria de fazer com o outro. Deflete quando sai do contato de inúmeras formas com aquilo que lhe mobiliza de alguma forma. E, ao confluir, não estabelece diferenciação entre si e o outro. Perls (1973) mostra os lados positivos destes mecanismos neuróticos:

Projeção: Habilidade de separar uma parte do ‘self’ de outra ou de dar um salto de empatia no universo da outra pessoa, enquanto imagina que isto pertence a ele.
Introjeção: Capacidade de prover uma nova idéia, capacidade para memorizar.
Confluência: Capacidade de separar as diferenças e existir cooperativamente, viver em grupo, dar e fazer sexo.
Deflexão: Capacidade de ignorar provocação, de escolher as próprias batalhas, de adiar algum conflito negado.
Retroflexão: Capacidade de cuidar do outro. (RIBEIRO, 1994, P. 135)

Vale lembrar que mais um mecanismo foi pensado por Sylvia Crocker: a Proflexão. Sendo este uma união da retroflexão e projeção, pois se faz com o outro aquilo que gostaria que este fizesse consigo. Há, neste caso, uma manipulação do outro para que seja aquilo que se deseja, tendo, como consequência, algo em troca. (Ribeiro, 1995 apud D’ACRI, LIMA e ORGLER, 2007, p. 149)

Ribeiro (Ibid, p. 149) refere-se ainda a mais dois mecanismos: Fixação, como uma forma de apego excessivo a algo ou alguém para “evitar surpresa diante do novo e da realidade, se fixando em coisas e emoções” e Dessensibilização, que é um modo frio, sem cor, de lidar com as situações, tendo pouca motivação para as coisas. Mas estes foram pouco citados posteriormente.

Entendem-se Mecanismos Neuróticos como formas de resistências. E resistência é uma “ferramenta” utilizada para proteção de qualquer força opressora que atrapalharia o processo de autoregulação do indivíduo. Tal comportamento é uma forma de se ajustar e se proteger de algo que julga ser doloroso. Neste sentido, aponta Yontef (1981):

1 – revela um fato, um dado, constata um fenômeno, sem nenhuma conotação moral; 2 – não cria diferenças entre objeto e sujeito, mas revela um processo entre ambos; 3 – está plenamente dentro da Teoria do Campo, porque revela a relação de subsistemas em ação. (Yontef, 1981 apud RIBEIRO, 1994, p. 118)

Logo, são formas de resistir ao que é de fato, de se ajustar e conviver melhor com o que considera suas mazelas, de controlar o que percebe, ou não, difícil de lidar.

É válido observar o que traz Ribeiro (1994):

Tanto no construir a resistência quanto no desfazê-la, a pessoa vai adquirindo posturas que antes não possuía. Isso não significa que vai deixando de ser ela, mas, antes, que vai se tornando nela, ao seu modo. Não se pode tirar a resistência de alguém pensando que ela recuperará sua natureza, seu ‘self’ primitivo e original. Ninguém retorna exatamente onde já esteve alguma vez. Somos totalmente novos a cada momento que passa. (Ibid, p. 132):

É legítimo ratificar que fazer uso de resistências é inerente ao ser humano. Como diz Ribeiro (1994, p. 118)): “A resistência biológica e mental é um processo natural do corpo saudável, pois a morte só ocorre quando cessam as resistências. Resistência diz respeito à vida e não à morte.”

Quando pensamos no ciclo de experiência ou de contato, dizemos que o resistente pára, bloqueia seu movimento em algum ponto do ciclo. Quando
a resistência é neurótica, ocorre um bloqueio, mas, se ela é parte integrante da personalidade, o ato de resistir eficazmente poderá ser, exatamente, o repouso, e finalização do ciclo de experiência, porque será através da resistência que o organismo encontrará seu equilíbrio provisório. Nesse caso, resistir é algo como comer, dormir, é apenas mais um processo de equilibração organísmica. Assim como dormir demais, comer demais, podem fazer mal a esse equilíbrio, também resistir demais provoca desequilíbrio. (Ibid, p. 119)

Então, resistência não precisa ser vista como uma doença que deve ser combatida. É uma forma de contato que pode ser sadia ou não. A grande questão neste caso é sabermos como e para quê se resiste, além de que forma atrapalha a vida da pessoa naquele determinado momento. Pois, avaliar como o indivíduo resiste naquele instante é poder compreender como este entende seu mundo e a si mesmo. Ou seja, resistência é um processo e não doença. Entretanto, mesmo adquirindo equilíbrio ao fazer uso da resistência, de algum dos mecanismos neuróticos, é sabido que é uma pseudo-harmonia por vezes, já que resistir, de certa forma, é negar algo.

Como escreveram Erving e Miriam Polster (1979):

Todo mundo dirige a sua energia para ter um bom contato com o seu ambiente ou para resistir a ele. Se a pessoa sente que seus esforços serão bem sucedidos – que ela é potente e que seu ambiente é capaz de lhe devolver algo em troca – ela confrontará esse ambiente com vontade, confiança e até mesmo com coragem. Mas se seus esforços não lhe dão aquilo que quer, ela fica paralisada com toda uma lista de sentimentos desagradáveis: raiva, confusão, futilidade, ressentimento, impotência, desapontamento, e assim por diante. Ela deve então desviar de inúmeras formas a sua energia, e todas essas formas reduzem as possibilidades de uma interação plena com o seu meio ambiente. (POLSTER e POLSTER,1979, p. 78)

Ou seja, a pessoa tem no mínimo duas possibilidades: fugir ou enfrentar aquilo que considera desafiador.

Não seria coerente como gestalt-terapeuta ficar buscando no cliente seu diagnóstico e trabalharmos única e exclusivamente com este dado. Cada ser humano é único, e ter uma postura que o simplifica em um rótulo seria leviano com aquilo que acredito e sigo que é a Getalt-Terapia. Portanto, perceber que mecanismo está sendo utilizado, onde seu processo foi interrompido, é só mais um dos inúmeros dados que o cliente traz.

Se precisar usar seus olhos e não o fizer porque não é interessante nem seguro usá-los, alienará agora sua cegueira e se identificará com a sua visão [...] mas isso não é porque a cegueira e a paralisia não funcionam mais: seu sentido mudou de técnica para obstáculo. (PERLS, HEFFERLINE e GOODMAN, 1997, p. 251)

 

Quando a gente ama...

“Se você faz o que sempre fez, conseguirá o que sempre conseguiu.”
Anônimo

A relação de casal é tão genuína a ponto de ser um dos nortes do nosso processo psíquico. Desde a adolescência esta relação torna-se uma possibilidade. Não existe quem consiga fugir da alternativa de fazer parte de um casal, mesmo aquele que renuncie a esta escolha, tendo outras prioridades e quereres.

Não é à toa que escolhemos nossos parceiros. Sorte? Acaso? Raciocino lógico? Todas as alternativas anteriores? Não sei!

Tendo a acreditar que muitas vezes não nos atraímos, pelo menos em um primeiro momento, pela pessoa, mas pelo ideal que temos dela, com nossas introjeções, projeções, e qualquer outro ganho que alcançaríamos com este vínculo.

A escolha amorosa depende de um certo número de desejos conscientes ou não, onde o parceiro escolhido pode servir para colaborar com os mecanismos neuróticos. Isto é, para que a escolha se faça, geralmente, é necessário que afinidades se estabeleçam em função dos desejos e das defesas conhecidas ou não. Cada um, portanto, de modo geral, procurará escolher em função daquilo que deseja ou tema.

Pode-se ver o casal como uma equipe, onde cada um tem sua função, seja ela esclarecida ou não, para o bom funcionamento da relação. São funções que se encaixam bem e, por isso, escolher o parceiro seria uma tarefa e tanto, pois a equipe tem que ter êxito. Ou seja, se compartilha de uma mesma intenção, que se desdobra em múltiplas ações diferentes, articuladas por um único propósito: fazer a relação a dois dar certo. Fazendo valer a sincronização perfeita, tendo cada um a sua especialidade, ou melhor, a sua forma de lidar com o mundo. Se, por exemplo, sou alguém que faz uso da introjeção, teria como bom parceiro de equipe um projetivo.

E, na medida que se conhecem mais, cada um saberá melhor como valer-se tanto das habilidades próprias quanto daquelas do companheiro.

Inúmeros são os motivos para que a escolha seja feita: reeditar a relação de seus pais ou fugir dela realizando o oposto, satisfazer sua vida sexual, seus valores, etc. E mais, como já mencionados, manter, talvez, seu mecanismo neurótico. Esta escolha pode permear-se do ideal de parceiro, da esperança de satisfação de suas necessidades, ou para livrar-se de sua forma de vida atual e reescrever algo mais feliz. Ou também para suprir as expectativas familiares e/ou sociais, dentre outros motivos tão ou mais cabíveis. Lógico, nem sempre são escolhas racionais e conscientes. E, como destaca tão bem DA SILVEIRA (2000):

Essa maneira de escolher reflete a história de vida e familiar da pessoa, bem como as formas de lidar com união e separação que propiciam maior ou menor capacidade de diferenciação e decorrente elaboração da perda do objeto sonhado. Os ideais, os julgamentos de valor, as metas implícitas e explícitas, as aspirações sociais, as formas diferentes de satisfação das necessidades de amor e intimidade, os papéis que cada pessoa viveu, os papéis esperados pelos pais e por fim a forma como tudo isso é articulado interferem na percepção do outro [...] Verifica-se assim que o casamento se faz a partir da história de cada um dos cônjuges e de como essas histórias se entrelaçam no momento presente, dando uma nova configuração que envolve repetições e criações na vida a dois. (DA SILVEIRA, 2000, p. 7)

DA SILVEIRA (ibid) acrescenta ainda que determinados adjetivos que eram preponderantes em uma determinada época da vida, não serão tão importantes em outro momento, podendo ser um dado importante para entender a relação atual do casal.

Para ilustrar, em estado de paixão os parceiros vêem um e o outro de uma forma menos real, havendo distorções na imagem do outro. Os neurocientistas defendem que apaixonado o homem desencadeia uma transformação neuroquímica, acontecendo a midríase, ou seja, há o aumento da dilatação da pupila, e, por isso, há uma alteração da imagem. O maior problema é quando acaba este estado e não se aceita o outro do jeito que realmente é. E é neste momento que determinados contratos vão por água abaixo, e lidar com isto exige certa maturidade emocional, já que elaborar este luto pode não ser tão fácil assim.

Buscar relações complementares é algo comum, mas, como lembra SILVEIRA (2000), também podem ser complementares as patologias, onde a escolha é permeada pela doença.

[...] vê-se no âmbito conjugal pares que apresentam papéis cristalizados de protetor e protegido, algoz e vítima, herói e vilão, forte e fraco, médico e paciente. Alguns casais se dão ao requinte de intercambiar os papéis citados, mantendo suas relações numa gangorra. Ressalta-se que tudo isso acontece com a conivência de ambos, numa cumplicidade que mantém agonizante a relação conjugal. (DA SILVEIRA, 2000, p. 13 )

Enquanto há a boa fluidez na relação, mesmo havendo escolhas patológicas, pouco se tem a fazer. A interrupção ou impasse neste processo é que pode trazer o casal à terapia psicológica.

Enquanto o processo funciona bem, ele permanece no ‘fundo’. Quando funciona mal e se torna figura, você é forçado a examiná-lo. Quando um casal vai para a terapia, apenas pára de viver e muda sua atenção do ‘conteúdo’ da vida para o ‘processo’ de viver. Eles mudam sua atenção do conteúdo daquilo que estão vivendo para o processo de como seu viver acontece. Quando a vida volta a ser tranquila e traz satisfação, o processo novamente retorna ao ‘fundo’. (ZINKER, 2001, P. 186)

Muitas são as vias pelas quais os casais se constituem. Existem situações em que os protagonistas participam ativamente da escolha, outras não, se delegando esta tarefa a uma terceira pessoa, à sociedade. Ou se formam através da sustentação de um ideal de relação e manutenção de uma organização interna que aqui chamarei de Mecanismos Neuróticos, que tornar-se-ão inteligíveis ao longo deste trabalho.

Viver em casal é, portanto, correr o terrível risco de institucionalizar sentimentos, de estruturar uma relação, de desenvolver sistemas para escapar às contradições. Isso se fará por meio de toda uma sucessão de provações a enfrentar – provações impostas a nós mesmos, a um pelo outro e pelo meio ambiente. (SALOMÉ, 1982, P. 34)

 

Projeção - Tudo em mim é seu.

“Muito do que nos legaram pode ser re-programado: somos frutos mas não escravos.”
Lya Luft

O introjetor investe a sua energia numa incorporação passiva daquilo que o ambiente fornece. Despende pouco esforço na especificação de suas necessidades ou preferências. Isto depende dele permanecer indistinto ou num ambiente que é totalmente benigno. Tanto quanto ele permanece neste estágio, quando o mundo se comporta inconscientemente com as sua necessidades, ele deve devotar a sua energia no sentido de se manter contente, aceitando as coisas como as encontra. (POLSTER e POLSTER, 1979, p. 80).

Comum ver um cliente introjetivo chegar na sessão em um incessante reclamatório, por engolir o que quer e o que não quer, tendo uma série de corpos estranhos dentro de si. Este cliente, em geral, não distingue o que é bom ou ruim, e assimila coisas superficialmente (Polster e Polster, 1979).

Em minha prática clínica não é raro ver a dupla introjetivo X projetivo, onde a pessoa que introjeta, por carecer de um ambiente confiável e equilbrado, pode aceitar o que lhe é designado e se transforma naquilo que o outro deseja, acreditando que se não tiver esta atitude não será aceito e amado e, consequentemente, perderá a relação harmônica que tanto almejou. E se veste em uma fantasia de pessoa ideal para o outro.

“Vim aqui para você me dizer quem eu sou, pois há 27 anos sou a melhor mulher do mundo para o meu marido e meus filhos, mas, no fundo, não sei bem se quero continuar sendo ou se resgato o meu eu de verdade... O problema é que não sei bem quem sou eu de fato.” (L. J., 47 anos).

Este é um relato de uma cliente em meu consultório há seis anos e que atendo até hoje. Ela era casada há 27 anos com uma pessoa três anos mais velha, que não tinha concluído o ensino médio, falava errado e oriundo de uma família muito pobre. Já ela, estava concluindo a faculdade de letras e provinha de uma família de classe média. Segundo sua ótica, ela o ajudou a concluir o ensino médio e ter um bom emprego; em contrapartida, ela não deu continuidade à faculdade que concluiu, dando sorte (SIC) de conseguir um emprego público. Teve dois filhos neste casamento e sua relação era recheada de insultos e agressões físicas. Não era raro ele dizer que ela era feia, burra e que, sem ele, ela não seria nada. Por sua vez, ela passou a se sentir este nada, sem nenhuma perspectiva de ter o tamanho que gostaria de ter, ou seja, o que tinha antes de conhecê-lo. Passou a ter o tamanho que introjetou. Os papéis mudaram: ele o culto, com dinheiro; ela a ignorante, sem sensualidade e dependente emocional e financeiramente.

O que a fez tomar a decisão de começar um trabalho terapêutico? Ela descobriu que ele tinha uma amante bem mais jovem, quase da mesma idade da filha que tinham e, por mais que fizesse, ele não a queria mais, apenas que ficassem na mesma casa, mas isto era demais pra ela! (SIC). “Aceitei agressões físicas e verbais mesmo grávida, mas sempre disse a ele que a única coisa que nunca aceitaria era a traição.”

Infelizmente, aprender exclusivamente através da introjeção requer um ambiente favorável impossível de ser encontrado, um ambiente que seja invariavelmente adequado às necessidades do indivíduo. Quando este ajustamento perfeito falha – como realmente deve acontecer – o indivíduo deve, não somente selecionar aquilo que quer e com que está tentando se identificar, como também de resistir às pressões e influências que insistirão em sugestioná-lo e que ele ‘não’ quer. É aqui que a luta começa. (POLSTER e POLSTER, 1979, p. 81)

O introjetivo, geralmente, tem dificuldade de selecionar o que é seu e o que é do outro, ele tem como verdade a seguinte equação: Aceitar para ser aceito = Não rejeitar para não se rejeitado.

[...] A comida física, adequadamente digerida e assimilada, torna-se parte de nós – é convertida em ossos, músculos e sangue. Mas a comida que engolimos inteira, que deitamos garganta abaixo, não porque a queremos, mas porque temos que comer, permanece pesadamente no estômago. Faz com que nos sintamos mal, queiramos vomitá-la, expulsá-la de nossos sistemas. Se não o fazemos, se suprimimos nosso mal-estar e náusea, e desejamos nos livrar dela, conseguimos, finalmente, uma digestão dolorosa ou que a comida nos envenene. (PERLS, 1988, p. 46)

É interessante, por conseguinte, perceber que Perls defende que qualquer alimento engolido inteiro tenderá a não ajudar no bom desenvolvimento da nossa personalidade. E quando engolimos algo, temos que mastigá-lo bem, ver o sabor daquilo que é posto para dentro, onde o que é bom fica e o que não presta é jogado para fora. O neurótico introjetivo não mastiga, engole inteiro sem digerir.

Afirma ainda que se nos superlotarmos do que é do outro não sobrará espaço para o que é nosso. Portanto, não teremos a chance de produzir a nossa identidade porque estamos super-ocupados com dados alheios. E, talvez, teremos muita dificuldade de voltar atrás, pois nos sentimos desintegrados, sem competência para podermos fazer algo sozinhos, com mais autonomia. E se introjetamos tudo de todo mundo, viraremos uma sopa de letrinhas que tem tudo, menos consistência e coerência devido tal desorganização.

Em uma relação amorosa, este mecanismo pode, ao invés de ser útil, ser algo incoerente, um tiro que sai pela culatra, já que se transformar naquilo que o parceiro determinou pode ser mais nocivo que saudável para tal vínculo. Transformar-se no cônjuge ideal pode significar passar a ser alguém totalmente diferente daquela pessoa que o parceiro se apaixonou um dia, estando, por isto, a relação em risco.

Na relação amorosa, aquele que faz uso da introjeção, muitas vezes, se mostra com sua fronteira de contato extremamente permeável, suscetível às demandas do outro. Muitos vivem em função de ser o parceiro encantado, com o propósito de manter seu vínculo amoroso em ordem, sem atritos, desequilíbrios e riscos.

Cabe aqui ressaltar que aquele que introjeta pode ter ganhos com sua escolha. Muitas vezes é cômodo ser o que o outro prescreve, não fazendo escolhas. Caso dê alguma coisa errada, é melhor ter a postura de “Foi assim que você mandou” ou “Eu só faço o que você quer”, etc., do que tomar para si a responsabilidade. Um bom exemplo é um cliente que atendo em meu consultório: ele tem 27 anos, e aos 20 revelou a sua mãe que era homossexual. A mãe, por sua vez, disse que isto era uma escolha suja e que ele morreria de AIDS. Este cliente revelou que sempre foi um bom filho, nunca dando trabalho aos pais, e que lutava para não fazer nada de errado. Mas só tinha vínculos homossexuais em lugares “sujos” (palavra dele), como cinemas pornográficos e boates barra pesada, segundo ele. E, por fim, veio fazer terapia porque porta o vírus HIV. Trabalhamos vendo o quanto ele continua fazendo o que a sua mãe determina, mesmo sendo de uma forma tão destrutiva. Quais ganhos ele teve fazendo uso da introjeção? Ter tido o amor de seus pais (relato dele) e não se responsabilizar pela doença que adquiriu (hipótese minha).

O introjetivo, em geral, chega ao consultório quando aquilo que ele está engolindo atualmente fica incoerente com o que tinha introjetado anteriormente e tinha como certo. Como, por exemplo, uma esposa que diz ao marido que se ele ficar parado, esperando um emprego em casa, nada conseguirá; e, em contrapartida, este sempre acreditou, devido introjeções provindas de sua mãe desde criança, que precisava ter mais calma, sem pressa, e o que o atrapalhava era a sua pressa em conseguir as coisas.

O terapeuta deve estar atento ao que comunica a este casal, pois o parceiro introjetivo tem a tendência em tomar para si tudo e qualquer informação, mesmo porque pode haver o medo de ser rejeitado pelo terapeuta também. Além do terapeuta não comprar e ratificar a idéia de que o introjetivo é o pobre coitado e o outro parceiro o vilão da história trazida.

A pessoa que introjeta, geralmente, é seduzido por “lugares comuns”, frases prontas e receitas. Um terapeuta desatento pode cair nesta armadilha e ficar neste papel mágico por pura vaidade ou por um forte desejo de manter o cliente em seu consultório. Deve-se favorecer e valorizar a capacidade deste cliente de dar suas próprias respostas e realizar seus desejos com a máxima autonomia.

Seria interessante trabalhar com este casal o que é de um parceiro e o que é do outro e o que é do casal, diferenciando o eu, o tu e o nós. Avaliando quais crenças são de um e de outro e, numa visão mais macro, o que também vem de fora da relação. Neste caso, uma boa ajuda seria trabalhar o genograma do casal. Além de, na medida do possível, conscientizá-los de suas escolhas, da existência dos prós e dos contras na escolha de qualquer Mecanismo Neurótico. Enfim, tentar ampliar o eu-individual de cada um, sem esquecer que o outro parceiro pode também estar alimentando esta relação para que se mantenha assim.

Prestando atenção à respiração de muitos introjetivos pode-se perceber que inspiram com muita força e expiram de forma bem fraca. Fazendo-nos entender sua facilidade em por para dentro de si e dificuldade de externar.

Para os Polster (1979) , se deve mobilizar a agressividade e a crítica do introjetor, a colocando para fora, tirando a raiva de dentro que corrói; mesmo porque a raiva, creio, é um dos poucos sentimentos que incentiva a tomada de atitude, não acua e nem prostra. Porém, tendo paciência com o tempo do cliente e dar a possibilidade dele ter atitudes sem ser excessivo, não saindo do oito para o oitenta, lidando bem com o limite que a agressividade deve ter, seria também um bom caminho.


Projeção - Tudo em você é meu.

“A maior de todas as ignorâncias é rejeitar uma coisa sobre a qual você nada sabe.”
H. Jackson Brown

“A pessoa que está projetando não pode distinguir satisfatoriamente entre os mundos interior e exterior. Visualiza no mundo aquelas partes de sua própria personalidade com as quais se recusa a identificar.” (PERLS, 2002 apud D’ACRI; LIMA; ORGLER, 2007, p. 176).

Enquanto, muitas vezes, o introjetivo é submisso, passivo, preguiçoso emocionalmente, tendo medo de ser aceito e por isso bajula, o projetivo pode ser desconfiado, agressivo, negativo e confrontador, tendo dificuldade de assumir suas próprias coisas, sendo reativo. De antemão, já nega por considerar o mundo perigoso e ameaçador, não deixando entrar nada. Geralmente são pessoas que só contam consigo, pois desconfiam de tudo. Além de responsabilizarem o meio ao invés de si próprio.

De certa forma, tem algo em comum com a introjeção, já que em ambos os casos não há a aceitação daquilo que é seu.

O sujeito paranóico é um caso típico de projeção, já que coloca no objeto perseguidor algo que é seu, não se responsabilizando pelos seus desejos, os jogando para o meio. “Sua convicção de que está sendo perseguido é de fato a afirmação de que gostaria de perseguir os outros.” Perls (1988, p. 49)

Vale pontuar que devemos tomar cuidado para não confundirmos uma simples dedução com a projeção. Deduzir não é um quadro patológico, mas algo inerente à condição humana. Configura-se um quadro projetivo quando não há o reconhecimento, ou melhor, o contato que tal inferência é algo seu e não do outro.

O neurótico não usa o mecanismo da projeção apenas em relação ao seu intercâmbio com o mundo externo. Também o usa consigo próprio. Tem uma tendência não somente para se desapropriar de seus próprios impulsos, mas também para se desapropriar das partes de si em que surgem os impulsos. Dá-lhes, como se assim fosse, uma existência objetiva fora de si, de modo a fazê-los responsáveis por seus problemas sem encarar o fato de que eles são parte suas. Em vez de ser um participante ativo de sua própria vida, aquele que projeta se torna um objeto passivo, a vítima das circunstâncias [...] Quando quem projeta usa ele, ela, eles, em geral quer dizer “eu”. (Ibid, p. 50)

Sendo assim, é comum à pessoa que projeta dizer frases do tipo “Ele vai acabar me matando” quando fala do seu coração ou “A culpa é do meu estômago”.

Em casais é comum ver o parceiro projetivo com uma personalidade vaidosa, narcisista, onde o outro passa a ser a realização dos seus desejos individuais que não consegue dar conta sozinho. Consequentemente, se alegra em descobrir e redescobrir o poder sobre o outro de que dispõe. A projeção é um combustível para manutenção de sua vaidade, do seu narcisismo.

Neste caso, muitas vezes, este parceiro não está apaixonado pela pessoa de fato. Possivelmente não se trata de outra coisa senão de alguém que esteja desfrutando do poder que é capaz de exercer sobre o outro, seja depositando neste algo que lhe é insuportável ou suas demandas narcísicas, vaidosas.

Talvez se evidencia aí o desejo de um príncipe ou princesa encantada, tendo no parceiro sua idealização, o alimento de sua vaidade. Projeta no outro seu ideal de eu, acreditando que este é o parque de diversões para suas demandas não aceitas ou impossíveis de serem realizadas individualmente. E, se o parceiro encantado desvirtua do desejo do projetivo, este luta com todas as armas para retomar a ordem imposta por ele.

Quando o empenho em transformar o outro produz o resultado desejado, onde o parceiro do projetivo introjeta suas demandas, o casal pode viver uma calma, pelo menos temporariamente.

“As pessoas começam a se perguntar “O que estou levando do casamento?” em vez do que “O que eu trago para o casamento?”. A noção de “para o melhor e para o pior” ou “até que a morte nos separe” deu lugar a “até que você não corresponda mais às minhas necessidades.” (KINDER e COWAN, 1989, p. 12)

Geralmente, um cliente que projeta vai à terapia quando encaminhado por outro, ou, no caso da terapia de casal, para ajudar o parceiro a melhorar na relação, ou por conta própria se percebe que seu mecanismo não está fazendo mais efeito como antes. Muitos chegam à terapia arguindo: “Se eu não dou conta como é que você vai dar?”.

Quando se fala em projeção, se pode pensar sobre pessoas ciumentas. O desejo de infidelidade do projetivo faz com que ele imagine no outro este mesmo desejo, perfazendo aí o ciúme. Se, numa relação a dois, o ciúme sobe à cabeça de um dos dois é porque este, geralmente, projeta a imagem que faz de si mesmo em seu companheiro.

Comum em relações a dois a pessoa projetar no parceiro sua falta de realizações. O casamento passa a ser a fonte primária de validade e aprovação. Quando estamos crescendo, o fardo de “acertar” nossas vidas pode estar, diretamente, sobre os ombros de nossos pais. Depois, ao nos tornarmos adultos, passamos a estar dolorosamente conscientes de que essas realizações são tarefas nossas. Por fim casamos e retomamos o mecanismo repassando ao parceiro o fardo inicial.

Infelizmente, por vezes, o cônjuge é o alvo mais fácil para qualquer tipo de vaga insatisfação que sentimos. Parceiro projetivo persiste em culpar o parceiro pela existência de seus problemas. Se está triste, é culpa dele. Se brigou no trabalho, a culpa é dele. Se o sexo não está bom a culpa é dele também. Para ele, talvez, é muito mais fácil ter esse mecanismo do que olhar para dentro de si e perceber que é o agente dos problemas e também das mudanças.

Tornar alguém responsável pela nossa realização pessoal pode levar a um outro sentimento no parceiro: a culpa. Já que ninguém pode cumprir totalmente a nossa demanda projetada, o nosso cônjuge desenvolve sentimento de culpa por não dar conta de tudo aquilo que projetamos.

“Se você não compartilha de meus sentimentos, de meus projetos, de meus desejos, fico surdo, não a compreendo de jeito nenhum, só consigo ouvir minha demanda [...] Esta forma de ver é sentida pelo outro como uma negação, uma inexistência.” (SALOMÉ, J., 1992, p. 184)

Projeta-se, assim, parte nossa no outro e leva este a desempenhar um papel que ele vai talvez aceitar, renunciando a ser ele mesmo.

“Alguns parceiros vão isolar, localizar e colocar as tendências incômodas ou proibidas, as angústias na pessoa mais chegada e vão manipulá-las de maneira que essa pessoa exprima e carregue o problema deles [...] indo até ao ponto em que o outro vai duvidar de seus sentimentos, de suas percepções, de suas próprias lembranças e de seus sentimentos.” (Ibid, 1992, p. 184)

Um bom caminho com um cliente projetivo seria trabalhar com a sua dor. Compreender que ele está sofrendo, e para que ele reage assim diante do mundo, o que ganha e o que perde com isto. Também seria interessante possibilitar o contato deste cliente com suas projeções, vendo o que realmente é seu e coloca no outro.

Procurar compulsivamente um responsável pela sua conduta ou do que acontece consigo pode ser uma atitude letal à vida do casal.

Quando um projetor pode fantasiar-se como possuidor de algumas das mesmas qualidades que ele vê nos outros, qualidades essas que ele havia obliterado da sua própria autoconsciência, isto liberta e expande o seu senso de identidade extremamente rígido. Tomemos, por exemplo, um homem que tem ocultado o senso da sua própria crueldade. Experienciar-se como uma pessoa cruel serve para lhe dar um novo vigor, talvez aumentando a sua amabilidade, talvez lhe dando o ímpeto para mudar aquilo que somente o comportamento cruel mudaria. (POLSTER e POLSTER, 1979, p. 85)

 

Retroflexão - Era pra você, mas ficou em mim.

“Enforcar-se é levar muito a sério o nó na garganta.”
Mário Quintana

No Dicionário Aurélio (2004) retroflexo é um adjetivo que vem da palavra latina retroflexu, significando algo que se curva ou dobra para trás.

Retroflexão “é alguma função, que originalmente é dirigida do indivíduo para o mundo, muda sua direção e se volta para o originador. (PERLS, 2002 apud D’ACRI; LIMA; ORGLER, 2007, p. 189).

Aquele que retroflete faz para si o que gostaria de fazer ao outro, sendo o ativo e o passivo de seus comportamentos e, muitas vezes, se destrói por ser seu próprio saco de pancadas. Um bom exemplo é a doença psicossomática. Ele “sabe como traçar uma linha divisória entre ele e o mundo, e a esboça nítida e clara, justamente no meio – mas no meio de si mesmo.” (Ibid., p. 189)

O retroflexivo só conhece a primeira pessoa do singular e o pronome oblíquo mim. Trata-se de alguém que tem duas partes: eu e mim, entretanto não distingue uma da outra.

Na retroflexão a pessoa pode ser seu próprio mocinho ou vilão, seu próprio anjo ou demônio. Todavia, se torna alguém mais autosuficiente, podendo, contudo, não dar espaço ao outro; e esta forma de estar em uma relação amorosa gera muitas vezes um grande dano.

Uma criança que cresce em um ambiente de pais inacessíveis e pouco sensíveis a seus apelos, que quando chora não recebe colo, aprende a acalentar e aliviar a sua dor sozinho. E, quando cresce, vai construindo a sua independência, acreditando que nunca receberá a atenção tão solicitada de seus pais quando criança. Então, qualquer outra pessoa será inapta a fazê-la, incluindo seu parceiro amoroso. Torna-se, portanto, tão refratário quanto seus pais. Percebe-se, talvez, com isto que a retroflexão tem como base a introjeção. (POLSTER e POLSTER, 1979, p. 88)

Um mal maior pode acontecer, pois o reflexivo por não ter tido espaço para externar seus sentimentos mais negativos como raiva ou mágoa, retorna para si e, por consequência, uma das formas de realizar isto é fazendo doenças psicossomáticas, como foi dito anteriormente.

Claro, não podemos pôr para fora todo e qualquer sentimento, afinal de contas vivemos em sociedade e, no caso de um relacionamento amoroso, se deve também respeitar o limite do parceiro; mas conter tanta coisa destrutiva seria arruinador.

A mãe atormentada, no fim de um dia longo e extenuante, em que a máquina de lavar roupa estragou e rasgou as roupas, em que seu filho de cinco anos rabiscou freneticamente as paredes da sala de visitas com lápis vermelho, em que o homem que deveria consertar o aspirador de pó não apareceu e seu marido veio para o jantar com uma hora de atraso, provavelmente se sente totalmente homicida. Não seria recomendável para ela matar o filho ou o marido, mas seria igualmente insensato que ela cortasse seu próprio pescoço. (PERLS, 1988, p. 54)

Trabalhar terapeuticamente com um cliente que retroflete é buscar neste o contato com o quê, o porquê e o para quê introjetou e por fim retrofletiu , favorecendo que o que está dentro de si tenha mais liberdade de sair quando convier e da melhor forma possível. Mostrando ao cliente que também pode ser interessante ser o vagão e não só a locomotiva, ou seja, lhe fazer perceber que seu parceiro pode dar conta de algumas demandas suas (não todas, é claro!). Deve-se ajudá-lo a ter consciência de onde devem estar realmente suas introjeções tão destrutivas. Ou seja, em quem deve estar sua raiva ou seu amor, onde devem estar seus abraços ou suas agressões. Mesmo que para o terapeuta seja uma árdua tarefa, já que a impermeabilidade das emoções deste cliente é algo notório. É evidente, mais uma vez, que regras não existem, é apenas mais uma ferramenta, pois lidamos com pessoas que têm suas particularidades, reagindo e devendo ser vistas de formas singulares.

Em um atendimento de casal é de extrema importância observar como o outro se comporta quando o parceiro fala. É comum o parceiro retroflexivo sentir que o outro pouco se importa com o que fala e, paralelamente, o outro cônjuge tem como verdade que pode fazer a fronteira de seu cônjuge é impermeável e cristalizada.
Conclusão: pouco contato entre ambos.

Suponha-se que um homem fale com uma mulher a respeito de um acontecimento profundamente triste de sua vida . Ele observa que, enquanto fala, ela está se afundando cada vez mais em sua poltrona, seus braços cruzados apertadamente. Ele pára, porque sente que ela está se afastando cada vez mais dele [...] fazendo com que ele se sinta isolado em sua tristeza. A experiência dela, contudo, é bastante diferente. Ela está muito tocada e também sente que qualquer coisa que pudesse fazer seria intrusão. Seu gesto expressa a sua necessidade tanto de aderir quanto de se deter. Em vez de abraçá-lo, ela abraça a si mesma [...] (POLSTER e POLSTER, 1979, p. 90)

Em uma relação onde um dos parceiros é retroflexivo, muitas vezes, por mais que seu cônjuge faça, o outro não recebe para si, como se fosse impossível receber algo de alguém. Além de não dividir com o outro as suas dores e raivas.

Os Polster (1979, p. 91) sustentam que existem dois níveis de toxidade (grifo deles) na retroflexão:

1° Nível: A pessoa faz para si o mínimo que precisa. É uma forma mais suave de retrofletir.

2° Nível: Quando trata sua autosatisfação de uma maneira mais pesada. Neste caso há uma desqualificação do que vem do outro, havendo um distanciamento e resistência do mundo externo.

Muitos retroflexivos talvez tenham medo de perder esta cristalização, porque acreditam que apenas deste jeito têm o controle da situação. É válido também lhe mostrar o que perde com este mecanismo neurótico.

E, por mais incoerente que possa ser, é comum vermos retroflexivos casarem com pessoas duras e frias, repetindo sua história familiar. Seus parceiros, portanto, o fazem retornar ao passado com seus pais, onde o mecanismo neurótico passa a ser alimentado novamente. Ou, arranja-se uma boa forma de rearranjar sua história e dar um outro rumo a ela.

De outra forma, buscam parceiros mais curiosos e persistentes o suficiente para que consigam tirar dele seus segredos mais profundos. “Tenho coisas para dizer, mas não sei o quê!” O que pode ser entendido como: “Mostre seu interesse por mim como sempre quis, mas nunca tive na vida.” Talvez, inconscientemente, estas pessoas não sejam mais diretas por realmente não saberem o que querem ou por medo de, mais uma vez, não atenderem suas súplicas de atenção e serem rejeitadas de novo.


Deflexão - Não sei e nem quero saber.

“Quem conhece os outros é um erudito; quem se conhece é um sábio.”
Lao-Tsé

Perls (1973) não fez referência a este Mecanismo Neurótico. Já Erving e Miriam Polster (1979) chamam atenção a esta outra forma de resistência.

O termo deflexão surgiu da palavra latina deflexione, que é entendido no Dicionário Aurélio (2004) como o movimento com que se abandona uma linha que se descrevia, para seguir outra.

A deflexão é uma manobra para se desviar de um contato direto com uma outra pessoa [...] Isso se faz através do circunlóquio, da fala excessiva, do dar pouca atenção ao que a outra pessoa diz, não se encarando a pessoa com quem está falando, sendo mais abstrato do que específico [...] usando-se a linguagem estereotipada em vez da linguagem original, pela substituição de emoções suaves por emoções intensas, falando-se sobre o passado quando o presente é mais relevante, falando-se a respeito em vez de falar para, ignorando-se a importância daquilo que outra pessoa acabou de dizer [...] Frequentemente experiencia a si mesmo como diferente, aborrecido, confuso, inútil, cínico, não amado, sem importância, deslocado. (POLSTER, e POLSTER, 1979, p. 93)

A deflexão é uma maneira de sair do contato com aquilo que dói e/ou mobiliza sentimentos que se julga, inconscientemente ou não, ruins. Podendo ser, portanto, um nó na relação amorosa, porque não fazendo contato pouco se pode transformar, além do parceiro perder a motivação diante da impossibilidade de resolver tal vínculo sozinho.

Qualquer um dos Mecanismos Neuróticos tem o seu lado bom, e a deflexão não foge à regra, pois faz parte da vida não darmos conta de tudo e, como lembra os Polster (1979, p. 93), “existem situações que são, originalmente, demasiado quentes para que se possa manipulá-las e das quais as pessoas devem se afastar.”

Nem sempre é o momento de entrar em contato. Muitas vezes não estamos podendo fazê-lo e, em minha opinião, seria psicologismo demais pensar que sim. Em minha prática clínica, quando percebo a deflexão do cliente, prefiro respeitá-la, mas tenho como fato que pode estar ali uma parte importante do nosso trabalho.

Como é sabido, se deve considerar sempre o “estar podendo”, o tempo daquele que assistimos.

Muitas vezes na relação amorosa há, por exemplo, a reclamação do quanto um dos parceiros não fala, não é participativo, estando sempre encavernado em seu computador ou jogo de futebol, como metaforizou John Gray (1995). Estando aí um possível defletor.

Também aquele que quando se expressa fala apenas na terceira pessoa do singular ou plural, que pouco se envolve, se colocando como alguém de fora está, geralmente, defletindo. Tanto o silêncio quanto a verborragia são formas de defletir. “Cabe ao terapeuta facilitar o contato do cliente consigo mesmo, transformando assim, a deflexão em expressão.” (D’ACRI; LIMA; ORGLER, 2007, p. 149).

Por vezes, em alguns casais, quando não dá para suportar a companhia um do outro, se criam engenhosos mecanismos para evitar um ao outro. Ou seja, se deflete do parceiro, do sistema casal. Para isto, pode haver uma intensificação no trabalho ou apenas na relação familiar (filhos juntos ao casal) e, ao invés de entrarem em contato com o vazio da relação a dois, se ocupam dos cuidados oferecidos aos filhos. Porém, na medida em que os filhos crescem, se tornam independentes, desocupando tal função, se entra em contato com o casal de fato. Mas uma nova tentativa de manter esta deflexão do sistema casal é “reconvocar” um dos filhos para que voltem a ocupar seu espaço original. Não raro é entender este filho como ingrato se este não aceita tal convite compulsório. Fim da relação? Talvez! Mas ainda há a possibilidade de ajudá-los terapeuticamente a se conscientizarem de si e do casal que ali existe, possibilitando a chance de entrarem em contato com aquele momento e, talvez, reaverem aquilo que foi defletido há muito tempo: a relação a dois.

Percebo que outra maneira de defletir na relação amorosa é a transformando em uma relação de amigos ou apenas de pai e mãe, pois se foge do contato com a relação que inicialmente foi querida. Lógico, a deflexão, nestes casos, pode ser, por vezes, uma forma de se proteger, já que é mais fácil aceitar os defeitos de um amigo do que de um amante, no sentido daquele que ama; além de que a possibilidade de ser fiel a uma amizade é maior do que em um casamento, podendo ser mais fácil terminar esta relação do que uma amizade. O sentido da amizade pode ser a de um “para sempre”, enquanto o casamento não. Enfim, ser amigo pode trazer mais segurança, menos vulnerabilidade à relação.

Igualmente, existem muitos casos de pessoas que casam para defletir a responsabilidade de si, depositando no parceiro esta função. Casar seria uma boa forma de sair do contato com as suas inseguranças da vida adulta como lembra Colette Dowling (1982):

Ao escolher o marido, estão procurando o príncipe, alguém que venha resgatá-la da responsabilidade. Boa vida sexual, companheirismo estimulante – isto é secundário. Dê-lhes um pedestal bem acima dos perigos do viver autêntico, e elas serão felizes por simplesmente se sentarem lá. (DOWLING, 1982, p. 123)

No trabalho terapêutico seria interessante também dar importância não só aquem faz uso da deflexão, mas para quê este mecanismo neurótico é sustentado na relação amorosa.


Confluência - Quando o “nós” se transforma em nó.

“Meu amor, você é minha vida
sua vida eu também sei que sou cada vez mais juntos quem procura por você sabe onde estou.” (Roberto Carlos)

“Nós somos duas pessoas em uma só.” Ele é a minha cara-metade.” Quem nunca ouviu tais expressões?

Confluir é fluir com. Em uma linguagem matemática, confluência é entendida como um procedimento com que se obtém uma equação diferencial a partir de outra que tem dois pontos singulares, fazendo um dos pontos tender para o outro. (Dicionário Aurélio, 2004)

“Quando o indivíduo não sente nenhuma barreira entre si e seu meio, quando sente que seu meio e ele próprio são um, está em confluência com este meio. As partes e o todo são indistinguíveis entre si.” (PERLS, 1988, p. 51)

Em confluência a pessoa não distingue o que é seu e o que é do outro, incluindo aí não só outras pessoas, mas sentimentos e opiniões também; sua fronteira é permeável. “A pessoa exige semelhança e recusa tolerar quaisquer diferenças.” (Ibid, p. 53)

Geralmente a pessoa que faz uso da confluência também usa o mecanismo neurótico da introjeção, já que toma para si o que é do outro. Esta pessoa tende a priorizar o pronome nós, evitando o eu.

Quando duas pessoas resolvem se casar acontecem coisas interessantes. Os sonhos de casamento levam o indivíduo a buscar unidade com o par. Histórias diferentes se misturam, e surge então uma nova totalidade, uma estrutura, um fluir de comunicação. Esse é o primeiro sinal na vida em comum. As pessoas que se escolhem passam a funcionar num estilo diferente, com linguagem própria, seguindo um ao outro. Os limites pessoais são ultrapassados. É de se esperar que surja uma aliança, um entrelaçamento que é a base para uma nova configuração [...] e assim vão compor uma nova fronteira, a fronteira da conjugalidade. (DA SILVEIRA, 2007, P. 202)

O ser humano é gregário, muitas vezes se fortalece ao se unir e estar em grupo. O problema está em quando essa união alimenta a não-diferenciação do sujeito e do grupo, se perdendo de si mesmo, estando em simbiose. E, em um vínculo amoroso, quando as fronteiras individuais não são respeitadas, se pode ver aí uma relação pouco saudável.

Nas relações amorosas, o confluente, geralmente, prefere usar tal mecanismo como uma forma de não perder o controle, pois se eu sou o outro e vice-versa, minimizo as diferenças e diminuo a possibilidade de confronto com o outro.

Em seu livro Complexo de Cinderela (1982, p. 127), Colette Dowling defende que os homens são em parte responsáveis pela manutenção desse vínculo confluente, mas as mulheres sentem-se em maior perigo e chegam a ser brilhantes na manutenção dessa situação. Quanto mais simbióticos são, mais vigorosos os esforços que despendem para, por exemplo, estruturar a sua relação amorosa “apropriada” – Programas juntos, horários comuns, e, em geral, uma insistência de que o outro faça “o que é certo” (que pode ser entendido por: “Faça o que é bom para gente!”).

Para esta autora, algumas pessoas exercem o controle na relação tendo uma dedicação cega.

As mulheres cegamente dedicadas se fazem indispensáveis aos maridos que, elas crêem genuinamente, não poderiam viver sem elas. Há muitas maneiras de se garantir a continuidade do equilíbrio de um casamento amalgamado. A solicitude e a excessiva preocupação pelo bem-estar do companheiro constituem uma delas. (Ibid, p. 128)

Dowling (Ibid, p. 127) acrescenta ainda que frases do tipo “posso ler a mente dele”, “pensamos tudo igualmente” e “ chegamos a sentir os sentimentos um do outro” não refletem intimidade, refletem medo – medo do crescimento e do viver por si só. É válido lembrar que no livro referido acima o foco está na psique feminina. Então, claro, existem homens confluentes, não sendo uma defesa neurótica estritamente feminina.

O mito mais corriqueiro no casamento é que este trará segurança e completude, E que na passagem da infância para idade adulta deve-se aprender a separar-se dos pais e desenvolver uma identidade própria. Os doutores Connel e Cowan e Melvyn Kinder (1990) sustentam que muitos de nós temos um bom êxito neste processo, mas que sempre persiste uma sensação de solidão. E, quando adultos, ansiamos por aquele sentimento primitivo de unidade que existe na infância. Por isto, quando procuramos por um parceiro na vida, um desejo secreto comum é o de que juntos seremos um. Sendo este o combustível que impulsiona muitos romances – a fantasia da fusão, a confluência. Portanto, a crença dessa fusão gera sentimentos de segurança, completude, de união total, e que só podem ser alcançadas em um sistema sem diferenças e conflitos.

A confluência é uma corrida a três pernas, arranjada entre duas pessoas que concordam em não discordar. É um contrato desarticulado, que freqüentemente tem cláusulas escondidas, e uma forma atraente que talvez só um dos sócios no contrato conheça. (POLSTER e POLSTER, 1979, p. 96)

Quando este contrato é quebrado, os Polster (1979) afirmam que a parte que violou sente-se culpada. Já o cônjuge que quer mantê-lo experimenta a mágoa, o ressentimento. A pessoa que transgrediu a regra pode tentar, por sua vez, se desculpar de forma punitiva, se tratando com crueldade por se sentir uma pessoa má. Atendo uma cliente que por ter traído seu marido apresentou um quadro, logo após, de hipocondria, acreditando piamente que tem hepatite, e que a contraiu na relação sexual que teve nesta traição. Quando perguntada se usou preservativo, ela diz que sim, mas que este pode ter estourado sem o parceiro a ter comunicado. Revela-se aí a culpa por ter quebrado a regra.

Já a parte que se sente magoada, pode querer continuar no vínculo confluente, se vê traída e ferida, e exige que o parceiro “traidor” viva em culpa. Esta parte também pode fazer uso da retroflexão, se dando o que o outro não deu, podendo ficar perdido em autopiedade. Ou seja, sente compaixão de si, já que, talvez, o outro não sinta. Pode viver, portanto, em um incessante ressentimento.

Clarice Lispector, em A Paixão Segundo G. H. (1998), trata seu ex-casamento com a metáfora de um tripé. Narra que seu ex-marido era a sua terceira perna, lhe trazendo segurança, a impedindo de cair. E, ao se separar, temeu enlouquecer por ter perdido sua perna adicional. Chorou, caiu, tropeçou por não estar acostumada com suas únicas duas pernas, mas, ao longo do tempo, percebeu que com três pernas tinha segurança, não caía ou desequilibrava, porém não saía do lugar, era impedida de andar e ir adiante.

Aproveitando Lispector, acredito ser também um bom caminho, ao atender terapeuticamente o casal, ajudar cada um a entrar em contato com seu eu-individual, com seu eu constituído de apenas duas pernas, sendo esta uma boa direção. Não esquecendo de respeitar os limites deste cliente, o seu momento.

Os antídotos para confluência são o contato, a diferenciação e a articulação. O indivíduo deve começar a experienciar escolhas, necessidades e sentimentos que são seus e que não têm que coincidir com os de outras pessoas. Ele deve aprender que pode encarar o terror da separação destas pessoas e ainda permanecer vivo. (POLSTER e POLSTER, 1979, p. 97)

E, em uma terapia, seja individual ou de casal, seria interessante mostrar ao cliente que mesmo valorizando as singularidades de cada um, a relação pode ser muito mais rica. Afinal de contas, para se estabelecer um casal deve-se ter duas pessoas e não uma constituída por duas como dizem por aí.


Considerações Finais

“Nem sempre os conflitos terminam, quando são olhados de frente, mas olhá-los de frente, no mínimo, significa lidar com a sombra, com a nossa sombra sem intermediários.”
(Ribeiro, 1994)

Pensando bem, fazemos uso de cada um dos Mecanismos Neuróticos citados. O problema está em não ter consciência da utilização destes e serem usados excessivamente, pois, como sempre defendo: “tudo em excesso é patológico”!

Neste trabalho faço a seguinte metáfora: a relação com o projetivo é de mão-única, pois só se vai para lá; com um introjetivo só se vem para cá; com o retroflexivo, o carro não sai do lugar, engata a primeira marcha e logo após dá a ré; com um deflexivo o carro não para de desviar; e na confluência não existe a linha contínua que divide as mãos.

Importa destacar quanto os autores utilizados fazem uso dos relacionamentos amorosos para exemplificar os Mecanismos Neuróticos. Ou seja, como são nítidos estes mecanismos nestes vínculos.

Podemos entender o uso de um ou mais dos mecanismos como uma forma de se ajustar, de estar em equilíbrio, por mais incoerente que possa ser esta afirmação. O terapeuta, auxiliando seu cliente a entrar em contato com o modo que busca seu equilíbrio, pode ter a chance de ajudá-lo a perceber que pode tê-lo de forma mais criativa, abandonando a velha forma cristalizada de resolver seus dilemas e construindo seu autosuporte mais plenamente, ou seja mais consciente.

Outra boa ajuda terapêutica seria possibilitar o cliente a ter um “casamento criativo” (DA SILVEIRA, 2007), onde cada parte desta relação desenvolva suas singularidades para que possa enriquecer seu romance. Tendo, também, nos momentos de crise, um crescimento, pois é neste instante que conhecemos as diferenças de nossos pares e podemos transformá-las em armas para melhorar o vínculo e não para destruí-lo.

Como foi dito, não coube aqui colocar o terapeuta no papel de juiz no tribunal, naquele que tem como papel dizer quem está certo ou errado e dar ao outro (cliente), o papel de vilão ou mocinho. Pois, também, quando delegamos a alguém o papel de vítima da relação, damos a ele a impossibilidade de articular e ajudar na mudança.

Foi percebido que um dos objetivos da Terapia Gestáltica é possibilitar ao cliente o contato, e que se responsabilize por sua própria organização e escolhas, para que promova mudanças naquilo que melhor convier de forma consciente, pois quando tomamos para nós aquilo que é realmente nosso, podemos ter mais coragem de fomentar tais mudanças. Além de conhecer aquilo que nega e promover mudanças com isto.

Porém, se deve ter muito cuidado com o cliente ao trabalhar suas resistências, pois já é algo conhecido e dominado por ele, o equilibrando e protegendo. Tentar “tirá-lo” deste processo pode ser ameaçador e amedrontador, passando a resistir em deixar de resistir, porque a possibilidade de perder o controle da situação pode ser uma forma de perdê-lo de si mesmo.

Os mal-entendidos, os erros, as tentativas, como também os encontros são partilhados entre os dois em uma relação amorosa, não podendo ser atribuídos a uma delas. Portanto, se deve estar atento que tais vínculos são circulares, sendo inútil procurar quem é que deu início a qualquer problema. É interessante descobrir com o(os) cliente(s) como e para quê se mantém a relação desta forma.

Percebe-se que os Mecanismos Neuróticos são formas de manter o controle, de fazer a relação ter o menor risco possível de desavenças e términos. E que, não necessariamente, abrir mão de um deles não lhe trará tanto benefício quanto tem ao usá-los.

Por fim, se teve como proposta o aprofundamento teórico e prático dos Mecanismos Neuróticos e refletir suas interferências nas relações amorosas.

Referências

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__________._________. Mulheres inteligentes escolhas insensatas: como encontrar os homens certos e evitar os errados. Rio de Janeiro: Rocco, 1991.

D’ACRI, G.; LIMA, P.; ORGLER, S. Dicionário de gestalt-terapia: ”gestaltês”. São Paulo: Summus, 2007.

DA SILVEIRA, Teresinha Mello. O papel da criatividade nas relações conjugais: os limites do "eu" e os limites do "nós". IGT na Rede, Rio de Janeiro, RJ, 4.7, 31 08 2007. Disponível em: <http://www.igt.psc.br/ojs/viewarticle.php?id=165>. Acesso em: 08 de março de 2008.

___________. Individualidade, conjugalidade e instabilidade no casamento contemporâneo. In: VII CONGRESSO INTERNACIONAL DE GESTALT-TERAPIA, 2000, Rio de Janeiro, RJ, 1.16, 26 10 2000.

DOWLING, C. Complexo de Cinderela. 53. ed. São Paulo: Melhoramentos, 2002.

GRAY, J. Homens são de marte, mulheres são de Vênus. Rio de Janeiro: Rocco, 1995.

LISPECTOR, C. A paixão segundo g. h. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.

PERLS, F. A abordagem gestáltica e testemunha ocular da terapia. 2. ed. Rio de Janeiro: Guanabara, 1988.

PERLS, F.; HEFFERLINE, R.; GOODMAN, P. Gestalt-terapia. São Paulo: Summus, 1997.

POLSTER, E.; POLSTER, M. Gestalt terapia integrada. Belo Horizonte: Interlivros, 1979.

RIBEIRO, J. P. Gestalt-terapia: o processo grupal: uma abordagem fenomenológica da teoria de campo e holística. São Paulo: Summus, 1994.

SALOMÉ, J. A incomunicação do amor no casamento. Rio de Janeiro: Vozes, 1982.

ZINKER, J. C.. A busca da elegância em psicoterapia: uma abordagem gestáltica com casais, famílias e sistemas íntimos. São Paulo: Summus, 2001.

Endereço para correspondência

Isabela Defilippo Hansen

E-mail: isabelahansen@uol.com.br


Recebido em: 30/03/2009
Aprovado em: 15/06/2009