Reflexões acerca da esquizofrenia na abordagem gestáltica
Reflections about schizophrenia in a gestalt approach
Ludmila Vieira
Insitituto
de Gestalt-Terapia da Bahia (IGTBa)
Resumo
Este artigo é parte do trabalho “Psicopatologia na abordagem gestáltica: reflexões acerca da esquizofrenia”, elaborado para a conclusão do curso de especialização em Gestalt-terapia. O trabalho tem como objetivo compreender os sintomas da esquizofrenia dentro da perspectiva gestáltica, apresentando pontos importantes da teoria e discutindo sobre uma possível conduta terapêutica nesses casos. No artigo será dada ênfase à compreensão diagnóstica e ações terapêuticas na esquizofrenia. Sendo assim, será abordado o Ciclo do Contato proposto por Jorge Ponciano Ribeiro, dentre outros conceitos, permitindo uma compreensão fenomenológica e pertinente à abordagem gestáltica, respeitando a singularidade da vivência esquizofrênica.
Palavras-chave: Gestalt; Saúde mental; Esquizofrenia; Intervenção terapêutica.
Abstract
This article is part of an assignment “Psychopathology in gestalt approach: reflections about schizophrenia”, produced to conclude the specializing course of Gestalt-therapy. The paper aims to understand the schizophrenia symptoms in a gestalt perspective, introduce importants points of theory and discuss a possible therapeutic conduct in these cases. This article will emphasize the diagnosis comprehension and therapeutic actions in schizophrenia. Therefore, will be approach the Contact Cycle proposed by Jorge Ponciano Ribeiro, and other concepts, allowing a phenomenological understanding related to gestalt approach, respecting the singular schizophrenia experience.
Keywords: Gestalt; Mental health; Schizophrenia; Therapeutic intervention.
A preocupação com o cuidado em saúde mental vem crescendo em decorrência da ampliação das políticas públicas em relação às ações e serviços de saúde, bem como das mudanças ideológicas frente ao atendimento oferecido às pessoas com transtorno mental. Nesse sentido, a atual política de saúde mental no Brasil preconiza o resgate da cidadania e autonomia da pessoa com sofrimento psíquico. Toda a prática em saúde mental envolve a atuação de uma equipe multidisciplinar bem como a implicação da família, da sociedade e, principalmente, da pessoa que sofre.
Assim, define-se a esquizofrenia como um dos transtornos mentais mais graves
que existe, seja por sua sintomatologia, seja pela prevalência mundial
(cerca de 1% da população, segundo dados da Organização
Mundial da Saúde – OMS). A esquizofrenia se manifesta no final
da adolescência ou no início da vida adulta, tanto nos homens quanto
nas mulheres, podendo igualmente ocorrer na infância ou meia-idade.
De acordo com o DSM-IV (2003) – manual diagnóstico em psiquiatria
publicado pela Associação Americana de Psiquiatria (APA) –
a esquizofrenia é definida nas suas características essenciais
com presença de sintomas psicóticos, tais como delírios,
alucinações, dissociação do pensamento, comportamento
desorganizado ou catatônico e afetividade embotada. É um quadro
complexo apresentando sinais e sintomas na área do pensamento, percepção
e emoções, causando prejuízo nos cuidados pessoais, ocupacionais
e nas relações interpessoais e familiares.
Atualmente, o cuidado em saúde mental traz uma nova concepção
em torno da compreensão da pessoa com transtorno mental e das suas possibilidades
de mudança. Este cuidado considera o indivíduo e o seu sofrimento,
e não somente o diagnóstico, possibilitando um olhar integral
da situação que compreende, além do indivíduo, a
família e o meio social.
A proposta de se discutir as intervenções da abordagem gestáltica
em saúde mental surge do possível diálogo entre o que preconiza
a atual política de saúde e a teoria da Gestalt, por seus princípios
e concepções de homem e de mundo, enfatizando a potencialidade
do ser humano mesmo nos casos em que há um grave acometimento psíquico
e existencial.
Este trabalho tem como objetivo compreender os sintomas da esquizofrenia dentro
da perspectiva gestáltica, apresentando pontos importantes da teoria
e discutindo sobre uma possível conduta terapêutica nesses casos.
No artigo será dada ênfase à compreensão diagnóstica
e ações terapêuticas na esquizofrenia. Será abordado
o ciclo do contato proposto por Jorge Ponciano Ribeiro, dentre outros conceitos,
permitindo uma compreensão fenomenológica e pertinente à
abordagem gestáltica, respeitando a singularidade da vivência esquizofrênica.
Introduzindo o diagnóstico na perspectiva gestáltica: ciclo do contato
O processo do diagnóstico em saúde mental envolve a identificação do padrão funcional de uma pessoa através da escuta, observação dos sintomas e compreensão da sua vivência. Essa compreensão irá nortear uma intervenção terapêutica mais apropriada para o paciente.
Na Gestalt-terapia, o diagnóstico tem como objetivo identificar e explicitar
o modo pelo qual o indivíduo se relaciona com o ambiente e de que forma
significa a sua própria experiência (TENÓRIO, 2003). O diagnóstico
deve ser construído no contato, dentro do ambiente terapêutico.
Souza (et al., 2001) acredita que ao diagnosticar “é importante
considerar de que maneira o cliente mantém o seu processo de awareness,
de que forma percorre o ciclo do contato, quais são os mecanismos de
interrupção do contato que utiliza e qual o seu suporte disponível,
considerando seu funcionamento”.
O ciclo do contato corresponde segundo Ribeiro (2006), a “um modelo (...)
que se propõe a explicar didaticamente o jeito como as pessoas fazem
contato, produzindo, vivendo, se expressando e bloqueando sua relação
com o outro” (p. 87). Refere-se ao campo no qual a pessoa expressa suas
possibilidades dentro da realidade vivida.
O ciclo do contato, por sua vez, é considerado um indicador diagnóstico
e de psicoterapia, assim como afirma Ribeiro (1995, p. 24 apud PIMENTEL, 2003)
“uma Gestalt, um paradigma ou um modelo para pensar a psicopatologia do
sintoma, o psicodiagnóstico e um programa de cura” (p. 75). O ciclo
permite um olhar sobre o funcionamento do indivíduo ao mesmo tempo em
que propõe intervenções terapêuticas.
A partir da figura abaixo se pode ter uma visão da forma como o autor
propõe o ciclo do contato.
Este ciclo do contato corresponde a um ciclo integrado dos sistemas, níveis e funções que envolvem os fatores de cura e bloqueios do contato. Os três sistemas destacados são elementos básicos da personalidade – motor, cognitivo e sensório-afetivo – e as funções do self. Tal disposição do ciclo permite uma visão diagnóstica rápida ao se identificar os mecanismos do contato nos sistemas correspondentes e nas funções do self.
No centro do ciclo aparece o self como “um centro operacional de controle
de energia em forma de contato, de tal modo que o self é o retrato de
como a pessoa funciona, em dado campo” (RIBEIRO, 2007, p. 19-20). A observação
do self permite um olhar sobre a identidade de uma pessoa em contato. Uma desarmonia
ou interrupção nessa relação resultaria em um processo
psicopatológico.
O ciclo do contato é composto por nove processos denominados fatores
de cura: fluidez, sensação, consciência, mobilização,
ação, interação, contato final, satisfação,
retirada. Cada um desses fatores é visto como um passo à saúde,
como forma de contato pleno. O fator de cura é definido por Ribeiro (2007)
como:
“(...) um processo por meio do qual a pessoa experiencia, em dado momento, uma sensação de que algo novo, portador de mudança e de bem-estar, penetrou no seu universo cognitivo, e, através de uma consciência emocionada, provocada pela percepção de uma totalidade dinamicamente transformadora, sente-se inclinada, motivada, fortalecida para mudar” (p. 57).
O ciclo do contato, portanto, está relacionado ao processo de cura e
mudança através de uma sequência contínua de figura-fundo,
de trocas com o meio e satisfação de necessidades. As necessidades
identificadas mobilizam o organismo em busca de uma resolução.
O organismo diante da satisfação faz o fechamento do seu processo
assimilando toda a experiência. Durante todo o processo estão presentes
funções perceptivas, motoras e sensório-afetivas que funcionam
de modo integrado na mudança.
Entretanto, durante esse processo pode haver interrupções ou bloqueios
que impossibilitem uma resolução satisfatória das necessidades
do organismo. De acordo com a teoria da Gestalt-terapia, assim como apontam
Antony & Ribeiro (2004), “os bloqueios do contato são mecanismos
psicológicos que exercem funções defensivas e constituem
padrões de comportamento e percepção” (p. 130). Através
de tais mecanismos o indivíduo fica impedido de realizar contatos saudáveis
a partir do momento que mantém, no presente, situações
inacabadas.
É importante observar que os mecanismos de defesa podem ser saudáveis
ou patológicos, dependo da forma como o indivíduo se utiliza deles.
Ainda segundo os autores citados anteriormente, “esses processos do contato
possuem uma função saudável quando empregados flexivelmente,
atendendo às condições da situação e às
necessidades do indivíduo” (p. 130). É necessário
observar a frequência com que os mecanismos ocorrem e se estão
sendo utilizados indiscriminadamente ou de forma cristalizada.
Observando a esquizofrenia no ciclo do contato, as disfunções
mais comuns são as que correspondem à função id
do self, sendo elas a deflexão, a fixação e a dessensibilização.
A deflexão, segundo Delisle (1999), é uma estratégia para
reduzir a intensidade do contato como, por exemplo, o desvio do olhar, a utilização
de termos vagos e a expressão de forma exagerada. Como adaptação,
a deflexão permite reduzir a intensidade da experiência que seria
insuportável, pois nem sempre uma pessoa quer que o contato seja intenso.
Para Ribeiro (2007), a fixação refere-se ao processo através
do qual uma pessoa se apega excessivamente a pessoas, idéias, coisas
e, temendo correr riscos, tende a se manter fixada nas mesmas situações
sendo incapaz de explorar novas possibilidades. Ainda segundo o autor, no caso
da dessensibilização, a pessoa se sente anestesiada diante do
contato, apresenta diminuição sensorial no corpo e dificuldade
para se estimular perdendo, consequentemente, o interesse por sensações
novas.
As disfunções de contato apresentadas acima podem ser consideradas
saudáveis em determinadas situações do cotidiano, desde
que não interrompam a fluidez do ciclo. São consideradas funções
de segurança, sendo um aspecto do self indispensável à
saúde. São exemplos de disfunções “saudáveis”:
a fuga, o sono, entrar em estado de choque, a regressão, os sonhos etc.
Entretanto, quando utilizadas repetidamente tornam-se patológicas, como
ocorre na esquizofrenia.
A compreensão da esquizofrenia na abordagem gestáltica
A maior parte das psicopatologias, incluindo a esquizofrenia, estaria relacionada a um estreitamento da relação do indivíduo consigo mesmo e com seu meio, prejudicando o contato e, consequentemente, o seu desenvolvimento saudável.
Segundo Hycner (1989 apud HOLANDA, 1998), “a psicopatologia é resultado
de um ‘precoce diálogo abortado’. Isto significa que, no
mais profundo modo de encontrar os outros, essa pessoa não é ‘ouvida’
e sua voz torna-se monológica e tragicamente um ‘movimento interno’”
(p. 41).
De acordo com a filosofia dialógica, a desestruturação
psicótica deve-se a uma não-valorização da experiência
pessoal pelo outro. Em consequência disso a pessoa “não pode
sentir-se confirmada e, portanto, não é capaz de apreciar e valorizar
sua própria experiência, tem de rejeitá-la, alienando uma
parte de si mesma, que vai tornar-se inconsciente” (HYCNER, 1995 apud
TENÓRIO, 2003, p. 39). Por exemplo, pais que não foram capazes
de entender, considerar e valorizar a experiência da criança. Esta,
então, perde seu referencial deixando de entrar em contato consigo mesma,
seus desejos, vontades e sensações, ao ter que atender às
expectativas de outras pessoas, resultando em contatos distorcidos e limitados.
Friedman (1985 apud SANTOS, 2005) também aponta para a ausência
de confirmação da experiência pelo outro no histórico
de pacientes esquizofrênicos.
“Não há uma concordância quanto à causa da esquizofrenia, no entanto, na história familiar de pessoas com esquizofrenia nota-se que não houve espaço para que a criança tomasse como real o que ela percebia e sentia. Geralmente suas concepções foram coagidas a serem substituídas pela doutrinação dos pais, ou seja, suas percepções e sentimentos não foram confirmados como sendo reais, autênticos e nem mesmo possíveis. Não sendo livre para sentir ou agir, a única opção (além de se tornar um só à medida que aceite por completo a imposição dos pais) é o isolamento total, a loucura” (p. 82).
Ainda em relação ao prejuízo no contato, Tenório
(2003) coloca que:
“Na psicose há um processo de profunda alienação de si mesmo e do outro, por conta de uma total impossibilidade de se estabelecer um diálogo com o outro (EU-TU). O outro teve que ser alienado por se revelar excessivamente poderoso e nocivo à preservação do eu. Esse eu tornou-se desconhecido em virtude de tantas defesas e negações de si mesmo, na tentativa de minimizar a ameaça externa” (p. 40).
De acordo com a passagem acima, pode-se dizer que na psicose há um comprometimento
com a questão relacional, neste caso por uma fuga do contato. Diante
da desconfirmação e da ameaça, o indivíduo tende
a se afastar e se isolar da situação que gera sofrimento. “Na
situação específica de um esquizofrênico, por exemplo,
existe um obstáculo visível: a não-disposição
do outro em sair de seu mundo próprio” (HOLANDA, 1998, p. 41).
“O outro passa a ser visto como agente promotor de angústia e sofrimento uma vez que é fonte de desconfirmação. Isto explica então o papel da presença neste tipo de personalidade. (…) para o esquizofrênico, há um vazio da presença. Ele recorre à ‘segurança’ do seu isolamento na tentativa de não se sentir ameaçado por qualquer presença que possa mais uma vez desintegrar seu self diante nova desconfirmação” (PETRELLI, 2004 apud SANTOS, 2005, p. 182).
O reconhecimento do próprio self é premissa básica para
o fluxo contínuo do ciclo do contato. A desconfirmação
do self interrompe o contato do “eu” consigo mesmo e com o mundo,
além da impossibilidade de diferenciação entre a própria
experiência e a do outro que é imposta como única e verdadeira
(fixação) . Neste caso surge a confluência.
Segundo Delisle (1999), a confluência acontece quando a fronteira de contato
é tão ofuscada que não permite a distinção
entre indivíduo e ambiente. A fronteira não é experienciada
refletindo na dificuldade para fazer contato. Não há clareza na
representação do “eu” em oposição ao
“não-eu”. A confluência ocorre quando o indivíduo
é incapaz de focar na sua própria experiência e, sem intenção,
se funde com outra pessoa.
Na esquizofrenia a confluência surge de uma relação de não-contato
com necessidades autênticas já que o indivíduo durante a
sua vida criou uma “dependência” diante da desconfirmação
e escolhas do outro. O indivíduo perde a espontaneidade e a capacidade
de focar na sua própria experiência ficando paralisado e interrompendo
o contato.
Segundo Robine (2006), a confluência é “um apego a uma situação
antiga que se tornou obsoleta” (p. 106). Diante da “segurança”
de buscar no outro a satisfação das suas necessidades, o esquizofrênico
continua fixado nessa situação. Por não se tratar da sua
necessidade, mas sim do outro, o indivíduo vivencia situações
interrompidas ou não-satisfeitas, sendo submetido a sucessivas interrupções
no fluxo natural entre figura-fundo gerando o sofrimento.
“É comum encontrarmos psicopatologias graves em pessoas com tais históricos, principalmente psicopatologias que implicam em uma divisão interna muito profunda, quando a pessoa se vê fragmentada, e cujas partes não entram em contato, ou tal contato é ocasional ou instável, como na esquizofrenia ou outras patologias esquizóides” (ZINKER, 1979, p. 85 apud RODRIGUES, 2000, p. 125).
A indiferenciação entre o “eu” e o “não-eu”
torna o indivíduo alienado do meio. Um exemplo disso são as alucinações
presentes nos quadros de esquizofrenia. A experiência alucinatória
é vivenciada como real e natural, não estando separada do “eu”.
Dessa forma, o paciente “(...) perde contato com o mundo em que vivem
os indivíduos não-patológicos. Pela falta da capacidade
de afastar-se de sua própria experiência, não está
potencializado a compartilhá-la” (SANTOS, 2006, p. 346).
Além da compreensão da relação baseada no dialógico,
outros autores ainda chamam a atenção para o self – alvo
da desconfirmação – e suas funções. A psicose
– incluindo a esquizofrenia – assim como afirma Goodman (apud GINGER
& GINGER, 1995) corresponde, sobretudo, “a uma perturbação
da função id: a sensibilidade e a disponibilidade do sujeito às
excitações externas ou internas estão perturbadas: ele
não responde claramente ao mundo exterior nem às suas próprias
necessidades” (p. 128), estando desconectado da realidade.
Perls (1969, p. 173-5 apud MÜLLER-GRANZOTTO & MÜLLER-GRANZOTTO,
2008, p. 4), apresenta algo semelhante sobre a psicose:
“O psicótico tem uma camada de morte muito grande, e esta zona morta não consegue ser alimentada pela força vital. Uma coisa que sabemos ao certo é que a energia vital, energia biológica (...), torna-se incontrolável no caso da psicose. (...) o psicótico nem mesmo tenta lidar com as frustrações; ele simplesmente nega as frustrações e se comporta como se elas não existissem”.
A psicose, segundo Latner (1973), “aparece em situações
extremas onde há uma falta de equilíbrio das funções
do self” (p. 141). O contato com o campo é severamente reduzido
e leva a uma ruptura na coordenação dos modos id e ego gerando
o conflito. Ocorre uma fragilidade do modo ego (perda de controle) diante de
tanta energia (excitamento) que não é definida de acordo com a
sua relevância do momento. A incapacidade para retornar ao funcionamento
espontâneo, faz com que o self se torne predominantemente id .
Perls (1969a, p. 135 apud LATNER, 1973) confirma tal compreensão ao afirmar
que “nas psicoses, a energia presente não pode ser controlada e,
ao invés de ser distribuída de forma discriminada, ela vem em
excesso ” (p. 142). Toda energia disponível não consegue
ser distribuída de forma equilibrada e funcional.
Com um contato escasso, a frouxidão das fronteiras do id torna-se exacerbada
e podem surgir disfunções do contato, tais como introjeção,
projeção, confluência, decorrentes da perturbação
de si mesmo e do campo. Latner coloca que essa é uma descrição
geral dos aspectos presentes em desordens severas que se caracterizam pela perda
de controle do self.
Ainda de acordo com este autor, “(…) o funcionamento com preponderância
no modo id em geral são mais extremos e perturbados do que os que persistem
no modo ego” (LATNER, 1973, p. 143), como o narcisismo, a megalomania
e a paranóia. Em geral, quando a função ego é bem
desenvolvida e permite a manipulação do contato com o campo o
indivíduo passa a ter mais habilidade para moderar as disfunções,
fato contrário ao que ocorre com a função id.
Geralmente, o modo ego tende a assumir a dominância não-saudável
em busca da ação, procurando pelos excitamentos que a função
id não foi capaz de fornecer ou forneceu de forma desarticulada. Entretanto,
a ação do ego nesse funcionamento “emergencial” não
é suficiente para assegurar a satisfação das necessidades.
Em algumas desordens, como na psicose , a função id estaria, por
alguma razão, ausente, falhada ou desarticulada, como mostra Müller-Granzotto
& Müller-Granzotto (2008):
“a função id (que justamente se caracteriza pela formação e mobilização do fundo de excitamentos) não cumpriria seu papel, razão pela qual a função ego (caracterizada pela ação motora e linguageira) estaria desprovida dos motivos para lidar com o dado na fronteira de contato” (p. 9-10).
“O sistema self seria, então, acometido de uma espécie de
‘rigidez (fixação)’” (PERLS, HEFFERLINE &
GOODMAN, 1951, p. 34 apud MÜLLER-GRANZOTTO & MÜLLER-GRANZOTTO,
2008, p. 9-10) (grifo dos autores), tal como observado nos comportamentos por
vezes descritos pela psiquiatria. Um exemplo disso poderia ser o descuido com
a higiene pessoal que pacientes com o quadro de esquizofrenia costumam apresentar.
Já que o fundo de excitamentos encontra-se comprometido, o seu próprio
corpo ou “dado”, como colocam os autores Müller-Granzotto,
neste caso não seria percebido, passando a ser descuidado e até
negado.
A persistência modo id pode “aumentar nossa energia e atividades
bizarras – ou talvez simplesmente parar-nos, catatônicos”
(LATNER, 1973, p. 145). Nessa passagem Latner resume o funcionamento do organismo
no modo id quando o self está prejudicado. Como visto acima, o excitamento,
ou vem em excesso, não se identificando as figuras que precisam ser fechadas,
ou não ocorre, permanecendo diluído no fundo do self.
Dessa forma, o self permanece fechado para o fluxo de diferenciação
com o campo estando unificado às experiências provindas do ambiente.
O indivíduo se torna inseparável das coisas que participa e toda
sua vivência está integrada ao meio. Nesse movimento confluente
o resultado é a perda da realidade onde o indivíduo não
consegue se distinguir do meio e nem perceber o que está realmente acontecendo
consigo mesmo.
Ao se observar o ciclo do contato proposto por Ribeiro (2007) é possível
perceber de que forma o self funciona dentro da função id e como
a esquizofrenia é vivenciada no campo.
Com base nos mecanismos de interrupção do contato correspondentes
ao self na função id – deflexão, dessensibilização
e fixação – pode-se fazer uma rápida referência
aos comportamentos observados na esquizofrenia para uma compreensão didática.
A deflexão pode ser observada nos casos em que há falta de contato
com o outro no momento em que o paciente vivencia o contato com as suas vozes
(alucinações auditivas). A dessensibilização está
presente nos casos em que o paciente ignora as sensações dolorosas.
A fixação pode ter relação com o pensamento concreto,
levando ao “pé da letra” tudo que lhe é dito.
De modo integrado às interrupções do contato, as funções
sensoriais e afetivas encontram-se comprometidas resultando na dificuldade apontada
por Goodman: necessidades não identificadas e contatos interrompidos.
Essas funções presentes no ciclo do contato correspondem às
descrições obtidas nos manuais de classificação
diagnóstica em psiquiatria quanto à referência do comprometimento
sensorial e afetivo na esquizofrenia.
As alucinações observadas nos quadros psicóticos se referem
a um erro no registro sensorial, ou seja, uma percepção sensorial
que ocorre na ausência do estímulo do órgão sensorial
correspondente. Outro sintoma fundamental no diagnóstico é o comprometimento
afetivo que é manifestado através da diminuição
na habilidade de expressar-se emocionalmente, inabilidade de experimentar prazer,
perda de interesse pela interação social, dentre outros.
Diante do que foi abordado acerca da perturbação presente nas
relações de contato de pacientes esquizofrênicos, pode-se
dizer que os mesmos não conseguem manter espontaneamente o contato consigo
mesmo e com o mundo a sua volta de forma autorreguladora.
Segundo Vicentini (2007), o paciente psiquiátrico “não consegue
perceber sua morbidez e/ou suas necessidades pela incapacidade de entrar em
contato consigo mesmo, quer seja por mecanismos de defesa ou até mesmo
por déficit intelectual”. Entretanto, essa dificuldade pode ser
minimizada através de intervenções que auxiliem na configuração
de um novo funcionamento.
Conduta e intervenções terapêuticas na esquizofrenia
No funcionamento saudável e equilibrado, o indivíduo passa a identificar suas necessidades e, ao mesmo tempo, se diferencia do ambiente. Ele consegue responder satisfatoriamente às suas necessidades, fechando processos, se transformando e se abrindo a novas possibilidades em busca do crescimento e desenvolvimento saudável, mesmo que dentro dos seus limites. Esse é o resultado esperado no tratamento de pacientes esquizofrênicos.
Diante do que foi abordado quanto à compreensão da esquizofrenia
através do Ciclo do Contato proposto por Jorge Ponciano, é possível
propor algumas intervenções.
Com base na sintomatologia da esquizofrenia, a falta de contato com a realidade
na presença de alucinações e/ou delírios mostra
que na maioria das vezes não é possível uma intervenção
no momento em que estas vivências acontecem para o paciente. Pensando
na relação estabelecida entre tais fenômenos e o mecanismo
da deflexão, pode-se pensar que a intervenção ocorre quando
o paciente não está alucinando, delirando ou quando preserva um
mínimo de contato com a realidade externa para que seja estabelecido
um diálogo e incentivo à percepção de outros estímulos.
“O esquizofrênico vive a angústia da iminente desintegração do self. Relacionar-se com alguém é o mesmo que ser destruído ou destruir o outro. Isso justifica o seu isolamento. Dessa maneira, a forma pela qual o indivíduo esquizofrênico é abordado é fundamental na possibilidade de interação com o outro” (LAING, 1982 apud SANTOS, 2005, p. 181).
Como observado neste artigo, a deflexão é caracterizada por uma
vaga relação com o outro, ao mesmo tempo em que surge na pessoa
uma sensação de estar sendo incompreendida. A deflexão
também pode ser pensada como uma forma de preservar o eu diante de contatos
que causam sofrimento. O trabalho de consciência – fator de cura
da deflexão – com pacientes esquizofrênicos ocorre a partir
do momento em que é possível o incentivo a uma reflexão
sobre si mesmo, estando mais atento ao que ocorre no meio e na relação
com outras pessoas.
Na existência de alucinações e/ou delírios o terapeuta
pode estar presente dando suporte à vivência. No período
de ausência dos sintomas o trabalho é focalizado numa reflexão
diante do reconhecimento desses sintomas e vivências, e da participação
no que ocorre ao seu redor, inclusive na interação com outras
pessoas. Isso pode ser incentivado diante de atividades terapêuticas e
intervenções que estimule a observação do ambiente
externo e a relação com seus pensamentos e vivências internas.
A sensação de segurança diante do outro permitirá
uma relação, mesmo que estreita e na presença desses sintomas,
possibilitando o contato.
A dessensibilização está presente nos casos em que o paciente
está embotado afetivamente ou não se estimula diante das várias
possibilidades que são oferecidas. Na abordagem dos pacientes esquizofrênicos
à sensação – fator de cura da dessensibilização
– é preciso que a estimulação esteja sempre presente,
num trabalho de incentivo ao contato, à experiência de novas relações,
respeitando seus limites. É possível observar que com o tempo
um vínculo afetivo se constrói à medida que relações
de confiança surgem. Podem-se utilizar técnicas para “criar
a possibilidade de que o indivíduo sinta a atenção que
o terapeuta dedica a ele e incitar, progressivamente, uma focalização
na própria atenção” (ROBINE, 2006, p. 107).
Para tanto, o enfoque do trabalho visará sempre o que o indivíduo
traz no momento presente: o que sente, o que experimenta, o que pensa, o que
percebe, o que gosta, o que evita. Deve ser uma prática frequente e rotineira
a fim de despertar o paciente à percepção e interesse para
novas atividades.
A fixação vista anteriormente, pode ter relação
com o pensamento concreto, delírios de perseguição e idéias
fixas. Trabalhar com a existência de outras possibilidades, respeitando
e aceitando as idéias do paciente, mas mostrando que outro pensamento
é possível, observando o que realmente acontece, como acontece
e o que faz com que a pessoa pense diferente. Através de intervenções,
associadas ao vínculo terapêutico, algumas mudanças são
percebidas.
No estabelecimento de qualquer intervenção é importante
observar também as fronteiras de contato desse paciente. Vicentini (2007)
mostra que pacientes psicóticos apresentam “uma fronteira de contato
muito rígida porque suas vivências internas são tão
intensas que estes pacientes podem interpretar o contato como uma ameaça
a sua integridade física”. Isso significa que o terapeuta deve
levar em consideração a dificuldade que o paciente tem em perceber
seu senso de integridade e os limites da sua fronteira que o separam do mundo.
Por esse motivo, na relação terapêutica, como afirma Vicentini
(2007), é importante perceber a fronteira de contato estabelecida entre
paciente e terapeuta. Alguns pacientes esquizofrênicos se esquivam do
contato enquanto outros tendem a invadir o espaço do outro com atitudes
inadequadas. Ainda segundo a autora, a conduta deve ser diferenciada em relação
à fronteira do contato identificada: ampliação da fronteira
para os que apresentam um contato limitado – respeitando os limites de
cada um, não indo muito além da fronteira –, e estreitamento
para os invasivos, trabalhando com dados da realidade e limites.
O trabalho da Gestalt-terapia será voltado para uma ampliação
da consciência do indivíduo sobre seu próprio funcionamento,
observando os sintomas existentes, minimizando o sofrimento diante do encontro
com o outro.
A confirmação e a presença tornam-se essenciais no processo
terapêutico. A “confirmação se refere à validação
da experiência do outro. Não o ato de aceitar ou concordar, mas
compreender e autenticar a experiência do outro como sendo possível,
válida e real” (SANTOS, 2005, p. 181).
Santos (2005) expõe sua prática com pacientes esquizofrênicos
apontando para a possibilidade de se estabelecer vínculo nesses casos.
“Vínculos talvez mais frágeis que, se levada em consideração
a condição do ser esquizofrênico, é uma grande conquista
na história do tratamento” (SANTOS, 2005, p. 182) (grifo da autora).
Ainda segundo a autora, as possibilidades de “cura” e a construção
do vínculo refletem o sucesso da terapia.
Apesar de todas as possibilidades de conduta terapêutica para pacientes
esquizofrênicos, é preciso atentar para a questão dos limites
do outro e das dificuldades de se estabelecer contato em momentos específicos.
A relação que este tipo de paciente estabelece com o mundo está
perturbada, não permitindo uma total abertura para o diálogo.
Isso pode ser observado numa passagem de Buber (1965b, p. 175 apud HYCNER, 1997)
quando o mesmo diz: “Posso conversar com um esquizofrênico na medida
em que está disposto a incluir-me no mundo que lhe é próprio...
Mas no momento em que ele se fecha nesse mundo, não posso entrar”
(p. 49). Entretanto, o terapeuta não enxergará sua tentativa de
contato como algo frustrado a partir do momento em que estiver disposto a aceitar
a existência do outro na sua singularidade.
Considerações finais
Em relação à proposta deste trabalho, foi possível elaborar uma compreensão da sintomatologia da esquizofrenia de acordo com a abordagem gestáltica. No que se refere à conduta terapêutica, é importante destacar que o resultado esperado no tratamento de pacientes esquizofrênicos deverá levar em consideração as especificidades desse paciente, seus limites, seu contexto e sua realidade. Assim, o terapeuta não vislumbrará somente a possibilidade de cura, mas, antes de tudo, a possibilidade desse indivíduo se organizar dentro da sua sintomatologia, tornando-se responsável por si mesmo.
Não se pretendeu
esgotar aqui o assunto, mas creio ter tocado em alguns pontos principais da
abordagem. Ressalto aqui que o enfoque principal da Gestalt-terapia é
a própria relação do indivíduo consigo mesmo e com
o seu meio. Devido a estas particularidades, a abordagem gestáltica pode
ser utilizada em busca de um desenvolvimento saudável e pessoal de qualquer
indivíduo e, cada vez mais, dos que são acometidos por transtornos
mentais graves.
Referências
APA – American Psychiatric Association. DSM-IV: diagnostic and statistical manual of mental disorders. 4ed. Artmed. 2003.
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Ludmila Vieira
E-mail: lud_vieira@hotmail.com
Recebido em:
05/10/2009.
Aprovado em: 07/03/2010.