ARTIGO

 

 

O logos estético no contexto psicoterapêutico: abertura e desdobramentos do corpo para além do discurso


The aesthetic logos in the psychotherapeutic context: opening and unfolding of the body beyond the discourse


Lorena Figueiredo

Instituto Aquilae, Ceará, Brasil

Endereço para correspondência



Resumo

O presente texto discute a necessidade de uma abertura a outros referenciais que norteiem a psicologia fenomenológico existencial e sua atuação no campo terapêutico, abrindo espaço para novas possibilidades práticas, qualquer que seja a área de atuação ou situação em que venham a acontecer. Tomando a arte, o corpo e o cotidiano como novos referenciais, destaca a importância da experiência estética, elemento comum a tais referenciais, possibilitando reconhecer, no espaço emergente da relação psicoterapêutica, sua dimensão criativa e revigoradora do fluxo vital, partindo do princípio de afinidade entre a lógica da vida e a lógica do conhecimento e, assim, nos colocando numa relação viva, plástica e ética com a vida.

Palavras-chave: Psicoterapia; Arte; Criação; Corpo; Cotidiano; Experiência estética.


Abstract

This paper discusses the need to be open to new theoretical perspectives that guide the existential-phenomenological psychology and its role in therapy, providing an opportunity for new practical possibilities, whatever the space or situation in which those possibilities may occur. By considering art, body and daily life as new theoretical perspectives, it highlights the importance of the aesthetic experience, an element common to those perspectives, allowing one to recognize in the emerging space of the psychotherapeutic relationship, its creative and invigorating dimension of the vital flow, focusing on the affinity between the logic of life and logic of knowledge. That way, those involved in psychotherapeutic relationship are placed in a living relationship, one that is plastic and ethical with life.

Keywords: Psychotherapy; Art; Creation; Body; Daily life; Aesthetic experience.



Ele se sente como um deus: o que outrora vivia somente em sua força imaginativa, agora ele sente em si mesmo. O que são para ele agora imagens e estátuas? O homem não é mais artista, tornou-se obra de arte, caminha tão extasiado e elevado como vira em sonho os deuses caminharem. O poder artístico da natureza, não mais a do homem, revela-se aqui: uma argila mais nobre é aqui modelada, um mármore mais precioso é aqui talhado: o homem. Este homem, conformado pelo artista Dionísio, está para a natureza assim como a estátua está para o artista apolíneo.
(NIETZSCHE, 1872/ 2005, p. 9)


Esse texto foi escrito ao longo dos cursos de formação em Arte Terapia e Corpo em Movimento no Contexto Terapêutico, quando no decorrer de tais cursos, as práticas vivenciais e leituras teóricas foram suscitando questões pertinentes às inserções entre arte, criação, corpo, experiência estética, cotidiano e psicoterapia. Concomitantemente às questões que se apresentavam, surgia a necessidade de um maior aprofundamento e atualização acerca do que denominamos hoje de arte, criação, corpo, cotidiano e psicoterapia; bem como do que se compreende como experiência estética, elemento comum a tais referências.


São questões provocativas na medida em que a sua complexidade é de difícil articulação teórica, tendo em vista que se fundam na vivência, não sendo da ordem do conceitual e objetivo – como objeto científico –, mas do fenomenal, do evento, do acontecimento, daquilo que é apreendido na sua experiência imediata, de sensível, íntima e aparente estranheza. É complexo, principalmente, quando esta experiência estética ao longo dos séculos, foi revestida pela cultura e pelo conhecimento que dela se engendra, de vestimentas conceituais, como que delimitando seus excessos, encobrindo seus pudores, seus afetos, suas pulsões, suas paixões, sua finitude e tendo na filosofia, na religião e na ciência seus grandes “estilistas”. Quando nos referimos à experiência estética nos referimos ao corpo enquanto fluxo de afetos, campo de forças em tensão que, a despeito de toda uma roupagem teórico-conceitual, teima em se despir e se apresentar em seus múltiplos desdobramentos; teima em ser visível/invisível, com sua nudez a desafiar todos os pressupostos. Tal desafio se faz presente quando estamos diante dele no espaço psicoterapêutico e quando tal espaço se cria a partir da ética do reconhecimento e da afirmação inquestionável de sua humanidade, para além ou aquém de qualquer juízo de valor que não seja do humano, demasiadamente humano, como afirma Nietzsche (1878, 1886/2000), e não há nada mais afirmativo e demasiadamente humano do que o corpo na sua dimensão de potência de forças. A presença deste corpo que somos nós, a partir do qual somos afetados e, concomitantemente, a partir do qual afetamos o mundo, solicita uma maior visibilidade e compreensão de seu caráter estésico, ou seja, na sua dimensão de perceber-se pelos sentidos e sensações, e seus desdobramentos criativos no processo psicoterapêutico. O que instiga e nos remete a novas possibilidades de referenciais de prática experimental de um empirismo fenomenológico existencial: [...] uma abordagem da realidade a partir da própria vivência de tal realidade e não a partir de pressupostos teóricos que definam como essa realidade deve ser. Empiria é a abordagem da realidade na própria vivência da realidade [...] (FONSECA, 2005a, p. 69).


Trata-se aqui de uma perspectiva não teorizante que afirma a vida em toda a sua concretude, como fluxo contínuo de vislumbres, desdobramentos, atualizações de novas possibilidades de ser e viver, Como alguém se torna o que é como dizia Nietzsche (1888/1995), no subtítulo de seu livro “Ecce Homo”; Tomar a si mesmo como um fado, não se querer ‘diferente’[...] (Ibid. p. 31). Se partirmos da perspectiva de que a vida é devir, o lugar do psicoterapeuta é estar presente na afirmação do outro no seu movimento singular de ser outro, como afirma Paz (1956/1972):


Os estados de estranheza e reconhecimento, de repulsão e fascinação, de separação e reunião com o Outro, são também estados de solidão e comunhão com nós mesmos. Aquele que de vera está a sós consigo, aquele que se basta em sua própria solidão, não está só. A verdadeira solidão consiste em estar separado de seu ser, em ser dois. Todos estamos sós, porque todos somos dois. O estranho, o outro é nosso duplo. [...] E esse ser outro não é senão recobrar nossa natureza ou condição original. (p. 134/135)


É a outridade que, em seu desdobramento de diferença e estranheza, pode vir a ser um momento de profundo sofrimento, tanto para aquele que a vive quanto para o seu mundo de relações. Para ocupar tal lugar na relação psicoterapêutica, se faz necessária uma prática fundamentada em referenciais que privilegiem o vivido na sua dimensão sensível, experimental; no momento mesmo em que se desdobra em outro como modo possível de ser-no-mundo, referenciais que evidenciem a vida vivificada como corpo na sua mais íntima concretude, ou seja, a vida na dimensão estética, trágica.



A estética da existência na razão trágica

Quando se fala da vida na sua dimensão estética, trágica, a estética à qual me refiro se diferencia da estética kantiana:


[...] no kantismo, estudo dos juízos por meio dos quais os seres humanos afirmam que determinado objeto artístico ou natural desperta universalmente um sentimento de beleza ou sublimidade. (HOUAISS, 2001)


Evidencio a estética na sua dimensão estésica, vivida, experimental, plástica, uma presença enfática nas relações cotidianas, espaço próprio de desdobramentos de relações face a face, de contágio, de contato consigo mesmo, com o outro, com o mundo, com a diferença. Trata-se, literalmente, de corpo a corpo: complexo, contraditório, conflituoso, imperfeito, obscuro, efêmero, que, diferentemente de uma razão filosófica e científica regida pela lógica da vida “como deveria ser” – a partir de um ideal categórico, teórico conceitual e moral –, vive-se o logos trágico, no qual se experimenta o mundo como ele se apresenta, de maneira estética, afetiva, no qual situações e atitudes se esgotam no próprio momento de sua efetivação, na medida em que são vividas no presente. As relações cotidianas são lábeis, contínua atualidade e afirmação do momento vivido e pontual, um dizer sim às incertezas, às ambiguidades, aos conflitos, às contradições e à finitude. Portanto, o presente como tempo cotidiano é o espaço próprio da afirmação do limite, da incompletude, concomitantemente, é o espaço propício, também, aos desdobramentos de novas possibilidades de ser e viver, engendradas a partir da afirmação de tal limite. Desta forma, apresenta-se a vida como tensão entre o limite da finitude e o “querer viver”, desdobrando-se em novas possibilidades de recriação de si. Nesse sentido Maffesoli (1996/2001) se refere ao saber “dionisíaco”:


[...] saber ‘dionisíaco’ que esteja o mais próximo possível do seu objeto. Um saber que seja capaz de integrar o caos ou que, pelo menos, conceda a este o lugar que lhe é próprio. Um saber que saiba, por mais paradoxal que isso possa parecer, estabelecer a topografia da incerteza e do imprevisível, da desordem e da efervescência, do trágico e do não racional. Coisas incontroláveis, imprevisíveis, mas não menos humanas. Coisas que, em graus diversos, atravessam as histórias individuais e coletivas. Coisas, portanto, que constituem a ‘via crucis’ do ato do conhecimento. (p. 12/13).


A imersão no mundo nos coloca, irremediavelmente, na concretude das relações cotidianas. Faço, aqui, esta íntima relação entre psicoterapia e razão ou logos estético, partindo do princípio de que experimentamos na vida cotidiana uma relação que tem como “liga” os afetos, os sentimentos e as crenças que a permeiam e se efetivam em minúsculos hábitos e ações pontuais (MFFESOLI, 1979/1984). Repetindo a citação acima, “coisas incontroláveis, imprevisíveis e não menos humanas” que, em algum momento solicitaram novas configurações de sentidos, de uma atualização que se evidencia na relação psicoterapêutica, pela afirmação do outro como ele se apresente e para além dos juízos a priori de como ele deva ser, afirmando o momento vivido e pontual com as singularidades que lhes são próprias, suas incertezas, suas ambiguidades, suas contradições, sua finitude e seu acaso.


O corpo como ser de relações na teatralidade cotidiana

Configurações se engendram a partir de uma lógica outra, a lógica do logos trágico, que começa a permear, a se entrelaçar a princípio de forma subterrânea e pontual; ganhando visibilidade no seu espaço próprio de acontecimento, no mundo das relações cotidianas; em momentos fortuitos em que o sujeito autônomo moderno abre sua guarda e se permite a um mínimo de heteronomia, em momentos efêmeros em que a racionalidade reflexiva e conceitual abre espaço a encontros experimentais permeados de sentimentos, paixões e corpos. Lógica que hoje se expande e onde, a cultura que emerge das relações por ela articulada se torna de difícil compreensão quando explicada a partir da lógica da razão iluminista.


A razão trágica ou logos trágico a que me refiro acima se apresenta como necessária a um tempo de futuro ainda não provado, algo já vislumbrado há cem anos, por Nietzsche (1882, 1887/2002 b), em “A Gaia Ciência”, que, assim, solicitava uma nova saúde:


Nós, os novos, sem nome, de difícil compreensão, nós rebentos prematuros de um futuro ainda não provado, nós necessitamos para um novo fim, também um novo meio, ou seja, de uma nova saúde, mais forte, alerta, alegre, firme audaz que todas as saúdes até agora. [...] nós, argonautas do ideal, mais corajosos talvez do que seria prudente, e com frequencia náufragos e sofridos, mas, como disse, mais sãos do que nos concederiam, perigosamente, sempre novamente sãos – quer nos parecer como se tivéssemos, como paga por isso, uma terra ainda desconhecida à nossa frente, cujos limites ainda ninguém divisou, um além de todos os cantos e quadrantes do ideal, um mundo tão opulento do que é belo, estranho, questionável, terrível, divino, que tanto nossa curiosidade como nossa sede de posse caem fora de si – [...] Como poderíamos nós, após tais visões, e com tal voracidade de ciência e consciência, satisfazermos com o homem atual? [...] para isso necessita mais e antes de tudo uma coisa, a grande saúde [...] (p. 286).


Hoje, esta razão estética se configura, segundo Maffesoli (1993/1995), como emergência de um novo estilo que se esboça como uma profunda metamorfose, em via de se instituir como uma nova configuração do mundo, delimitando-se como estilo de uma época. Convém, portanto, perguntarmos por esta experiência de mundo, com o mundo e no mundo que nos engendra e se engendra na emergência de tal estilo estético. Quem nos responde já não é tão somente o homem uno, como sujeito da modernidade, racional, consciente, pensante, ser indivisível e unificado em seu próprio interior, centrado numa identidade imutável ao longo da existência, homem presente na filosofia e na ciência. Quem nos responde é o homem que, existencialmente, vive o mundo como campo de forças, em contínua convivência e conivência com as tensões entre potências ativas e reativas. O homem que, na sua singularidade, se caracteriza pelos múltiplos papéis “interpretados” no seu encontro com o outro, e com sua outridade, vivendo na concretude trágica do cotidiano: palco, espaço próprio do paradoxo, da contradição, da multiplicidade, da diferença. Homem que vive na concomitância de se experimentar no “dever ser” das normas próprias das instituições sociais com a labilidade das relações face a face próprias das relações corpo a corpo; ou seja, relação enquanto espaço e palco promotor de acontecimentos já que é nela que vivemos, é ela que somos e é por meio dela que nos desdobramos nos vários outros.


Trata-se do homem que vive, sente e se expressa na sua experiência existencial mais básica, simples e primeira, na sua condição possível de ser-no-mundo, naquilo que Perls (PERLS et al., 1951/1997) definiu como “contato” (p. 43), que apresenta o paradoxo da íntima e intrínseca relação e diferença entre o eu e o não-eu; é delimitado por uma fronteira, que não significa separação, mas um “entre”, que limita, ao mesmo tempo em que liga e se abre, ainda como vislumbre, ao sentido, ao contato com a novidade, numa tensão entre a vivência de ser-no-mundo e a atualização das possibilidades de ser:


Num sentido mais próprio, então a Fronteira de Contato dá-se assim, não como uma articulação sujeito-objeto, mas como vivência de tensão entre (no âmbito inter, inter pré ação, inter ação), entre, a vivência de ser-no-mundo e a atualização da(s) possibilidade(s) de ser, atualização de um pré-ser que lhe é inerente. Tensão, no âmbito vivencial entre a possibilidade e o seu desdobramento, entre a possibilidade e a sua interpretação (FONSECA, 2005a, p. 105).


Quando tratamos de contato, nos referimos a ato, ação, ato-ação, movimento, afetamentos, através dos quais se desdobram novas possibilidades de ser, no tempo e espaço mesmo das relações. Costuma-se usar a metáfora do corpo a corpo ou do face a face para expressar uma relação de intensidade e de proximidade, na sua dimensão existencial mais concreta, mutável, efêmera, falível, finita. São assim as nossas relações na vida cotidiana: tensão do corpo a corpo, do cara a cara; portanto, são contraditórias, ambíguas, obscuras, felizes, infelizes, presentes, desdobradas em múltiplas, pontuais, efêmeras máscaras, personagens, performance, improviso, contato. No teatro próprio da cotidianidade:


[...] no aparecer da repetição, a aspereza da estranheza, da alteridade que gera a exclusão é limada. Teatralizando, as coisas e as pessoas se apresentam em seus aspectos diversos e móveis, não se constituindo em arestas compartimentadas, ficando apenas suas múltiplas facetas que podem articular-se, acomodar-se entre si. O verdadeiro teatro, portanto é o da cotidianidade [...] (MAFFESOLI, 1979/1984, p. 136).


A afirmação de ser/estar no mundo em sua mais íntima concretude e teatralidade é se abrir às múltiplas possibilidades de devir no mundo da vida, daquilo se afirma, que move, movimenta; daquilo que se presentifica e vivifica que vigora e se revigora, que cria e se recria. Refiro-me aqui ao que Nietzsche (1883, 1885/2002 a) denominava de “grande razão”:


O corpo é uma razão em ponto grande, uma multiplicidade com um único sentido, uma guerra e uma paz, um rebanho e um pastor. [...] Por detrás dos seus pensamentos e sentimentos, meu irmão, há um senhor mais poderoso, um guia desconhecido. Chama-se ‘eu sou’. Habita no seu corpo; é o seu corpo (p. 26).


Diferentemente da filosofia, da ciência e da religião, que negam o corpo para afirmar a consciência/alma/espírito, em Nietzsche (1883, 1885/2002 a) O corpo criador criou para si mesmo o espírito como procedência da sua vontade (p. 27), portanto, o corpo, como grande razão, não é uma inversão do dualismo corpo/alma:

[...] o filósofo guarda a existência dos dois pólos, condicionando-os a um único ponto de partida, a saber, o corpo. A dissolução dos componentes anímicos ou espirituais no âmbito corpóreo não deve ser entendida como um simples processo reducionista, pelo contrário, o corpo é o território caótico onde todas as possibilidades estão abertas, é a instância do múltiplo. Nietzsche não pretende, então, reduzir o intelecto ao corpo, mas em apresentar o corpo como “pluralidade de intelectos”, colocando em evidência o caráter radical da pluralidade. (MACHADO, 2006, p. 62).


O corpo, a princípio, é afirmado como inerente à vida, à natureza na razão mítica, como bem define Gil (2002/2005) onde: O corpo não era mais que um campo de forças atravessado por mil correntes, tensões, movimentos (p. 13). Na filosofia, na religião e na ciência, é reconhecido na sua dimensão de falibilidade, como “pathos”, no sentido de experimentar-se doente, o que está em desvio do adequado, da normalidade (HOUAISS, 2001), portanto, implicando um juízo moral e depreciativo, como aquele que padece da doença, do sofrimento, da transitoriedade, do caos dos múltiplos afetos, da vulnerabilidade e da finitude, como algo a ser superado, transcendido pelo ideal de alma e de eternidade, de razão inteligível, como aquilo que deve ser disciplinado e higienizado, educado nas suas afetações, nos seus sentimentos, nas suas paixões e nos seus sentidos, “devendo” tornar-se uma unidade organizada, asséptica e ascética:


Se a vida é um estar doente, então ela se mostra como uma constante luta de um enfermo que só alcança a cura caso se distancie daquilo que lhe causa mazelas, isto é, abandonando seu corpo em detrimento de um mundo ideal. Viver assume um caráter eminentemente depreciativo, o que nos convoca a uma renúncia de tudo aquilo que em nós está vivo. Como a alma é imortal, resta-nos virar as costas ao corpo, nossa única parte que perece. Seja na religião, na filosofia ou na ciência, para Nietzsche, o que vigora é uma forma de enfraquecer o corpo para auxiliar a chegada a um além. Com o objetivo de entorpecer o corpo, valores foram criados e a vida transformada na busca por tais narcóticos. Entorpecer significa domar, enfraquecer para disciplinar as potências corporais (pulsões, afetos, sentidos) (MACHADO, 2006, p. 60).


Pode-se, no entanto, inverter os valores e tratar a “doença” como elemento constitutivo das potências corporais, e dizer de “phatos” no sentido da antiga arte grega, estado de transitoriedade e de emoção (HOUAISS, 2001), mais precisamente, de experimentar-se como corpo na facticidade da existência, no qual experimentamos afetos emergentes das situações vividas nas relações cotidianas. Afetos são pulsões que, longe de serem negadas, são afirmadas como existentes e vividas: [...] um dionisíaco dizer-sim ao mundo, tal como é, sem desconto, exceção e seleção, [...] estar dionisiacamente diante da existência [...] (NIETZSCHE, 1881, 1888/1987, p. 173). Somente diante da facticidade da existência, vivida em toda a sua intensidade, os sentidos serão atualizados a partir de engendramentos de novos significados, possibilitando novas configurações, tendo em vista que a vida é plástica, potenciadora de situações experimentais, desdobradas em novas possibilidades de ser, em atualização do fluxo da existência:


[...] a plasticidade do passado configura-se como uma relativização e trans-for-ação de seus sentidos e seus efeitos. A criatividade da ação afirmativa desloca, assim, os sentidos e efeitos do passado, e constitui-se como trânsito do devir [...] a facticidade dos fatos configura-se, na verdade em sua efetividade, nos sentidos deles e nos seus efeitos. E estes, por mais pesados e impositivos, são, efetivamente, plásticos, e submetem-se à atualidade (FONSECA, 2005b, p. 40-41).


Neste sentido, a vida se apresenta como contínuo devir, como fluxo criativo e revigorante, por mais difícil e sofrida que ela possa se manifestar; a vida como devir é pura possibilidade, acaso que, em seu movimento próprio de fluxo de forças, apresenta, igualmente, sua dimensão de sofrimento. As relações cotidianas guardam, na sua própria dinâmica, os conflitos, as ambiguidades, os confrontos face a face, sendo, portanto, também, geradoras de sofrimentos e de dificuldades, de bloqueios e de comportamentos reativos, de ressentimentos que irrompem e que interrompem o movimento próprio do fluxo vital criativo. O corpo chora, silencia, racionaliza, se culpabiliza, culpabiliza o outro, ressente-se, paralisa-se... O corpo se nega e se sente confirmado na sua negação.



A arte trágica no corpo que dança

A arte, como potencializadora da experiência estética referendada pela filosofia de Nietzsche se apresenta como possibilidade de expressão criativa e de atualização do fluxo vital no tempo e no espaço psicoterapêutico, fundamentados pela Gestalt-Terapia e por seus desdobramentos na psicologia e psicoterapia fenomenológico existencial:


A especificidade do logos metódico da Gestalt Terapia, e a sua contribuição para a psicologia e psicoterapia fenomenológico existencial - e para a psicologia e psicoterapia, de um modo geral -, é, em grande parte, a do desenvolvimento experimental, e a experimentação do valor da psicologia e da psicoterapia de uma estética da existência, como condição metódica para a vivência estésica, per-form-ativa, de atualização fenomenológico existencial de possibilidades por parte do cliente (FONSECA, 2010)


O corpo cria espaço de possibilitação, de desdobramentos criativos, ao se experimentar e se interpretar vivencialmente no mundo e com o mundo que lhe diga respeito. Inventa desdobramentos, abertura às possibilidades vivenciais presentes nas potências corporais, tendo em vista que o corpo, como grande razão é o que afirma, o que confirma existência, sua finitude e suas possibilidades; é o que move, possibilita e habilita o movimento, o ato, a ação criativa; é ele que nos coloca, existencialmente, em relação com e no mundo que nos diz respeito, como nos é possível vivê-lo.


A arte a que nos referimos é a arte trágica da filosofia de Nietzsche que apresenta a vida na concretude do paradoxo, da contradição, da finitude, da diferença, da multiplicidade, num momento de conciliação entre as forças apolíneas - regidas pelo princípio da forma delimitada, do limite, da medida, da consciência lúcida e da razão conceitual, pelo princípio da individuação, e as forças dionisíacas - regidas pela desmesura, superação dos limites; pelo ser mais íntimo, desconhecido de si mesmo. A arte trágica é a afirmação do limite reativo e sua superação ativa. É a arte própria da contemporaneidade, onde arte, vida e cotidiano se aproximam e se misturam; nesta perspectiva, podemos citar a arte contemporânea nas suas várias vertentes, desdobradas na performance, no happening, na dança-teatro de Pina Bausch, no contato-improvisação de Steve Paxton; é lugar próprio do improviso, do acaso, do corpo em movimentos que se esgotam no próprio ato, em si mesmos, que fluem, confluem. É arte que se expressa no fluxo vital da grande razão tornada corpo na multiplicidade de intelectos, um corpo múltiplo, na medida em que o movimento o desdobra em novas formas, novas possibilidades, a que Gil (2002/2005) chamou de “corpo paradoxal”:


[...] um corpo metafenômeno, visível e virtual ao mesmo tempo, feixe de forças e transformador de espaço e de tempo, emissor de signos e transsemiótico, comportando um interior ao mesmo tempo orgânico e pronto a dissolver-se ao subir a superfície. Um corpo habitado por, e habitando outros corpos e outros espíritos, e existindo ao mesmo tempo na abertura permanente ao mundo através da linguagem e do contato sensível, e no recolhimento da sua singularidade, através do silêncio e da não-inscrição. [...] um corpo que se abre e se fecha, que se conecta sem cessar com outros corpos e outros elementos, um corpo que pode ser desertado, esvaziado, roubado da sua alma e pode ser atravessado pelos fluxos mais exuberantes da vida. Um corpo humano porque pode devir animal, devir mineral, devir vegetal, devir atmosfera, buraco oceano, devir puro movimento. Em suma, um corpo paradoxal (p. 56).


Ao tomarmos o corpo nesta perspectiva, a arte e a vida são experiências tornadas dança; vida e dança se confundindo em um mesmo fluxo permanente de forças, movimento ininterrupto, que aniquila, cria, transforma e se atualiza: [...] e embora haja na terra lodaçais e nevoeiros densos, aquele que tem os pés leves corre e dança por cima da lama como sobre gelo escorregadio [...] (NIETZSCHE, 1883, 1885/2002 a, p. 224). Daí, tratarmos da vida na sua dimensão plástica e dançante, e do espaço psicoterapêutico como espaço que emerge do corpo em “improviso”, que se experimenta performaticamente, tendo em vista a atualização deste fluxo. Tomo, aqui, o conceito de performance na perspectiva de Fonseca (2010):


O prefixo per significa: cabalmente através de, plenamente através de. Enquanto que feição, do Latim, significa fazer inteiramente, acabar, terminar, perfazer; fabricar (com arte) [...] Travessia vivencial da feição, a per-feição é, especificamente, o perfazimento, a per-formação, a performance, num sentido de processualidade primária e eminentemente vivencial, fenomenal.


As questões suscitadas a que me referi no início do texto ao se desdobrarem, se remetem ao espaço psicoterapêutico na sua dimensão de espaço performático, criativo, de novas possibilidades de vida, bem como na sua dimensão de coexistência, co-extensivo às práticas artísticas, que guardam em si mesmas um caráter potencializador, podendo propiciar, no momento mesmo de sua “perfeição” criativa, desdobramentos de novas possibilidades de interpretações e de atualizações do vivido. Tais questões suscitaram também a discussão sobre o caráter terapêutico próprio das práticas artísticas não tendo estas, tão somente, o caráter de “recursos” expressivos alternativos ou de técnica psicoterápicas na medida em que, aqui, tomei por arte tudo aquilo que se fundamenta e se esgota no ato mesmo de se experimentar, esteticamente, no perfazimento artístico. É possível afirmar que já se esboça uma relação entre arte e vida, para além da relação que, hoje, se estabelece através da arte-terapia e das terapias corporais; movimento emergente a partir das vivências de práticas artísticas, ultrapassando a sua dimensão de coadjuvante terapêutica e assumindo seu caráter potente de vida e, portanto, da “grande saúde”: [...] uma tal, que não apenas se tem, mas que também constantemente se adquire e é preciso adquirir pois sempre de novo se abandona e é preciso abandonar[...] (NIETZSCHE, (1882, 1887/2002 b, p.286).


O que vai evidenciar, portanto, a presença da arte, do corpo, do cotidiano e experiência estética como possibilidades referenciais, partindo do princípio de afinidade entre a lógica da vida e a lógica do conhecimento, assim, nos colocando numa relação mais viva, plástica e ética com a vida tornada obra de arte na medida em que é a eterna criação de si mesma, se tornando o que é. Nesta perspectiva, seu principal referencial norteador é o que emerge no momento mesmo, performático e criativo da relação psicoterapêutica, em qualquer espaço ou situação em que esta relação aconteça, com a qual e a partir da qual se acompanha seu fluxo, numa contínua abertura a referenciais que norteiem seu caminho e suas práticas. Saberes que extrapolem e ultrapassem a rigidez da episteme filosófico-científica, abrindo mão de certezas e verdades a priori, princípios fundantes, de arcabouços teóricos universalizantes. Seguindo o rumo das possibilidades, do acaso, das incertezas e do improviso dos poetas, dos cordelistas, dos cantadores, dos artistas, dos dançarinos, dos ditos das culturas populares, e, principalmente, de falas e experiências estéticas cotidianas. Não esqueçamos que, longe de ser uma atitude considerada “romântica” e simplista, é uma atitude que pretende estar frente ao complexo, ao ambíguo, à contradição, à singularidade e à diferença, presentes na vida nossa de cada dia.

Referências

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Endereço para correspondência:

Lorena Figueiredo

E-mail: lorenamariarf@gmail.com

Recebido em: 28/12/2009.
Aprovado em: 07/03/2010.