ARTIGO

Self e Temporalidade. [1]

 

Rosane Lorena Granzotto [2]

Marcos J. Muller-Granzotto [3]


RESUMO

Neste texto pretendemos abordar o entendimento de Perls, Hefferline e Goodman (1997) sobre o caráter “dinâmico” e “temporal” do ajustamento criativo e respectivas interrupções. Da mesma forma, pretendemos comentar a função que a descrição das interrupções da criatividade deveria cumprir no âmbito da clínica gestáltica, precisamente, constituir um método de decifração da estrutura de um comportamento neurótico único (Perls e cols., 1997: 259). Nesse sentido: i) preocupados em restabelecer não só a dinâmica figura/fundo, mas, principalmente, o caráter temporal sem o qual o ajustamento criativo seria apenas uma cadeia de ocorrências sem ligação entre si, ii) e preocupados em resgatar a compreensão de que a descrição das interrupções não se presta a constituir uma tipologia de pessoas neuróticas, mas a estabelecer um método de trabalho clínico coerente com o caráter único e temporal dos ajustamentos neuróticos, iii) propomos - mais que uma nova apresentação gráfica das noções de ajustamento criativo do self e respectivas interrupções -, uma releitura da gênese das diversas configurações neuróticas que, para Perls e cols. (178), mais não são que “inibições variadas do processo de contatar o presente”. Para tal, recorreremos à base filosófica desde onde, como reconhece o próprio Perls, “toda classificação, descrição e análise exaustivas das estruturas possíveis do self” deve ser estabelecida, qual seja essa base, a fenomenologia (189). Precisamente, recorreremos à descrição fenomenológica da vivência do tempo, na qual encontramos a matriz desde onde pudemos pensar o vínculo entre a dinâmica figura/fundo e a teoria da neurose enquanto inibição variada do processo de contatar o presente.

Palavras-chave: Gestal-terapia, self, fenomenologia, temporalidade, consciência, intencionalidade, neurose.


INTRODUÇÃO

Ao apresentar, no livro Gestalt-terapia (1997), essa proposta de psicologia eidética, denominada “teoria do self”, síntese de conceitos que interliga as noções de contato, de awareness e de ajustamento criativo, e que tem na fenomenologia seu fundamento epistemológico, Perls, Hefferline e Goodman fazem questão de frisar que, por self, eles não estão entendendo alguma forma substancial ou entidade psicofísica, mas, sim, “a função de contatar o presente transiente concreto” (1997: 177). Trata-se, nesse sentido, de uma referência a um processo – e não a uma realidade empírica. Mas, quando falam em processo, o que exatamente têm em mente?

Contatar o presente transiente concreto é uma atividade elementar que envolve nossa existência global, precisamente, nossa inserção no meio, dizem Perls e cols. Trata-se – segundo eles - do modo como, a partir de minha fisiologia primária – a qual envolve não apenas os processos físicos e biológicos de meu corpo, mas o modo pessoal segundo o qual esses processos são vividos por mim -, encontro (no meio ambiente) possibilidades com as quais me identifico ou às quais me alieno, de modo a promover o crescimento do meu organismo e a transformação do meio. De onde se segue a definição do self (1997: 179) não como conjunto de funções circunscritas aos meus tecidos celulares, mas, sim, como dinâmica de trocas energéticas entre tais tecidos e o meio, de modo a permitir, por um lado, a conservação de algumas formas de organização anteriores (junto às quais me experimento como aquilo que permanece) e, por outro lado, a destruição de formas antigas e assimilação de novas formas (o que permite que eu me experimente como alguém integrado ao meio ambiente). Trata-se, nesse sentido, da experiência de um continuum que, entretanto, modifica-se a cada instante – o que não é senão a definição fenomenológica da infraestrutura temporal do processo a que Husserl denominava de consciência. O que talvez explique por que razão Perls e cols. tenham dito, na obra inaugural da Gestalt-terapia, que o self é um processo temporal (178). Mais do que isso, talvez esteja aqui a razão pela qual, para Perls e cols. “é provável que a experiência metafísica do tempo seja primordialmente uma leitura do funcionamento do self” (180). No presente trabalho, pretende-se dilucidar em que sentido podemos entender o self como um processo, em que medida o tempo vivido é o sentido último desse processo e, por conta disso, de que maneira a teoria fenomenológica do tempo nos ajuda a entender as várias dinâmicas do self, muito especialmente a formação da neurose.

As funções do self

Para Perls e cols. (1997:184), a descrição do self – ou, o que é a mesma coisa, a descrição dos processos que constituem essa reedição (temporal) criativa (inovadora) das trocas energéticas entre minha materialidade física e o meio – é um trabalho fenomenológico. Afinal, trata-se da descrição do que há de essencial na experiência de nós mesmos junto e diante dos outros e das coisas mundanas. Por essa razão, Perls e cols. propõem não uma teoria da personalidade, ou uma metapsicologia, mas uma psicologia formal, que não é senão uma descrição fenomenológica desse processo de apercepção da própria unidade no mundo – e a que denominaram de self. Trata-se, conforme eles, “da descrição e análise exaustivas de estruturas possíveis (essências)”, por cujo meio poderíamos nos representar uma certa regularidade no processo de crescimento (retomada criadora) do organismo (184). E eis por que, a partir da análise do modo como a troca energética (que pode ser física, química, biológica, emocional, econômica ou política) se polariza (nos meus tecidos, na minha ação, ou no próprio meio), Perls e cols. (183-9) propuseram a discriminação entre três funções ou operações básicas do self e que, fenomenologicamente, poderíamos chamar de essências do self, a saber, a função id, a função ego e a função personalidade.

Essa confessa adesão ao modelo descritivo-formal da fenomenologia implicou, dentre outras conseqüências, que o self não designaria, ao menos em seu sentido principal (como dinâmica temporal das trocas energéticas), uma substância individual (um ente que subsistiria em si, como algo completamente separado do meio). Tratar-se-ia de um campo de generalidade, no interior do qual eu divisaria minha própria individualidade, bem como minha integração no todo. O que não quer dizer que, para Perls e cols., o self fosse algo impessoal. Ao contrário, não obstante se tratar de uma generalidade, tratar-se-ia da “minha generalidade”, ao mesmo tempo pessoal, mas experimentada muito além dos limites disso que a psicologia clássica entende por individualidade (a saber, corpo físico, alma, interioridade, dentre outros conceitos que não são senão o correlativo da tese metafísica da existência de um outro homem no interior desse homem mundano que efetivamente somos). Porquanto não é diferente da minha generalidade, o self está investido de uma coesão interna, que sou eu mesmo, muito embora eu possa ser entendido de diversas maneiras. Na respiração, eu sou eu mesmo, muito embora eu mal me distinga da atmosfera que inspiro e expiro. O que é diferente desse eu que decide, por alguns segundos, suspender a respiração. Ou ainda desse outro que, tendo experimentado a impossibilidade de existir independentemente do ar que respira, se “representa” como um ser no mundo. E eis aqui a direção segundo a qual Perls e cols. descrevem as operações básicas ou funções do self.

Num primeiro momento, aquilo que opera no self é a função id, entendendo-se por isso a relação de homeostase ou distribuição eqüitativa de energia entre as partes envolvidas, a saber, o meio e os meus tecidos celulares. Aqui, na função id, o self não é diferente de minhas vivências proprioceptivas, interoceptivas e exteroceptivas. Todas as sensações que experimento, “ao mesmo tempo” que são minhas, são inseparáveis do meio em que ocorrem, de modo que minha vivência, de fato, está diluída ou absolutamente integrada ao meio circundante. Enquanto id, sou eu mesmo, mas um eu em situação, inseparável das coisas de que participo. Enquanto id, sou um corpo, um corpo próprio, que antes de ser conhecido (representado para mim mesmo), é vivido como volume, espessura, trânsito entre eu e o mundo. Perls e cols. (1997: 186), definem id como um tipo de relação em que o self “surge como sendo passivo, disperso e irracional; seus conteúdos são alucinatórios e o corpo se agiganta enormemente”.

Já o “ego”, para aqueles autores (1997: 184-6), é a função de individuação do self enquanto tal. Trata-se do momento em que as trocas energéticas se polarizam em uma extremidade da relação, que são meus tecidos celulares, junto aos quais o self se faz “ação”, “decisão”, “deliberação” em favor de uma certa direção ou modo de troca energética. Eis aqui e tão somente aqui o momento em que minha existência se destaca do contexto de generalidade do qual participa, eis aqui e tão somente aqui o momento em que o self se contrai em uma certa região de minha existência de generalidade, que é a minha deliberação (seja ela motora ou da ordem da linguagem). Enquanto ego, sou um self que não simplesmente “sente”, mas que, a despeito ou em favor da minha sensibilidade, toma decisões, age segundo uma certa direção que não necessariamente preciso me representar. O ego é minha capacidade de transcendência no meio – e por cujo meio me identifico ou me alieno em relação às possibilidades que o próprio meio me oferece.

O terceiro aspecto ou função do self é a personalidade. Trata-se, para Perls e cols. (1997: 187), de uma certa generalidade não perceptiva, na qual o self se sedimenta, tornando-se uma identidade histórica, representada, construída por meio de atos simbólicos. Nesse sentido, é importante não confundirmos tal generalidade com aquela que caracteriza a função id. Enquanto esta é da ordem da percepção, de nossa integração sensorial com o meio, a personalidade é uma generalidade virtual, formada a partir das ações, sobremodo lingüísticas, que o self estabelece por meio do ego. No modo personalidade o self identifica-se com o que o ego fez, criou a partir do meio. Nas palavras dos autores, “personalidade é o sistema de atitudes adotadas nas relações interpessoais; é a admissão do que somos, que serve de fundamento pelo qual poderíamos explicar nosso comportamento, se nos pedissem uma explicação” (187).

As dinâmicas do self

Perls e cols. (1997: 206) também se ocuparam de mostrar que as funções do self podem ser descritas a partir de categorias emprestadas da Psicologia da Forma, exatamente, as categorias de figura e fundo. Ou seja, cada uma das funções do self caracteriza um modo específico de organização gestáltica entre os elementos envolvidos (sejam eles os meus tecidos celulares, os fenômenos mundanos, os valores culturais...). Por meio das categorias figura e fundo, Perls e cols. almejam ressaltar o modo de funcionamento ou, simplesmente, a dinâmica própria do self.

Quando o self está polarizado como id, não há propriamente figura. Quando muito, se pode dizer que a figura é essa vivência volumosa do corpo, que são nossas experiências interoceptivas (sinestésicas) e proprioceptivas (viscerais), as quais não só são inespecíficas para quem as sente, quanto raramente podem ser desvinculadas das condições do meio ambiente (altitude, quantidade de oxigênio disponível, pressão atmosférica, temperatura, velocidade do vento, dentre outros infinitos fatores que, entretanto, são experimentados de forma indeterminada). Trata-se do domínio próprio em que um dado surge ou é acolhido como figura (Perls e cols., 1997: 187). Quando o self está polarizado na função ego, a figura é um ato intencional, uma ação deliberada a partir de um fundo de excitamentos, para os quais aquela ação quer ser uma resposta. Já na função personalidade, a figura não é da ordem sensorial ou deliberada, mas é uma certa abstração, um certo valor no qual nos alienamos sob um fundo de ações e sensibilidade.

Na função id, os autores identificam não uma dinâmica, mas um estado de inércia, a partir do qual nosso ego pode acolher um dado como figura. Trata-se, especificamente, do momento de surgimento de uma excitação a partir de um fundo organísmico (de interação entre minhas células e os fenômenos circundantes).

Na função ego, os autores identificam, além da apreensão da figura (que caracteriza a dinâmica do pré-contato), duas outras dinâmicas: o contato e o contato final. Pelo primeiro, devemos entender a deliberação na qual o self se polariza. Ela tanto pode ser um ato de identificação com uma possibilidade de satisfação dos excitamentos junto ao meio, como a alienação em favor de um arranjo físico-fisiológico ou sócio-econômico-cultural que se impõe a partir do meio. Trata-se, nesse sentido, do momento em que o self, na função ego, abre um horizonte de futuro, investe o mundo circundante de uma função nova. A partir desse momento, só resta ao self, na função de ego, agir. É o momento em que ele “faz” alguma coisa, polariza-se numa ação concreta (ou, conforme os autores, polariza-se na fronteira de contato, que é o limite virtual entre meus tecidos celulares e o meio). Temos aqui o contato final.

Depois disso, quando o excitamento foi aplacado pela ação do ego, o self pode “fruir”, o que significa que ele pode se polarizar numa representação (culturalmente estabelecida) daquilo que ele próprio fez. Isso significa que o self pode assumir ou se identificar com uma certa personalidade. Aqui se dá a dinâmica que Perls e cols. denominam de pós-contato (1997: 225).

Enfim, como dizem os autores, “(n)o processo de ajustamento criativo traçamos a seguinte seqüência de fundos e figuras: 1) Pré-contato – no qual o corpo é o fundo, e o seu desejo ou algum estímulo ambiental é a figura, isto é, o ‘dado’ ou o id da experiência. 2) Processo de contato – aceito o dado e se alimentando de suas faculdades, o self em seguida se aproxima, avalia, manipula, etc. um conjunto de possibilidades objetivas: é ativo e deliberado com relação tanto ao corpo quanto ao ambiente; estas são as funções ego, 3) Contato final – um ponto eqüidistante das extremidades, espontâneo e desapaixonado de interesse com a figura realizada. 4) Pós-contato – o self diminui”. (1997: 232).

Ora, não obstante as categorias de figura e fundo se prestarem a mostrar que o self não é um mecanismo, uma cadeia de causas e efeitos ou de respostas complexamente reforçadas na contingência, mas, sim, a coesão espontânea do todo (que é minha existência de generalidade no meio) em proveito de diferentes funções (id, ego e personalidade) e na forma de diferentes dinâmicas (pré-contato, contato, contato final e pós-contato), a natureza específica dessa coesão espontânea não é suficientemente dilucidada por aquelas categorias. O que os próprios autores da teoria do self reconhecem, razão pela qual vão dizer que o sentido profundo das dinâmicas implícitas ao self pode ser melhor dilucidado por meio de um recurso à teoria que deu origem às categorias de figura e fundo, a saber, a teoria fenomenológica da experiência temporal. E eis por que razão, em última análise, Perls e cols. dirão que “é provável que a experiência metafísica do tempo seja primordialmente uma leitura do funcionamento do self” (1997: 180).

Temporalidade do self

Ainda que Perls não citasse as lições proferidas por Husserl entre 1893 e 1917 – e cujo tema era a experiência que cada um de nós tem desse continuum em mutação, que é nossa vivência do tempo -, elas constituíam um tema familiar àqueles que, por meio de Goldstein ou, antes dele, por meio de Köhler, tiveram contato com a teoria fenomenológica da percepção como uma dinâmica de figura e fundo, a qual foi elaborada por Edgar Rubin justamente a partir daquelas lições de Husserl. É provável, nesse sentido, que Perls e cols. compreendessem a importância da descrição fenomenológica da experiência da temporalidade. O que podemos facilmente verificar juntando duas passagens (já citadas) da terceira parte da obra Gestalt-terapia (1997), as quais falam, respectivamente, que a teoria do self é um tipo de “psicologia formal, que é o tema da fenomenologia” (1997: 184) e que “é provável que a experiência metafísica do tempo seja primordialmente uma leitura do funcionamento do self” (1997: 180). De onde se segue que, independentemente dos objetivos visados por Husserl e Perls (o primeiro queria estabelecer uma descrição formal da experiência do conhecer objetivo, enquanto Perls queria construir uma descrição da experiência organísmica de ajustamento no meio), é a teoria do self, mais do que qualquer “aplicação clínica de conceitos fenomenológicos”, o sentido precisamente fenomenológico da Gestalt-terapia.

A consciência para Husserl, assim como o self para Perls, não é um objeto. Tal como Husserl a entende a partir de 1907, a consciência é uma dinâmica de mútua implicação entre, pelo menos, três elementos: as intuições fenomênicas (que são nossas vivências de apreensão de um todo indeterminado e ambíguo, por exemplo, os sentimentos, os quais não devem ser entendidos como ocorrências exclusivamente individuais, mas, também, intercorporais), os atos de indicação (por cujo meio tentamos dar uma forma objetiva para nossas intuições fenomênicas) e as intuições categorias (que são as formas de coesão interna de nossos atos de indicação e que se deixam reconhecer, junto a esses atos, como nossos pensamentos, como nossa identidade não mais indeterminada, como no caso das intuições fenomênicas, mas determinada enquanto essência). O correlativo objetivo da integração desses três elementos é a “coisa mesma”, seja ela entendida como a materialidade de nossos atos, seja ela entendida como a materialidade de tudo aquilo de que os nossos atos se ocupam. Razão pela qual a fenomenologia é um “voltar às coisas mesmas”, não em proveito das coisas enquanto correlativos objetivos, mas das intuições que as preenchem e que são as nossas vivências fenomênicas e categoriais. Voltar às coisas mesmas, nesse sentido, é voltar à experiência de produção de uma unidade, que é a unidade de nossa existência, o que muito bem poderíamos chamar de “self”.

Ora, Husserl denomina de intencionalidade esse processo de determinação de nossas intuições fenomênicas enquanto essências (intuições categorias) “expressas” por nossos atos. Esse processo, entretanto, comporta dois momentos distintos. O primeiro é aquele que diz respeito à formação de nossas intuições fenomênicas, as quais devem ser entendidas como a “implicação temporal” de nossas muitas vivências em proveito de um todo indeterminado ou gestalt. O segundo, diz respeito à determinação ativa (exercida por atos) desse todo que, então, passa a ser experimentado como uma essência (ou intuição categorial). De toda sorte, é sempre a partir do primeiro processo que o segundo é possível, de onde se segue o primado ontológico (mas não epistemológico) da vivência do tempo (que é anterior aos atos) sobre nossas vivências mediadas por atos (essências ou intuições categorias). Husserl chama a vivência do tempo de intencionalidade operativa.

A intencionalidade operativa se dá de duas formas: A primeira, como retenção do vivido enquanto fluxo de modificações sucessivas. O que vivemos materialmente (uma sensação, por exemplo), tão logo é experimentada, decompõe-se em sua organização material. O que não quer dizer que ela deixe de existir. Sua permanência, entretanto, implica uma sorte de modificação. Ela continua retida, mas como matéria modificada e, a cada nova vivência, como modificação da modificação, de modo a estabelecerem, para as novas vivências um tipo de horizonte. A segunda forma da intencionalidade operativa diz respeito à organização espontânea desses vividos retidos enquanto fundo, horizonte de retrospecção e prospecção para os novos vividos materiais. Nesse segundo formato, a intencionalidade operativa implica um tipo de síntese passiva (porque não é estabelecida por meio de atos deliberados), entre o que eu vivi (e que comparece como horizonte de passado e futuro) e às minhas vivências atuais.

No gráfico a seguir, um dentre os muitos elaborados por Husserl durante suas Lições para uma fenomenologia da consciência interna do tempo (1994), podemos visualizar a forma dinâmica segundo a qual seu autor compreendia nossa vivência do tempo. Diferentemente da representação física do tempo, em que temos uma sucessão linear ou cíclica de “agora(s)”, Husserl concebe o tempo vivido como uma rede que se arma, a cada vez e em torno do novo agora que surge. Os muitos “agora” não têm ligação entre si – como no caso dos gráficos lineares ou cíclicos, onde importa mostrar que o que vêm depois é uma conseqüência ou o retorno de algo do passado. Cada um dos “agora” é absolutamente diferente (e, nesse sentido, separado) dos demais, sob pena de não podermos estabelecer distinções espaciais. Eis por que Husserl fala de uma série de agoras independentes (A, B, C, D...). Mas, do fato de os muitos “agora” não terem uma ligação material entre si, não se segue que não tenham relação alguma. Há, sim, uma relação, mas ela não é estabelecida desde o exterior – como faz o físico, para reconhecer, entre os vários “agora”, uma sucessão causal. Tampouco é estabelecida à moda de um deus panteísta, que está em todos os “agora” simultaneamente. Para Husserl, a relação entre os meus vividos, eu só posso estabelecer do ponto de vista de cada vivido. O que significa que, aquilo que posso saber dos demais, é sempre uma modificação, uma alteração deles desde a posição em que me encontro agora. Ainda assim, se no “agora” atual posso considerar os outros “agora”, devo admitir um tipo de vínculo. E é exatamente aqui que Husserl introduz o duplo sentido da intencionalidade operativa. Em primeiro lugar, acredita Husserl, não obstante nossas vivências materiais serem finitas, elas não desaparecem completamente de nossa existência. Elas permanecem “retidas” como modificações da matéria vivida que, assim, deixa de ser vivência, para se tornar horizonte (o que Edgar Rubin chamou de “fundo”), memória involuntária daquilo que não precisa ser evocado (por um ato de lembrança, por exemplo) para que seja reconhecido como nosso. A cada novo agora, nossas vivências retidas se modificam, assim como quando da emergência de B no gráfico, A se transforma em A’ e em A” quando da emergência de C. Mas, em segundo lugar, mesmo se modificando constantemente, o horizonte é aquilo que eu sempre posso reivindicar como orientação para minha vivência atual. Nesse sentido, no agora C, posso retomar A” e B’ como horizonte de passado, bem como projetá-los à frente, como horizonte de futuro (d’). O que implica que este C é mais do que um “agora”, ele é um “campo de presença” do passado e do futuro no presente. Ele é um “aqui e agora” em que minha vida inteira, meu passado e minhas expectativas, estão incluídas como horizonte (ou como fundo).



Ora, se interpretamos o self como uma rede temporal, e cada fronteira de contato (ou presente transiente) como um campo de presença, esclarece-se, enfim, por que razão Perls e cols. (1997) puderam dizer que o sentido desse sistema de contatos no presente transiente – que é o self – é algo eminentemente temporal. Conforme acreditava Frederick Perls, em cada momento de nossa existência, a qual se dá aqui (espaço) e agora (tempo), temos, co-presentes, todas as nossas vivências passadas, apresentem-se elas como lembranças ou expectativas. Razão pela qual, não deveríamos procurar em outro lugar, senão naquilo que o paciente atualmente trouxesse para o terapeuta, o sentido de sua queixa. Ainda que Perls não se referisse explicitamente a Husserl – muito embora falasse de uma metafísica profunda do tempo como fundamento da teoria do self -, podemos interpretar sua teoria a partir de Husserl. E isso significa dizer tão somente que, se tudo está no aqui-agora, é por que o aqui-agora é um campo de presença, em que co-dados manifestam-se como fundo de um dado, que então é figura.

Este processo é o próprio ajustamento no campo, no campo de presença (de nossas vivências passadas e de nossas expectativas junto à materialidade de cada agora). E, conforme nosso entendimento, é somente tendo como base essa compreensão de campo que se pode entender em que sentido, para Perls e cols. (1997: 180), o fundo é um “potencial” e, por conseqüência, o self é a “realização de um potencial”. Mais do que isso, é somente tendo como base essa compreensão de campo que se pode entender i) em que sentido o self é uma relação com o meio, ii) mas, ao mesmo tempo, ele é minha pessoalidade. Essa última é assegurada pelo fundo, que ora aparece como um “funcionamento médio”, como uma base regular desde onde os dados na fronteira de contato (com o meio) podem ser aceitos (introjetados) como figuras (como aquilo que nos diz respeito, que gera em nós tensão ou necessidade); ora aparece como domínio de “possibilidades” para destruição das figuras (satisfação). De onde se segue o emprego da palavra awareness como designativo da experiência de mim mesmo junto aos dados na fronteira de contato (awareness sensorial) e da experiência de mim mesmo na deliberação e ação motora (awareness deliberada). Awareness é a experiência de minha pessoalidade como fundo de tudo o que ocorre na fronteira. E a própria coesão do self, assim como a intencionalidade operativa é a própria coesão temporal da consciência, conforme a fenomenologia.

Perls e cols.deixam claro sua visão temporal do self na seguinte passagem, que citamos na íntegra, dada a sua perfeita sincronia com a dinâmica descrita pelo gráfico de Husserl: “O que é importante observar é que a realidade com a qual se entra em contato não é uma condição objetiva imutável que é apropriada, mas uma potencialidade que no contato se torna concreta. O passado é o que não muda e é essencialmente imutável. Desse modo, as abstrações e a realidade abstrata imutável são construções da experiência passada fixada. Condições reais essencialmente externas são experienciadas não como sendo imutáveis, mas como sendo continuamente renovadas da mesma maneira. Ao concentrar-se a awareness na situação concreta, essa preteridade da situação se dá como sendo o estado do organismo e do ambiente; mas de imediato, no instante mesmo da concentração, o conhecido imutável está se dissolvendo em muitas possibilidades e é visto como uma potencialidade. À medida que a concentração prossegue, essas possibilidades são retransformadas em uma nova figura que emerge do fundo da potencialidade: o self se percebe identificando-se com alguma das possibilidades e alienando outras. O futuro, o porvir, é o caráter direcionado desse processo a partir das muitas possibilidades em direção a uma nova figura única.” (1997: 180-181).

Releitura das dinâmicas do self à luz da teoria fenomenológica do tempo

O campo de presença - futuro que se faz presente a partir do passado - é o acontecimento que chamamos na Gestalt-terapia de contato. Tal acontece quando “algo” (que tanto pode ser um dado proprioceptivo, exteroceptivo ou interoceptivo) adquire valor de figura em nossa existência - o que implica que emprestemos, a esse algo, um fundo de co-dados, os quais não são senão a nossa existência já vivida e, nesse sentido, modificada, que retomamos numa dupla orientação: futuro e passado. Ora, sendo o self o sistema de contatos no presente transiente – o que poderíamos perfeitamente bem enunciar como um sistema de implicação temporal no campo de presença – e estando ele constituído de uma série de dinâmicas, caberia então uma releitura dessas mesmas dinâmicas sob a ótica das vivências temporais operadas em cada uma delas.

É de fundamental importância observar, entretanto, que a apresentação temporal das dinâmicas do self não implica considera-las como uma sorte de ciclo ou linearidade causal. Temporalidade quer tão somente dizer a experiência de coesão espontânea (não mediada por atos), na forma da qual eu experimento, frente aos outros e ao mundo circundante, a unidade de uma existência mista, de generalidade: self. Por isso, não obstante as dinâmicas sinalizarem o modo como o já vivido comparece junto ao dado, não há nada que se repita. Há tão somente retomada, o que nunca é uma repetição, mas a criação do novo (campo) a partir do que, desde o passado, se anuncia no futuro.

Ainda assim, Perls e cols. prestaram uma inestimável contribuição para a psicologia formal e para as práticas psicoterapêuticas quando descreveram, não uma seqüência objetiva, mas a essência (ou forma geral) das orientações que se abrem toda vez que nos ocupamos de um dado a partir de nosso fundo (horizonte de passado e futuro). Estamos aqui falando das já aludidas dinâmicas do self, que são o pré-contato, contato, contato final e pós-contato. Tais dinâmicas não são, voltamos a frisar, uma cadeia de ocorrências, etapas sucessivas de eventos de uma seqüência determinada, tal qual num ciclo, mas a abertura do novo a partir do antigo. Ainda assim, elas descrevem a orientação ou direção na forma da qual vivenciamos, no campo de presença (ou, se se preferir, na fronteira de contato ou no “aqui e agora”), a retomada do já vivido (do fundo) em proveito do dado material eminente.

Ora, se o self – enquanto sistema de contatos no presente transiente - é um processo temporal, e se tal temporalidade é aquela descrita nos termos da fenomenologia de nossa vivência do tempo, então o gráfico de Husserl pode nos ajudar a compreender a infraestrutura temporal inerente às dinâmicas do contato. Conforme acreditamos, a utilização do gráfico husserliano tem a vantagem de nos permitir visualizar i) o modo como nossa história vivida (e representada) participa de nosso “aqui-agora”, ii) o sentido de “campo” que caracteriza nosso “aqui-agora”, iii) o caráter sempre “inédito” (e, nesse sentido, criativo) dos ajustamentos que estabelecemos, a partir de nosso fundo temporal e frente ao mundo e ao outro, no campo, iv) a razão pela qual o “aqui-agora” é não somente um encontro com o mundo e com o outro, mas a experimentação de nossa unidade frente ao mundo e ao outro (awareness), experimentação essa que é o que justifica a escolha que Perls e cols. fizeram pelo nome self.

A aplicação do gráfico husserliano às dinâmicas do contato foi algo extremamente simples de se fazer, depois que se compreendeu a relação que havia entre a seguinte passagem e as Lições sobre a consciência interna do tempo (1994) de Husserl: (a) partir do princípio e durante todo o processo, ao ser excitado por uma novidade, o self dissolve o que está dado (tanto no ambiente quanto no corpo e em seus hábitos), transformando-o em possibilidades e, a partir destes, cria uma realidade. A realidade é uma passagem do passado para o futuro: isto é o que existe, e é disso que o self tem consciência, é isso que descobre e inventa”. (1997: 209) Ora, em algum sentido, Perls e cols. estão descrevendo aquilo que se passa num “presente transiente”, que é o lugar do contato, e que não é senão o campo de presença do qual falava Husserl. Do passado vem algo, que não é o próprio dado, mas o fundo desde onde o dado assume, na fronteira material de meu organismo e do meio, o valor de figura. De fato, só o que podemos perceber como realidade material é o dado. Mas este não significaria nada se não houvesse, por um lado, um fundo de passado que lhe desse sentido próprio (pré-contato) e um fundo de possibilidades motoras (contato projetado) que me permitisse encontrar, no meio – e isso quer dizer, noutro dado, noutra configuração material – um modo de resolução (contato final) do dado antigo, que então já se teria tornado passado (pós-contato).


O pré-contato é uma organização espontânea do dado e dos co-dados na fronteira de contato. A partir dos co-dados (que comparecem como fundo), o dado (seja ele próprio, intero ou exteroceptivo) “figura” como necessidade, especificamente orgânica, da ordem de nossa fisiologia primária. A rigor, o dado não vem do nosso fundo temporal, muito embora nossas experiências temporais possam estar representadas em um dado presente, como um ato de recordação, uma fotografia, etc. O dado se impõe em nosso campo de presença como uma ocorrência material, como um evento de fronteira. Mas, de nada adiantaria ele se impor se nós não o apanhássemos, se nós não nos ocupássemos dele (“introjeção” saudável). O que é bastante óbvio em nossa experiência cotidiana, afinal, nem tudo o que “ataca” nossa retina se configura, para nós, como objeto visual. Ou, de outra forma, nem tudo o que enxergamos chama nossa atenção. Para que isso aconteça é preciso que haja uma “forma especial de contato” entre os dados materiais visados e o fundo de nossas vivências. O que é algo que não depende de nossa deliberação. Trata-se de um acontecimento espontâneo, como uma “síntese passiva”, diria Husserl. Trata-se, enfim, do pré-contato. De forma passiva (razão pela qual falamos de um “pré” contato), o ego recolhe do id um fundo que, de modo não deliberado, é agregado ao dado. Eis aqui a sensorialidade, eis aqui a emergência da figura na fronteira de contato, que é essa gestalt entre nosso fundo de vividos (que é o nosso corpo agigantado como id) e o dado propriamente dito (fenômeno físico).

No contato, o horizonte de futuro aparece pleno de possibilidades, o ego arrasta o meio para uma virtualidade, que é a virtualidade da deliberação, da decisão. Uma deliberação nunca é, de fato, um evento que se resume à matéria dos dados envolvidos, mas é uma abertura para uma nova configuração. Trata-se, em verdade, de um salto para além da materialidade do que está dado. Trata-se de uma abstração, na forma do qual o ego se lança ou, então, se esconde (respectivamente, “projeção” e “retroflexão” saudáveis).

E, uma vez tomada a decisão, só resta ao ego o movimento radical de transcendência, o lançar-se para o outro ou na direção do mundo. É aqui que se estabelece o contato final; o qual não é senão o encontro com um novo dado, junto ao qual o dado passado não pode ser mais que um fundo, como a sede torna-se fundo ante o gole de água fresca. Em verdade, estamos aqui já diante de um novo campo de presença, junto ao qual o dado passado não pode aparecer senão como co-dado. Ainda assim, o ego pode retornar a esse co-dado, não apenas como modificação de uma necessidade antiga, mas como o representante de uma experiência “bem” ou “mal” sucedida, o que necessariamente implica um modo de valoração, o qual não é senão a forma como eu mesmo me identifico naquilo que eu vivi (confluência saudável). Temos então a assimilação do passado como representação de nós mesmos. O que Perls e cols. vão chamar de pós-contato. É exatamente nesse ponto que se dá a formação da “personalidade”, que é essa outra função do self, nos termos da qual recolhemos o passado como aquilo com que nós nos identificamos, adquirimos subsistência para além do campo de presença (ou “aqui-agora”) em que efetivamente estamos.

Neurose e temporalidade

Para Perls e cols. (1997), o comportamento neurótico também é um modo de ajustamento do self. Trata-se, assim como os demais comportamentos, de uma dinâmica de troca de energia na fronteira de contato, que podemos entender sob a ótica das relações de figura e fundo e, por conseguinte, como um evento temporal. Mas, esse ajustamento tem uma peculiaridade. A saber, a função ego não consegue criar, para o dado, nada de novo. Por vezes, ele sequer consegue admitir a existência de um dado. Ora, o que se passa aqui? Como o ego vive essa privação? O que há de essencial nisso?
Segundo Perls e cols., quando o ego vai para o contato, ele pode sofrer uma ação contrária ou se deparar com uma ocorrência que lhe impede de realizar o almejado. Nesse momento, o ego não tem muitas alternativas, senão deliberar em favor da inibição de sua ação. O que não é problemático em si, não fosse o fato de que, em certas ocasiões, tal deliberação torna-se algo assim como uma fisiologia secundária, um pano de fundo ou horizonte de orientação que, sem que o ego se dê por conta (tenha awareness disso), passa a determinar todas as suas ações, comprometendo a qualidade do contato. Eis então a neurose, que é “a evitação do excitamento espontâneo e a limitação das excitações. É a persistência das atitudes sensoriais e motoras, quando a situação não as justifica ou de fato quando não existe em absoluto nenhuma situação-contato, por exemplo, uma postura incorreta que é mantida durante o sono. Esses hábitos intervêm na auto-regulação fisiológica e causam dor, exaustão, suscetibilidade e doença. Nenhuma descarga total, nenhuma satisfação final: perturbado por necessidades insatisfeitas e mantendo de forma inconsciente um domínio inflexível de si próprio, o neurótico não pode se tornar absorto em seus interesses expansivos, nem levá-los a cabo com êxito, mas sua própria personalidade se agiganta na awareness: desconcertado, alternadamente ressentido e culpado, fútil e inferior, impudente e acanhado, etc.” (1997: 235-6)

Ora, alguém poderia perguntar pelos motivos da inibição deliberada, ou, então, pelas razões do esquecimento dessa inibição. Poderia alguém ainda perguntar por que essa resposta do passado retorna de modo anônimo. Mas, cabe aqui a ressalva de que, por mais legítimas que sejam essas questões, elas só podem ser respondidas desde um ponto de vista genético, explicativo, o qual, definitivamente, não é o ponto de vista da Gestalt-terapia. Para esta importa apenas sinalizar “como” algo, que não é da ordem da nossa materialidade, retorna enquanto horizonte e, no caso da neurose, retorna como horizonte de obstrução do contato. Para a Gestalt-terapia interessa, nas palavras de Perls e cols., “analisar a estrutura interna da experiência concreta, qualquer que seja o grau de contato; não tanto o que está sendo experienciado, relembrado, feito, dito, etc., mas a maneira como o que está sendo relembrado é relembrado, ou como o que é dito é dito ... “ (1997: 46. Grifo dos autores). Razão pela qual, em vez de construírem uma gênese teórica das neuroses, Perls e cols. vão se limitar a descrever a forma ou orientação específica da relação entre meus horizontes temporais (fundo) e os dados na fronteira de contato. De onde se segue a definição de neurose não como a conseqüência de uma causa remota, mas como um modo especial de ajustamento em que o fundo se furta ao dado, impedindo a formação das figuras, por meio das quais o self poderia experimentar sua própria unidade: gestalt aberta.

Mas qual é, então, essa forma ou estrutura interna da experiência concreta de contato que opera na neurose? Ora, no livro Gestalt-terapia (1997), Perls e cols. afirmam que, na neurose, o self está inibido, isto quer dizer, é incapaz “de conceber a situação como estando em mutação ou sofrendo outro processo; a neurose é uma fixação no passado que não muda” (1997: 181). Há novamente aqui o explícito reconhecimento da natureza temporal do self, mesmo quando o self opera um ajustamento neurótico. E a questão, então, é descrever essa temporalidade da neurose. O que não é senão discriminar as diversas formas como esse “passado” intervém impedindo as diversas dinâmicas temporais de contato (pré-contato, contato, contato final e pós-contato).

Nós podemos encontrar essa descrição no capítulo XV da terceira parte daquele mesmo livro. Lá Perls e cols. referem-se à neurose como um processo único, o qual se caracteriza por formas singulares de interrupção total ou parcial do excitamento espontâneo quando uma inibição reprimida atua sobre ele. Precisamente, quando a inibição reprimida priva o ego de um horizonte de passado, não há formação de figura na fronteira de contato. O dado não significa nada e, conseqüentemente, o self não pode experimentar, nesse dado, a awareness de sua própria unidade. Só resta a ele confluir no vazio. Eis aqui o ajustamento criativo que Perls chama de confluência. Quando a inibição mascara nossa própria história (inverte nosso afeto, deturpa a awareness de nós mesmos), o dado na fronteira não pode surgir senão como uma figura estranha que, assim, é admitida de modo coercitivo, conflitivo: eis aqui a introjeção neurótica. Já quando a inibição age de modo a obnubilar o horizonte de possibilidades de nosso self, desvinculando-o de nós mesmos, esse será experimentado como algo “no ar”, ou que pertence a outrem. Conseqüentemente, não cabe mais a mim, mas sim a este outrem tomar conta ou fazer algo com o dado que aparece na fronteira de contato. O dado não me diz respeito, mas diz respeito a outrem. Eis aqui o ajustamento criativo que Perls e cols. chamam de projeção neurótica. Se, entretanto, em vez de obnubilar meu horizonte de possibilidades, a inibição agir de modo a subordina-la às possibilidades de outrem, minha ação na fronteira de contato não pode mais ser espontânea. Eu não posso confrontar a expectativa do outro. Por isso, o conflito deve ser evitado, o que significa, concretamente, que não posso operar com o dado. De onde se segue que, em vez disso, me ocupo de destruir minhas próprias possibilidades (futuro), bem como a história desde onde elas surgiram (passado). Eis aqui o ajustamento criativo denominado de retroflexão neurótica. Por fim, se a inibição reprimida atuar sobre meu horizonte de possibilidades, de modo a converte-lo em algo que valesse por si, independentemente dos dados reais na fronteira de contato, meu self entrava, perde a espontaneidade. Dessa forma, não posso mais transcender meu campo de presença. Não posso mais passar de uma figura a outra. Não posso mais lograr o contato final. Tal interrupção é denominada por Perls e cols. de egotismo.

No gráfico a seguir, que é a uma continuação do gráfico anterior, acrescido da representação dos ajustamentos neuróticos, procuramos descrever, na série dos eventos de fronteira, as diversas figuras (que alguns preferem chamar de sintomas) observáveis. São elas, enfim, que exprimem, de modo material (no organismo “O” e no meio “M”), a incapacidade do ego para viabilizar a awareness de minha própria unidade como self frente ás figuras (“ausentes” no caso da confluência, “estranhas” no caso da introjeção, “do outro” no caso da projeção, “impossíveis” no caso da retroflexão e “irrelevantes” no caso do egotismo) que se formam na fronteira de contato.




Na confluência temos como evento de fronteira o apego ao conhecido, ao passado imutável, à situação aberta e a conseqüente paralisia e a dessensibilização à qualquer fonte de excitamento ou surgimento do novo. O horizonte de passado é a inibição reprimida impossibilitando qualquer surgimento de figura. Não há nenhum horizonte de futuro, pois não se estabelecem possibilidades para uma figura que não existe, o que faz com que o “fluir com” o outro seja a única saída constituindo-se em uma satisfação possível histérica, uma espontaneidade aleatória, sem controle do ego.

A interrupção do processo de contatar em seus primórdios (pré-contato) caracteriza um processo introjetivo. Só identificamos esse processo quando, na fronteira, aparece uma inversão dos afetos (não gostar, em vez de gostar e vice-versa) e um comportamento resignado frente às leis do outro. A única deliberação possível do ego é uma deliberação adaptada, ou seja, seguir o que o outro quer (possibilidades adaptadas no horizonte de futuro). Resta daí uma satisfação possível masoquista de estar sobre o jugo da lei do outro.

Na interrupção projetiva, o que aparece no campo de presença é o repúdio à emoção e uma provocação passiva na fronteira de contato. Essa última tem em vista provocar aquele somente a quem se reconhece possibilidades de ação: o outro. É neste outro que se depositará o que não pode ser assumido como próprio, ou seja, a emoção gerada pelo confronto de uma necessidade e sua expressão no meio. A satisfação possível se dá no mundo mágico da fantasia, ali os desejos se realizam, enquanto que, na realidade, não há contato final.

Quando o que observamos na fronteira é uma tentativa obsessiva de desmantelar o passado, como se houvesse uma forma de refaze-lo sem os erros cometidos e, junto com isso, um comportamento auto-destrutivo, podemos intuir que uma retroflexão se estabeleceu como interrupção do processo de contato. Aqui o horizonte de futuro é apenas o si mesmo, a única possibilidade do excitamento chegar a algum termo. A satisfação possível é o sadismo, pois, ao infligir sofrimento a si próprio, a pessoa compromete o outro, seja pela pena, pelo cuidado, ou pela culpa, conseguindo, com isso, concluir seu intento, mesmo que indiretamente.

Uma última interrupção descrita por Perls e cols. (1997), talvez mal compreendida e abandonada por seus sucessores, é o egotismo. Não raro enfrentamos essa situação de fronteira na clínica quando observamos nosso cliente se perder em abstrações infindáveis, explicações para tudo, argumentos bem construídos e um perfeito controle deliberado. A inibição reprimida (horizonte de passado) aqui atua impedindo o contato final, e como horizonte de futuro só encontramos mais e mais deliberações abstratas. Para um contato que não finaliza a satisfação possível é a vaidade, fixação num “falar sobre”, numa “construção inteligente” de uma ficção que substitui o contato verdadeiro.

Considerações finais

Cabe ressaltar aqui que essa descrição das interrupções do processo de contatar não se presta à classificação de pessoas neuróticas, como poderia sugerir uma concepção substancialista. Afinal, a Gestalt-terapia não subscreve a tese relativa à existência de um eu profundo, que permaneceria o mesmo, não obstante a série de eventos contingentes a que estaria submetido. O eu de que fala a Gestalt-terapia é uma generalidade contingente (e, nesse sentido, finita). Ademais, trata-se de algo inseparável do meio, junto ao qual se retoma como fundo de cada novo contato. Como já se disse, trata-se de um continuum em mutação. O eu, na Gestalt-terapia é a coesão que experimentamos em torno dos dados na fronteira de contato. Razão pela qual, não faria sentido falarmos aqui em pessoas histéricas, obsessivas, retroflexivas, confluentes e outras coisas mais. As dinâmicas de ajustamento neurótico acima descritas não caracterizam tipos. Elas são a descrição dos diversos modos, segundo os quais, eu posso viver a interrupção do contato, o que deveria permitir a construção de uma metodologia de compreensão da estrutura de uma experiência neurótica única (Perls e cols., 1997: 259, 261).
Por meio dessa metodologia, entretanto, a Gestalt-terapia não visaria estabelecer um tratado de psicopatologia, no qual o cliente encontraria a explicação da causa de suas próprias patologias. É importante lembrarmos que a Gestalt-terapia nasceu como uma psicologia formal (que é a teoria do self) e, nesse sentido, ela não se interessa por estabelecer a gênese dos comportamentos. Interessa a ela apenas a descrição do modo como eles são vividos. Razão pela qual a metodologia de descrição do comportamento neurótico único não quer “explicar por que” alguém recusa o dado no campo em proveito de uma resposta passada, à qual se fixa. Não obstante admitir que não seja impossível que a delimitação de um motivo, seja ele a força de atração exercida pela satisfação possível adquirida num ajustamento passado, seja ele o medo de se reencontrar a vivência de frustração de outrora, possa ajudar o cliente a restabelecer a awareness de seu próprio funcionamento, a Gestalt-terapia não acredita que tais delimitações analíticas sejam condição suficiente, menos ainda condição necessária para que uma pessoa venha a transcender a forma de ajustamento em que está aprisionada. Por mais úteis que possam ser essas informações no trabalho psicoterapêutico, elas só são efetivas quando “reconhecidas” como aquilo que continua vivo em meu campo atual, em meu aqui-agora. Razão pela qual, a ênfase da Gestalt-terapia repousa sobre aquilo que se vive na fronteira de contato.

E eis por que a descrição da estrutura interna do comportamento neurótico não propõe nenhum princípio universal, nenhuma mitologia ilustrativa da origem de nossos desajustes. O que em verdade se está a descrever é a possibilidade (e seu comprometimento) da experiência de unificação da existência em torno daquilo que se impõe como matéria, bem como o caráter finito e sempre passível de retomada dessa experiência. De onde se segue que, o sentido dessa descrição estrutural não é epistemológico, mas “ético”. Afinal, por meio dela, a Gestalt-terapia não quer dizer o que é a vida, ou a patologia dela, mas “como” ela pode ser retomada, recriada enquanto self, o que significa dizer, a partir do tempo vivido.

Ora, a grande virtude da descrição temporal da constituição da fronteira de contato, bem como de sua interrupção, é a visualização da maneira como a história de cada cliente comparece ou como fundo, ou como obstrução da constituição de novas figuras. Nesse sentido, a metodologia de descrição da neurose prima por discriminar os diversos lugares, na fronteira de contato, em que o tempo intervém (de maneira espontânea, como fundo, ou de maneira neurótica, como inibição habitual). E esses lugares são o pré-contato, o contato, o contato final e o pós-contato. Tendo em vista esses lugares, Perls e cols. puderam descrever a seqüência, segundo a qual, a temporalidade de cada qual intervêm na fronteira. E eis em que sentido, no livro Gestalt-terapia (1997), seus autores puderam falar de uma orientação progressiva do comprometimento do contato e, correlativamente, da possibilidade de uma intervenção terapêutica capaz de desencadear, no cliente, uma orientação contrária. Mas isso, também, já é tema para outro trabalho.

[1] Artigo publicado na Revista do X Encontro Goiano da Abordagem Gestáltica, Número 10, 2004.

[2] Psicóloga clínica, gestalt terapeuta, mestranda em filosofia, diretora do Instituto Gestalten, Florianópolis – SC, mullergranzotto@gestalten.com.br.

[3] Doutor em Filosofia, professor dos programas de pós-graduação em filosofia e literatura da UFSC (Florianópolis, SC), mullergranzotto@gestalten.com..br.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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