ARTIGO
Ressocializar é
possível? Uma contribuição da Gestalt-Terapia nas atividades
de um hospital-dia de uma instituição psiquiátrica
Is (re)socialize possible? A contribution of the Gestalt-Therapy in the activities
of a day-hospital of a psychiatric institution
Paulo Hospodar
Centro de Gestalt-Terapia Sandra Salomão, Rio de Janeiro, Brasil
Resumo
Este artigo tem como objetivo fazer uma revisão das práticas da ressocialização dos portadores de transtorno mental, a partir da Reforma Psiquiátrica, bem como discutir as atividades oferecidas nos hospitais-dia, caracterizadas por oficinas e grupos e suas metas, às vezes pouco esclarecedoras, tanto para os técnicos quanto para os seus clientes. A partir da perspectiva de que a sociedade é excludente, discutir a reinserção desta clientela com base na idéia do processo de ressocialização. Num primeiro momento, toma-se como ponto de partida a Idade Média, período soturno da história da humanidade, onde se observam, nas grandes cidades da Europa, as epidemias, a pobreza e a loucura. Nesta leitura da sociedade e das práticas da exclusão, neste período da história, destaca-se o papel do médico diante do desconhecido e de suas técnicas obscuras, como as da Igreja, (re)significando o infortúnio da doença como forma de salvamento daquele ser. Em outro momento da história, na Idade Moderna, através de Philippe Pinel, são destacados os avanços da Psiquiatria, bem como a continuação da prática organicista e da exclusão, que irrompe o século XX. Na década de 70, as idéias de Franco Basaglia chegam ao Brasil, e com elas uma revisão das práticas hospitalocêntricas institucionalizadas e desgastadas, cabendo, agora, uma reavaliação das mesmas. No século XIX destacam-se os modelos oriundos da colonização do Brasil, quando se instalam as Santas Casas e sua administração através das irmandades, como as críticas às cópias deste modelo importado em relação ao tratamento do louco. Com o fim do mercantilismo da saúde, coube rever as políticas públicas de saúde mental, através da Reforma Psiquiátrica no Brasil, como também o papel do profissional de Psicologia, e suas práticas nos novos dispositivos: o hospital-dia e os CAPS. Com base na Lei Federal no 10.216, de 2001, foi possível refletir sobre seus objetivos, quando destaca as práticas mais humanistas no tratamento do louco. Assim, apresentar a Gestalt-Terapia e suas contribuições neste novo contexto, com base em seu alicerce fenomenológico-existencial, foi um intento possível.
Palavra-chave: Exclusão social; Transtorno mental; Reforma psiquiátrica; Gestalt-terapia.
Abstract
This article has
as objective to do a revision of the practices to (re)socialize of the bearers
of mental upset, starting from the Psychiatric Reform, as well as to discuss
the activities offered in the day-hospital, characterized by workshops and groups
and your goals, sometimes little elucidate, so much for the technicians as for
your customers. Starting from the perspective that the society is excluding,
to discuss the re insertion of this clientele with base in the idea of the process
to (re)socialize. In a first moment, it is taken as starting point the Medium
Age, obscure period of the humanity's history, where it is observed, in the
great cities of Europe, the epidemics, poverty and the madness. In this reading
of the society and of the practices of the exclusion, in this period of the
history, they stand out the doctor's paper before the stranger and of your obscure
techniques, like as the Church, (re)meaning the misfortune of the disease as
rescue form of that being. In another moment of the history, in the Modern Age,
through Philippe Pinel, they are outstanding the progresses of the Psychiatry,
as well as the continuation of the organic practice and of the exclusion, that
breaks out the century XX. In the 70th decade, Franco Basaglia's ideas arrive
in Brazil, and with them a revision of the practices institutionalized and the
hospital mind consumed, fitting, now, a review of the same ones. In the century
XIX stands out the models originating from of the colonization of Brazil, when
they settle Santas Casas and your administration through the fraternities, as
the critics to the copies of this model mattered in relation to the lunatic's
treatment. In order to the market of the health, fit to review the public politics
of mental health, through the Psychiatric Reform in Brazil, as well as the professional's
of Psychology paper, and your practices in the new devices: the day-hospital
and CAPS. With base in the Federal Law in the 10.216, of 2001, it was possible
to contemplate on your objectives, when it detaches the practices more humanists
in the lunatic's treatment. Like this, to present the Gestalt-Therapy and your
contributions in this new context, with base in your phenomenologic-existential
foundation, it was a possible project.
Keywords: Social exclusion;
Mental upset; Psychiatric Reform; Gestalt-Therapy.
Introdução
Por volta de 1266, em plena Idade Média, os leprosários se multiplicavam pela Europa, e de acordo com Mathieu Paris chegaram a 19.000. Na França, Luiz VIII estabelece regulamentos para os leprosários que atingiram a 2.000 recenseados. Nos séculos seguintes, com a redução da enfermidade na Europa, os leprosários não mais recebem seus doentes, mas “gentis-homens pobres e soldados estropiados”. A diminuição da lepra não se devia aos esforços das técnicas obscuras da Medicina da época, mas à marginalização e ao fim das Cruzadas no Oriente. Com a saída de cenário da lepra, constata-se que os ritos e os leprosários não estavam a serviço do tratamento, mas para tê-la distanciada e isolada. (Foucault, 2007).
No final do século XV, a doença venérea surge como sucessora da lepra, herdando seus atributos negativos. Agora, menos habitados pelos leprosos, os hospitais recebem essa nova população que crescia a olhos vistos. Os poucos lazarentos que ainda habitavam os hospitais não mais tinham forças para manter aquele lugar segregado como próprio, tendo, assim, que dividi-los com uma nova população de excluídos.
Desta forma, após dois séculos, pobres, vagabundos, presidiários e “cabeças alienadas” entraram em cena, ocupando o lugar do leproso. Entretanto, o estigma e seus atributos também atravessaram o tempo, afirmando, assim, a mentalidade da exclusão social.
Como parte do elenco da
exclusão social, a loucura passa a ser dominada na metade do século
XVII, e com ela surge a Nau dos Loucos , embarcação que navegava
pelos rios da Renânia e dos canais Flamengos, com sua carga insana. Aos
marinheiros era entregue a função de recolhê-los e de manter
a cidade limpa. Por não existir casas especiais para recebê-los,
esta população era acolhida inicialmente em hospitais e hotéis,
que transformavam seus leitos em dormitórios. Ao longo da Renascença
e Idade Média, lugares de detenção de loucos foram construídos,
tais como Châtelet de Melun e a Torre dos Loucos de Caen . A esses insanos
não era permitido o acesso às igrejas e eram chicoteados em público
e escorraçados da cidade a bastonadas. Ao serem entregues aos marinheiros,
ficaria a certeza de que estes loucos não circulariam pela cidade e de
que se afastariam dali. (Foucault, 2007).
Foucault ressalta que morte e loucura se apresentaram como parte da existência
do ser. O indivíduo elabora o medo da morte de forma irônica e
menor, canalizando em seus vícios, defeitos e ridículos. Analogamente
à lepra, a loucura também exclui o indivíduo e, como tal,
mesmo vivo é a própria presença da morte. Para Foucault,
tanto a morte quanto a loucura tratam de um mesmo tema, ou seja, o vazio da
existência, sendo a morte vista como externa ao ser, final e conclusiva,
e a loucura percebida como própria e constante na existência. Desta
forma, ressalta que não é o medo da morte que levaria àloucura,
mas a ascensão da loucura é que mostraria que os homens estariam
perto de sua derradeira catástrofe – a morte.
Acrescenta que a loucura se torna relativa à razão, ou seja, esta relação faz com que a loucura tenha a sua razão, que a julga e controla, bem como toda razão sua loucura onde se encontra sua verdade. Apesar de uma fundamentar a outra e ser sua medida, elas se recusam. Utiliza a metáfora onde o homem, ao olhar para o solo da terra, acredita ser a medida das coisas e o conhecimento do mundo. Porém, ao olhar para o sol, reconhece que seus entendimentos das coisas terrenas são antecipados e impróprios, pois somente em uma relação platônica pode chegar até ele. Desta forma, o abismo se afirma entre a aparência e a verdade, e o abismo da loucura do homem é tal, que em seu conflito existencial, a aparência da verdade é sua incoerência.
Ainda para Foucault (2007), a loucura se encontra naquele ser que persiste em manter o duelo entre aquilo que é dado e a razão, e manter-se nesta posição é privar-se eternamente de um contato plausível com ela. Mas, se a loucura confirma o empenho da razão, é porque esta já estava embutida neste empenho e, ao ser tragado pelos seus pensamentos, este ser demonstra os traços da loucura, ou os traços de uma razão exacerbada. Ora, estando a loucura ligada à razão, o autor analisa-a de duas formas: uma, que seria a “loucura louca”, ou seja, aquela que recusa a própria loucura da razão, assim, se deparando numa imediata loucura; e outra, que é a “loucura sábia”, ou seja, a que abriga a loucura da razão, que permite que ela flua de tal forma se protegendo da verdadeira loucura, aquela obstinada e derrotada.
Deste modo, a loucura é a forma necessária da expressão da confusão e das violências desregradas pelo fato de polarizar verdades, tais como: a vida toma-se pela morte, a mulher toma-se por homem e o verdadeiro toma-se por falso. Ao mesmo tempo em que esta loucura é uma falsa conclusão, é também uma reconciliação com a razão e a verdade. Ela baliza as linhas que podem levar à alegria reencontrada, e nesta se situa o equilíbrio camuflado pela ilusão e pelo conflito disfarçado. Essa dinâmica rigorosa se oculta sob esta grande confusão – sem regras.
Neste ponto, Foucault (2007) utiliza o termo dessacralização para romper definitivamente a loucura com qualquer questão divina. A verdade da loucura está aqui nesse plano, e mais especificamente naquele que a vive, de tal modo, que agora este ser está lançado à miséria e sem moral. Ora, se a loucura era familiar na Idade Média e retratada através de pinturas advindas do mundo exterior, e acolhida por vir de outro lugar, agora será banida, pois é percebida como da terra, e seu lugar é entre os desajuizados, pobres, miseráveis e vagabundos. Doravante, a loucura só terá acolhimento no interior dos hospitais ao lado de todos aqueles sem moral.
Na Europa do século XVII, encontram-se vestígios de internações e estas eram caso de polícia , ou seja, um conjunto de medidas que buscava enquadrar o cidadão para o trabalho. Diferentemente do modelo contemporâneo de internação, o vigente na época apresentava outras razões diferentes aos da cura daquele ser, isto é, o imperativo do trabalho. Através de um édito real, datado de 27 de abril de 1656, surge o Hospital Geral, e a este modelo cabia pôr fim a desordem social, mendicância e desocupação. Em 1532, em Paris, todos os mendigos foram presos e obrigados a trabalhar nos esgotos da cidade acorrentados dois a dois. Já em 1534 emerge uma crise onde o número total de habitantes de Paris era de 100.000 habitantes com mais de 30.000 mendigos, sendo este último montante expulso da cidade. No início do século XVII, com a retomada da economia e através da força, os indigentes são obrigados a retomar seu lugar na sociedade, e aos resistentes chicotadas em praça pública que deixavam marcas pelo corpo e, por conseguinte, sua expulsão da cidade.
Segundo Foucault (2007), o Hospital Geral e as Casas de Correção serviram para receber desempregados e vagabundos, pois sempre que uma crise econômica se aproximava aumentando o número de pobres, o objetivo primeiro das casas de internação fica em evidência, ou seja, o motivo era econômico. Entretanto, fora das crises, estas internações tinham outro objetivo: fomentar o trabalho para os presos, ajudando para benefício destes. Sua produção era remunerada com a quarta parte e avaliada ao fim de cada semana a produção dos internos. Caso seja observado o caráter funcional destas Casas, a sua criação não logrou êxito. Estas desaparecem a partir do século XIX, pois na realidade foi apenas um paliativo para prevenir distúrbios sociais, por causa do avanço industrial.
Fernández (2001) atenta para o “nascimento” da Psiquiatria no confronto entre a loucura e a razão herdadas da Idade Média, e com a marca registrada da exclusão da loucura. A esta exceção concretiza-se a internação clássica do século XVII, e é dentro dos muros que Philippe Pinel e a Psiquiatria se deparar-se-ão com os insanos e a loucura, porém não sairão deste cenário sem os libertarem.
Philippe Pinel (1745–1826), médico francês, considerava que os portadores de transtornos mentais eram doentes, no sentido orgânico das funções superiores do sistema nervoso. Em oposição ao tratamento vigente (uso de corretivos), os doentes deveriam ser tratados como doentes. Neste ponto, Fernández enfatiza o nascimento do modelo asilar, bem como a clínica psiquiátrica, sendo esta constituída de um olhar para aquilo que é dado, ou seja, o fenômeno percebido. Ressalta que este modelo hospitalar que agora abriga a loucura, não está a serviço de sua libertação, mas para melhor isolá-los. Sublinha, ainda, que esta nova casa também receberá outros descartes da sociedade, tais como os pobres, desempregados e outras patologias.
Ora, neste momento da história, a sociedade vive o advento da Revolução Industrial , e é imperativa a mão-de-obra. Assim, a sociedade lança um olhar aos pobres e aos demais sujeitos que compartilhavam os espaços nos asilos com os loucos. Doravante, os pobres serão re-entregues à liberdade, e aos insanos somente a certeza da permanência no isolamento dentro dos muros. Agora, exclusiva ao olhar da Medicina, a loucura ganha a lente que irá aproximar o pensamento médico e a prática da internação e, não obstante a razão e a loucura, o insano está livre para se expressar e ser escutado através de seus delírios e da sua razão, isto é, um ser existente e mais acessível. (Fernández, 2001).
Desta aproximação entre a Medicina e loucura, Pinel destaca-se na origem da Psiquiatria moderna, quando liberta aqueles insanos dos grilhões em Bicêtre . No entanto, Fernández enfatiza que esta liberdade, demarcada pelos muros do asilo, implica em sua exclusão, pois ainda estarão naquele espaço confinador. Este momento é marcado pelo tratamento moral, ou seja, tinha como finalidade reorganizar aquela perturbação levando-a à razão. Acreditava que reestruturando a sensação e a percepção do insano poderia produzir resultados naquele comportamento bizarro. O asilo, então, funcionava como fundo para a figura da loucura, pois aí isolado de suas percepções habituais haveria condições de uma re-significação. Desta forma, Pinel acreditava que loucura tinha cura, e o alienado poderia ser devolvido à sociedade com sua loucura controlada.
Cherubini (1997) chama atenção para o modelo reestruturador apresentado por Pinel, quando observa uma concentração no poder médico, detentor do saber do padrão social, e acrescenta ainda que este profissional domina a loucura por limitá-la aos muros do asilo. Ao romper as contenções físicas, novos sintomas, até então não observados, emergem. Os insanos, em sua liberdade, agora são separados em enfermarias de acordo com características de sua síndrome, uma forma que Pinel encontra para um olhar mais sistematizado daqueles comportamentos bizarros.
Conjugado a todo esse novo aparato, e independente de afeto, a prática farmacológica alia-se ao tratamento, sendo os organicistas aqueles que se utilizavam de práticas mais rígidas através de tratamentos físicos, psicofármacos ou psicotrópicos, a fim de promover alterações no sistema nervoso. Acreditam que alterando a química cerebral produziriam efeitos minimizadores nas alterações do pensamento e, por conseguinte, no comportamento. Ressalta Fernández (2001) que para este grupo o afeto não era considerado. Pinel e Esquirol se utilizam da prática organicista através de sangrias, provocação de vômitos e banhos frios, pois crêem na correção daqueles delírios. No entanto, esta última prática terapêutica dá lugar ao castigo, ou seja, banhos frios não mais são vistos como modificadores da atitude, mas como punição para o bem do insano. O paciente era submetido diversas vezes a esta prática até que reconhecesse sua deficiência e o arrependimento emergisse. Re-significado com penalidade imposta, o paciente dá-se conta de sua doença e busca novos comportamentos. Porém, isto é apenas um desempenho de um papel que não refletirá sua imagem original.
De acordo com Amarante (1994), as idéias renovadoras do psiquiatra italiano Franco Basaglia (1924-1980), no Hospital Psiquiátrico Regional de Trieste, em 1971, abolindo medidas institucionais de repressão, permitiram a ocorrência de reuniões com médicos e pacientes para restabelecer a dignidade de cidadão do doente mental. Esta inovação, proposta por Basaglia, foi o marco na ruptura que dá origem a um novo dispositivo: o da saúde mental. Essa ruptura seria tanto em relação ao dispositivo alienante da psiquiatria clássica, quanto ao dispositivo da saúde mental, e balizaria e descontinuaria aquela psiquiatria ideológica.
Este novo dispositivo chama a atenção para o conceito de desinstitucionalização, que por si só é paradoxal, pois remete a uma re-institucionalização e que, por outro lado, orienta-nos para a falta do processo de institucionalização. Ressalta Amarante (1994) que desinstitucionalizar significa romper os paradigmas que sustentam a instituição clássica. Para romper com o objeto imperioso da Psiquiatria Clássica, o paradigma clínico se apresenta como um novo objeto da desinstitucionalização. Entretanto, com a nova proposta de desconstrução institucional, faz-se necessária uma nova instituição que abrigue, de forma coerente, o novo modelo. Este novo modelo irá considerar o sujeito como um todo, isto é, em termos de sua existência, de seu sofrimento psíquico e de sua dimensão social.
A instituição autoritária e coerciva, promotora da cronificação devido às longas permanências de internação, era representada pelos hospitais psiquiátricos, onde o paciente psiquiátrico era incondicionalmente submetido às regras rígidas, contribuindo, assim, para um processo de regressão e restrição da existência daquele ser, induzindo a um vazio emocional. Neste ponto, encontram-se as bases do conceito de desinstitucionalização, isto é, para além da destruição dos hospitais psiquiátricos. A força desta instituição é alienante, onde o doente é enclausurado em seu único espaço possível, oprimido pelos limites da doença e submetido à reclusão institucionalizante, reduzindo-o e restringindo-o a sua patologia.
De acordo com Amarante (1994), a idéia é considerar a doença entre parênteses, e isto não indica negá-la, mas sim, rever a maneira como a Psiquiatria se apoderou do fenômeno da loucura, considerando-o como fenômenos incompreensíveis, e que meramente são ideológicos. Ao apoderar-se, Amarante compara este ato como sendo uma apartheid , ou seja, uma segregação, e ao colocar a doença entre parênteses, remete-nos a uma revisão para efetivamente dissolver toda aquela estrutura cristalizada da instituição manicomial. Assim, o processo de desinstitucionalização deve ir em busca de novas estratégias, fomentando um novo tipo de relação entre doentes, sociedade e técnicos.
Amarante (1994) chama atenção que considerar a doença entre parênteses deve ser extensivo a todas as instituições psiquiátricas, psicológicas e psicoterapêuticas, que participam da não constituição daquele sujeito. O olhar imperioso é aquele que privilegia a singularidade do sujeito, e não aquele que se prende à doença mental, segundo um modelo estereotipado. A partir do momento de seu isolamento, o paciente foi colocado entre parênteses para que a figura fosse a doença do sujeito e suas classificações. Neste ponto, Amarante considera a necessidade de uma revisão na identificação com a instituição, aquela que acoberta o sofrimento e o ser.
Quando Basaglia (1982, apud Amarante, 1994) revê o processo institucional e propõe a destruição da instituição psiquiátrica, foi porque o desgastado modelo percebe que o processo para a cura estava na libertação, justamente esta que foi privada daquele insano por esta mesma instituição. Entretanto, abre-se a discussão no sentido de que, inicialmente, não existia doença mental, e segundo é que existindo, esta seria uma produção social. Ambas são devidamente descartadas, pois a primeira seria um reducionismo ao considerar os parênteses na não constituição do sujeito conforme citado anteriormente, e a segunda com base em que os sujeitos insanos seriam aqueles provenientes das classes menos favorecidas, sendo o hospício dedicado aos pobres, e não que a doença poderia aparecer também em classes muito favorecidas.
Basaglia (1982, apud Amarante, 1994), em sua revisão institucional, parte ao encontro da sociedade e da equipe hospitalar, isto é, em busca da mudança da mentalidade daqueles que lidam direta e indiretamente com a loucura. Uma revisão da técnica, da ciência e das instituições totais, uma revisão da existência daquele ser sem futuro, sem objetivo e projeto. Esta nova lente mais polida e cristalina almeja um novo tipo de relação entre o médico, enfermeiros e sociedade, ou seja, uma idéia mais compartilhada entre setores da sociedade – uma sócio-psiquiatria. Para Amarante (1994), a Psiquiatria agora se depara com uma realidade que está para além dos manuais e suas definições sobre a doença. O doente não deverá ser mais retirado de sua realidade social, pois esta orbita sua existência, de forma simbólica e ideológica.
No Brasil, as Santas Casas cumprem o papel de recolher os insanos, e esse modelo asilar, oriundo de Portugal, foi inspirado na Casa-Mãe de Lisboa, fundada em 1498. Com a Irmandade de Misericórdia, no Brasil, em 1543, surge a Fundação da Santa Casa de Santos, por Braz Cubas . A partir daí, difundiu-se, criando hospitais e se constituindo na assistência hospitalar da colônia. No século XVIII, tem-se registro de que a Santa Casa da Bahia reservava acomodações para esta população, e eram conhecidas como "casinha de doudos". Em São Paulo, a Santa Casa, em meados do século XIX, alugou um imóvel para cuidar dos alienados, bem como, no Rio de Janeiro, a Santa Casa abrigou loucos até a instalação do Hospício de Pedro II, em 1852. A Santa Casa de São João Del Rey, em 1817, registra a primeira internação de doente mental no Brasil. (Figueiredo, 2000).
Figueiredo (2000) ressalta que estas Casas receberam críticas severas pelos seus serviços aos insanos. Porém, no decorrer do século XIX, este modelo assistencial não difere do cenário europeu. Acrescenta que em meados do século XX, no Brasil, as Santas Casas se apresentavam fora do panorama de assistência psiquiátrica, e os modelos assistenciais modernos se propagavam em diversas partes do mundo. Durante as décadas de 70 e 80, hospitais públicos e privados aprisionavam os loucos afirmando motivo de tratamento. Entretanto, a maioria dessas internações era com fins lucrativos.
No modelo europeu de asilo, a instituição psiquiátrica se funda com base no capitalismo e no Estado burguês, sustentada pela Revolução Industrial e a Francesa. Este modelo surge por uma exigência da organização social da época, que teve como pilar a razão e a ciência. Tal instituição irrompe no cenário para dar conta de um fenômeno até então muito obscuro para a Medicina, encarando de frente o fato: a loucura. Com esse contexto, sanidade e insanidade estarão marcadas pela capacidade de trabalho, pela ascensão social e liberdade, marcas que demonstrariam o lugar social daquele sujeito. Já no Brasil, foi uma demonstração do regime da monarquia a partir das elites. A classe médica estaria limitada pelo poder monárquico central aliado à igreja. (Venâncio, 2003).
Venâncio (2003) chama a atenção para o padrão francês apropriado pelo Brasil, quando, no primeiro hospício, o modelo asilar surge antes de uma equipe médica especializada. Quando de sua inauguração, em 1852, o profissional médico só dispunha de uma cátedra de medicina legal, sendo a cadeira de higiene posteriormente implantada. Desta forma, entre os anos de 1841 e 1852, Jobim, o primeiro catedrático de medicina legal, foi designado o médico do Asilo Provisório e, posteriormente, através do Decreto 3024, criou-se a disciplina de clínica psiquiátrica e moléstias mentais.
Segundo Basaglia (1985, apud Gradella, 2002), todas as instituições da época demonstravam relações sociais dominantes que fomentavam alheamento, despersonalização, agressão, exclusão e alicerce do capitalismo. Este novo paradigma revela de forma cabal o abuso e a violência entre aqueles que detêm o poder e os infortunados. Conforme Gradella (2002), não só a relação se dá através da violência, mas a interferência na vida daquele ser e na classificação de sanidade e insanidade. Desta forma, inicia-se o alicerce do poder médico disfarçado de cientificidade, uma determinação de uma ideologia da sociedade da época.
Ressalta Gradella (2002) que, com este cenário ajustado e como resultado da exclusão social, tem-se o sujeito agressivo e capaz de uma barbárie. Neste ponto, seria cultivada a crença de que o diagnóstico psiquiátrico ou psicológico indicaria o presente e o futuro, favorável ou não daquele ser, estigmatizando-o e transformando-o em um fora do pátrio poder, isto é, passaria a ser tutelado pela equipe da instituição opressora. Acrescenta, ainda, que este modelo asilar e tutelar corrobora com o isolamento e com a cronificação do sujeito, e com este processo de degradação do ser, condena-o ao confinamento e à morte, sem retorno ao social, ratificando a imperícia terapêutica através do que se quer estudar. Desta forma, criou-se o asujeitado, isto é, um sujeito sem identidade, sem consciência e um portador de transtornos mentais. Um sujeito apagado em sua existência.
A partir de novas propostas contra o modelo hospitalocêntrico e com base na atenção psicossocial dos pacientes psiquiátricos, além de considerar o documento apresentado na Conferência Regional de Reforma dos Serviços de Saúde Mental: 15 anos depois de Caracas – OPAS (Brasília, novembro de 2005 – Ministério da Saúde), surge nos anos 70, no Brasil, o movimento da Reforma Psiquiátrica com a finalidade de transformar os modelos de atenção e saúde. Esta proposta discute novas práticas de saúde, gestão e tecnologias de cuidados. A partir de novas perspectivas no contexto da saúde mental, especificamente nas da Europa e do Brasil, a reforma psiquiátrica vai de encontro ao modelo hospitalocêntrico e do abuso asilar, buscando um novo modelo de atendimento aos pacientes psiquiátricos. Este movimento, com características políticas e sociais de diferentes fontes, e que atingiu instâncias governamentais e da sociedade, envolve um conjunto de valores e crenças da cultura institucional e de seus atores, marcados por tensões e desafios. (Amarante, 1994).
Em março de 1987, no Estado de São Paulo, entra em funcionamento o primeiro serviço substitutivo de assistência psiquiátrica – o Centro de Atenção Psicossocial (CAPS). O CAPS Luis da Rocha Cerqueira representa um novo modelo de atenção em saúde mental para essa população, sendo este serviço aquele que está entre o ambulatório e a internação. Este dispositivo de atenção à saúde mental terá importância estratégica no panorama da reforma psiquiátrica brasileira, sendo seu aparecimento um vislumbre para a organização de uma rede substitutiva àquela hospitalar. Caberá a este dispositivo o atendimento clínico em atenção diária, a reinserção social do cliente com transtorno mental na sociedade e dar suporte à atenção de saúde mental na rede básica, organizando-a e articulando-se dentro de seu território. Assim, este novo dispositivo deve atuar de forma substitutiva e não complementar ao modelo hospitalar, cabendo o acolhimento desta população com características persistentes e graves, buscando seu fortalecimento e autonomia visando os laços sociais antigos e novos, e trazendo para este ator a responsabilidade e o protagonismo em seu tratamento. (Amarante, 1994).
Entretanto, ressaltam Alverga e Dimenstein (2006) que o alicerce da reforma, com o objetivo na reinserção social, sem uma revisão crítica nos fundamentos da sociedade atual, apresenta uma sociedade excludente a tudo que não se identifica, fato que representaria uma forma restrita da ressocialização. Acreditam que a reabilitação psicossocial permaneceria refém da consciência da sociedade, indo, assim, de encontro aos princípios da desinstitucionalização. Sublinham, ainda, que, na atualidade, quase todos os envolvidos em saúde mental, isto é, profissionais e clientes, trazem consigo a idéia da desinstitucionalização. Todavia, não descartam a possibilidade de que a ressocialização estaria aquém do objetivo da desinstitucionalização.
Deste modo, a desinstitucionalização proposta pela reforma se volta para a libertação dos grilhões institucionais, onde há um olhar fixo na própria razão, precisando, assim, de um canal para a desrazão. Isto representa outros caminhos para uma visibilidade além do sujeito social instituído, bem como extinguir as relações de poder. A reforma psiquiátrica precisa resgatar a libertação do louco, da cultura do louco e de seu social, abrangendo, assim, outras esferas da sociedade, de modo a fomentar o convívio com a diferença. Entretanto, encaram estes aspectos como um desafio às práticas instituídas socialmente. (Alverga e Dimenstein, 2006).
Desde sua regulamentação profissional, o psicólogo vem conquistando setores do trabalho institucionalizado, sendo seu começo nas áreas de orientação psicopedagógica, psicodiagnóstico e aplicação de testes psicológicos, bem como estudos de caso e perícias, até então privilégio da classe médica. Dimenstein (1998) relata que o profissional de Psicologia atuava em quatro áreas: clínica, escolar, industrial e magistério. No entanto, a atualidade não mais retrata a abrangência da Psicologia no mercado de trabalho, devido à pressão que tem sofrido, impelindo-a para outros segmentos. Dentre outras áreas de atuação, o campo da saúde pública recebeu uma gama de profissionais de Psicologia no final da década de 70, período que foi observado um número significativo de psicólogos em instituições públicas. No setor público, especialmente o da saúde mental, o psicólogo passa a ser considerado a partir de um contexto histórico-político-econômico, que promoveu a profissão e sua sedimentação na sociedade.
Para Delgado (1992, apud Dimenstein, 1998), o modelo hospitalocêntrico de assistência em hospitais privados era hegemônico e financiado pelo Estado, o que caracterizava o mercado da loucura. A chegada do psicólogo, neste segmento da saúde, é marcada ainda pelo apogeu do modelo médico e assistencial que entrava em seu franco declínio. Para Dimenstein, a decadência deste modelo provocou uma ineficiência e falta de qualidade nos serviços prestados pela Previdência Social e, a partir deste quadro, novos esforços foram lançados para reverter a situação na saúde.
Segundo Cerqueira (1984, apud Dimenstein, 1998), o médico psiquiatra não mais teria condições de transformar o modelo assistencial por si só. Era necessário buscar outros profissionais, tais como os psicólogos. Nesse momento, faz-se necessária a formação de uma equipe multidisciplinar engajada com a nova proposta da Reforma Psiquiátrica. Dimenstein ressalta que a inserção do profissional de Psicologia, a partir dos anos 70, está associada às criticas ao modelo da Psiquiatria Clássica formada exclusivamente por médicos e, após a fragmentação deste paradigma, surge a possibilidade de inserção de novos profissionais possibilitando a formação de novas equipes mais integradas.
Dimenstein (1998), para melhor contextualizar a inserção do psicólogo na área da saúde mental, direciona-nos ao momento político e econômico do Brasil dos anos 70, quando a profissão foi valorizada e reconhecida sua importância para a sociedade. Acrescenta ainda alguns pontos que impulsionaram a entrada do psicólogo, tais como: as políticas de saúde pública e a necessidade de recursos humanos especializados nos anos 70 e 80, o mercado privado da saúde se retrai e ocorre a expansão do público, uma reavaliação do papel do psicólogo no social e as abordagens psicológicas oferecidas à sociedade.
A autora enfatiza o momento sócio-histórico-político da década de 70, onde o Brasil atravessava mudanças expressivas que norteariam as políticas de saúde pública. Além de uma economia em queda e inflacionária, juros altos e recessão, os grandes centros também se inflacionaram, quando das migrações internas desordenadas. Com um quadro caótico nos diversos segmentos da sociedade, e diante de um movimento inversamente proporcional, tinha-se de um lado o crescimento tecnológico e a degeneração dos serviços de saúde. Neste ponto, alegam os progressivos cortes nos programas sociais e de saúde que afetaram grande parte da população. Mendes (1994, apud Dimenstein, 1998), caracteriza esse período da história da saúde brasileira como o modelo privado, médico e assistencial, onde a prática médica e curativa estava em alta desbancando a saúde pública, ademais o mercantilismo da saúde em franco crescimento.
Segundo Delgado (1992), quando da chegada dos psicólogos no setor da saúde mental, o quadro não era diferente. O Estado, principal provedor do setor privado, sustentava o modelo hospitalocêntrico, em asilos e colônias, corroborando com o mercado da loucura. Dimenstein (1998) acrescenta que quando da chegada do psicólogo, tal modelo estava em alta, porém enfraquecido. Em franca queda, o paradigma assistencial vigente já não presta mais serviço de qualidade, colocando em check a Previdência Social. A partir deste abalo emergem novas opiniões para reverter o cenário da saúde pública no Brasil.
Agora, a Psiquiatria está em foco, e irrompem as críticas ao modelo asilar e cronificador, bem como a desospitalização sustentada pelo psiquiatra. Entre vários movimentos de reestruturação na instituição psiquiátrica, destaca-se Franco. Atenta Dimenstein (1998) para o fato de que somente o psiquiatra não terá êxito para a mudança do modelo atual, necessitando, assim, do suporte de outros profissionais, entre eles o psicólogo. Com a chegada de novos profissionais no contexto psiquiátrico, faz-se importante a noção de multidisciplinaridade, bem como o comprometimento da nova equipe com a nova proposta.
O psicólogo entra em cena na saúde mental em um delicado momento de desarticulação de idéias anacrônicas e calcadas na prática asilar e hegemônica da psiquiatria. Desta forma, no final dos anos 70, a saúde mental recebeu uma gama de psicólogos em função da desarticulação do modelo médico nas equipes de saúde, agora efetivamente se caracterizando uma equipe multidisciplinar. Não privilegiando somente os esforços do Estado em rever o segmento da saúde pública, a própria sociedade civil tem grande importância quando se manifestava contra o modelo ditatorial da época que amparava o desgastado paradigma entre outras práticas. (Dimenstein, 1998).
Nos anos 80, surgem novas propostas apresentadas para uma melhor assistência à saúde. Nesse momento, a baixa qualidade na prestação do serviço da saúde à população era manifesta, isto é, pouca produtividade, fraudes e desperdício de recursos e, com tantos argumentos, uma reavaliação no setor era imperativa. Em 1979, o Ministério da Saúde e Previdência Social criou o PREVSAÚDE, uma reformulação ampla no que diz respeito à regionalização da assistência, padronização dos procedimentos, bem como definir a atuação do setor privado na área da saúde. Ressalta a autora que esta reformulação não foi bem vista pelos representantes do setor privado, ficando, assim, apenas como uma proposta.
Com esforços em busca de um melhoramento no segmento da saúde, em 1982 foi aprovado o Programa de Reorientação Psiquiátrica Previdenciária, que entrou em cena a fim de rever a assistência psiquiátrica e um atendimento mais humanizado, além de criar uma rede ambulatorial e novas formas de assistência, como por exemplo, o hospital-dia. Com a nova visão da saúde mental privilegiando a equipe multiprofissional no atendimento ambulatorial, abre-se espaço para Psicologia Clínica. O psicólogo, neste momento, estabeleceu-se na equipe de saúde mental, resgatando para si responsabilidades até então designadas aos médicos. Assim, em suas novas atribuições, estavam as revisões dos contratos de assistência psiquiátrica hospitalar, bem como relatórios analíticos de serviços prestados. (Dimenstein, 1998).
Com um olhar mais ampliado em função da multidisciplinaridade na saúde mental, faz-se necessário um acréscimo nas técnicas diagnósticas e de tratamento, bem como a interação e supervisão dos profissionais, a fim de manter o atendimento ambulatorial satisfatório, tendo em vista que este era prioridade no programa. Conforme Dimenstein (1998), para manter esse novo serviço foi preciso contratar pessoal através de órgãos públicos para popular a rede ambulatorial, e que muitos profissionais de Psicologia sem qualificação para o serviço foram absorvidos. No entanto, Cerqueira (1984, apud Dimenstein, 1998) acrescenta que as contratações não atingiram a meta desejada e que as instituições públicas recebiam um número pequeno de profissionais. Chama atenção para o modismo, ou seja, os psicólogos absorvidos chegariam para se ter mais uma classe integrada à equipe, mas não para transformar o modelo hegemônico, tendo como principal atividade as tarefas burocráticas.
A Psicologia, ainda se firmando no contexto da saúde pública, era alvo de críticas de outros segmentos da sociedade, bem como da própria classe, pois sua prática não estava orientada ao social, mas a um individualismo, caracterizando um deszelo. Com a falta de harmonia da categoria com a sociedade, buscam-se alternativas para esta aproximação, bem como novas práticas onde houvesse mais comprometimento do profissional. Alguns pontos da rede de saúde recebem os profissionais de Psicologia, pois estes lugares permitiram a implantação de novas práticas deste saber, bem como harmonizar e se aproximar do social, sendo que esta última definhava e se esvaía na ideologia individualista dos profissionais de Psicologia. Desta forma, a chegada do psicólogo no âmbito da saúde, nos anos 80, configurou-se uma estratégia de recuperação da classe, evitando o seu declínio. (Dimenstein, 1998).
Releva Dimenstein que estas dificuldades, no Brasil, originam-se na formação acadêmica para a prática no setor e dos obstáculos para adequar-se ao perfil exigido pelo SUS . Desta forma, cabe uma revisão na raiz desta crise em busca de novos aportes teóricos e práticos, uma identidade e junto à sociedade civil rever o papel do psicólogo na área da saúde. Silva (1992, apud Dimenstein, 1998) acrescenta que o modelo praticado pelos psicólogos era orientado para a classe média, e não aplicado à massa que se utilizava da rede pública, e sinaliza para o fato de que métodos e técnicas utilizados pelos profissionais eram importados e utilizados nessas populações. Bezerra (1992, apud Dimenstein, 1998) ressalta a visão de homem projetada pelos psicólogos, que retiravam-no de seu contexto, sua historicidade, universalizando-os. Desta forma, ao perceber um modelo de ser humano, isto é, modelo de que todos são iguais, inclusive nas representações do sofrimento psíquico, é que esta verdade é levada para a saúde e para doença e dividida entre os pacientes, daí culminando em um desastre na prática do psicólogo nos serviços da rede de saúde.
Inicialmente, cabe orientar o leitor como se deu a chegada do psicólogo nas instituições psiquiátricas, bem como sua historicidade e seu entendimento sobre este segmento. Sant’Anna e Brito (2006) ressaltam que a entrada deste profissional no âmbito da saúde mental, em meados do século passado, deixa o psicólogo diante de impasses que transitam desde sua escolha teórica até sua adequação ao perfil solicitado pela instituição. Em sua pesquisa releva a importância em saber como este profissional entende a Lei Antimanicomial e desenvolve o seu trabalho.
A loucura, em Psicologia, pode ser entendida de acordo com algum tipo de abordagem, sendo assim, um complexo teórico disponível para o profissional que, com suas convicções, elege-a como arcabouço teórico. No entanto, há um consenso entre estas abordagens no que diz respeito ao sofrimento psíquico e suas conseqüências sociais. Porém, quanto à sua aplicabilidade emergem dificuldades no que diz respeito ao trato com o cliente portador de transtorno mental, devido aos diversos fatores que atuam sobre este. Conjugado a estes impasses, o profissional, uma vez designado, atuará em equipe multidisciplinar e interdisciplinar, e terá como desafio a não-sobreposição de tarefas de outros saberes. (Sant’Anna e Brito, 2006).
As idéias de Franco Basaglia são contemporâneas no Brasil, e com elas chega um novo olhar sobre a loucura, buscando sua totalidade. Através da Lei Federal nº 10216, de 2001, reorientou-se a visão assistencialista em busca do resgate da cidadania e uma prática mais humanista destinada aos internos de instituições psiquiátricas. Entre outras práticas, cabe agora ao psicólogo participar desse processo de reintegração social e de cidadania de seus clientes, promovendo qualidade de vida com a finalidade de amenizar a cronificação e permitir conquistas no campo social.
Deste modo, Sant’Anna e Brito (2006) buscam um entendimento para o papel deste profissional no âmbito da saúde mental, tendo em vista que a atuação do psicólogo vem em um movimento crescente e diferenciado em diversos segmentos da sociedade, o que leva a camuflar este papel, que, na realidade, deveria ter mais clareza e direcionamento. Sant’Anna e Brito (2006) definem o papel dos profissionais de saúde mental através de um simbolismo de uma determinada função para quem a exerce, onde fatores culturais e sociais atuam sobre a pessoa, manifestando-se livremente em seu desempenho. Assim, no papel deste profissional e no âmbito da saúde mental, será observada a historicidade de sua profissão, das instituições psiquiátricas, da loucura e dos pessoais, e ressaltam Sant’Anna e Brito que tais características não se modificariam a partir da lei.
A Lei no 10216 cita a presença de um profissional de Psicologia, mas não sua forma de atuação, muito menos sua interdisciplinaridade e/ou multidisciplinaridade em relação a outros saberes. Neste ponto, Sant’Anna e Brito (2006) questionam como este profissional atuará em uma instituição psiquiátrica, e como ele entenderá sua atuação após a aprovação desta lei. Tal preocupação se dá pelo fato de estar em jogo a especificidade da Psicologia, o que poderia levar o psicólogo, por não ter claro seu papel na instituição, a atuar como um auxiliar técnico daquele agente privilegiado, isto é, o médico. (Sant’Anna e Brito, 2006).
Neste ponto, com a definição mais nítida do profissional de Psicologia, cabe ressaltar as contribuições da Gestalt-Terapia na atuação do psicoterapeuta nas instituições de saúde mental, bem como as intervenções individuais e em grupo em relação aos clientes que se utilizam destes serviços.
D’Acri, Lima e Orgler (2007) definem a Gestalt-Terapia como uma lógica de correntes filosóficas, metodológicas e terapêuticas que gerou uma filosofia existencial, uma forma de idealizar relações do ser humano em seu ambiente. De acordo com Tellegen (1984), Fritz apresentava uma preocupação em relação à concepção dualista, mente e corpo, e à estrutura complexa das interrelações psicológicas, biológicas e socioculturais, onde emerge o comportamento humano. Outro ponto de destaque na abordagem é a concepção organísmica, ou seja, um organismo com funções e ações sempre em busca de uma auto-regulação.
Perls percebe o organismo como um sistema em equilíbrio para funcionar adequadamente, de modo que uma instabilidade deste organismo tenderá a uma correção. A partir de uma necessidade, uma dada situação emergirá e esta se sobreporá sobre as demais (Tellegen, 1984). D’Acri, Lima e Orgler (2007) acrescentam que esse organismo é percebido em sua totalidade, e esta percepção é fundamental para a compreensão da pessoa. Ressaltam que o organismo, como um todo, tem suas próprias leis, e que o sintoma deve ser percebido de forma que o que afeta a parte afetará o todo. Desta forma, descarta a visão dualista mente e corpo, privilegiando a unidade e não a atuação de um sobre o outro.
D’Acri, Lima e Orgler (2007) ressaltam a obra Ego, Fome e Agressão, onde Perls, Hefferline e Goodman já apresentam a noção de figura e fundo, e que a necessidade imperiosa se apresentaria como figura e organizaria o comportamento até sua satisfação, retornando, assim, à condição de fundo. Neste momento, dando continuidade ao ciclo, uma nova necessidade emergirá e passará pelo mesmo processo. Para essas autoras, a figura assume uma posição pregnante que irrompe do fundo, este último sem forma e impreciso, e diretamente relacionado ao campo perceptual.
Para Perls, ser saudável está diretamente ligado ao ciclo completo, isto é, quando a necessidade imperiosa se apresenta como figura clara e consciente, e é satisfeita segundo sua demanda. Deste modo, as expressões verbais ou não-verbais, ditas normais ou não, são as demonstrações daquelas necessidades emergentes. Entretanto, descreve uma relação figura e fundo não saudável, por exemplo, na psicose, como uma formação alterada e aguda deste binômio. Haveria uma fixidez ou repressão desta (re)significação, sendo ambas ruídos para surgimento da gestalt adequada.
Quanto à atuação do gestalt-terapeuta frente ao fenômeno da psicose, considera-se: a) o ponto de vista psiquiátrico, e que esse é somente uma definição e que não interfere no projeto terapêutico nem mesmo em uma sessão; b) as formas de expressão (alteração de pensamento ou não) do cliente psicótico em crise ou não, demonstram sua melhor maneira de se relacionar no aqui-e-agora; c) em crise, suas expressões devem ser acolhidas e contextualizadas, e não desconstruídas; d) em função da singularidade do cliente os delírios e surtos são únicos e exclusivos; e) por mais que o ponto de vista psiquiátrico formate pessoas em suas definições, a visão existencial é singular e adjetiva; f) entre tantos fatores etiológicos, o orgânico pode ser o primário, mas não se imporá ao existencial-fenomenológico. (D’Acri, Lima e Orgler, 2007).
Entre tantas características apresentadas pelo cliente psicótico, cabe ressaltar o embotamento e o comprometimento do afeto, estando, por fim, o afastamento das relações sociais. Deste modo, uma maneira de resgatar sua existência e experiências ficará a cargo do gestalt-terapeuta, que poderá tanto se utilizar do trabalho individual quanto do grupal. Aqui, cabe resgatar o comentário de Sant’Anna e Brito (2006) que ressaltaram a importância de uma prática mais humanista, do resgate da cidadania e da ressocialização deste cliente. Através do processo dialógico (eu-tu), onde o contato saudável está presente, as atividades em grupo proporcionam um acolhimento promotor de mudanças criativas e, de acordo com Zinker (2007), na atividade em grupo, o cliente pode experienciar seus limites e desenvolver suas potencialidades.
O grupo é um espaço
de desenvolvimento com características únicas, orbitado pelas
energias de seus integrantes e maior que a soma das partes. Nele se encontra
um líder motivador capaz de unir temas, fazer intervenções
no tempo adequado, mobilizar os elementos, bem como devolver aos elementos ou
ao grupo seus pontos positivos e adequações. Em Gestalt-Terapia,
o processo grupal se dá:
a) na importância da experiência do grupo;
b) na construção da awarenes grupal;
c) no contato entre os integrantes;
d) e no uso de experimentos interativos. O crescimento ocorre entre o cliente
e o ambiente, de modo que ocorre o encontro entre o eu e o não eu, que
me conduz à criatividade de respostas para a interação
com este meio, promovendo, assim, o encontro e o contato entre seus integrantes
(cf. Zinker, 2007).
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Paulo Hospodar
Email: pjhospod@gmail.com
Recebido em: 09/03/2009.
Aprovado em: 03/07/2009.