ARTIGO


 

Grupo fenomenológico-existencial: transformação no corpo de mulheres com obesidade



A phenomenological-existential group: transformation on the body of obese women



Rosana Aparecida Vieira

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC/SP, São Paulo, Brasil


Angela Maria Alves e Souza

Universidade Federal do Ceará - UFC, Ceará, Brasil


Anna Karynne da Silva Melo

Universidade de Fortaleza - UNIFOR, Ceará, Brasil

Endereço para correspondência


Resumo

Este estudo descreve aspectos, em uma perspectiva fenomenológico-existencial, a metamorfose vivenciada por mulheres em seus corpos no grupo de apoio Mais Ação e Menos Gordura, baseado em recursos experimentais da gestalt-terapia. Com duração de um ano, no período de 2006, no projeto Grupo de Obesidade e Atendimento Multidisciplinar – GOAM, do Programa de Ação Docente, Discente, Assistencial e Comunitário – PADDAC, da Universidade Guarulhos, na cidade de Guarulhos-SP, aprovado pelo parecer nº 34/04 do Comitê de Ética. Através de encontros semanais de 3 horas, em que foram utilizadas técnicas como: a) relaxamento e exercícios de contato, em si mesmo e no outro para que as pessoas pudessem vivenciar suas sensações; b) vivências e representações teatrais com o intuito de desenvolver a expressão; c) desenvolvimento da criatividade e habilidades através da confecção de trabalhos manuais que eram ensinados por elas mesmas. No processo grupal, foram desenvolvidos os aspectos da transformação no corpo das participantes: a corporeidade e as fronteiras de contato; a distinção entre o eu, o não-eu e a integridade; a presentificação e o simbolismo do corpo; emoções, sentimentos de culpa, vergonha, medo, ansiedade e vitimização versus a assunção da responsabilidade das escolhas. A avaliação dos resultados revelou que as participantes atingiram as metas estabelecidas no grupo e que sentiam mais prazer em suas realizações pessoais e profissionais, havendo descobertas de possibilidades do vir-a-ser; desenvolvendo um novo corpo, o qual se projetava com seu eu atualizado em um corpo já aceito e respeitado.

Palavra-chave: Obesidade; Corporeidade; Gestalt-terapia; Terapia de grupo.



Abstract

This study describes aspects in a phenomenological-existential perspective, of the metamorphosis experienced by women in the support group More Action and Less Fat, based on experimental resources of gestalt-therapy. During one year in the period of 2006, in the project “GOAM - Group of Obesity and Multidisciplinar Attendance” – of the “PADDAC – Program of Teachers, Students, Assistance and Community Action” of Guarulhos University, in Guarulhos. Approved by document No. 34/04 of the Ethics Committee. The methodology used was weekly meetings of three hours, were used in techniques such as: a) relaxation exercises and contact in itself and the other to allow people to experience their feelings, b) and theatrical experiences in order to develop expression, c) developing creativity and skills by making crafts that were taught by themselves. In the group, were developed aspects of transformation in the body of the participants: the body and the borders of contact, the distinction between the self, the non-self and integrity; awareness and the symbolism of the body, emotions, feelings of guilt, shame, fear, anxiety and victimization versus the assumption of responsibility of the choices. The evaluation showed that the participants reached the aim established by the group and felt more pleasure in their personal and professional achievements, with discoveries of new possibilities of come to be, creating a new body, which was projected with its self updated in a body accepted and respected.

Keywords: Obesity; Corporeity; Gestalt-therapy; Group therapy body.




1. Introdução

O artigo trata do estudo de parte do desenvolvimento de um grupo de apoio realizado ao longo de três anos na Universidade Guarulhos, em Guarulhos-SP, com mulheres obesas. O programa é denominado Grupo de Obesidade e Atendimento Multidisciplinar – GOAM, integrante do projeto Programas de Ação Docente, Discente, Assistencial e Comunitário – PADDAC. Este programa surgiu da preocupação com o aumento da população obesa nos últimos anos. O grupo descrito teve a colaboração e a participação de estagiários e outros profissionais.


Segundo Benedetti (2003), a obesidade começou a ser estudada no século XIX e recebeu um olhar mais atento por parte dos pesquisadores no final do século XX. Nessa época, levantamentos efetuados por companhias seguradoras, na virada do século, trouxeram análises que estabeleciam relações entre a obesidade e o aumento das taxas de mortalidade. Esta descoberta colocou a obesidade no quadro das doenças que levam à morte precoce, e desde então se intensificou a procura de meios para curá-la.


Sobre a obesidade como doença, nos aponta o autor:


A despeito das controvérsias sobre o tema, não parece haver dúvida entre aqueles que se dedicam ao estudo da obesidade de que ela é uma doença de curso crônico, cuja característica fundamental é o excesso de gordura corporal, e de que sua gravidade cresce à proporção que aumenta o grau de gordura excedente. (BENEDETTI, 2003, p. 22)


Nas duas últimas décadas, a obesidade tem se tornado um dos principais problemas de saúde pública, que começa na infância e se estende até a vida adulta. Neste aspecto, a Organização Mundial de Saúde (WHO, 2005), comprova o crescimento da obesidade em países desenvolvidos e em desenvolvimento.


O obeso é considerado o indivíduo com Índice de Massa Corporal (IMC) maior que 30 kg/m2. Este é o critério reconhecido como padrão internacional para avaliar o grau de obesidade, o IMC é a proporção altura-peso que pode ajudar a definir se a pessoa está com excesso de peso ou se já está obesa. Embora esta tabela não sirva para avaliar atletas e adolescentes, ela vem sendo amplamente utilizada. O índice é calculado dividindo o peso (em kg) pela altura (em m) ao quadrado. (WHO, 2005)


Segundo a Clínica Mayo, a proporção do IMC de 18,5 a 24,9 é considerada a mais saudável, com sobrepeso os indivíduos que apresentam IMC entre 25 e 29,9 kg/m2 e obesos são os que apresentam IMC acima de 30.


Conforme Moraes (2004),


“A obesidade atualmente é considerada um problema emergente nos países da América Latina. Faz parte de um processo de complexidade epidemiológica, levando a enfermidades crônicas e a morte precoce, cujo tratamento é caro e complexo e sua prevenção envolve ações no campo da saúde pública.” (MORAES, 2004, p. 40)


Dentre as consequências da obesidade podemos destacar, a diminuição do tempo de vida do indivíduo em função de problemas com hipertensão arterial; as doenças cardiovasculares; a diabete; a doença respiratória; a incontinência urinária genuína; a obesidade na gravidez (risco de complicações obstétricas como diabetes, hipertensão, infecção urinária e pré-eclampsia); as doenças gastrointestinais; artrite e gota. Temos que pensar também nos problemas psicológicos tais como, alterações da imagem corporal, baixa autoestima, mudanças no estilo de vida entre outras. Há também problemas ambientais e sociais, a obesidade provoca alteração nas relações do indivíduo com o ambiente físico e social.


O estudo científico deste problema vem abrangendo várias áreas do saber institucionalizado como a Medicina, a Nutrição, a Educação Física e a Psicologia. Na perspectiva da psicologia, aqui enfocada, questiona-se porque o corpo se enche exageradamente, aumentando assim a sua forma, e deixa aí um vazio de outra ordem, que não o do estômago. Como esse vazio não é deste órgão, o que poderia ser feito para reduzi-lo?


A partir desse questionamento, o GOAM buscou desenvolver técnicas que pudessem ajudar as pessoas obesas a (re)encontrarem seu equilíbrio.



2. Percurso Metodológico

O grupo tinha encontros semanais de três horas e se utilizavam técnicas como: o relaxamento e exercícios de contato, de si mesmo e do outro com o objetivo de vivenciar as sensações; as vivências e representações teatrais com o intuito de desenvolver a expressão e o desenvolvimento da criatividade e habilidades através da confecção de trabalhos manuais que eram ensinados pelas próprias participantes do grupo. A apreensão e análise dos resultados foram feitas de forma quantitativa com o acompanhamento da redução de peso através de pesagem semanal, e lista de presença da participação às reuniões e qualitativa com avaliação da qualidade de vida, equilíbrio emocional através de relatos das participantes. Antes de iniciar as reuniões todas as participantes dirigiam-se ao setor de nutrição da Universidade para que fosse coletado o seu peso, os números ficavam registrados na ficha de acompanhamento individual e na lista de presença.


O projeto era multidisciplinar, com encontros semanais, às terças-feiras, das 14h às 17h. O horário era distribuído entre as áreas de Psicologia, das 14h às 16h; de Nutrição, das 16h às 16h30m, e de Educação Física, das 16h30 às 17h. As turmas eram divididas em dois grupos: o de iniciantes, denominado de grupo I, e o de manutenção, destinado às pessoas do grupo I que queriam dar continuidade ao processo de emagrecimento, acompanhamento e manutenção.


No primeiro semestre de 2004 entrei no projeto, como facilitadora do grupo I, neste momento era utilizada a Terapia Comportamental e a Terapia Cognitiva como métodos de trabalho, abordagem do professor Dr. José Cândido Cheque de Moraes, coordenador e orientador do projeto. Com a experiência adquirida neste período a equipe de estagiárias criaram um novo grupo para o segundo semestre de 2004, o Grupo de Manutenção que seria para acompanhamento das pessoas que haviam terminado o primeiro estágio do programa e que quisessem dar continuidade ao processo. Neste grupo iniciamos um trabalho utilizando recursos da Psicoterapia Psicodinâmica. Já no primeiro semestre de 2005, nossas pesquisas foram baseadas na Psicologia Analítica.


Estas mudanças de abordagem ocorreram em virtude de as estagiárias buscarem colocar em prática os aprendizados adquiridos para uma futura opção por uma linha de trabalho, porém as técnicas utilizadas nestes períodos não fugiam de um embasamento estrutural psicanalítico, acompanhando a metodologia dos orientadores dos projetos de pesquisa de iniciação científica. A cada novo semestre tínhamos novos voluntários para trabalhar no projeto, o que contribuiu para o enriquecimento do aprendizado de todos da equipe.


Na busca de uma metodologia que melhorasse os resultados a cada novo semestre, incrementávamos os trabalhos anteriores com utilização de novas técnicas e testávamos novas abordagens. Permanecemos com este grupo até dezembro de 2006. Durante esse período, foram feitos projetos de pesquisas com cada abordagem utilizada.


Os resultados que nos referimos neste artigo, ou seja, a transformação do corpo de mulheres com obesidade sob o olhar fenomenológico existencial ocorreu com o grupo de manutenção no ano de 2006. A adesão à nossa equipe de uma voluntária com vivência nesta abordagem e orientanda em linha psicodramatista contribuiu para a mudança neste sentido, novas idéias a serem pesquisadas surgiram com este novo paradigma.


A fenomenologia era algo novo, pouco explorado para a equipe, não tínhamos orientadores neste campo, então precisamos buscar um embasamento teórico durante o projeto e nos tornarmos experimentadores do fenômeno dentro da própria pesquisa, ao longo do trabalho contamos com o auxílio de professores que se tornaram interessados pela nossa proposta. Durante o planejamento vimos na fenomenologia possibilidade de criarmos situações em que as participantes estariam experimentando o fenômeno por elas mesmas e as facilitadoras, mais livres para observar as reações e os resultados, bem como ter maior envolvimento nas experiências, vivenciando as situações juntamente com as integrantes do grupo.


De acordo com Bucher (1989, p. 27), na fenomenologia a relação psicoterápica se faz sem mediação, seja instrumental ou com intermediários. “Seu único ‘meio’ é o ambiente humano em si, numa configuração muito especial que é aquela do diálogo humano, da ‘conversa’, onde não intervêm outras forças além da linguagem”. Entretanto deve ser considerada mais do que um instrumento intermediário ou um meio técnico: é ela que nos torna humanos.

“Psicoterapia” se refere a um modo muito particular de encarar o ser humano e, por conseguinte, os processos de interação terapêutica, possibilitados entre duas (ou mais) pessoas pela mera ação da fala. A fenomenologia propicia-nos uma compreensão mais pertinente destes processos a partir da análise do Dasein (ou “ser-no-mundo”), da intersubjetividade, da linguagem e das significações especificamente humanas da existência. (BUCHER, 1989, p. 27)


Ainda no planejamento desenvolvemos recursos experimentais diferentes para cada semana, para tal foi criada uma estratégia de trabalho mais interativa, com diversas atividades diferenciadas, com o objetivo de entender o processo de engordar sob o ponto de vista existencial-fenomenológico. Procuramos organizar as atividades de modo que uma ação fosse complementar à outra, eram cinco tipos de propostas semanais com os seguintes temas: 1) a tomada de consciência do próprio corpo, momento em que o trabalho era voltado para o ‘eu com eu’; 2) o relacionamento pessoal e interpessoal, movimento do ‘eu com eu’ e ‘eu com tu’; 3) as emoções, novamente entrando no ‘eu com eu’ e no ‘eu com tu’; 4) a expressão pessoal, voltada para o ‘eu com tu’ e ‘eu com nós’; 5) o desenvolvimento de habilidades, fossem elas manuais, tais como artesanato, costura, pintura, etc. ou até mesmo conhecimentos teóricos sobre algum tema, ou ainda tocar algum instrumento, dançar, cantar ou declamar, este processo voltado para o ‘eu com nós’. O consenso que chegamos para esta divisão e escolha dos temas foi a dificuldade que as participantes tinham em lidar com o próprio corpo, como o tocar-se e aos outros, seus corpos eram verdadeiros tabus, víamos o quanto era difícil para elas conseguir expressar suas emoções e sentimentos e por fim abrir novas possibilidades de ocuparem o seu tempo que outrora era voltado para cozinhar e preparar guloseimas. A esse programa demos o nome de Mais Ação e Menos Gordura, pois entendíamos a necessidade da relação do nome com o movimento das integrantes do grupo.


Em todos os encontros, as atividades dividiam-se em fases, sendo a primeira um exercício de aquecimento. O grupo ficava de pé, formando um círculo, mantendo uma distância correspondente ao diâmetro do corpo com os braços abertos entre uma participante e outra. O primeiro movimento era o de respirar; com as mãos sobre o abdômen a pessoa inspirava lentamente, contando e sentindo seu corpo se inflar (como uma bexiga); em seguida, retinha um pouco o ar nos pulmões, depois o soltava, contando (a mesma quantidade de vezes que contou quando inspirou) e sentindo seu corpo se esvaziar, era necessário a observação do movimento do abdômen inflando e esvaziando. O tempo de duração do exercício era de aproximadamente cinco minutos.


Na sequência, optávamos por um entre vários experimentos , dos quais citamos três: 1) exercício de relaxar ao toque, que consistia em dividi-las em duplas, momento em que uma massageava, sutilmente, as costas da sua parceira; após três minutos, virava-se e quem tinha feito massagem a recebia; 2) exercício de sair do controle, também em dupla — cada parceira guiava a outra, que, de olhos fechados, devia deixar-se levar; após um tempo previsto, invertia-se a posição; 3) exercício de flexibilidade, o qual se baseava em trocar de lugar dentro da roda, a cada vez que fosse dado o comando, porém não se podia repetir a posição anterior, nem a companhia do seu lado direito e do esquerdo, para que isso ocorresse era necessário estar atenta em si e ao seu redor durante todo o exercício.


Durante esses exercícios, observamos que algumas participantes não conseguiam se sentir à vontade recebendo a massagem, porém sentiam-se confortáveis em fazê-la; o mesmo ocorria quando eram dirigidas pela parceira, quando orientavam ficavam confiantes, mas quando eram levadas, mantinham-se desconfiadas e hesitantes. As mesmas pessoas que ficavam mais à vontade no controle da situação comportavam-se como líderes quando colocadas entre pessoas mais submissas, portanto propositadamente, eram colocadas em um grupo com uma ou mais pessoas que apresentavam a mesma postura. Já no exercício de flexibilidade, notamos resistência em permanecer na mesma posição por parte de algumas pessoas, que saíam, mas, em seguida, retornavam à posição anterior, estas eram levadas a se colocar em outra posição, porém dentro do contexto da dinâmica.


Quando se está no controle da situação não são permitidas surpresas, o contato só se estabelece quando se dá permissão para tal. E era isto o que acontecia com estas pessoas, embora tivessem ido buscar mudanças em suas vidas tinham dificuldades em deixá-las acontecer. Ao participar destes exercícios viam suas resistências se afrouxarem e, embora com dificuldade, acabavam permitindo uma aproximação e um contato real.


Zinker (1978) nos mostra a questão do risco, falando sobre a dificuldade de deixar o que já é conhecido e se abrir para o novo. Segundo o autor, qualquer movimento gera resistência e experimentamos a resistência interna como uma hesitação em mudar a forma de fazer algo ou de comportar-se cotidianamente, uma vez que o familiar nos deixa confortável.


Baseadas na idéia de Beisser, in Fagan (1980, p. 110), “A mudança não ocorre através de uma tentativa coerciva por parte do indivíduo ou de outra pessoa para mudá-lo, mas acontece se dedicarmos tempo e esforço a ser o que somos”. Buscamos criar situações em que as participantes esbarrassem em suas resistências e por si mesmas superassem os desafios, descobrindo-se através de suas próprias reações e se abrindo para o novo.


Yontef (1998) associa mudança ao desenvolvimento do autossuporte, quando a pessoa reconhece a si mesma e começa a aceitar-se como é:

Quanto mais você tentar ser quem não é, mais você permanece o mesmo. Crescimento, incluindo a assimilação da ajuda e do amor dos outros, requer autossuporte. Tentar ser quem não se é não é autossuporte. (YONTEF, p. 138)


As vivências nos experimentos de representação e de relaxamento tinham o objetivo de fazer o grupo entrar em contato com suas emoções. Para tanto, eram escolhidos textos com conteúdos emocionais diversos para que, mediante o processo de identificação com o personagem, as participantes pudessem focar a emoção correspondente e pudéssemos trabalhá-la. A raiva foi um tema bem trabalhado, isto porque ao longo do convívio com as participantes — algumas por mais de dois anos — foi observado que as mesmas reprimiam emoções, a raiva dentre todas, era a mais rejeitada, por acreditarem ser feio ou pecaminoso ter esse tipo de sentimento, dessa forma, elas resistiam à sua expressão. O medo foi outro tema bem observado nas reuniões, pois muitas das participantes apresentavam diagnóstico de síndrome do pânico. No contexto do nosso planejamento, tínhamos também a angústia e a ansiedade como focos a serem pesquisados, já que faziam parte de hipótese de um dos projetos, por ser sentimento comum nas pessoas com transtorno alimentar.


Com esses exercícios, observou-se muita culpa e ressentimento nas integrantes do grupo; percebeu-se que eram pessoas muito ansiosas, que represavam sua raiva. Esta percepção se deu através de suas reações e comentários após vivenciarem dramaticamente os textos trazidos, pois ao final de cada trabalho discutíamos o que havia sido mobilizado e as participantes traziam para o círculo situações semelhantes que haviam vivenciado em suas histórias. Esse era o momento em que conseguiam elaborar e ressignificar suas emoções modificando a forma de vê-las.



2.1 O grupo

Ao inscreverem-se no programa, no grupo I, as mulheres eram pesadas e era calculado seu índice de massa corpórea (IMC), seguindo o modelo da Organização Mundial da Saúde.


O grupo era composto de mulheres, em sua maioria com “obesidade classe III”, comumente conhecida como obesidade mórbida. Essas mulheres eram da cidade de Guarulhos-SP e faziam parte de uma classe social considerada média-baixa, casadas, com filhos; trabalhadoras do lar com algum tipo de atividade considerada como “distração” ou “bico”. A faixa etária era variável, porém mais de 50% delas contava mais de 40 anos, participaram algumas adolescentes, mas não por muito tempo.


Ao término do grupo I, as participantes haviam emagrecido em média de 10 a 15 quilos durante os quatro meses do programa, mediante o trabalho multidisciplinar em que aprendiam a alimentar-se de forma saudável, com acompanhamento da equipe de Nutrição; a fazer exercícios físicos com a equipe de Educação Física, e a ter outro tipo de comportamento diante do alimento juntamente com a equipe de psicologia cuja orientação era a comportamental; porém, para a maioria das participantes, esta quantidade de peso eliminado ainda não representava uma mudança em suas vidas, continuavam ainda correndo grave risco em função de comorbidades decorrentes do excesso de peso. Bem como saíam dali sem terem compreendido o motivo que as levavam a permitir-se tamanha autodestruição, e muitas delas retornavam algum tempo depois, pois haviam voltado a engordar.


A idéia de trabalhar com a abordagem fenomenológica surgiu justamente porque só a mudança de comportamento não mudava a forma de ver-se e colocar-se no mundo, era algo mecânico, que a qualquer momento em uma situação problemática elas poderiam retroceder a comportamentos anteriores. Havia a necessidade de algo que tocasse mais profundamente em seu íntimo, algo pelo que valesse a pena uma mudança, pois só assim o emagrecer seria efetivo, o ser magro teria que ser uma escolha de ser-no-mundo.


A cada semestre havia a entrada de mulheres do grupo I no grupo de manutenção, embora algumas delas desistissem de continuar nessa fase, mantínhamos uma média de 25 a 30 membros neste grupo; a rotatividade era comum, porém 16 pessoas permaneceram durante todos os anos em que acompanhamos o grupo.


2.2 Atividades Desenvolvidas

Procuramos abranger as necessidades imediatas das participantes na elaboração dos experimentos, quais sejam:

• tomada de consciência de si mesmo – percepção de que eu sou o meu corpo, o meu corpo não é um acessório;
• tomada de consciência dos limites pessoais, conhecer suas fronteiras – onde eu termino e onde começa o outro, eu sou eu, o outro é o outro;
• abertura para o social – o que me acontece também acontece em outras famílias e cada um lida com os problemas de forma diferente, deste modo posso descobrir novas possibilidades de resolução para os meus;
• flexibilidade diante das situações – necessidade de habilidade para enfrentar as situações desconhecidas;
• aprender a expressar-se, vencer a timidez – vencer a vergonha de ser autêntica; perder o medo de dizer o que sente;
• aprender a valorizar seus conhecimentos e habilidades, desenvolver novas habilidades, transmitir seus conhecimentos.


Em nosso planejamento preparamos cada experimento que iria ser realizado ao longo de todo o período de acompanhamento, uma vez que o trabalho faria parte de um projeto de pesquisa de iniciação científica patrocinado pela universidade.


a) Entrando em contato com o corpo

Para dar-se conta de si mesmo facilitamos a consciência das participantes para o “aqui e agora”, criamos possibilidade para que elas percebessem a si e aos outros, que se dessem conta que existe uma fronteira, um limite, um “entre” em que acontece o contato.


De acordo com Zinker (2001):

O contato é a consciência da diferença (o “novo” ou o “diferente”) na fronteira entre organismos e ambiente; é marcado pela energia (excitação), maior presença ou atenção e “intencionalidade” que medeia aquilo que cruza a fronteira e rejeita aquilo que não é assimilável. (ZINKER, 2001, p. 97)


Nesta fase optamos pela Gestalt-terapia por tratar-se de uma terapia da concentração, do aqui e agora e buscamos nela embasamento teórico para nossos trabalhos. A Gestalt-terapia segundo Perls, Hefferline e Goodman (1997, p. 50) enfatiza “concentrar na estrutura da situação concreta; preservar a integridade da concretude encontrando a relação intrínseca entre fatores socioculturais, animais e físicos”.


Um dos encontros tinha por objetivo situar o sujeito no seu próprio corpo; desenvolvendo a percepção de si mesmo, funcionando junto ao processo de percepção de quem-sou-eu e, nesse sou-eu, percebendo as fronteiras do si-mesmo.


Desse modo, foram escolhidos alguns exercícios de contato, a princípio com o próprio sujeito, para proporcionar-lhe conhecimento do próprio corpo e das sensações presentes nele, a fim de que, posteriormente, pudesse ser promovido o contato com o outro, seguindo a idéia de Polster e Polster (2001), de que só há crescimento através do contato, pois, somente por meio dele, se pode mudar a si mesmo e a experiência que se tem do mundo.


Um dos exercícios propostos consistia em que a pessoa, com os olhos fechados, tocasse todo o seu corpo passando por cada traço, reentrância, contorno e observasse a textura, a temperatura, a consistência de cada parte, iniciando pela cabeça; depois perceber qual a sensação de cada toque, nas mãos como na própria parte tocada. Esse exercício estendia-se pelo pescoço, ombros, braços, mãos, tórax, abdômen, quadril, coxas, pernas e pés. Induzíamos o percurso para a sequência da mudança da parte a ser tocada, lentamente, buscando a percepção total de si mesmo. A pergunta “Como esse corpo está sendo percebido, ouvido, sentido?” era repetida durante a vivência. Em seguida era feito um alongamento suave dos músculos do pescoço, braços, mãos, coluna e pernas, sem nenhum esforço, buscando um relaxamento completo, como se espreguiçar ao acordar. Após o encerramento abríamos o círculo para troca de experiências entre os membros.


A princípio as participantes ficaram tensas e riram muito, mas no decorrer do exercício relaxaram e começaram a usufruir deste contato consigo mesmo. Terminada a sessão de exercícios, passamos aos relatos das participantes das experiências vivenciadas durante as atividades. Algumas disseram que nunca tinham parado para se tocar, que o seu contato só se dava quando se banhavam e mesmo assim muito rapidamente; outras disseram que não imaginavam como era boa a sensação; uma relata que no começo sentiu-se constrangida de fazer isso, pois imaginava este ato como se fosse um pecado, mas compreendeu que não era e descobriu nisso uma sensação muito boa.


Spangenberg (2004, p. 119) utilizando a teoria reichiana nos esclarece que “(...) a identidade não é algo abstrato ou psíquico; está corporificada, ou parcialmente encarnada. Encontramos pessoas que habitam seu corpo somente do pescoço para cima, outros que não têm braços, ou não têm pernas, ou não têm mãos, etc...” (grifos do autor). Diz ainda que: “Este processo tem a enorme vantagem de consistir numa viagem às fronteiras, e o resultado é o descobrimento, por parte da pessoa, de quais são as partes de si mesma com as que têm contato e as que não”.


b) Aprendendo a relacionar-se, o contato com o outro e suas fronteiras

Para aprender a relacionar-se, em primeiro lugar, é preciso entender que, para ser, é preciso ser-com, ser-para no mundo a sua volta, o contato se faz a partir da interação com o outro, animado ou inanimado; a fim de que haja um contato, é necessário que haja fronteiras, limites. O ponto de encontro entre o eu e o não-eu é o ponto em que o indivíduo experimenta o eu em relação ao não-eu. Com isso, tem-se a percepção de si próprio, como daquilo que colide nessa fronteira, daquilo que surge ou se funde com ela. (POLSTER e POLSTER, 2001).


Para desenvolver o contato social, sem tirar o foco do sentir o corpo; foram utilizadas técnicas do psicodrama, como sociodrama e de escultura para trabalhar com o social.
A opção pelo Sociodrama se deu por querermos abordar as problemáticas sociais vividas pelas participantes, de tal forma que pudesse envolver todos os membros do grupo, e que pudessem falar dos próprios problemas através de uma representação em que o autor da história tem o papel de outro personagem que não o dele mesmo na trama. Deste modo ele pode ver-se e ao mesmo tempo colocar-se no lugar do outro.


O trabalho de escultura diz respeito ao deixar-se moldar. O objetivo deste experimento foi verificar a maleabilidade das integrantes do grupo e ao mesmo tempo facilitar para que percebessem em si mesmas sua flexibilidade diante da atuação.


b.1) Sociodrama

Para o sociodrama, o grupo era dividido em pequenos subgrupos de cinco pessoas, que tinham um objetivo a ser atingido; propunha-se a discussão entre as integrantes do subgrupo para que fosse decidido o que fazer e como seria feito, para a tarefa ser realizada e compreendida por quem o assistisse.


O sociodrama envolvia a criação de uma história; o subgrupo desenvolvia a cena e representava-a para suas colegas. Para isso, era solicitado que cada uma das cinco contasse uma experiência própria, relacionada ao tema sorteado; depois elas escolhiam qual delas seria encenada, quem iria representar qual personagem.


Eram dados de 15 a 20 minutos para que os grupos montassem o sociodrama escolhido; findo o tempo, cada grupo iria encená-lo. Após todas as apresentações, as participantes eram dispostas em círculo; nesse momento, eram discutidos os sentimentos, o envolvimento de cada uma, as dificuldades encontradas, questionava-se quem tinha falado mais, quem era a líder, quem não conseguia participar e por quê. Era a oportunidade de expressarem seus problemas, serem ouvidas e ouvirem as outras. A maioria das participantes relatou ter compreendido a posição do outro dentro da situação que na ocasião do ocorrido não havia sido elaborado.


b.2) Escultura

Para a implantação dessa técnica dividia-se o grupo em dois subgrupos, na proporção de dois para um; um terço seria a escultura, e dois terços, os escultores. O exercício era feito em dois tempos; no primeiro momento, ficavam na sala somente as pessoas que seriam as esculturas, os escultores saíam da sala para que fosse preparado o “atelier”; as pessoas-esculturas eram posicionadas diferentemente; uma sentada segurando um espelho para o qual olhava, outra presa dentro de um quadrado, outra com expressão de tristeza diante de uma peça de roupa muito menor que seu corpo, outra sorrindo diante de uma parede, outras duas simulando uma briga, porém todas imóveis; em seguida, o subgrupo de escultores entrava na sala, eles deveriam olhar para cada escultura em exposição, observá-las, buscando o significado de cada uma; no segundo momento, escolheriam uma das esculturas e fariam a interação com ela, assumindo o papel do escultor.


Durante o exercício da escultura, observava-se a maleabilidade ou a rigidez de atitudes diante do outro, assim como suas fragilidades. Estas observações eram registradas e nos serviam de base para avaliarmos se nossas técnicas estavam surtindo efeito e qual era ele. Precisávamos validar nossos experimentos e averiguar de que forma repercutiam nos resultados de emagrecimento.


Ao término do tempo estipulado para a interação, aproximadamente 15 minutos, formava-se a roda para conversarmos sobre a experiência de cada uma. Os temas colocados em discussão foram: a) em relação às esculturas – como as esculturas se sentiam quando eram observadas e discutiu-se o sentimento delas ao serem “moldadas”; b) Em relação aos escultores – como se sentiam ao observar e ao manipular as esculturas. Após ouvirem seus depoimentos, foi solicitado que observassem esses sentimentos e os comparassem com os que sentiam no seu dia a dia.


As falas sobre este exercício foram no sentido de se perceberem enquanto observavam o outro ou executavam a tarefa; o quanto elas haviam se deixado moldar no decorrer de suas vidas; e quanto foram manipuladoras ao moldar seus filhos e pessoas dentro de suas relações. Tal experimento gerou comoção e questionamento quanto a possibilidade de mudanças em suas vidas.


c) Aprendendo a expressar-se

O desenvolvimento das qualidades de expressão foi trabalhado por meio da dança, do canto, da recitação e da representação teatral. A idéia central foi: ao desenvolver a consciência de uma nova existência, havia a necessidade de aprender a expressá-la.


No início de cada semestre, definiam-se algumas apresentações que seriam feitas no encerramento das atividades do grupo; durante os encontros em que se trabalhava a expressão, ensaiávamos o espetáculo.


Aprender a buscar o prazer de viver era o objetivo primário, a busca do prazer fora da comida, fazer do emagrecer algo prazeroso e não algo penoso, a diversão, o ter-prazer-com-aquilo-que-faz, fazer pelo prazer de fazer, sem os “tem que” ou “deverias”, já que “deveria(s) são afirmações de obrigação, que dizem ao indivíduo como regular seu comportamento por padrões externos, isolados de suas necessidades organísmicas ou da avaliação de suas prioridades internas”. (YONTEF, 1998, p. 243); (grifos do autor).


Para isto os pontos focados foram: espontaneidade, tudo o que se faz torna-se mais fácil se o fizermos espontaneamente, que de acordo com Perls e col. (1997):

A espontaneidade é o sentimento de estar atuando no organismo/ambiente que está acontecendo, sendo não somente seu artesão ou seu artefato, mas crescendo dentro dele. A espontaneidade não é diretiva nem autodiretiva, e nem nada a está arrastando embora seja essencialmente descompromissada, mas é um processo de descobrir-e-inventar à medida que prosseguimos, engajados e aceitando o que vem. (PERLS, HEFFERLINE E GOODMAN, 1997, p. 182)


d) Desenvolvendo habilidades

Para aprender a valorizar seus conhecimentos utilizamos um encontro ao mês, momento em que a atividade era demonstrar e ensinar umas às outras suas habilidades com trabalhos manuais e outros conhecimentos que pudessem ser transmitidos, nesse dia as participantes eram as instrutoras daquilo que sabiam fazer melhor.


Nesses encontros, elas exibiam seus conhecimentos em trabalhos manuais e artesanais e expunham suas habilidades mais evidentes. Nesse momento, elas eram senhoras de si, pois expressavam seu melhor e tinham consciência disso. Ao ensinarem, elas sentiam-se valorizadas, como um processo de autorreconhecimento.



2.3 “Ato-ação” terapêutica das coordenadoras do grupo

No decorrer de um ano, foi exercitada nossa capacidade de observação, buscamos, a todo instante, descartar pensamentos existentes aprioristicamente para formar uma idéia do fenômeno conforme ele ia acontecendo nos encontros semanais. As idéias vêm em turbilhão e é preciso colocá-las em certa ordem para que possam ser entendidas pelos outros. A cada encontro, eram feitos exercícios, discutidas as ocorrências e trabalhadas as impressões deixadas; ao findar-se a reunião, preparavam-se os relatórios das observações feitas e das sínteses elaboradas.


Conforme Ribeiro (1985), a ação terapêutica é orientada para o todo do cliente, cada uma de suas partes está atingida, pois a relação entre as partes e o todo não é apenas de causa e efeito, mas também existencial, portanto será mencionado o ocorrido e a análise feita a partir das impressões deixadas.


Nos primeiros exercícios, notou-se a dificuldade das integrantes em participar, principalmente quando se tratava de tocar o próprio corpo; elas riam. Era possível notar a vergonha, o receio de fazê-lo. Suas falas recaíam nos defeitos, na estranheza do próprio corpo, como se não merecesse ser tocado, por ser feio; elas tinham medo de tocar seus corpos, porque, ao se tocarem, poderiam despertar um ser indomável.


As técnicas desenvolvidas tinham o intuito de que elas pudessem expressar seus sentimentos, o seu entendimento do exercício, suas concepções e suas atitudes, e manifestar aquilo que o próprio corpo representava para elas. A primeira manifestação foi a vergonha.


De acordo com Robine (2006), a vergonha é um dos primeiros sentimentos experienciados pelo homem, e ela representa a consciência de si diante do outro, é o despir-se ao olhar do outro, é a consequência do autoconhecimento. O indivíduo que crê não ser o que deveria pode sofrer privação emocional e a suspeita desse castigo desequilibra sua integridade.


Como aponta Spangenberg (2004, p. 118), “nossa identidade é como um mapa escrito em nosso corpo” (grifo do autor). Ao abandonarem seus corpos por considerem-no algo pecaminoso perderam sua identidade, seu prazer pela vida.


Este autor ainda afirma “Sentir que não se sente (maravilhoso paradoxo) uma parte do próprio corpo, descobrir que habitamos um espaço que nunca havíamos visitado antes é a introdução a todo o resto do trabalho corporal”. (SPANGENBERG, 2004 p. 119)


Conforme as participantes do grupo descreviam suas vivências, construíamos uma idéia desse corpo. O corpo, quando descrito, parecia ser algo fora delas, um objeto muito distante da realidade, existente em outro tempo, em outro lugar, algo proibido, inacessível, algo defeituoso, errado. Essa impressão levou-nos ao pensamento expresso por May (1980) sobre nossa cultura, que se desenvolveu sob o culto de um pensamento cartesiano, no qual corpo e mente são coisas separadas, como se pudessem existir uma independente da outra; o controle racional das emoções, dos impulsos emocionais menos aceitáveis, como o sexo e a hostilidade, leva as pessoas às repressões e culpas.


As mulheres desse grupo falavam de um corpo separado, sem emoção, repudiado, um objeto desprezível que deve ser submetido à vontade de quem o tem; que não deve ser cultuado, cuidado, amado, pois tais atitudes incorreriam em algo pecaminoso, como se a mente, o pensar pertencesse a Deus e o corpo, ao demônio. Esse corpo separado está querendo dizer que não existia contato, elas não se viam, negavam sua existência, isto é, mantinham-se aprisionadas em uma vivência adoecida.


Em um contexto histórico atual, em que se cultua o corpo esbelto, escultural, em virtude do valor atribuído à mídia, esse tipo físico é vendido à sociedade como uma necessidade para a aceitação da mulher, e vê-se ainda mais fortalecida a dicotomia cartesiana naquelas que não o possuem. Há a necessidade de criar outros valores, na tentativa de mostrar a existência da mulher independente de um corpo belo.


A crença na existência de um corpo perfeito, baseado em um modelo estabelecido pela sociedade, gera uma idéia de imperfeição, de errado para aqueles que são diferentes. Como se o diferente não fosse parte do humano. Todavia, se observarmos a natureza, não existe nada igual, ela fez tudo diferente, não existem duas folhas na mesma planta, que sejam idênticas, mas todas são perfeitas, diferentes, mas perfeitas.


Duas místicas extremas entram em conflito, da total alienação do corpo para o seu endeusamento. Então, como lidar com elas e encontrar um equilíbrio?


E lá estavam elas, mulheres cujos corpos não condiziam com seus padrões de perfeição, padrões criados pela sociedade e aceitos por elas. Um corpo diferente do modelo, nem melhor, nem pior, apenas diferente o bastante para ser renegado, negado como um todo. Uma grande dicotomia, um corpo que estava ali, mas não lhes pertencia, algo independente delas, mas, ao mesmo tempo, eram elas. Aí surge a vergonha, o medo de não serem aceitas.


Segundo Spangenberg (2004):

“... a menos que tenhamos uma compreensão holística de como nossa experiência corporal entronca com nosso entorno, tanto interno como externo, com a sociedade, com a cultura, e com nossa própria identidade, o potencial enriquecedor do trabalho corporal pode perder-se na mera forma do novo. É imprescindível entender que contatar com o corpo é contatar com o desconhecido; que integrar o corpo a nossas vidas implica numa mudança de enormes proporções que encontrará, para sua realização, tremendas resistências, não apenas internas, mas também por parte da comunidade e de todos aqueles que se vejam ameaçados pela presença de indivíduos capazes de expressar e viver pelo que sentem, a saber: todas as organizações e instituições (públicas e privadas) que estão edificadas verticalmente (precisa esclarecer mais?)”. (SPANGENBERG, 2004, p. 115)

A partir desses ideais, desses valores perfeccionísticos e tendenciosos, as mulheres cujos corpos não se adequam ao modelo passam a se considerar imperfeitas, pois, quando se olham, focam uma coisa, formando um ideal e assumindo que esse ideal é o certo, não conseguem ver o certo das outras coisas. Dessa forma, não conseguem ver que é aquilo que elas podem ser. A sua autoestima é baixa, daí surgem conflitos, ambivalência de sentimentos: “Quem sou eu, o que sou eu e como expressar esse eu?”.


Essas mulheres buscavam emagrecer, desejavam voltar a ter um corpo esbelto e bonito, digno de admiração; quanto mais elas falavam, mais se perdiam na idéia controversa que faziam a respeito delas mesmas.


Durante nossas intervenções, montamos a imagem que descreviam e mostramos-lhes, por meio de uma representação teatral, essa visão, que tinham de seus corpos. Para que elas percebessem o conflito presente em suas falas, representamos os papéis de forma exagerada e caricata, um da mente e outro do corpo. Ao final da encenação, fizemos um exercício de relaxamento para a percepção do corpo, finalizando com “a volta para casa” (entrada no corpo).


Na discussão em círculo, discorremos sobre a visão que tinham de seus corpos, e a apresentação de tal imagem trouxe muita inquietação. A emersão dessa idéia mobilizou discussões sobre a possibilidade de uma existência diferente, cogitou-se sobre outras possibilidades de ser.


No decorrer do processo grupal, o contato tornou-se mais espontâneo, mais real e menos questionado. Os exercícios eram feitos com mais seriedade e concentração, mostrando harmonia na relação entre corpo e mente, abrindo possibilidade para o contato real com o outro.


Em sessões grupais, foram feitas análises sobre os limites, sobre a fragilidade interior e a necessidade de se revestir com uma capa protetora de “gordura”, sobre o quanto cada uma delas buscou aumentar seu campo de atuação, ampliando seu contorno físico, como se tentassem alcançar uma fronteira inexistente.


Conforme Merleau-Ponty (2006), é preciso que se aprenda a considerar o corpo como um objeto, pois ele ainda não está objetivado. Se pelo tato pode-se refletir a ação do corpo, essa reflexão é ainda muito incompleta. Citando Husserl, alguém que só tivesse olhos desconheceria a si mesmo pela falta de um espelho. Faltar-lhe-iam os outros.


Como são os outros para essas mulheres? Como elas agem diante deles? Eles são os outros mesmo ou a extensão delas mesmas? Seus depoimentos mostravam um relacionamento confluente, colado com seus cônjuges, filhos, familiares. Muitas delas tinham muita dificuldade em usar o pronome eu para se autorreferir. Não podiam perceber onde se situavam suas fronteiras. Havia uma distorção perceptual do aqui-sou-eu e do ali-é-o-outro.


Nos tipos de relação apresentados pelos sujeitos do grupo, destacavam-se duas formas de ser: a primeira é aquela pessoa que não consegue fazer mais nada sozinha, precisa do outro para tudo, como muleta, ela olha e não se vê, ou melhor, ela não se olha; a segunda é aquele sujeito que toma tudo para si, numa atitude megalomaníaca de querer assumir tudo, toma para si todas as responsabilidades, quer resolver tudo sozinho, inclusive decidir o que é melhor para o outro, não vê o outro, nem olha para ele.


Por falta de percepção de suas fronteiras, as pessoas se tornam permeáveis ao meio; ao deixarem-se invadir por forças externas, deixam-se diluir, misturando-se ao todo, perdendo, dessa forma, a sua integridade, deixando de ser elas mesmas. No início, acontece uma vez ou outra, é só para agradar a alguém especial, aos poucos o sujeito vai deixando de seguir seu eu, sua própria vontade deixa de prevalecer em prol do desejo do outro. E não percebe o quanto essa invasão pode ferir e anular a si próprio. Depois de um tempo, está tão acostumado a fazer isso que não vê mais a si mesmo. Torna-se totalmente vulnerável ao outro, justamente porque não existe distinção entre o eu e o outro, a relação torna-se confluente, numa tentativa de sentir-se seguro.


A partir destas observações e constatações levantamos a hipótese de que a predominância da forma de contato das mulheres deste grupo se dá através da confluência em um estado patológico, o que abre novos caminhos a serem pesquisados.


Segundo Perls (1988), a pessoa em quem a confluência é um estado patológico não distingue entre ela mesma e os outros, eles se confundem como em um processo simbiótico, não percebem seus limites, suas fronteiras. Por não se dar conta da barreira entre eles, ela não consegue entrar em contato.


Como forma desesperada de existir no mundo, seu corpo começa a expandir-se, como uma forma ameboide, que se expande para alcançar a sua presa, a pessoa amplia seus limites, e seu corpo vai aumentando. A pessoa aumenta suas fronteiras e seu campo de atuação, porém sente-se vazia, sua vida perde o sentido. E esse vazio, segundo pressuposto de May (1982), deve-se ao fato de a pessoa não ter uma experiência definida de seus próprios desejos e necessidades, abriu mão de seus limites e fronteiras, vivendo os desejos do outro, tornando-se a expressão de um espelho, refletindo a esperança alheia.


Outra derivação dessa vivência adoecida é a solidão, as pessoas que não conseguem delimitar suas fronteiras deixam-se invadir pelo outro. De repente a pessoa está tão cheia, tão preenchida das vontades e opiniões alheias que não sobra espaço para si. Sendo assim, não consegue ter uma vivência de si mesma, seu eu aderiu ao outro e, quando se olha, no momento de solidão, não vê nada, nem a si própria, nem ao outro, pois não pode ser o outro; portanto, sobra só a ilusão do que é. E quando se é uma ilusão, está longe da realidade, logo não se é, nem se tem nada. Esse é o momento da solidão, é o grande vazio. A arte do encontro deixa de acontecer, pois ele começa a ser encarado como algo perigoso e ameaçador à frágil integridade deste eu ilusório; o indivíduo deixa de expor-se, mostrar-se e consequentemente de entregar-se por temer perder o controle. Um controle que é a falsa ilusão de poder, pois o sujeito não pode controlar a existência e a vida.


Deve-se perceber a necessidade de ter suas próprias experiências, de estabelecer fronteiras delineadas; não com tanta rigidez que impeça o contato, nem totalmente permeável que se perca o contorno, a fronteira a fim de que se permita perceber a si mesmo como tal e o outro como o outro, tendo-se a certeza de que eu sou eu e o outro é o outro, travando um contato real por intermédio do restabelecimento da própria integridade. Ao sofrer a desilusão (sem ilusão) a pessoa começa a perceber o seu aqui e agora, a sua realidade, a partir daí tem condições de fazer suas escolhas, pois diante do real se abre um universo de possibilidades permitindo ao indivíduo situar-se inteiro diante da vida.


Ao restabelecer a integridade, a pessoa passa a fazer suas próprias escolhas e a assumir a responsabilidade sobre elas, não importando quais sejam as consequências, e é esse fazer-acontecer que define a existência.


Outro tema discutido foi a individualidade e o respeito das escolhas do outro. Ao tomar consciência da responsabilidade por suas escolhas, percebe-se que não se pode tomar para si a decisão sobre a escolha alheia, aprende-se que o que é do outro a ele pertence. Esse exercício foi responsável por grande comoção no grupo; o fato de as participantes depararem-se com aquilo que elas estavam fazendo consigo, e assumirem a responsabilidade por si próprias pareceu tê-las feito despertar de um pesadelo, mas ainda era só um começo de suas próprias reconstruções. Abriu-se neste momento o questionamento “O que estou fazendo com meu corpo e com minha vida? O que posso fazer para mudar isto?”. Ao longo do nosso projeto elas conseguiram algumas chaves e localizaram as portas, agora dependia delas abrirem-nas.


A obesidade se configura através de um estilo de vida que é escolhido por não enxergar alternativas, ao abrir-se para novas possibilidades para mudar este estilo, os corpos voltam a encontrar equilíbrio transformando-se pela aceitação e amor próprios.


Durante as discussões, também foram feitos os seguintes questionamentos: “Qual o motivo para não expressar a raiva?”; “O que as fazia sentir raiva e como elas reagiam ao senti-la?”. Trabalharam-se outras formas de expressão da raiva, além da agressividade.


A ansiedade foi trabalhada como um medo do vir-a-ser; discutimos sobre o significado do tempo, sobre o ontem, o amanhã e o hoje. Para melhor desenvolver o tema, foram realizados exercícios de presentificação, usando respiração, observação das sensações no momento presente (Stevens, 1988). Um exercício que foi possível ser feito diariamente foi a repetição da frase: “Eu sou eu, o outro é o outro”; como se fosse um mantra.


A culpa foi expressa e analisada a partir da discussão sobre pretensão (arrogância) versus humildade, ou seja, o conflito entre o-que-eu-tenho-condições-de e o-que-eu-deveria, que de acordo com Yontef (1998, p. 244) “A regulação baseada em deveria(s) é fixa, pois baseia-se numa entidade imutável e não na integração dialética, resultante da consideração das exigências externas e das necessidades internas”. Ela surge quando se acredita ter ou não ter feito algo que deveria ou não deveria fazer, isto é, quando se assume seguir o modelo preestabelecido ao invés de seguir a si mesmo, atendendo às possibilidades do eu.


Ao trabalharmos a culpa, voltamos a um modelo criado pela cultura, família, sociedade, que é assumido pelo sujeito como o certo. Assim sendo, ele fecha as portas para o certo das outras coisas ou para as outras formas de estar certo e passa a perseguir o modelo ideal. Ao deparar-se com suas próprias limitações e possibilidades, culpa-se por não ter atingido o modelo ideal. Isso significa dizer que a pessoa não tem a humildade de aceitar-se como é, pois deveria ser (fazer) diferente. De acordo com Robine (2006), isso acontece quando o sujeito acredita ter cometido uma falta diante do outro, indo contra o ideal de perfeição, e espera punição.


Conforme Yontef (1998, p. 363) Tanto a culpa como a vergonha estariam associadas ao abandono. “As crianças em geral presumem que o abandono ocorre porque existe algo de errado com elas.”


A partir desse pressuposto, houve a ressignificação do ocorrido, desenvolveu-se a ideia de que tudo o que foi feito, no momento da ação, era o melhor que a pessoa podia fazer ou sentir; na ocasião, foi o que pode ser feito por inúmeras razões, como falta de oportunidade, ignorância, imaturidade, por defesa da própria integridade física ou moral, falta de condições financeiras; quando ocorreu a situação, a pessoa fez o seu melhor.



3. Considerações finais

Ao finalizarmos o processo grupal em dezembro de 2006, observamos mudança em várias participantes do grupo, notava-se mais desenvoltura e graça em sua forma de expressão, observamos a busca de objetivos mais definidos e muito mais prazer em sua busca de realização.


Durante um ano de trabalho, foi observado o modo de existir das pessoas do grupo, foram detectadas semelhanças entre algumas delas: a busca por aceitação e reconhecimento; o sentimento de culpa; a acomodação; o relacionamento confluente; a sensação de vazio; o jeito “dramático” de olhar a vida.


Os temas abordados em nossas intervenções procuraram abranger todas essas situações, e perceberam-se alterações consistentes no grupo, tanto físicas como cosmovisuais.


A metamorfose processada em seus corpos, transformando-as em mulheres obesas começava a perder o sentido para elas, fazia-se necessário o desenvolvimento de um novo corpo, mais condizente com seu eu sedento de atualização, um corpo que agora era aceito e respeitado. O trabalho trouxe resultados mais rápidos para algumas pessoas, para outras eles foram mais lentos, em algumas foi quase imperceptível, porém todas foram tocadas de alguma forma; como uma pequena semente que é plantada, no seu devido tempo irá germinar.


Feita a avaliação da atuação no GOAM – Grupo de Obesidade e Atendimento Multidisciplinar – nesse último período pudemos verificar crescimentos relativos ao desenvolvimento do processo empático e da percepção das diversas formas de existir no mundo da obesidade. Descobrimos outra forma de fazer ciência, mais humana, existindo, acontecendo junto com o grupo.


Todo esforço de trazer à consciência sua forma de existir e o vislumbre de novas possibilidades de vir-a-ser trouxeram inquietação para o grupo; consequentemente, houve um movimento, o qual criou um contraste. Este trouxe a consciência, pois a consciência é o contraste; afinal, o que não tem contraste não pode ser percebido, e o que não é percebido não é consciente. A consciência é o movimento, esse movimento é o atualizar-se; o atualizar-se é o próprio existir.


E o grupo percebeu-se existindo, atualizando-se num esforço de deixar-se ser pura possibilidade.

 


Referências


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Endereço para correspondência:

Angela Maria Alves Souza
E-mail: amasplus@yahoo.com.br


Rosana Aparecida Vieira
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Anna Karynne da Silva Melo
E-mail: karynnemelo@unifor.br

 


Recebido em: 15/09/2008.
Aprovado em: 26/06/2009.