Grupo fenomenológico-existencial: transformação no corpo de mulheres com obesidade
A phenomenological-existential group: transformation
on the body of obese women
Rosana Aparecida Vieira
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC/SP, São Paulo, Brasil
Angela Maria Alves e Souza
Universidade Federal do Ceará - UFC, Ceará, Brasil
Anna Karynne da Silva Melo
Universidade
de Fortaleza - UNIFOR, Ceará, Brasil
Resumo
Este estudo descreve aspectos, em uma perspectiva fenomenológico-existencial, a metamorfose vivenciada por mulheres em seus corpos no grupo de apoio Mais Ação e Menos Gordura, baseado em recursos experimentais da gestalt-terapia. Com duração de um ano, no período de 2006, no projeto Grupo de Obesidade e Atendimento Multidisciplinar – GOAM, do Programa de Ação Docente, Discente, Assistencial e Comunitário – PADDAC, da Universidade Guarulhos, na cidade de Guarulhos-SP, aprovado pelo parecer nº 34/04 do Comitê de Ética. Através de encontros semanais de 3 horas, em que foram utilizadas técnicas como: a) relaxamento e exercícios de contato, em si mesmo e no outro para que as pessoas pudessem vivenciar suas sensações; b) vivências e representações teatrais com o intuito de desenvolver a expressão; c) desenvolvimento da criatividade e habilidades através da confecção de trabalhos manuais que eram ensinados por elas mesmas. No processo grupal, foram desenvolvidos os aspectos da transformação no corpo das participantes: a corporeidade e as fronteiras de contato; a distinção entre o eu, o não-eu e a integridade; a presentificação e o simbolismo do corpo; emoções, sentimentos de culpa, vergonha, medo, ansiedade e vitimização versus a assunção da responsabilidade das escolhas. A avaliação dos resultados revelou que as participantes atingiram as metas estabelecidas no grupo e que sentiam mais prazer em suas realizações pessoais e profissionais, havendo descobertas de possibilidades do vir-a-ser; desenvolvendo um novo corpo, o qual se projetava com seu eu atualizado em um corpo já aceito e respeitado.
Palavra-chave: Obesidade; Corporeidade; Gestalt-terapia; Terapia de grupo.
Abstract
This study describes aspects in a phenomenological-existential perspective, of the metamorphosis experienced by women in the support group More Action and Less Fat, based on experimental resources of gestalt-therapy. During one year in the period of 2006, in the project “GOAM - Group of Obesity and Multidisciplinar Attendance” – of the “PADDAC – Program of Teachers, Students, Assistance and Community Action” of Guarulhos University, in Guarulhos. Approved by document No. 34/04 of the Ethics Committee. The methodology used was weekly meetings of three hours, were used in techniques such as: a) relaxation exercises and contact in itself and the other to allow people to experience their feelings, b) and theatrical experiences in order to develop expression, c) developing creativity and skills by making crafts that were taught by themselves. In the group, were developed aspects of transformation in the body of the participants: the body and the borders of contact, the distinction between the self, the non-self and integrity; awareness and the symbolism of the body, emotions, feelings of guilt, shame, fear, anxiety and victimization versus the assumption of responsibility of the choices. The evaluation showed that the participants reached the aim established by the group and felt more pleasure in their personal and professional achievements, with discoveries of new possibilities of come to be, creating a new body, which was projected with its self updated in a body accepted and respected.
Keywords: Obesity; Corporeity; Gestalt-therapy; Group therapy body.
O artigo trata do estudo de parte do desenvolvimento de um grupo de apoio realizado ao longo de três anos na Universidade Guarulhos, em Guarulhos-SP, com mulheres obesas. O programa é denominado Grupo de Obesidade e Atendimento Multidisciplinar – GOAM, integrante do projeto Programas de Ação Docente, Discente, Assistencial e Comunitário – PADDAC. Este programa surgiu da preocupação com o aumento da população obesa nos últimos anos. O grupo descrito teve a colaboração e a participação de estagiários e outros profissionais.
Segundo Benedetti (2003), a obesidade começou a ser estudada no século
XIX e recebeu um olhar mais atento por parte dos pesquisadores no final do século
XX. Nessa época, levantamentos efetuados por companhias seguradoras,
na virada do século, trouxeram análises que estabeleciam relações
entre a obesidade e o aumento das taxas de mortalidade. Esta descoberta colocou
a obesidade no quadro das doenças que levam à morte precoce, e
desde então se intensificou a procura de meios para curá-la.
Sobre a obesidade como doença, nos aponta o autor:
A despeito das controvérsias sobre o tema, não parece haver dúvida entre aqueles que se dedicam ao estudo da obesidade de que ela é uma doença de curso crônico, cuja característica fundamental é o excesso de gordura corporal, e de que sua gravidade cresce à proporção que aumenta o grau de gordura excedente. (BENEDETTI, 2003, p. 22)
Nas duas últimas décadas, a obesidade tem se tornado um dos principais
problemas de saúde pública, que começa na infância
e se estende até a vida adulta. Neste aspecto, a Organização
Mundial de Saúde (WHO, 2005), comprova o crescimento da obesidade em
países desenvolvidos e em desenvolvimento.
O obeso é considerado o indivíduo com Índice de Massa Corporal
(IMC) maior que 30 kg/m2. Este é o critério reconhecido como padrão
internacional para avaliar o grau de obesidade, o IMC é a proporção
altura-peso que pode ajudar a definir se a pessoa está com excesso de
peso ou se já está obesa. Embora esta tabela não sirva
para avaliar atletas e adolescentes, ela vem sendo amplamente utilizada. O índice
é calculado dividindo o peso (em kg) pela altura (em m) ao quadrado.
(WHO, 2005)
Segundo a Clínica Mayo, a proporção do IMC de 18,5 a 24,9
é considerada a mais saudável, com sobrepeso os indivíduos
que apresentam IMC entre 25 e 29,9 kg/m2 e obesos são os que apresentam
IMC acima de 30.
Conforme Moraes (2004),
“A obesidade atualmente é considerada um problema emergente nos países da América Latina. Faz parte de um processo de complexidade epidemiológica, levando a enfermidades crônicas e a morte precoce, cujo tratamento é caro e complexo e sua prevenção envolve ações no campo da saúde pública.” (MORAES, 2004, p. 40)
Dentre as consequências da obesidade podemos destacar, a diminuição
do tempo de vida do indivíduo em função de problemas com
hipertensão arterial; as doenças cardiovasculares; a diabete;
a doença respiratória; a incontinência urinária genuína;
a obesidade na gravidez (risco de complicações obstétricas
como diabetes, hipertensão, infecção urinária e
pré-eclampsia); as doenças gastrointestinais; artrite e gota.
Temos que pensar também nos problemas psicológicos tais como,
alterações da imagem corporal, baixa autoestima, mudanças
no estilo de vida entre outras. Há também problemas ambientais
e sociais, a obesidade provoca alteração nas relações
do indivíduo com o ambiente físico e social.
O estudo científico deste problema vem abrangendo várias áreas
do saber institucionalizado como a Medicina, a Nutrição, a Educação
Física e a Psicologia. Na perspectiva da psicologia, aqui enfocada, questiona-se
porque o corpo se enche exageradamente, aumentando assim a sua forma, e deixa
aí um vazio de outra ordem, que não o do estômago. Como
esse vazio não é deste órgão, o que poderia ser
feito para reduzi-lo?
A partir desse questionamento, o GOAM buscou desenvolver técnicas que
pudessem ajudar as pessoas obesas a (re)encontrarem seu equilíbrio.
2. Percurso Metodológico
O grupo tinha encontros semanais de três horas e se utilizavam técnicas como: o relaxamento e exercícios de contato, de si mesmo e do outro com o objetivo de vivenciar as sensações; as vivências e representações teatrais com o intuito de desenvolver a expressão e o desenvolvimento da criatividade e habilidades através da confecção de trabalhos manuais que eram ensinados pelas próprias participantes do grupo. A apreensão e análise dos resultados foram feitas de forma quantitativa com o acompanhamento da redução de peso através de pesagem semanal, e lista de presença da participação às reuniões e qualitativa com avaliação da qualidade de vida, equilíbrio emocional através de relatos das participantes. Antes de iniciar as reuniões todas as participantes dirigiam-se ao setor de nutrição da Universidade para que fosse coletado o seu peso, os números ficavam registrados na ficha de acompanhamento individual e na lista de presença.
O projeto era multidisciplinar, com encontros semanais, às terças-feiras,
das 14h às 17h. O horário era distribuído entre as áreas
de Psicologia, das 14h às 16h; de Nutrição, das 16h às
16h30m, e de Educação Física, das 16h30 às 17h.
As turmas eram divididas em dois grupos: o de iniciantes, denominado de grupo
I, e o de manutenção, destinado às pessoas do grupo I que
queriam dar continuidade ao processo de emagrecimento, acompanhamento e manutenção.
No primeiro semestre de 2004 entrei no projeto, como facilitadora do grupo I,
neste momento era utilizada a Terapia Comportamental e a Terapia Cognitiva como
métodos de trabalho, abordagem do professor Dr. José Cândido
Cheque de Moraes, coordenador e orientador do projeto. Com a experiência
adquirida neste período a equipe de estagiárias criaram um novo
grupo para o segundo semestre de 2004, o Grupo de Manutenção que
seria para acompanhamento das pessoas que haviam terminado o primeiro estágio
do programa e que quisessem dar continuidade ao processo. Neste grupo iniciamos
um trabalho utilizando recursos da Psicoterapia Psicodinâmica. Já
no primeiro semestre de 2005, nossas pesquisas foram baseadas na Psicologia
Analítica.
Estas mudanças de abordagem ocorreram em virtude de as estagiárias
buscarem colocar em prática os aprendizados adquiridos para uma futura
opção por uma linha de trabalho, porém as técnicas
utilizadas nestes períodos não fugiam de um embasamento estrutural
psicanalítico, acompanhando a metodologia dos orientadores dos projetos
de pesquisa de iniciação científica. A cada novo semestre
tínhamos novos voluntários para trabalhar no projeto, o que contribuiu
para o enriquecimento do aprendizado de todos da equipe.
Na busca de uma metodologia que melhorasse os resultados a cada novo semestre,
incrementávamos os trabalhos anteriores com utilização
de novas técnicas e testávamos novas abordagens. Permanecemos
com este grupo até dezembro de 2006. Durante esse período, foram
feitos projetos de pesquisas com cada abordagem utilizada.
Os resultados que nos referimos neste artigo, ou seja, a transformação
do corpo de mulheres com obesidade sob o olhar fenomenológico existencial
ocorreu com o grupo de manutenção no ano de 2006. A adesão
à nossa equipe de uma voluntária com vivência nesta abordagem
e orientanda em linha psicodramatista contribuiu para a mudança neste
sentido, novas idéias a serem pesquisadas surgiram com este novo paradigma.
A fenomenologia era algo novo, pouco explorado para a equipe, não tínhamos
orientadores neste campo, então precisamos buscar um embasamento teórico
durante o projeto e nos tornarmos experimentadores do fenômeno dentro
da própria pesquisa, ao longo do trabalho contamos com o auxílio
de professores que se tornaram interessados pela nossa proposta. Durante o planejamento
vimos na fenomenologia possibilidade de criarmos situações em
que as participantes estariam experimentando o fenômeno por elas mesmas
e as facilitadoras, mais livres para observar as reações e os
resultados, bem como ter maior envolvimento nas experiências, vivenciando
as situações juntamente com as integrantes do grupo.
De acordo com Bucher (1989, p. 27), na fenomenologia a relação
psicoterápica se faz sem mediação, seja instrumental ou
com intermediários. “Seu único ‘meio’ é
o ambiente humano em si, numa configuração muito especial que
é aquela do diálogo humano, da ‘conversa’, onde não
intervêm outras forças além da linguagem”. Entretanto
deve ser considerada mais do que um instrumento intermediário ou um meio
técnico: é ela que nos torna humanos.
“Psicoterapia” se refere a um modo muito particular de encarar o ser humano e, por conseguinte, os processos de interação terapêutica, possibilitados entre duas (ou mais) pessoas pela mera ação da fala. A fenomenologia propicia-nos uma compreensão mais pertinente destes processos a partir da análise do Dasein (ou “ser-no-mundo”), da intersubjetividade, da linguagem e das significações especificamente humanas da existência. (BUCHER, 1989, p. 27)
Ainda no planejamento desenvolvemos recursos experimentais diferentes para cada
semana, para tal foi criada uma estratégia de trabalho mais interativa,
com diversas atividades diferenciadas, com o objetivo de entender o processo
de engordar sob o ponto de vista existencial-fenomenológico. Procuramos
organizar as atividades de modo que uma ação fosse complementar
à outra, eram cinco tipos de propostas semanais com os seguintes temas:
1) a tomada de consciência do próprio corpo, momento em que o trabalho
era voltado para o ‘eu com eu’; 2) o relacionamento pessoal e interpessoal,
movimento do ‘eu com eu’ e ‘eu com tu’; 3) as emoções,
novamente entrando no ‘eu com eu’ e no ‘eu com tu’;
4) a expressão pessoal, voltada para o ‘eu com tu’ e ‘eu
com nós’; 5) o desenvolvimento de habilidades, fossem elas manuais,
tais como artesanato, costura, pintura, etc. ou até mesmo conhecimentos
teóricos sobre algum tema, ou ainda tocar algum instrumento, dançar,
cantar ou declamar, este processo voltado para o ‘eu com nós’.
O consenso que chegamos para esta divisão e escolha dos temas foi a dificuldade
que as participantes tinham em lidar com o próprio corpo, como o tocar-se
e aos outros, seus corpos eram verdadeiros tabus, víamos o quanto era
difícil para elas conseguir expressar suas emoções e sentimentos
e por fim abrir novas possibilidades de ocuparem o seu tempo que outrora era
voltado para cozinhar e preparar guloseimas. A esse programa demos o nome de
Mais Ação e Menos Gordura, pois entendíamos a necessidade
da relação do nome com o movimento das integrantes do grupo.
Em todos os encontros, as atividades dividiam-se em fases, sendo a primeira
um exercício de aquecimento. O grupo ficava de pé, formando um
círculo, mantendo uma distância correspondente ao diâmetro
do corpo com os braços abertos entre uma participante e outra. O primeiro
movimento era o de respirar; com as mãos sobre o abdômen a pessoa
inspirava lentamente, contando e sentindo seu corpo se inflar (como uma bexiga);
em seguida, retinha um pouco o ar nos pulmões, depois o soltava, contando
(a mesma quantidade de vezes que contou quando inspirou) e sentindo seu corpo
se esvaziar, era necessário a observação do movimento do
abdômen inflando e esvaziando. O tempo de duração do exercício
era de aproximadamente cinco minutos.
Na sequência, optávamos por um entre vários experimentos
, dos quais citamos três: 1) exercício de relaxar ao toque, que
consistia em dividi-las em duplas, momento em que uma massageava, sutilmente,
as costas da sua parceira; após três minutos, virava-se e quem
tinha feito massagem a recebia; 2) exercício de sair do controle, também
em dupla — cada parceira guiava a outra, que, de olhos fechados, devia
deixar-se levar; após um tempo previsto, invertia-se a posição;
3) exercício de flexibilidade, o qual se baseava em trocar de lugar dentro
da roda, a cada vez que fosse dado o comando, porém não se podia
repetir a posição anterior, nem a companhia do seu lado direito
e do esquerdo, para que isso ocorresse era necessário estar atenta em
si e ao seu redor durante todo o exercício.
Durante esses exercícios, observamos que algumas participantes não
conseguiam se sentir à vontade recebendo a massagem, porém sentiam-se
confortáveis em fazê-la; o mesmo ocorria quando eram dirigidas
pela parceira, quando orientavam ficavam confiantes, mas quando eram levadas,
mantinham-se desconfiadas e hesitantes. As mesmas pessoas que ficavam mais à
vontade no controle da situação comportavam-se como líderes
quando colocadas entre pessoas mais submissas, portanto propositadamente, eram
colocadas em um grupo com uma ou mais pessoas que apresentavam a mesma postura.
Já no exercício de flexibilidade, notamos resistência em
permanecer na mesma posição por parte de algumas pessoas, que
saíam, mas, em seguida, retornavam à posição anterior,
estas eram levadas a se colocar em outra posição, porém
dentro do contexto da dinâmica.
Quando se está no controle da situação não são
permitidas surpresas, o contato só se estabelece quando se dá
permissão para tal. E era isto o que acontecia com estas pessoas, embora
tivessem ido buscar mudanças em suas vidas tinham dificuldades em deixá-las
acontecer. Ao participar destes exercícios viam suas resistências
se afrouxarem e, embora com dificuldade, acabavam permitindo uma aproximação
e um contato real.
Zinker (1978) nos mostra a questão do risco, falando sobre a dificuldade
de deixar o que já é conhecido e se abrir para o novo. Segundo
o autor, qualquer movimento gera resistência e experimentamos a resistência
interna como uma hesitação em mudar a forma de fazer algo ou de
comportar-se cotidianamente, uma vez que o familiar nos deixa confortável.
Baseadas na idéia de Beisser, in Fagan (1980, p. 110), “A mudança
não ocorre através de uma tentativa coerciva por parte do indivíduo
ou de outra pessoa para mudá-lo, mas acontece se dedicarmos tempo e esforço
a ser o que somos”. Buscamos criar situações em que as participantes
esbarrassem em suas resistências e por si mesmas superassem os desafios,
descobrindo-se através de suas próprias reações
e se abrindo para o novo.
Yontef (1998) associa mudança ao desenvolvimento do autossuporte, quando
a pessoa reconhece a si mesma e começa a aceitar-se como é:
Quanto mais você tentar ser quem não é, mais você permanece o mesmo. Crescimento, incluindo a assimilação da ajuda e do amor dos outros, requer autossuporte. Tentar ser quem não se é não é autossuporte. (YONTEF, p. 138)
As vivências nos experimentos de representação e de relaxamento
tinham o objetivo de fazer o grupo entrar em contato com suas emoções.
Para tanto, eram escolhidos textos com conteúdos emocionais diversos
para que, mediante o processo de identificação com o personagem,
as participantes pudessem focar a emoção correspondente e pudéssemos
trabalhá-la. A raiva foi um tema bem trabalhado, isto porque ao longo
do convívio com as participantes — algumas por mais de dois anos
— foi observado que as mesmas reprimiam emoções, a raiva
dentre todas, era a mais rejeitada, por acreditarem ser feio ou pecaminoso ter
esse tipo de sentimento, dessa forma, elas resistiam à sua expressão.
O medo foi outro tema bem observado nas reuniões, pois muitas das participantes
apresentavam diagnóstico de síndrome do pânico. No contexto
do nosso planejamento, tínhamos também a angústia e a ansiedade
como focos a serem pesquisados, já que faziam parte de hipótese
de um dos projetos, por ser sentimento comum nas pessoas com transtorno alimentar.
Com esses exercícios, observou-se muita culpa e ressentimento nas integrantes
do grupo; percebeu-se que eram pessoas muito ansiosas, que represavam sua raiva.
Esta percepção se deu através de suas reações
e comentários após vivenciarem dramaticamente os textos trazidos,
pois ao final de cada trabalho discutíamos o que havia sido mobilizado
e as participantes traziam para o círculo situações semelhantes
que haviam vivenciado em suas histórias. Esse era o momento em que conseguiam
elaborar e ressignificar suas emoções modificando a forma de vê-las.
2.1 O grupo
Ao inscreverem-se no programa, no grupo I, as mulheres eram pesadas e era calculado seu índice de massa corpórea (IMC), seguindo o modelo da Organização Mundial da Saúde.
O grupo era composto de mulheres, em sua maioria com “obesidade classe
III”, comumente conhecida como obesidade mórbida. Essas mulheres
eram da cidade de Guarulhos-SP e faziam parte de uma classe social considerada
média-baixa, casadas, com filhos; trabalhadoras do lar com algum tipo
de atividade considerada como “distração” ou “bico”.
A faixa etária era variável, porém mais de 50% delas contava
mais de 40 anos, participaram algumas adolescentes, mas não por muito
tempo.
Ao término do grupo I, as participantes haviam emagrecido em média
de 10 a 15 quilos durante os quatro meses do programa, mediante o trabalho multidisciplinar
em que aprendiam a alimentar-se de forma saudável, com acompanhamento
da equipe de Nutrição; a fazer exercícios físicos
com a equipe de Educação Física, e a ter outro tipo de
comportamento diante do alimento juntamente com a equipe de psicologia cuja
orientação era a comportamental; porém, para a maioria
das participantes, esta quantidade de peso eliminado ainda não representava
uma mudança em suas vidas, continuavam ainda correndo grave risco em
função de comorbidades decorrentes do excesso de peso. Bem como
saíam dali sem terem compreendido o motivo que as levavam a permitir-se
tamanha autodestruição, e muitas delas retornavam algum tempo
depois, pois haviam voltado a engordar.
A idéia de trabalhar com a abordagem fenomenológica surgiu justamente
porque só a mudança de comportamento não mudava a forma
de ver-se e colocar-se no mundo, era algo mecânico, que a qualquer momento
em uma situação problemática elas poderiam retroceder a
comportamentos anteriores. Havia a necessidade de algo que tocasse mais profundamente
em seu íntimo, algo pelo que valesse a pena uma mudança, pois
só assim o emagrecer seria efetivo, o ser magro teria que ser uma escolha
de ser-no-mundo.
A cada semestre havia a entrada de mulheres do grupo I no grupo de manutenção,
embora algumas delas desistissem de continuar nessa fase, mantínhamos
uma média de 25 a 30 membros neste grupo; a rotatividade era comum, porém
16 pessoas permaneceram durante todos os anos em que acompanhamos o grupo.
2.2 Atividades Desenvolvidas
Procuramos
abranger as necessidades imediatas das participantes na elaboração
dos experimentos, quais sejam:
• tomada de consciência de si mesmo – percepção
de que eu sou o meu corpo, o meu corpo não é um acessório;
• tomada de consciência dos limites pessoais, conhecer suas fronteiras
– onde eu termino e onde começa o outro, eu sou eu, o outro é
o outro;
• abertura para o social – o que me acontece também acontece
em outras famílias e cada um lida com os problemas de forma diferente,
deste modo posso descobrir novas possibilidades de resolução para
os meus;
• flexibilidade diante das situações – necessidade
de habilidade para enfrentar as situações desconhecidas;
• aprender a expressar-se, vencer a timidez – vencer a vergonha
de ser autêntica; perder o medo de dizer o que sente;
• aprender a valorizar seus conhecimentos e habilidades, desenvolver novas
habilidades, transmitir seus conhecimentos.
Em nosso planejamento preparamos cada experimento que iria ser realizado ao
longo de todo o período de acompanhamento, uma vez que o trabalho faria
parte de um projeto de pesquisa de iniciação científica
patrocinado pela universidade.
a) Entrando em contato com o corpo
Para dar-se conta de si mesmo facilitamos a consciência das participantes para o “aqui e agora”, criamos possibilidade para que elas percebessem a si e aos outros, que se dessem conta que existe uma fronteira, um limite, um “entre” em que acontece o contato.
De acordo com Zinker (2001):
O contato é a consciência da diferença (o “novo” ou o “diferente”) na fronteira entre organismos e ambiente; é marcado pela energia (excitação), maior presença ou atenção e “intencionalidade” que medeia aquilo que cruza a fronteira e rejeita aquilo que não é assimilável. (ZINKER, 2001, p. 97)
Nesta fase optamos pela Gestalt-terapia por tratar-se de uma terapia da concentração,
do aqui e agora e buscamos nela embasamento teórico para nossos trabalhos.
A Gestalt-terapia segundo Perls, Hefferline e Goodman (1997, p. 50) enfatiza
“concentrar na estrutura da situação concreta; preservar
a integridade da concretude encontrando a relação intrínseca
entre fatores socioculturais, animais e físicos”.
Um dos encontros tinha por objetivo situar o sujeito no seu próprio corpo;
desenvolvendo a percepção de si mesmo, funcionando junto ao processo
de percepção de quem-sou-eu e, nesse sou-eu, percebendo as fronteiras
do si-mesmo.
Desse modo, foram escolhidos alguns exercícios de contato, a princípio
com o próprio sujeito, para proporcionar-lhe conhecimento do próprio
corpo e das sensações presentes nele, a fim de que, posteriormente,
pudesse ser promovido o contato com o outro, seguindo a idéia de Polster
e Polster (2001), de que só há crescimento através do contato,
pois, somente por meio dele, se pode mudar a si mesmo e a experiência
que se tem do mundo.
Um dos exercícios propostos consistia em que a pessoa, com os olhos fechados,
tocasse todo o seu corpo passando por cada traço, reentrância,
contorno e observasse a textura, a temperatura, a consistência de cada
parte, iniciando pela cabeça; depois perceber qual a sensação
de cada toque, nas mãos como na própria parte tocada. Esse exercício
estendia-se pelo pescoço, ombros, braços, mãos, tórax,
abdômen, quadril, coxas, pernas e pés. Induzíamos o percurso
para a sequência da mudança da parte a ser tocada, lentamente,
buscando a percepção total de si mesmo. A pergunta “Como
esse corpo está sendo percebido, ouvido, sentido?” era repetida
durante a vivência. Em seguida era feito um alongamento suave dos músculos
do pescoço, braços, mãos, coluna e pernas, sem nenhum esforço,
buscando um relaxamento completo, como se espreguiçar ao acordar. Após
o encerramento abríamos o círculo para troca de experiências
entre os membros.
A princípio as participantes ficaram tensas e riram muito, mas no decorrer
do exercício relaxaram e começaram a usufruir deste contato consigo
mesmo. Terminada a sessão de exercícios, passamos aos relatos
das participantes das experiências vivenciadas durante as atividades.
Algumas disseram que nunca tinham parado para se tocar, que o seu contato só
se dava quando se banhavam e mesmo assim muito rapidamente; outras disseram
que não imaginavam como era boa a sensação; uma relata
que no começo sentiu-se constrangida de fazer isso, pois imaginava este
ato como se fosse um pecado, mas compreendeu que não era e descobriu
nisso uma sensação muito boa.
Spangenberg (2004, p. 119) utilizando a teoria reichiana nos esclarece que “(...)
a identidade não é algo abstrato ou psíquico; está
corporificada, ou parcialmente encarnada. Encontramos pessoas que habitam seu
corpo somente do pescoço para cima, outros que não têm braços,
ou não têm pernas, ou não têm mãos, etc...”
(grifos do autor). Diz ainda que: “Este processo tem a enorme vantagem
de consistir numa viagem às fronteiras, e o resultado é o descobrimento,
por parte da pessoa, de quais são as partes de si mesma com as que têm
contato e as que não”.
b) Aprendendo a relacionar-se, o contato com o outro e suas fronteiras
Para aprender a relacionar-se, em primeiro lugar, é preciso entender que, para ser, é preciso ser-com, ser-para no mundo a sua volta, o contato se faz a partir da interação com o outro, animado ou inanimado; a fim de que haja um contato, é necessário que haja fronteiras, limites. O ponto de encontro entre o eu e o não-eu é o ponto em que o indivíduo experimenta o eu em relação ao não-eu. Com isso, tem-se a percepção de si próprio, como daquilo que colide nessa fronteira, daquilo que surge ou se funde com ela. (POLSTER e POLSTER, 2001).
Para desenvolver o contato social, sem tirar o foco do sentir o corpo; foram
utilizadas técnicas do psicodrama, como sociodrama e de escultura para
trabalhar com o social.
A opção pelo Sociodrama se deu por querermos abordar as problemáticas
sociais vividas pelas participantes, de tal forma que pudesse envolver todos
os membros do grupo, e que pudessem falar dos próprios problemas através
de uma representação em que o autor da história tem o papel
de outro personagem que não o dele mesmo na trama. Deste modo ele pode
ver-se e ao mesmo tempo colocar-se no lugar do outro.
O trabalho de escultura diz respeito ao deixar-se moldar. O objetivo deste experimento
foi verificar a maleabilidade das integrantes do grupo e ao mesmo tempo facilitar
para que percebessem em si mesmas sua flexibilidade diante da atuação.
b.1) Sociodrama
Para o sociodrama, o grupo era dividido em pequenos subgrupos de cinco pessoas, que tinham um objetivo a ser atingido; propunha-se a discussão entre as integrantes do subgrupo para que fosse decidido o que fazer e como seria feito, para a tarefa ser realizada e compreendida por quem o assistisse.
O sociodrama envolvia a criação de uma história; o subgrupo
desenvolvia a cena e representava-a para suas colegas. Para isso, era solicitado
que cada uma das cinco contasse uma experiência própria, relacionada
ao tema sorteado; depois elas escolhiam qual delas seria encenada, quem iria
representar qual personagem.
Eram dados de 15 a 20 minutos para que os grupos montassem o sociodrama escolhido;
findo o tempo, cada grupo iria encená-lo. Após todas as apresentações,
as participantes eram dispostas em círculo; nesse momento, eram discutidos
os sentimentos, o envolvimento de cada uma, as dificuldades encontradas, questionava-se
quem tinha falado mais, quem era a líder, quem não conseguia participar
e por quê. Era a oportunidade de expressarem seus problemas, serem ouvidas
e ouvirem as outras. A maioria das participantes relatou ter compreendido a
posição do outro dentro da situação que na ocasião
do ocorrido não havia sido elaborado.
b.2) Escultura
Para a implantação dessa técnica dividia-se o grupo em dois subgrupos, na proporção de dois para um; um terço seria a escultura, e dois terços, os escultores. O exercício era feito em dois tempos; no primeiro momento, ficavam na sala somente as pessoas que seriam as esculturas, os escultores saíam da sala para que fosse preparado o “atelier”; as pessoas-esculturas eram posicionadas diferentemente; uma sentada segurando um espelho para o qual olhava, outra presa dentro de um quadrado, outra com expressão de tristeza diante de uma peça de roupa muito menor que seu corpo, outra sorrindo diante de uma parede, outras duas simulando uma briga, porém todas imóveis; em seguida, o subgrupo de escultores entrava na sala, eles deveriam olhar para cada escultura em exposição, observá-las, buscando o significado de cada uma; no segundo momento, escolheriam uma das esculturas e fariam a interação com ela, assumindo o papel do escultor.
Durante o exercício da escultura, observava-se a maleabilidade ou a rigidez
de atitudes diante do outro, assim como suas fragilidades. Estas observações
eram registradas e nos serviam de base para avaliarmos se nossas técnicas
estavam surtindo efeito e qual era ele. Precisávamos validar nossos experimentos
e averiguar de que forma repercutiam nos resultados de emagrecimento.
Ao término do tempo estipulado para a interação, aproximadamente
15 minutos, formava-se a roda para conversarmos sobre a experiência de
cada uma. Os temas colocados em discussão foram: a) em relação
às esculturas – como as esculturas se sentiam quando eram observadas
e discutiu-se o sentimento delas ao serem “moldadas”; b) Em relação
aos escultores – como se sentiam ao observar e ao manipular as esculturas.
Após ouvirem seus depoimentos, foi solicitado que observassem esses sentimentos
e os comparassem com os que sentiam no seu dia a dia.
As falas sobre este exercício foram no sentido de se perceberem enquanto
observavam o outro ou executavam a tarefa; o quanto elas haviam se deixado moldar
no decorrer de suas vidas; e quanto foram manipuladoras ao moldar seus filhos
e pessoas dentro de suas relações. Tal experimento gerou comoção
e questionamento quanto a possibilidade de mudanças em suas vidas.
c) Aprendendo a expressar-se
O desenvolvimento das qualidades de expressão foi trabalhado por meio da dança, do canto, da recitação e da representação teatral. A idéia central foi: ao desenvolver a consciência de uma nova existência, havia a necessidade de aprender a expressá-la.
No início de cada semestre, definiam-se algumas apresentações
que seriam feitas no encerramento das atividades do grupo; durante os encontros
em que se trabalhava a expressão, ensaiávamos o espetáculo.
Aprender a buscar o prazer de viver era o objetivo primário, a busca
do prazer fora da comida, fazer do emagrecer algo prazeroso e não algo
penoso, a diversão, o ter-prazer-com-aquilo-que-faz, fazer pelo prazer
de fazer, sem os “tem que” ou “deverias”, já
que “deveria(s) são afirmações de obrigação,
que dizem ao indivíduo como regular seu comportamento por padrões
externos, isolados de suas necessidades organísmicas ou da avaliação
de suas prioridades internas”. (YONTEF, 1998, p. 243); (grifos do autor).
Para isto os pontos focados foram: espontaneidade, tudo o que se faz torna-se
mais fácil se o fizermos espontaneamente, que de acordo com Perls e col.
(1997):
A espontaneidade é o sentimento de estar atuando no organismo/ambiente que está acontecendo, sendo não somente seu artesão ou seu artefato, mas crescendo dentro dele. A espontaneidade não é diretiva nem autodiretiva, e nem nada a está arrastando embora seja essencialmente descompromissada, mas é um processo de descobrir-e-inventar à medida que prosseguimos, engajados e aceitando o que vem. (PERLS, HEFFERLINE E GOODMAN, 1997, p. 182)
d) Desenvolvendo habilidades
Para aprender a valorizar seus conhecimentos utilizamos um encontro ao mês, momento em que a atividade era demonstrar e ensinar umas às outras suas habilidades com trabalhos manuais e outros conhecimentos que pudessem ser transmitidos, nesse dia as participantes eram as instrutoras daquilo que sabiam fazer melhor.
Nesses encontros, elas exibiam seus conhecimentos em trabalhos manuais e artesanais
e expunham suas habilidades mais evidentes. Nesse momento, elas eram senhoras
de si, pois expressavam seu melhor e tinham consciência disso. Ao ensinarem,
elas sentiam-se valorizadas, como um processo de autorreconhecimento.
2.3 “Ato-ação” terapêutica das coordenadoras
do grupo
No decorrer de um ano, foi exercitada nossa capacidade de observação, buscamos, a todo instante, descartar pensamentos existentes aprioristicamente para formar uma idéia do fenômeno conforme ele ia acontecendo nos encontros semanais. As idéias vêm em turbilhão e é preciso colocá-las em certa ordem para que possam ser entendidas pelos outros. A cada encontro, eram feitos exercícios, discutidas as ocorrências e trabalhadas as impressões deixadas; ao findar-se a reunião, preparavam-se os relatórios das observações feitas e das sínteses elaboradas.
Conforme Ribeiro (1985), a ação terapêutica é orientada
para o todo do cliente, cada uma de suas partes está atingida, pois a
relação entre as partes e o todo não é apenas de
causa e efeito, mas também existencial, portanto será mencionado
o ocorrido e a análise feita a partir das impressões deixadas.
Nos primeiros exercícios, notou-se a dificuldade das integrantes em participar,
principalmente quando se tratava de tocar o próprio corpo; elas riam.
Era possível notar a vergonha, o receio de fazê-lo. Suas falas
recaíam nos defeitos, na estranheza do próprio corpo, como se
não merecesse ser tocado, por ser feio; elas tinham medo de tocar seus
corpos, porque, ao se tocarem, poderiam despertar um ser indomável.
As técnicas desenvolvidas tinham o intuito de que elas pudessem expressar
seus sentimentos, o seu entendimento do exercício, suas concepções
e suas atitudes, e manifestar aquilo que o próprio corpo representava
para elas. A primeira manifestação foi a vergonha.
De acordo com Robine (2006), a vergonha é um dos primeiros sentimentos
experienciados pelo homem, e ela representa a consciência de si diante
do outro, é o despir-se ao olhar do outro, é a consequência
do autoconhecimento. O indivíduo que crê não ser o que deveria
pode sofrer privação emocional e a suspeita desse castigo desequilibra
sua integridade.
Como aponta Spangenberg (2004, p. 118), “nossa identidade é como
um mapa escrito em nosso corpo” (grifo do autor). Ao abandonarem seus
corpos por considerem-no algo pecaminoso perderam sua identidade, seu prazer
pela vida.
Este autor ainda afirma “Sentir que não se sente (maravilhoso paradoxo)
uma parte do próprio corpo, descobrir que habitamos um espaço
que nunca havíamos visitado antes é a introdução
a todo o resto do trabalho corporal”. (SPANGENBERG, 2004 p. 119)
Conforme as participantes do grupo descreviam suas vivências, construíamos
uma idéia desse corpo. O corpo, quando descrito, parecia ser algo fora
delas, um objeto muito distante da realidade, existente em outro tempo, em outro
lugar, algo proibido, inacessível, algo defeituoso, errado. Essa impressão
levou-nos ao pensamento expresso por May (1980) sobre nossa cultura, que se
desenvolveu sob o culto de um pensamento cartesiano, no qual corpo e mente são
coisas separadas, como se pudessem existir uma independente da outra; o controle
racional das emoções, dos impulsos emocionais menos aceitáveis,
como o sexo e a hostilidade, leva as pessoas às repressões e culpas.
As mulheres desse grupo falavam de um corpo separado, sem emoção,
repudiado, um objeto desprezível que deve ser submetido à vontade
de quem o tem; que não deve ser cultuado, cuidado, amado, pois tais atitudes
incorreriam em algo pecaminoso, como se a mente, o pensar pertencesse a Deus
e o corpo, ao demônio. Esse corpo separado está querendo dizer
que não existia contato, elas não se viam, negavam sua existência,
isto é, mantinham-se aprisionadas em uma vivência adoecida.
Em um contexto histórico atual, em que se cultua o corpo esbelto, escultural,
em virtude do valor atribuído à mídia, esse tipo físico
é vendido à sociedade como uma necessidade para a aceitação
da mulher, e vê-se ainda mais fortalecida a dicotomia cartesiana naquelas
que não o possuem. Há a necessidade de criar outros valores, na
tentativa de mostrar a existência da mulher independente de um corpo belo.
A crença na existência de um corpo perfeito, baseado em um modelo
estabelecido pela sociedade, gera uma idéia de imperfeição,
de errado para aqueles que são diferentes. Como se o diferente não
fosse parte do humano. Todavia, se observarmos a natureza, não existe
nada igual, ela fez tudo diferente, não existem duas folhas na mesma
planta, que sejam idênticas, mas todas são perfeitas, diferentes,
mas perfeitas.
Duas místicas extremas entram em conflito, da total alienação
do corpo para o seu endeusamento. Então, como lidar com elas e encontrar
um equilíbrio?
E lá estavam elas, mulheres cujos corpos não condiziam com seus
padrões de perfeição, padrões criados pela sociedade
e aceitos por elas. Um corpo diferente do modelo, nem melhor, nem pior, apenas
diferente o bastante para ser renegado, negado como um todo. Uma grande dicotomia,
um corpo que estava ali, mas não lhes pertencia, algo independente delas,
mas, ao mesmo tempo, eram elas. Aí surge a vergonha, o medo de não
serem aceitas.
Segundo Spangenberg (2004):
“... a menos que tenhamos uma compreensão holística de como nossa experiência corporal entronca com nosso entorno, tanto interno como externo, com a sociedade, com a cultura, e com nossa própria identidade, o potencial enriquecedor do trabalho corporal pode perder-se na mera forma do novo. É imprescindível entender que contatar com o corpo é contatar com o desconhecido; que integrar o corpo a nossas vidas implica numa mudança de enormes proporções que encontrará, para sua realização, tremendas resistências, não apenas internas, mas também por parte da comunidade e de todos aqueles que se vejam ameaçados pela presença de indivíduos capazes de expressar e viver pelo que sentem, a saber: todas as organizações e instituições (públicas e privadas) que estão edificadas verticalmente (precisa esclarecer mais?)”. (SPANGENBERG, 2004, p. 115)
A partir desses ideais, desses valores perfeccionísticos e tendenciosos, as mulheres cujos corpos não se adequam ao modelo passam a se considerar imperfeitas, pois, quando se olham, focam uma coisa, formando um ideal e assumindo que esse ideal é o certo, não conseguem ver o certo das outras coisas. Dessa forma, não conseguem ver que é aquilo que elas podem ser. A sua autoestima é baixa, daí surgem conflitos, ambivalência de sentimentos: “Quem sou eu, o que sou eu e como expressar esse eu?”.
Essas mulheres buscavam emagrecer, desejavam voltar a ter um corpo esbelto e
bonito, digno de admiração; quanto mais elas falavam, mais se
perdiam na idéia controversa que faziam a respeito delas mesmas.
Durante nossas intervenções, montamos a imagem que descreviam
e mostramos-lhes, por meio de uma representação teatral, essa
visão, que tinham de seus corpos. Para que elas percebessem o conflito
presente em suas falas, representamos os papéis de forma exagerada e
caricata, um da mente e outro do corpo. Ao final da encenação,
fizemos um exercício de relaxamento para a percepção do
corpo, finalizando com “a volta para casa” (entrada no corpo).
Na discussão em círculo, discorremos sobre a visão que
tinham de seus corpos, e a apresentação de tal imagem trouxe muita
inquietação. A emersão dessa idéia mobilizou discussões
sobre a possibilidade de uma existência diferente, cogitou-se sobre outras
possibilidades de ser.
No decorrer do processo grupal, o contato tornou-se mais espontâneo, mais
real e menos questionado. Os exercícios eram feitos com mais seriedade
e concentração, mostrando harmonia na relação entre
corpo e mente, abrindo possibilidade para o contato real com o outro.
Em sessões grupais, foram feitas análises sobre os limites, sobre
a fragilidade interior e a necessidade de se revestir com uma capa protetora
de “gordura”, sobre o quanto cada uma delas buscou aumentar seu
campo de atuação, ampliando seu contorno físico, como se
tentassem alcançar uma fronteira inexistente.
Conforme Merleau-Ponty (2006), é preciso que se aprenda a considerar
o corpo como um objeto, pois ele ainda não está objetivado. Se
pelo tato pode-se refletir a ação do corpo, essa reflexão
é ainda muito incompleta. Citando Husserl, alguém que só
tivesse olhos desconheceria a si mesmo pela falta de um espelho. Faltar-lhe-iam
os outros.
Como são os outros para essas mulheres? Como elas agem diante deles?
Eles são os outros mesmo ou a extensão delas mesmas? Seus depoimentos
mostravam um relacionamento confluente, colado com seus cônjuges, filhos,
familiares. Muitas delas tinham muita dificuldade em usar o pronome eu para
se autorreferir. Não podiam perceber onde se situavam suas fronteiras.
Havia uma distorção perceptual do aqui-sou-eu e do ali-é-o-outro.
Nos tipos de relação apresentados pelos sujeitos do grupo, destacavam-se
duas formas de ser: a primeira é aquela pessoa que não consegue
fazer mais nada sozinha, precisa do outro para tudo, como muleta, ela olha e
não se vê, ou melhor, ela não se olha; a segunda é
aquele sujeito que toma tudo para si, numa atitude megalomaníaca de querer
assumir tudo, toma para si todas as responsabilidades, quer resolver tudo sozinho,
inclusive decidir o que é melhor para o outro, não vê o
outro, nem olha para ele.
Por falta de percepção de suas fronteiras, as pessoas se tornam
permeáveis ao meio; ao deixarem-se invadir por forças externas,
deixam-se diluir, misturando-se ao todo, perdendo, dessa forma, a sua integridade,
deixando de ser elas mesmas. No início, acontece uma vez ou outra, é
só para agradar a alguém especial, aos poucos o sujeito vai deixando
de seguir seu eu, sua própria vontade deixa de prevalecer em prol do
desejo do outro. E não percebe o quanto essa invasão pode ferir
e anular a si próprio. Depois de um tempo, está tão acostumado
a fazer isso que não vê mais a si mesmo. Torna-se totalmente vulnerável
ao outro, justamente porque não existe distinção entre
o eu e o outro, a relação torna-se confluente, numa tentativa
de sentir-se seguro.
A partir destas observações e constatações levantamos
a hipótese de que a predominância da forma de contato das mulheres
deste grupo se dá através da confluência em um estado patológico,
o que abre novos caminhos a serem pesquisados.
Segundo Perls (1988), a pessoa em quem a confluência é um estado
patológico não distingue entre ela mesma e os outros, eles se
confundem como em um processo simbiótico, não percebem seus limites,
suas fronteiras. Por não se dar conta da barreira entre eles, ela não
consegue entrar em contato.
Como forma desesperada de existir no mundo, seu corpo começa a expandir-se,
como uma forma ameboide, que se expande para alcançar a sua presa, a
pessoa amplia seus limites, e seu corpo vai aumentando. A pessoa aumenta suas
fronteiras e seu campo de atuação, porém sente-se vazia,
sua vida perde o sentido. E esse vazio, segundo pressuposto de May (1982), deve-se
ao fato de a pessoa não ter uma experiência definida de seus próprios
desejos e necessidades, abriu mão de seus limites e fronteiras, vivendo
os desejos do outro, tornando-se a expressão de um espelho, refletindo
a esperança alheia.
Outra derivação dessa vivência adoecida é a solidão,
as pessoas que não conseguem delimitar suas fronteiras deixam-se invadir
pelo outro. De repente a pessoa está tão cheia, tão preenchida
das vontades e opiniões alheias que não sobra espaço para
si. Sendo assim, não consegue ter uma vivência de si mesma, seu
eu aderiu ao outro e, quando se olha, no momento de solidão, não
vê nada, nem a si própria, nem ao outro, pois não pode ser
o outro; portanto, sobra só a ilusão do que é. E quando
se é uma ilusão, está longe da realidade, logo não
se é, nem se tem nada. Esse é o momento da solidão, é
o grande vazio. A arte do encontro deixa de acontecer, pois ele começa
a ser encarado como algo perigoso e ameaçador à frágil
integridade deste eu ilusório; o indivíduo deixa de expor-se,
mostrar-se e consequentemente de entregar-se por temer perder o controle. Um
controle que é a falsa ilusão de poder, pois o sujeito não
pode controlar a existência e a vida.
Deve-se perceber a necessidade de ter suas próprias experiências,
de estabelecer fronteiras delineadas; não com tanta rigidez que impeça
o contato, nem totalmente permeável que se perca o contorno, a fronteira
a fim de que se permita perceber a si mesmo como tal e o outro como o outro,
tendo-se a certeza de que eu sou eu e o outro é o outro, travando um
contato real por intermédio do restabelecimento da própria integridade.
Ao sofrer a desilusão (sem ilusão) a pessoa começa a perceber
o seu aqui e agora, a sua realidade, a partir daí tem condições
de fazer suas escolhas, pois diante do real se abre um universo de possibilidades
permitindo ao indivíduo situar-se inteiro diante da vida.
Ao restabelecer a integridade, a pessoa passa a fazer suas próprias escolhas
e a assumir a responsabilidade sobre elas, não importando quais sejam
as consequências, e é esse fazer-acontecer que define a existência.
Outro tema discutido foi a individualidade e o respeito das escolhas do outro.
Ao tomar consciência da responsabilidade por suas escolhas, percebe-se
que não se pode tomar para si a decisão sobre a escolha alheia,
aprende-se que o que é do outro a ele pertence. Esse exercício
foi responsável por grande comoção no grupo; o fato de
as participantes depararem-se com aquilo que elas estavam fazendo consigo, e
assumirem a responsabilidade por si próprias pareceu tê-las feito
despertar de um pesadelo, mas ainda era só um começo de suas próprias
reconstruções. Abriu-se neste momento o questionamento “O
que estou fazendo com meu corpo e com minha vida? O que posso fazer para mudar
isto?”. Ao longo do nosso projeto elas conseguiram algumas chaves e localizaram
as portas, agora dependia delas abrirem-nas.
A obesidade se configura através de um estilo de vida que é escolhido
por não enxergar alternativas, ao abrir-se para novas possibilidades
para mudar este estilo, os corpos voltam a encontrar equilíbrio transformando-se
pela aceitação e amor próprios.
Durante as discussões, também foram feitos os seguintes questionamentos:
“Qual o motivo para não expressar a raiva?”; “O que
as fazia sentir raiva e como elas reagiam ao senti-la?”. Trabalharam-se
outras formas de expressão da raiva, além da agressividade.
A ansiedade foi trabalhada como um medo do vir-a-ser; discutimos sobre o significado
do tempo, sobre o ontem, o amanhã e o hoje. Para melhor desenvolver o
tema, foram realizados exercícios de presentificação, usando
respiração, observação das sensações
no momento presente (Stevens, 1988). Um exercício que foi possível
ser feito diariamente foi a repetição da frase: “Eu sou
eu, o outro é o outro”; como se fosse um mantra.
A culpa foi expressa e analisada a partir da discussão sobre pretensão
(arrogância) versus humildade, ou seja, o conflito entre o-que-eu-tenho-condições-de
e o-que-eu-deveria, que de acordo com Yontef (1998, p. 244) “A regulação
baseada em deveria(s) é fixa, pois baseia-se numa entidade imutável
e não na integração dialética, resultante da consideração
das exigências externas e das necessidades internas”. Ela surge
quando se acredita ter ou não ter feito algo que deveria ou não
deveria fazer, isto é, quando se assume seguir o modelo preestabelecido
ao invés de seguir a si mesmo, atendendo às possibilidades do
eu.
Ao trabalharmos a culpa, voltamos a um modelo criado pela cultura, família,
sociedade, que é assumido pelo sujeito como o certo. Assim sendo, ele
fecha as portas para o certo das outras coisas ou para as outras formas de estar
certo e passa a perseguir o modelo ideal. Ao deparar-se com suas próprias
limitações e possibilidades, culpa-se por não ter atingido
o modelo ideal. Isso significa dizer que a pessoa não tem a humildade
de aceitar-se como é, pois deveria ser (fazer) diferente. De acordo com
Robine (2006), isso acontece quando o sujeito acredita ter cometido uma falta
diante do outro, indo contra o ideal de perfeição, e espera punição.
Conforme Yontef (1998, p. 363) Tanto a culpa como a vergonha estariam associadas
ao abandono. “As crianças em geral presumem que o abandono ocorre
porque existe algo de errado com elas.”
A partir desse pressuposto, houve a ressignificação do ocorrido,
desenvolveu-se a ideia de que tudo o que foi feito, no momento da ação,
era o melhor que a pessoa podia fazer ou sentir; na ocasião, foi o que
pode ser feito por inúmeras razões, como falta de oportunidade,
ignorância, imaturidade, por defesa da própria integridade física
ou moral, falta de condições financeiras; quando ocorreu a situação,
a pessoa fez o seu melhor.
3. Considerações finais
Ao finalizarmos o processo grupal em dezembro de 2006, observamos mudança em várias participantes do grupo, notava-se mais desenvoltura e graça em sua forma de expressão, observamos a busca de objetivos mais definidos e muito mais prazer em sua busca de realização.
Durante um ano de trabalho, foi observado o modo de existir das pessoas do grupo,
foram detectadas semelhanças entre algumas delas: a busca por aceitação
e reconhecimento; o sentimento de culpa; a acomodação; o relacionamento
confluente; a sensação de vazio; o jeito “dramático”
de olhar a vida.
Os temas abordados em nossas intervenções procuraram abranger
todas essas situações, e perceberam-se alterações
consistentes no grupo, tanto físicas como cosmovisuais.
A metamorfose processada em seus corpos, transformando-as em mulheres obesas
começava a perder o sentido para elas, fazia-se necessário o desenvolvimento
de um novo corpo, mais condizente com seu eu sedento de atualização,
um corpo que agora era aceito e respeitado. O trabalho trouxe resultados mais
rápidos para algumas pessoas, para outras eles foram mais lentos, em
algumas foi quase imperceptível, porém todas foram tocadas de
alguma forma; como uma pequena semente que é plantada, no seu devido
tempo irá germinar.
Feita a avaliação da atuação no GOAM – Grupo
de Obesidade e Atendimento Multidisciplinar – nesse último período
pudemos verificar crescimentos relativos ao desenvolvimento do processo empático
e da percepção das diversas formas de existir no mundo da obesidade.
Descobrimos outra forma de fazer ciência, mais humana, existindo, acontecendo
junto com o grupo.
Todo esforço de trazer à consciência sua forma de existir
e o vislumbre de novas possibilidades de vir-a-ser trouxeram inquietação
para o grupo; consequentemente, houve um movimento, o qual criou um contraste.
Este trouxe a consciência, pois a consciência é o contraste;
afinal, o que não tem contraste não pode ser percebido, e o que
não é percebido não é consciente. A consciência
é o movimento, esse movimento é o atualizar-se; o atualizar-se
é o próprio existir.
E o grupo percebeu-se existindo, atualizando-se num esforço de deixar-se
ser pura possibilidade.
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Endereço para correspondência:
Angela
Maria Alves Souza
E-mail: amasplus@yahoo.com.br
Rosana Aparecida Vieira
E-mail: rosana_a_vieira@terra.com.br
Anna Karynne da Silva Melo
E-mail: karynnemelo@unifor.br
Recebido em: 15/09/2008.
Aprovado em: 26/06/2009.