ARTIGO

O encontro dialógico na prática clínica – relato de experiência

The dialogical meeting in clinical practice - a report of an experience


Luiza Elmiro Martins de Sousa

Endereço para correspondência


RESUMO

O artigo apresenta o relato de uma experiência de atendimento, durante estágio em Psicologia Clínica, com supervisão em Gestalt-terapia e se destina a apresentar reflexões iniciais sobre uma possível leitura da prática de atendimento clínico à luz da teoria Gestáltica e do encontro dialógico de Martín Buber. Pretende-se articular tais teorias à prática psicoterápica, expondo os desafios e possibilidades inerentes à relação terapeuta-cliente, propondo reflexões sobre uma práxis que se faz terapêutica na medida em que a relação, na sua perspectiva dialógica, é colocada no centro do processo terapêutico.

Palavras-chave: relação dialógica; práxis psicoterápica; atendimento clínico.



ABSTRACT

The article presents the story of a care experience during the internship in Clinical Psychology, with supervision in Gestalt therapy and it intends to provide initial thoughts on a possible reading of the clinical care practice according to Gestalt theory and Martin Buber's dialogical meeting. The aim is to articulate these theories to psychotherapy practice, outlining the challenges and opportunities implicated into the therapist-client relationship, proposing reflections about a practice that becomes therapeutic as the relationship, in its dialogical perspective, is placed in the center of the therapeutic process.

Keywords: dialogical relationship; psychotherapy practice, clinical care.


Introdução

Um dos momentos marcantes durante minha graduação em Psicologia na Universidade Federal do Ceará foi o estágio em psicologia clínica. O estágio se fez importante no sentido em que me deu a possibilidade de vivenciar na prática as ações transformadoras de um contato profundo, humano e genuíno voltados para o cuidar do outro. Cuidar este que exige abertura ao contato com o outro, existências que se lançam e se abrem à possibilidade de um encontro transformador, onde intersubjetividades dialogam, dando novos sentidos e significados à existência.

A construção do ser terapeuta não ocorre de maneira fácil. A entrega e abertura à uma relação autêntica em psicoterapia requer coragem e disponibilidade para estar com o outro em toda nossa inteireza e plenitude. Muitas vezes vemos nosso papel de psicoterapeuta ser colocado em questão, pois a presença do outro nos desafia, nos desestabiliza, é provocativa e nos convida a rever nossa atuação.
Este artigo visa compartilhar com os leitores uma destas experiências desafiadoras pela qual passei durante meu estágio em Psicologia Clínica na Universidade Federal do Ceará (UFC). Para tanto, realizarei uma pequena introdução acerca da teoria Gestáltica e do encontro dialógico de Martín Buber. Em seguida, relatarei acerca de um acompanhamento clínico, expondo os desafios, medos e incertezas que emergiram de minha relação com o cliente, e me levaram a refletir sobre minha atuação enquanto psicoterapeuta e a reconstruir o caminho no sentido de possibilitar um encontro autêntico e transformador.


Diálogo e encontro em Gestalt-terapia

As psicoterapias de base humanistas, em seu surgimento, se propunham a combater o intelectualismo psicanalítico e o mecanicismo do behaviorismo, surgindo com uma visão totalizante de homem, dando ênfase à vivência das emoções.

Cury (1981 apud MOREIRA, 1993/94, p. 114) descreve o surgimento da fenomenologia e do existencialismo na primeira metade do séc. XX, no entanto, foi apenas na década de 40 que estas filosofias atraíram os psicólogos americanos e nas décadas de 50 e 60 a abordagem fenomenológica e existencial passou a ser utilizada como método aplicado aos problemas de natureza psicológica, ou seja, como um procedimento específico para explorar a consciência.

A reflexão sobre a existência humana ligada a Gestalt-terapia encontra expressão nos filósofos existenciais que enfatizam o homem-em-relação, na sua forma de estar no mundo e na radical escolha de sua existência.

Cury (idem) defende como ponto comum e fundamental nas teorias e terapias de base humanista:

A filosofia de base utilizada pela GT é o existencialismo, já que põe ênfase no “homem-em-relação, na sua forma de estar no mundo, na radical escolha da sua existência no tempo, sem escamotear a dor, o conflito, a contradição, o impasse, o vazio, a culpa, a angústia, a morte, na incessante busca de se achar e de se transcender” (TELLEGEN, 1984, p. 41). Dessa forma, a perspectiva existencial valoriza o homem em sua relação com o mundo, com as escolhas e as angústias inerentes a esta relação que é a própria vida.

Por ser fenomenológica a GT enfatiza o “aqui e agora”, lugar onde as possibilidades podem ser atualizadas, onde a realidade é, realmente, possível. “O ‘aqui e agora’ é a totalidade da experiência do indivíduo[...] ele registra, no frescor do momento, as emoções e a solução do seu quotidiano[...] uma responsabilidade engajada na totalidade do presente. É um processo totalizador que colhe no imediato todas as possibilidades do agir humano” (RIBEIRO, p. 22, 1994).

Outro conceito chave em Gestalt-terapia é o fechamento, o movimento para a inteireza, à conclusão das situações que, quando não podem ser compreendidas em sua totalidade, ou quando a pessoa não dispõe de mecanismos para sua atualização, elas permanecem como fundo, incomodando e bloqueando o contato direto com a realidade imediata.

Conceber a realidade a partir da necessidade existencial do indivíduo, em seu momento atual, sinaliza o que está sendo mais importante para o indivíduo, o que está sendo percebido como primordial e, na terapia, é o elemento mais importante a ser trabalhado, esgotando-se esta possibilidade, o cliente reconfigura seu campo e se abre a novas possibilidades de atuar no mundo.

Segundo Perls, Hefferline e Goodman (1997), a terapia consiste em compreender o funcionamento da unidade e desunidade da estrutura interna da experiência concreta, no momento atual, tornando possível refazer as relações dinâmicas entre figura e fundo, até que o contato se intensifique, iluminado a awareness e energizando o comportamento, caminhando para a integração e o crescimento.

Estar aware, estar consciente do que está acontecendo consigo mesmo funciona como apoio para um comportamento espontâneo e genuíno. Uma presença atenta, interessada e disponível para com aquilo que é a realidade atual para o indivíduo possibilita um contato com a experiência e seu desdobramento, a atualização de possibilidades.

Focalizar a própria awareness mantém a pessoa absorvida na situação presente, ampliando o impacto da experiência na terapia, bem como das expressões mais comuns da vida. A cada awareness sucessiva a pessoa chega mais perto de articular os temas da própria vida e mais perto também da expressão desses temas (POLSTER e POLSTER, p. 217, 2001).

Segundo Ribeiro (1997), a Gestalt-terapia centra-se no conceito de contato e na natureza das relações de contato da pessoa com seu interior e o mundo exterior. Contato é o fenômeno no qual o encontro ocorre. É através do contato que figura e fundo são criadas e recriadas, formando novas gestalten.

O contato se dá na “fronteira de contato”, compreendida como a fronteira entre o self e o ambiente. Esta deve ser permeável, possibilitando trocas, porém com determinada firmeza, a fim de garantir autonomia. A perda ou o desaparecimento desta flexibilidade e permeabilidade acarreta no que em Gestalt-terapia chamamos de distúrbios na fronteira de contato, são eles: confluência, retroflexão, introjeção, projeção, deflexão, entre outros.
Yontef (1998) descreve estes distúrbios da fronteira da seguinte maneira:

Na confluência (fusão) a distinção entre o self e o outro perde a nitidez, a pessoa funde-se à outra, perdendo sua autonomia e identidade. A fronteira de contato parece não existir. No isolamento, a fronteira está tão impermeável que a união é perdida, o organismo se fecha para o exterior, tentando ser auto-suficiente e nutrir-se a si mesmo. O isolamento é um muro de proteção entre si e o exterior.

Retroflexão é uma divisão dentro do self, o próprio self resiste a aspectos dele mesmo. Ocorre uma substituição do self pelo ambiente, a pessoa pratica com o self ações que gostaria de praticar com os outros, ou fazendo para si o que gostaria que outras pessoas fizessem.

Introjeção é quando o material do meio é absorvido sem discriminação, sem ser mastigado. Valores e comportamentos introjetados são incorporados pelo self como sendo próprios. Dessa forma, pessoa toma o material do meio externo como sendo seu, não reconhecendo o que faz parte de si e o que não faz. Torna-se rígida, respondendo da mesma forma às diversas situações.

Projeção é uma confusão entre o self e o outro, a pessoa atribui ao meio externo o que é do self. A pessoa não está consciente do que está sendo projetado, não assumindo a responsabilidade pelo que faz.

Deflexão é a evitação do contato ou da awareness, esquivando-se em vez de ser direto. A pessoa que deflete tem dificuldade em encarar uma pessoa, em comunicar-se diretamente e não por meio de rodeios e palavras vagas, em perceber o que o outro está lhe falando. Sente-se muitas vezes mal entendida por não conseguir expressar o que realmente deseja.

Percebemos, então, que os mecanismos descritos advêm da interrupção da fluidez na fronteira de contato e do fluxo do contato. Impossibilitada de contatar a realidade atual a pessoa se nutre de elementos que não pertencem a ela, não se comportando de maneira espontânea e adequada. A pessoa não consegue estabelecer limites claros entre o “eu” e o ambiente, prejudicando as trocas significativas com o mundo e criando um estado de estagnação e perda da fluidez criativa.

A auto-regulação baseia-se no reconhecimento e assimilação das partes consideradas estranhas ao self ao invés de, simplesmente, introjetar ou rejeitar, resultando na capacidade de resposta integrada, caminhando para um movimento de relaxamento da fronteira, permitindo experimentar o novo e integrá-lo de maneira harmoniosa. “Enfraquecendo o conflito e fortalecendo o self e a awareness de si próprio” (PERLS, HEFFERLINE e GOODMAN, p. 167,1997).

Como psicoterapia de base humanista a Gestalt-terapia enfatiza uma perspectiva existencial de relacionamento, baseado no respeito pela pessoa e na crença do relacionamento humano como forma de crescimento. A Gestalt-terapia é influenciada pela filosofia dialógica de Martin Buber, elegendo a atitude Eu-Tu como forma de relação psicoterápica por excelência.

O processo terapêutico envolve o contato de duas pessoas que se arriscam num encontro existencial, de onde emerge uma relação genuína, a relação dialógica. Nesta relação, ambos, terapeuta e cliente, estão centrados no presente e enfatizam a experiência direta proporcionada pelo encontro que se dá entre os dois.

Para Buber (1977) a existência humana é ontologicamente relacional. Buber foi o principal defensor da filosofia do inter-humano no século XX, tinha a consciência de que a ênfase tecnocrática da sociedade moderna provocou um maior individualismo e um distanciamento entre as pessoas. Para ele o dialógico ocorre na esfera do entre, e é marcado pelas polaridades EU-TU e EU-ISSO.

A relação EU-TU é uma atitude de interesse genuíno em relação ao outro com quem interagimos, quando voltamos nosso ser para esta pessoa. Ao contrário, em um momento de predomínio da relação EU-ISSO a outra pessoa é vista como um objeto, ela é um meio para um fim, e, na medida em que vejo o outro como objeto, passo eu também a ser objeto e meio para um fim.

Entrar em contato com o outro, estar com o outro numa posição de abertura e disposição para com este outro, ou seja, num contato verdadeiro, onde o que está em destaque é a relação, o entre, o inter-humano. Não está em evidência apenas um dos participantes ou cada qual em separado, mas o que está acontecendo entre eles. É neste entre que acontece a cura, no compartilhar dos selves de cada um. “Juntos, eles formam uma totalidade que propicia um contexto para a experiência individual de ambos. Talvez esse seja o significado mais sucinto do entre” (HYCNER, p. 123, 1995).

Para Hycner (1995), a cura em psicoterapia dialógica significa “tornar inteiro”, existe uma relação de confiança que foi danificada e não está inteira. Através da relação terapêutica é possível construir uma ponte em direção ao cliente, o restabelecimento de uma conexão com o terapeuta pode ser estendido para o restabelecimento de uma relação com o mundo e com os outros. “O cliente necessita experienciar profundamente em seu íntimo que o terapeuta o compreende ou, pelo menos, que está fazendo um esforço humanamente possível para compreendê-lo. É somente a disposição dos dois participantes de se engajarem nesse tipo de aliança e vínculo que irá permitir que o ambiente terapêutico seja verdadeiramente curativo” (HYCNER, p. 112, 1995).

O diálogo emerge do encontro autêntico entre o Eu e o Tu, onde cada um trata o outro como uma pessoa igualmente capaz de autenticidade. Yontef (1998) descreve cinco características que marcam o relacionamento dialógico:

  1. Inclusão: Inclusão é perscrutar a visão do outro mantendo o sentido de si mesmo, ver o mundo pelos olhos dos outros, sentir o ponto de vista do outro. Significa colocar o tanto quanto possível, na experiência do outro, sem julgar, analisar, ao mesmo tempo em que se permite ser afetado por ele e por sua experiência. A inclusão fornece um ambiente seguro ao cliente na medida em que sente que está sendo compreendido em sua totalidade.
  2. Presença: o terapeuta expressa suas observações, preferências e sentimentos em relação à outra pessoa, como parte do relacionamento terapêutico. A presença é sentida através da confirmação da consciência do cliente, bem como de aspectos de sua existência que são negados e alienados.
  3. Comprometimento com o dialógico: um compromisso com o outro, um render-se ao processo interpessoal, é permitir que o contato aconteça “entre”, em vez de controlar o contato e seu resultado.
  4. Sem exploração.
  5. O diálogo é vivido.


Trabalhar no âmbito da psicoterapia dialógica é tentar entrar no mundo do cliente, ter uma compreensão mais profunda dele, através de um contato melhor e de uma atitude mais significativa, mais presente para com ele, “suspendendo” nossos valores e compreendendo o significado do ponto de vista do próprio cliente.

Na Gestalt-terapia enfatiza-se o processo terapêutico usando a presença ativa do terapeuta como seu instrumento de contato com o cliente, uma forma de contato que seja facilitadora de momentos Eu-Tu, de encontros e diálogo. Quando duas pessoas deixam de tentar controlar uma à outra elas se encontram em um fluxo livre de afetividade, expressam-se espontaneamente e experimentam um “eu” autêntico e integrado, entregam-se à possibilidade de um contato pleno e transformador.


O encontro com L. – relato de experiência


No primeiro encontro com L. este veio acompanhado de sua mãe, que apresentava como queixa principal de L. sua dificuldade no aprendizado o que se refletia em suas baixas notas escolares, sendo aprovado apenas após recuperação. Desde o início a mãe de L. mostrava-se bastante preocupada com o aprendizado escolar do filho, achava-o muito desatento, disperso, calado, com dificuldades de tomar iniciativa e de se concentrar nas atividades escolares, “tímido” e “infantil”, a mãe gostaria que ele fosse mais desinibido e “esperto”. Sentia uma forte dependência do filho em relação a ela.

Por conta da idade de L. (12 anos) optei por atendê-lo na sala de ludoterapia, pois imaginei que os brinquedos poderiam ajudar em uma interação inicial e no possível estabelecimento de um vínculo.

Os primeiros meses no atendimento com L. foram bastante difíceis, ele era realmente muito tímido, não se comunicava comigo, era monossilábico, não olhava nos olhos e tinha um comportamento bastante disperso. Sentia-o distante, como se ele não visse sentido em estar ali na terapia.

Nas primeiras sessões eu tive que realizar um verdadeiro interrogatório para que L. falasse alguma coisa sobre ele, e quando isso acontecia, suas respostas eram sempre curtas e vagas, ausentes de sentimentos, para ele tudo era ou estava “normal”. Compreendia esta maneira de responder de forma “previsível” de L. como uma provável resistência. Responder que tudo era “normal” era uma forma de se manter em uma posição segura até que tenha adquirido a confiança em mim para que pudesse se lançar em seu processo.

Estes momentos foram bastante difíceis, eu sentia a necessidade de estabelecer um vínculo, uma confiança mútua para que L. pudesse se colocar na terapia, no entanto, por mais que eu tentasse, não conseguia atingi-lo, tocá-lo. Era como se algo estivesse estagnado. Não via meios de estabelecer um contato criativo com L. e sua resistência.

Diante de tal situação, resolvi pedir ajuda ao meu supervisor de estágio na época, este sugeriu que eu tentasse algo “novo” com meu cliente, eu deveria procurar outras formas de me relacionar com ele. Percebi que quem deveria mudar naquela relação não era o meu cliente, mas eu. Se ele estava de alguma forma resistindo, esta resistência era fruto de nossa relação. Foi muito importante perceber isso para que pudesse fazer desta resistência um ponto de contato entre mim e L. e, através da inclusão poder sentir o lado de L., como sua experiência se apresentava a ele.

Deixei de assumir o papel de pessoa chata, interrogadora, que cobrava que L. fosse comunicativo, extrovertido. Percebi que este papel não era meu e sim de sua mãe que o cobrava em tudo: em suas notas, em seu amadurecimento, sua desinibição, etc. O não falar ou achar tudo “normal” era uma resposta a seu relacionamento com a mãe que estava sendo repetido na terapia tanto por minha parte como por parte de L. Em vez de ser a “inimiga”, passei para o lado de L., para o lado de sua resistência a fim de poder compreendê-la e assim, podermos trabalhá-la.

Resolvi mudar minha postura na relação com o cliente. Já que para L. era difícil falar de si, então, comecei a falar sobre mim. Estas coisas que pareciam ser só minhas, na verdade, faziam parte do entre L. e mim. Já não havia mais resistência ou restrições de minha parte para com L.. Pude me encontrar nas palavras de Hycner (1995, p. 151) ao falar do impasse (da limitação) do terapeuta diante da resistência do cliente:

Os clientes podem ver as falhas humanas do terapeuta, assim como sua coragem, esforçando-se para lidar com estas limitações existenciais. Este é um modelo importante para o cliente. As limitações humanas do terapeuta não são um ponto de parada, mas antes um ponto de encontro no plano da humanidade em comum – um plano onde todos precisamos primeiro nos encontrar antes de estarmos dispostos a confiar e arriscar nos outros. Esta abertura sinaliza um terapeuta em crescimento.

Este “me abrir”, me colocar presente na relação foi algo mágico, serviu para que L. visse o quanto ele era importante para mim, que mesmo sem ele dar uma palavra sequer nas sessões eu queria estar compartilhando algo com ele. L. pôde compreender que eu precisava dele não para apenas saber ou “sugar-lhe” algo, mas, simplesmente, para me escutar, para mostrar-me enquanto presença, enquanto pessoa.

A partir de então, senti que nossa relação mudou de maneira significativa, L. começou a participar ativamente de seu processo terapêutico, sendo desnecessárias tantas intervenções. Tornou-se mais “solto”, mais responsável e consciente das questões que trazia e de nosso momento na terapia. L. mostrava-se mais seguro de nossa relação, o que fez com que nosso diálogo fluísse mais facilmente.

L. apropriou-se de seu discurso, antes repetia o discurso da mãe que havia introjetado, ele era o que sua mãe falava dele. Ele passou a trazer para nossos encontros as experiências de seu cotidiano, sentimentos advindos de suas relações com o mundo e com os outros. Está mais “dono de si”, mais sensível às coisas que o atingem.

A falta de autonomia impossibilitava que L. tivesse uma maior consciência de si, parecia que os problemas eram externos a ele, que não o envolviam e na medida em que ele pôde se expressar mais ativamente na terapia ele tomou mais consciência de si e de seus sentimentos. Ter um bom desempenho escolar passou a ser um problema SEU e não só da mãe, pois ELE queria ser alguém na vida, queria um futuro promissor para SI.

O mais significativo no atendimento a L. foi perceber que o caminho que devíamos percorrer não era o de trabalhar questões ligadas a seu insucesso escolar, pois havia outras coisas no “fundo” que também precisavam ser iluminadas para melhor serem vistas e trabalhadas. Perceber que L. não era apenas um “fracassado escolar”, mas trabalhar no sentido de descobrir e afirmar suas potencialidades, a capacidade de encontrar novas possibilidades de ser, de fazer escolhas e assumi-las.

Percebi o processo de L. como uma “iluminação”, onde tudo parecia sem cor, sem vida, sem sentido, tudo era “normal” demais, e ele passou a perceber as coisas e cores que antes não enxergava, partes de um todo que estavam anuladas, adormecidas. Estas começaram a ter sentido, os sentimentos o tomam e são reconhecidos, contatados.

Ao final de seu processo terapêutico, L. pode falar de medos, angústias, tristeza, impotência diante das provas de matemática, alegrias, surpresas, conquistas, sensações que lhe são novas, mas que lhe dão vida. Está um menino mais alegre, extrovertido, mais independente da mãe, implicado na relação terapêutica e em seu processo de crescimento. Vejo o quanto a terapia foi importante no sentido de seu engajamento e fortalecimento para a construção de um “eu” mais autônomo e criativo.


Considerações Finais

A experiência do “ser terapeuta” representa a possibilidade de aprender e experienciar na prática clínica as teorias vistas nas disciplinas acadêmicas, além de ser uma oportunidade de compreender o processo terapêutico. Neste caso, percebemos, através de uma total presença com o outro, o forte potencial humano e a capacidade curativa que se dá no entre da relação terapeuta/cliente.

Importante, também, entender que cada pessoa tem um tempo próprio para entrar em contato com seus sentimentos, com suas resistências e angústias. Compreender que nós, terapeutas, precisamos ser pacientes e respeitar o momento do outro e a forma como este lida com sua dor.

Com o relato acima podemos observar a relevância da relação dialógica como elemento fundamental e mobilizador do processo de “cura”. Onde o encontro favorecido pela relação entre iguais, onde cada um é um EU para um TU, favorece a reconfiguração de “eus” cristalizados, já que a presença de um provoca, mexe e transforma o outro.

Sou grata aos meus clientes pela confiança estabelecida e por se colocarem inteiros na terapia, o que contribuiu para a construção de uma relação verdadeiramente genuína, tornando nossos encontros espaços de “cura” e de atualização de possibilidades.

REFERÊNCIAS

BUBER, M. Do diálogo e do dialógico. São Paulo: Perspectiva, 1982.

________ Eu e Tu. São Paulo: Cortez e Moraes, 1977.

HYCNER, R. De pessoa a pessoa: psicoterapia dialógica. São Paulo: Summus, 1995.

MOREIRA, V. Fundamentos filosóficos das psicoterapias de base humanista. Revista de psicologia, Fortaleza, v. 11-12, 1993/94.

PERLS, F., HEFFERLINE, R. e GOODMAN, P. Gestalt-terapia. São Paulo: Summus, 1997.

RIBEIRO, J. P. Gestalt-terpia: o processo grupal: uma abordagem fenomenológica da teoria de campo e holística. São Paulo: Summus, 1994.

TELLEGEN, T. A. Gestalt e Grupos: uma perspectiva sistêmica. São Paulo: Summus, 1984.

YONTEF, G. M. Processo, diálogo e awareness. Ensaios em Gestalt-Terapia. São Paulo: Summus, 1998.

 

Endereço para correspondência:

Luiza Elmiro Martins de Sousa

E-mail: luizamsousa@yahoo.com.br


Recebido em: 02 / 06/2008.
Aprovado em: 07 / 03/2009.