É na atrofia do exercício de nossas possibilidades que a pequenez de nossa existência se concretiza. (1)
When we atrophy the exercice of our possibilities the smallness of our existence becomes real.
Eleonôra Torres Prestrelo (2)
eprestrelo@terra.com.br
RESUMO
O presente artigo levanta algumas reflexões sobre a relação possível de ser pensada entre o “Sagrado” e o “Ajustamento Criativo”, referência teórica da Abordagem Gestáltica que estabelece o tipo de relação Eu-mundo entendida nesta abordagem. Identificando a necessidade de se pensar essa correlação nos tempos “pós-modernos”, levantamos alguns elementos significativos à busca do “Sagrado’ neste determinado espaço-tempo.
Palavras-chave: Gestalt; ajustamento criativo; sagrado.
ABSTRATC
This article gathers some reflections about the thinkable relation between the “Sacred” and the “Creative Adjustment”, a theoretical reference of the Gestaltic Approach that determines the kind of Self-world relation conceived in this approach. By identifying the necessity of thinking this co-relation in the “post-modern” times, we gather some significant elements to the search of the “Sacred” in this space-time.
Keywords: Gestalt; Creative Adjustment; Sacred.
Esse artigo é fruto de reflexões desenvolvidas a partir do convite recebido para falar sobre a interferência do “Sagrado” no “Ajustamento Criativo”. Diante da hipótese do aumento, por parte das pessoas, de uma busca da inserção do elemento “místico” em suas vidas, foi aberto um espaço de reflexão sobre o tema, segundo a perspectiva de um olhar gestáltico.
Quero deixar claro, de antemão, que as impressões registradas neste texto se constituem numa primeira tentativa de entendimento do fenômeno, não se configurando, portanto, numa idéia acabada sobre o tema.
Acreditamos, na perspectiva gestáltica, que nós temos uma sabedoria interior que nos orienta para estarmos/fazermos o melhor possível a cada momento, seja numa perspectiva de crescimento, expansão, seja numa perspectiva de sobrevivência, preservação. Podemos identificar essa orientação em Perls, Hefferline e Goodman (1997) quando dizem: “A lei básica da vida é a autopreservação e o crescimento.” (p.88)
Esta afirmativa está diretamente ligada a acreditarmos que a saúde tem um peso maior que a doença na orientação de nossa existência. Na crença de que a peculiaridade do Humano nos orienta, prevalece. Essa, a meu ver, é uma das premissas mais impactantes da perspectiva gestáltica: a valorização de nossa força atualizante.
Essa premissa se traduz, dentre outras, na concepção teórica da abordagem gestáltica denominada de “ajustamento criativo”. Ajustamento consistiria na capacidade/possibilidade de, em determinado espaço-tempo, podermos identificar a melhor forma de interagirmos num determinado momento. Criativa porque elástica, nova, exercício de possibilidades. Para existir é necessário estabelecer contato e assimilá-lo, pois como nos indica, ainda Perls, Hefferline e Goodman, no Gestalt-Terapia, primeiro livro publicado desta abordagem (1987): “Todo contato é ajustamento criativo do organismo e ambiente. Resposta consciente no campo (como orientação e como manipulação) é o instrumento de crescimento no campo (p. 44)".
Gosto do termo ajustamento em detrimento de adaptação. Talvez pela marca que o último traz de regulação pelo externo, adaptar-se a algo de fora, prioridade do meio, o que pode não se aplicar, é claro e também pela indução a um lugar passivo: eu me adapto a algo ou alguém. No ajustamento, o termo me leva a pensar em possibilidade de negociação, troca, aproximação; me remete à idéia de parte fundamental e essencial a um todo. Noção mais pertinente a uma visão gestáltica.
Tendo trazido um pouco do que entendo por “ajustamento criativo’, gostaria de passar a refletir sobre o momento em que estamos vivendo e nossas possibilidades de ajustamento.
Trago essa perspectiva para nossa reflexão, a fim de que possamos vivenciar nossas idéias, mastigar nossa perspectiva teórica com o intuito de contribuir para aproximá-la de nosso cotidiano e não deixá-la distante, em nossa estante de livros ou delegá-la aos profissionais ligados á academia.
Quando nos revoltamos com a violência cotidiana, com a insegurança que nos assalta a cada instante, será que fazemos contato com o fato de que nós somos essa sociedade contra a qual nós nos revoltamos? Será que fica claro “a parte que nos cabe nesse latifúndio?”.
Pois bem, olhemos um pouco sobre o contexto no qual essa figura emerge, para utilizar uma expressão bem conhecida para nós, gestalt-terapeutas:
Os teóricos sociais identificam a modernidade como um período de maior delimitação de limites, uma época de crença na diferença clara entre o preto e o branco onde a definição de certo e errado servia de orientação a todos nós, até pela possibilidade de contestarmos qualquer uma dessas polaridades. Época de delimitação de identidades, agrupamentos, experiência de pertencimento (Bauman (1998), Hall (2005), Fensterseifer e Werlang (2006), dentre outros.
A ciência, produto legítimo do exercício da razão,
servia de suporte na leitura e entendimento do mundo e, por sua vez, o legitimava,
logo, a produção desse tipo de conhecimento era “sagrada”
(no sentido de não poder ser infringida, inviolável).
Nesse cenário, se acreditava na busca de uma verdade, de uma certeza, ponto de apoio e de orientação para a clareza de nosso lugar no mundo. Se por um lado, sermos identificados, por ex, como antigos ou modernos, bons e maus nos segregavam, oferecia, por outro, uma clareza de lugar. Era muito mais fácil nos orientarmos, até para buscarmos sair deste lugar e chegar a outro.
Para uma prática clínica, era muito mais fácil diagnosticarmos alguém, creditávamos muito mais rapidamente, por. ex., ser o cliente um paranóico, um fóbico - condição individual!
Numa perspectiva pós-moderna essa clareza se perde. Tendo caído por terra a ilusão de que a ciência “tudo nos daria” , como nos canta Gilberto Gil, começamos a lidar com a inexorabilidade de nossas fragilidades, da nossa condição absolutamente humana de estarmos, constantemente, mudando, nos “atualizando”. Que somos não só um, e sim muitos. Que o fóbico e o paranóico não são o outro, só, sou eu mesmo - criador e criatura desse mundo de incertezas. Que essa categoria não mais traduz um individual e sim uma condição social.
Como o colocam Fensterseifer e Werlang (2006):
A pós-modernidade iluminou o fato de que o mundo é regido pela incerteza, e não mais pela certeza e pela existência de uma verdade única, como prometia a ciência, e fez com que o homem tomasse consciência disso. Então, parece possível dizer segundo Bauman (1999), que o desconforto causado pela certeza de que não há saída nem solução para a incerteza que pauta e ordena a vida é a fonte de mal-estares típicos e específicos (p.38).
Toda quebra de paradigmas se traduz em mudanças no contexto ao qual se refere. A falta de referenciais claros e definidos se traduz em sentimentos de não pertencimento e solidão (Fensterseifer e Werlang, 2006). A fluidez das relações (Bauman, 1998) e a conseqüente instabilidade afetiva que isso nos traz, alimenta o medo de entrega, o limite no envolvimento, tão presentes nas relações atuais.
Essa cartografia social fomenta, como já o entendemos, expressões de sofrimento característicos de nosso tempo. Podemos pensar, a título de ilustração do que estamos tratando aqui, no aumento gritante de clientes que chegam, atualmente, ao nosso consultório, com sintomas denominados pela classificação nosológica, como típicos da síndrome de pânico, das compulsões, da depressão, etc. Segundo Fensterseifer e Werlang, 2006:
O homem contemporâneo caracteriza-se pelas experiências de desenraizamento,
de errância, vinculadas a perdas de referências simbólicas.
E isso se traduz em um sofrimento psíquico que denuncia a insegurança
e, principalmente, a instabilidade identitária, e que pode ser chamado
de desamparo. Quem está desamparado está à mercê.
(p.39)
Então, se não mais acreditamos na religião, na ciência e, me parece, estamos perdendo, cada vez mais, a crença em nós mesmos, na nossa capacidade de transformação individual e coletiva, “estamos à mercê"...
Alejandro Spandenberg, gestalt-terapeuta venezuelano, em seu livro “Gestalt, Mitos y Transcendência” (1999) nos coloca de forma muito simples e extremamente verdadeira, bem como, aliás, em tudo que faz, que as necessidades humanas, como o contexto para realizá-las, ao contrário do que pensamos, e nos colocamos, seriam extremamente simples:
1.Un plato de comida caliente elaborado con amor, água limpia y fresca
con aire puro para respirar.
2. El suficiente amor y confianza del entorno (padres, comunidad) al que pertencemos, como para poder crecer amándonos y confiando em nosotros mismos.
3. Un lugar significativo dentro de la comunidad em que vivimos de acuerdo a nuestras potencialidades y talentos.
4. Que nuestra vida esté impregnada de un sentido transcendente, esto quiere decir que dentro del contexto en cual se desarrolla, exista el espacio para la búsqueda y expresión del misterio de la vida.
Estos cuatro elementos simples em su fourmulación, constituyen por si mismos la garantia de individuos y comunidades sanas y armónicas (p.138).
A partir do exposto nos indaguemos: podemos nos garantir tamanha “simplicidade”? Como podemos ver e ele ressalta, nossa civilização está absolutamente incapaz de nos garantir essas condições mínimas de realização.
Spandenberg levanta essas questões quando discute, na obra citada, o mito do nosso tempo, que seria o do herói contemporâneo, ao que me parece, bem pertinente à reflexão que aqui nos propomos.
O mito do herói, segundo ele, tem uma estrutura que se repete, a daquele que, saindo de uma terra estagnada, vazia, vai em busca de uma saída para ela.
Essa estrutura simbolizada no mito nos remete tanto a uma condição de estagnação individual, o que, no contexto psicológico, diz ele, poderíamos identificar como neurose, como também a uma estagnação/paralização sociocultural, que podemos constatar nos dias atuais.
Segundo ainda este autor, a nossa estagnação sociocultural se deve ao impasse entre o Ego e o Ser. Estamos muito voltados para obter coisas materiais, para alcançarmos status social, para uma cultura que alguns pensadores sociais denominam de cultura de consumo, em detrimento do contato com questões essenciais a nossa condição de humanos.
Nesse contexto de desamparo, falta de conexão com o que temos de essencial, é natural que esteja aparecendo, de forma crescente, a necessidade de uma conexão mais sutil com algo que podemos chamar aqui de “Sagrado”.
E é aí que entendo a conexão possível entre “O sagrado e o ajustamento criativo...”
O sagrado como aquilo que não pode ser tocado, violado, comumente tido como aquilo que pertence às divindades, ligado quase sempre a alguma religião. Ferreira (1986): “Religião: crença na existência de uma força ou forças sobrenaturais, considerada(s) como criadora(s) do Universo, e que como tal deve(m) ser adorada(s) e obedecida(s)(p.1480).”
Poderíamos então, talvez, pensar na necessidade contemporânea de se conectar a forças transcendentais, superiores à natureza, sobre-naturais?
A busca de conexão com essa dimensão da existência faz parte da história da humanidade. A forma que ela toma, sim, se relaciona com o momento histórico e sua forma de expressão mais comum é acoplada a uma religião. Mas a busca de conexão com o sagrado faz parte do humano em sua necessidade de transcendência, já que nos é penosa a constatação de nossa transitoriedade. Parece pouco uma vida para pagar contas, onde as coisas só existam por si, há de haver um sentido além da cotidianidade...
Parece-me natural, previsível até, no contato constante com a nossa impotência, que esse estágio da existência humana seja lembrado, buscado e cada vez mais trazido para o nosso cotidiano. É na atrofia do exercício de nossas possibilidades que a pequenez de nossa existência se concretiza e é nesse contexto que, criativamente, precisaremos nos ajustar e construir nossas relações. Mais uma vez citando Spandenberg (1999): “Quizás la forma más sencilla de comenzar a recuperar la relación sea a través de la defensa apasionada, amorosa y sin concesiones, de la vida em este maravilloso planeta.Cada uno, a su manera, desde su lugar, em su tiempo, puede realizar esta aventura, este llamado del héroe de nuestro tiempo (p.141)”
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BAUMAN, Z. (1998) O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.FENSTERSEIFER,L.&WERTANG,B.S.G.(2006) Comportamentos autodestrutivos, subprodutos da pós-modernidade? Psicologia Argumento, v.24 (47): 35-44.
FERREIRA, A., B. de H. (1986) Novo Dicionário Aurélio.Rio de Janeiro: Nova Fronteira.
HALL, S. (2005) A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A.
PERLS, F., HEFFERLINE, R. & Goldman, P. (1997) Gestalt-Terapia. São Paulo: Summus Editorial.
SPANGENBERG, A. (1999). Gestalt, Mitos y Transcendencia. Montevideo: Arena Ediciones.
(1) Esse artigo, em sua forma inicial, serviu de referência para a mesa-redonda “ O Sagrado: Interferência no Ajustamento Criativo do Ser” realizada no III Encontro de Gestalt-Terapia de Niterói, em 26.05.2007, na Faculdade Maria Tereza.
(2) Gestalt-Terapeuta; Professora Assistente do Instituto de Psicologia da UERJ - Universidade do Estado do Rio de Janeiro.