ARTIGO
Conexão–desconexão, uma metáfora para mudança nos casos de transtornos alimentares na família.
Conection-disconnection, a metaphor for changes in cases of feeding problems into the family.
Leonora Corsini
leonora.corsini@terra.com.br
RESUMO
O artigo
apresenta algumas premissas e conceitos a respeito do modo com que transtornos
alimentares que têm uma importante dimensão sócio-cultural,
notadamente a anorexia, se expressam nas relações familiares.
Pretende-se articular as premissas teóricas e conceituais dos terapeutas
sistêmicos com um relato de algumas sessões de terapia de família
com uma jovem anoréxica.
Palavras-chave: Transtornos alimentares; anorexia; conexão-desconexão
entre mãe e filha.
ABSTRACT
The article presents some premises and concepts regarding the way as the eating disorders that have an important socio-cultural dimension, particularly the anorexia, express themselves in the familiar relations. It intends to articulate the theoretical and conceptual premises of the systemic therapists with a report of some family therapy sessions with an anorexic young girl.
Keywords: Eating disorders; anorexia; connection-disconnection
between mother and dougther.
E no momento em que pioneiras do feminismo passam a defender a teoria de que é preciso feminizar o mundo para torná-lo mais distante da barbárie mercantilista e mais próximo do humanismo, acho que só as mulheres podem desarmar a sociedade. Até porque são desarmadas pela própria natureza. [...] São as mulheres que imporão um adeus às armas, quando forem ouvidas e valorizadas. E puderem fazer prevalecer a ternura de suas mentes e corações. Viva Rita Lee que canta: "nem toda feiticeira é corcunda, nem toda brasileira é bunda e meu peito não é de silicone... sou mais macho que muito homem"!
Heloneida Studart
Os transtornos alimentares vêm ganhando destaque ultimamente como um grave problema social e de saúde pública, trazendo como conseqüências prejuízos biopsicossociais expressivos, atingindo de forma generalizada uma grande parcela da população jovem, em sua maioria do sexo feminino. Os transtornos mais comumente referidos são o comer compulsivo – preocupação exagerada com comida; a anorexia nervosa – recusa de alimentação, obsessão pela magreza; e a bulimia – comer compulsivamente, para depois, provocar o vômito. Em função dos graves efeitos para a saúde dos indivíduos afetados e suas famílias, tais transtornos têm sido o foco de atenção de cientistas sociais, como sociólogos e assistentes sociais, bem como dos profissionais da saúde, incluindo psiquiatras, clínicos gerais, enfermeiros, nutricionistas, psicólogos, psicoterapeutas, etc. Na tentativa de compreender as causas e a etiologia dos transtornos alimentares, vêm-se estudando com atenção as dimensões ambientais, culturais, societárias, além dos aspectos da subjetividade, a personalidade, as características genéticas, o metabolismo das pessoas que manifestam esses transtornos. Hoje já se sabe também que esses transtornos bastante complexos têm uma estreita relação com o contexto familiar.
A anorexia nervosa – um transtorno do comportamento alimentar que atinge predominantemente adolescentes e mulheres jovens – é inegavelmente uma questão de saúde coletiva, que deve ser analisada de maneira transversal, porque atravessa múltiplos campos do saber. Sem subestimar a importante dimensão social da questão da anorexia, que passa inclusive por uma organização binária e falocêntrica da sociedade contemporânea que acaba “coisificando” ou “mercantilizando” o corpo da mulher, como bem disse Heloneida Studart, nossa proposta neste artigo é focalizar a anorexia em termos das suas expressões nas relações familiares, adotando como premissa a perspectiva de Mia Andersson sobre a dinâmica da conexão-desconexão entre mãe e filha. Pensamos a anorexia como uma dificuldade de se relacionar, de se conectar com outro, e pensamos que esta pode ser também uma nova metáfora para o processo de mudança em direção à cura.
Apresentaremos de maneira resumida algumas das teorias e pressupostos da terapia sistêmica que norteiam o trabalho com famílias que apresentam algum membro sofrendo de anorexia; em seguida articularemos estas premissas com o relato de algumas sessões do atendimento a uma família de uma jovem anoréxica. Acreditamos que desta maneira poderemos estabelecer algumas importantes conexões entre teoria e prática, vendo os conceitos e as premissas a respeito da anorexia como recursos extremamente eficazes tanto para a compreensão quanto para o próprio processo de mudança e cura nas famílias que convivem com este transtorno.
Os aspectos familiares presentes nos transtornos do comportamento alimentar vêm sendo alvo de interesse e atenção de profissionais envolvidos no tratamento dessas patologias desde o surgimento das primeiras descrições de quadros de anorexia nervosa. A psicanálise, a atmosfera do pós-guerra nos anos 50, a crescente interdisciplinaridade entre saberes dos campos da sociologia, da antropologia e da psicossociologia ajudaram a promover ainda mais o reconhecimento da importância do contexto familiar na etiologia destes transtornos mentais (Fasolo e Diniz, 1998). Muitos autores chegaram a identificar padrões familiares característicos em famílias com membros que sofrem de anorexia ou de bulimia, para além das características psicodinâmicas individuais, como Freud já vinha fazendo desde o início do século passado (1). Tais autores contribuíram especialmente para a ampliação da compreensão da etiologia e do tratamento dos transtornos alimentares graves e sua articulação com os processos de separação e individuação nas famílias de origem de seus portadores.
Contudo, no trabalho com famílias devemos sempre lembrar o aspecto multifatorial dos transtornos do comportamento alimentar, não esquecendo que, além dos padrões relacionais familiares, com a presença recorrente de dificuldades em torno do tema separação-individuação-autonomia, existem também importantes elementos sociais, culturais, individuais, fatores de risco herdados, dentre outros, no desenvolvimento dessas patologias. Por isto, cada vez mais, o trabalho com as famílias que têm membros com anorexia deve ser sempre um trabalho multidisciplinar, em equipe, em que as diferentes redes e profissionais – o clínico, os psicoterapeutas, psiquiatra, nutricionistas, endocrinologistas, enfermeiros, familiares, amigos, pessoas próximas – possam manter a troca, a conexão de informações.
A questão da anorexia e a conexão mãe-filha.
A anorexia pode ser caracterizada como uma intensa perda de peso corporal à custa de dietas rígidas e auto-impostas por pessoas que buscam descontroladamente a magreza, a partir de uma distorção grotesca de sua imagem corporal. Sua etiologia é, como dissemos, multifatorial, ou seja, é um transtorno determinado por diversos fatores que interagem de modo complexo. Além disto, fatores genéticos, psicológicos, sociais, culturais, nutricionais e hormonais podem atuar como fatores que predispõem ao desencadeamento e mesmo à manutenção da doença (Nunes e Ramos, 1998).
Hilde Bruch, psiquiatra que se especializou no estudo e tratamento dos transtornos alimentares, é uma das autoras que trouxe importantes contribuições para o entendimento e o tratamento da anorexia, buscando sempre incluir nestes tratamentos os familiares ou amigos próximos de seus pacientes. Bruch (2001) aponta as dificuldades de separação e individuação nas famílias de jovens anoréxicas, famílias que passaram a ser descritas como sendo muito emaranhadas, apenas vivendo sob uma aparente harmonia. A autora pode identificar, por trás desta pretensa harmonia, “o envolvimento excessivo e a forma como este vínculo íntimo interferia com a necessidade do desenvolvimento de uma identidade separada” (Fasolo e Diniz, 1988, p. 77). Percebia uma certa dificuldade nas famílias das anoréxicas que observava em expressar as emoções, bem como um empenho, por parte dos filhos, no sentido de proteger os pais de notícias desagradáveis, visando ao “bem-estar” da família como um todo (idem).
Salvador Minuchin é outro autor de referência para o tratamento da anorexia nervosa. Suas idéias e pressupostos sobre o problema estão apresentados no livro Famílias Psicossomáticas (Psychossomatic Families: Anorexia nervosa in context, 1978), onde delineia um modelo sistêmico estrutural para a compreensão e o tratamento deste transtorno. Tendo como pano de fundo a idéia de que a anorexia nervosa, além de ser um comportamento específico e singular de um determinado membro da família, expressa também um modo de interrelação entre todos os membros do sistema familiar, Minuchin propôs-se a identificar possíveis influências dos membros da família no desenvolvimento e na manutenção desses sintomas, explorando a história pregressa do desenvolvimento dos mesmos (2).
Assim, o modelo explicativo de Minuchin para o que ele denominou “famílias psicossomáticas”, em congruência com o modelo estrutural que ele desenvolveu para descrever as dinâmicas e as relações da família, destaca quatro características: “emaranhamento”; “superproteção”; “rigidez nas relações”; “não-resolução dos conflitos”. O emaranhamento refere-se a uma forma extrema de proximidade e intensidade nas interações familiares que acarreta o empobrecimento das percepções que um membro da família tem do outro e de si mesmo. Já a superproteção age como um fator que retarda o desenvolvimento da autonomia, da competência e de interesses fora do ambiente seguro da família. A rigidez nos relacionamentos intrafamiliares é vista como uma forma de manter o equilíbrio e o status quo sempre que se apresentam situações de dificuldade que podem ameaçar a integridade do grupo familiar. Há a negação de qualquer necessidade de mudança, para evitar conflitos. Finalmente, a não-resolução ou permanência dos conflitos – a ausência de solução para os mesmos – faz com que os problemas mantenham-se e, inclusive, ameacem as tentativas e acordos feitos para tentar “reorganizar” o sistema familiar.
Mara Palazolli também vai na mesma direção de Minuchin ao enfatizar o papel homeostático e estabilizador para a família em que alguém desenvolveu anorexia nervosa, além de enfocar os padrões comunicacionais nesta família. Palazolli relata que os pais das anoréxicas atendidas por ela apresentavam intensos conflitos neuróticos, não conseguindo manter um relacionamento maduro como casal. Uma outra característica importante apontada por Palazolli é a dificuldade de os membros dessas famílias se diferenciarem uns dos outros, além da tendência a tomar decisões pelo “bem de um terceiro”, nunca atribuída a preferências ou escolhas pessoais (Fasolo e Diniz, 1998). As famílias descritas por Palazolli são unidas e coesas, embora desenvolvam alianças “secretas” entre os membros; os filhos geralmente sentem-se “divididos” diante dos pais, com pouca energia para ter uma vida própria. Esses estudos contribuíram para conferir à anorexia uma reputação de distúrbio psicossomático típico em que a disfunção ou o conflito disfuncional da família se espressa no sintoma do paciente identificado (op. cit., p. 79).
Sendo a anorexia um transtorno que acomete predominantemente as mulheres, Mia Andersson, do Centro de Anorexia de Estocolmo, articulou conceitos adotados por autores sistêmicos e construcionistas com as idéias das teóricas feministas, chegando à conclusão de que “a paixão de uma menina por sua mãe e sua conexão mútua é a poderosa força curativa da anorexia” (ibidem, p. 80). Isto quer dizer que, nos casos de anorexia, existe não só uma mãe que se agarra à filha por causa de suas necessidades inconscientes, mas uma filha que se empenha em “salvar” a mãe em função do grande amor, da verdadeira paixão que sente por ela. Quando acontece uma desconexão decorrente de fatores ou forças alheias a esta díade, mãe e filha começam a desenvolver certas premissas sobre “amor condicional” ou “falta de amor”, que acabam sendo tão terríveis para a menina que ela, sem saber como sobreviver, “se deixa morrer de fome” (idem). Outra formulação muito interessante que Mia Andersson vai desenvolver a partir das premissas de estudiosos e terapeutas da Escola de Milão, como Laura Fruggeri, entre outros, é de que existe uma correlação paradoxal entre sofrimento psicológico e a coexistência de opostos.
Os terapeutas de Milão afirmavam que, quando se empaca em uma situação dolorosa, esta situação tem a ver com falsas polarizações, onde um pólo é o visto como o oposto do outro. Para Andersson (1997), ao se determinar que a autonomia é o oposto de conexão está-se criando uma falsa polarização, que acaba levando à conclusão também falsa de que conexão quer dizer dependência e fusão. Fruggeri e seus colaboradores, defendem a idéia de que a terapia tem que questionar estes falsos opostos já que, a rigor, o oposto da conexão é a desconexão ou isolamento, e o oposto da dependência é a autonomia. O dilema da anoréxica deriva justamente da falsa premissa de que a conexão leva à dependência e à pouca autonomia; a jovem trata de se tornar autônoma a todo custo, mas a única coisa que consegue é uma pseudo-independência.
Assim, a proposta é que se substitua a disjuntiva “ou isto, ou aquilo”, por conjunções “tanto isto, quanto aquilo”. Tal proposição pode ser esquematizada como na figura abaixo (Andersson, op. cit., p.36):
Com a ajuda desta primeira figura, a adolescente pode ir superando gradativamente
o dilema anoréxico, mantendo sempre em pauta suas premissas quanto a
ter que se virar sozinha a todo custo, e de que, caso contrário, perderá
o controle de si e ficará completamente impotente e desvalida. À
medida que vai perdendo o medo de se conectar, pode renunciar à tirania
da falsa independência dada pela anorexia, rejeitando também a
obsessão pelo controle, e a inanição. Segundo Andersson,
as clientes anoréxicas conseguem ilustrar de maneira emblemática
o nexo entre o dilema anoréxico e o efeito desses faltos opostos. Na
próxima figura estão redefinidos graficamente os quatro quadrantes
de opostos adequados, em que há uma oscilação entre a inanição
e independência, passando do campo da anorexia ao campo da bulimia, e
vice-versa.
Neste segundo esquema (Andersson, 1997, p. 45) podemos observar que, à medida que se desloca para cima no eixo vertical, reconectando-se com a mãe, a paciente pode sentir-se ainda dependente desta mãe, mas não desvalida. Existe assim um espaço para a recuperação e um espaço para a saúde futura, quando a pessoa com transtorno alimentarvai ocupar o quadrante superior direito, onde poderá dizer “sim” e dizer “não”, ou seja, onde poderá completar sua individuação preservando a relação íntima com a mãe. A meta da terapia da relação mãe-filha é permitir que a adolescente anoréxica possa desenvolver maior independência, sem ter que renunciar à relação íntima e de conexão com sua mãe.
Como já mencionamos, além das idéias sistêmicas, também os teóricos do Construcionismo Social e as feministas agregaram importantes contribuições para uma compreensão cada vez mais ampla da etiologia da anorexia e do tratamento das famílias com membros que apresentam este transtorno.
Mary Gergen por exemplo sugere que se fale de um trabalho relacional feminista, que leve em consideração a experiência singular da mulher e sua maneira de se relacionar. Esta é uma alternativa às teorias globais tradicionais, geralmente dominadas pelos homens, que definem uma realidade muitas vezes bastante diferente das realidades das mulheres envolvidas nos contextos de transtornos alimentares. Mia Andersson propõe inclusive que se pense em termos de um “conhecimento local” sobre as “realidades anoréxicas”, um conhecimento que é resultado de diálogos entre mães e filhas atendidas por ela ao longo dos anos (3). Resumidamente, a partir deste mapeamento, algumas idéias emergem com relação à dinâmica relacional observada nas famílias com membros que sofrem de anorexia:
·
A anorexia é uma narrativa sobre a necessidade de amor e conexão;
· Faz-se acompanhar de um enfraquecimento da conexão e uma ênfase
exagerada na autonomia;
· A separação da díade mãe-filha é
vivida pela filha como ameaça, que fará com ela se preocupe ainda
mais com a mãe, reforçando o sintoma.
Acompanhando a família de uma jovem anoréxica por trás do espelho.
Para ilustrar, faremos um relato abreviado e comentado de algumas sessões de atendimento da família de uma jovem anoréxica, em que participamos como equipe reflexiva (4). Esta família foi atendida por uma dupla de terapeutas do Instituto de Terapia de Família do Rio de Janeiro (antigo ITF, atual Multiversa). As sessões que acompanhamos são, a nosso ver, bastante representativas das descrições que apresentamos sobre famílias com portadores do transtorno da anorexia, em que se conjugam diferentes premissas, conceitos, possibilidades, maneiras de compreender como se desenvolve o sintoma da anorexia na família e como é possível atuar como “reparadores de fronteiras”, como propunha Minuchin.
Carolina, uma jovem de 20 anos, tem um irmão mais novo, de 17, Renato, com quem tem um relacionamento bastante competitivo e conflituoso. Os pais, são separados, e foi uma separação vivida com muita dificuldade pela mãe Elza, que não aceita a nova união do pai, Rubens. Ambos, pai e mãe vêm de famílias numerosas (10 e 7 irmãos respectivamente). Carolina comenta que é “muito primo”, e não dá conta de se relacionar com todos eles.
Quando começamos a acompanhá-los na equipe por trás do espelho, estavam na segunda sessão da segunda fase. A esta sessão compareceu apenas o pai, que se mostrou um pouco tenso mas bastante empolgado com o trabalho que vinha sendo construído. Ele dizia não conseguir entender a reação da ex-mulher à separação e ao seu novo casamento, achava sua reação desproporcionada. Ao mesmo tempo, tinha um desejo de se aproximar mais dos filhos, não perder o contato com eles. Esta sessão teve para ele um significado de “marcar presença”, de mostrar que não havia desistido (dos filhos).
No encontro seguinte estavam o pai, a mãe e Carolina. O tema desta sessão foi o sentimento de que as coisas “iam indo”, mas nunca ficavam boas de verdade, às vezes apenas “estacionavam”. Nas palavras de Da. Elza, sua filha estava demorando muito a melhorar e ela começava a se impacientar e discutir com ela porque esta fazia muito barulho, deixando as coisas caírem no chão, batendo panelas, criando um clima de tensão. Neste encontro apareceu também o tema da morte, da perda de pessoas queridas (uma amiga muito próxima e a irmã da mãe haviam morrido), e Carolina dizia ficar nervosa com a idéia da morte, não gostava nem que se pronunciasse a palavra morte perto dela. Ao mesmo tempo, depois que ficou magra, vivia batendo fotos dela mesma e não queria que a mãe conservasse as fotografias de quando estava “gorda”. A mãe não sabia que seu Rubens havia ido sozinho na sessão anterior. Ela dizia também não querer que a filha apenas melhorasse, queria que ela ficasse curada, boa. A terapeuta de campo perguntou a Carolina se ela avaliava que estava melhorando ou não. Ela diz que quando esteve com o psiquiatra na última vez, ela achou uma melhora, que não se mostrava tão preocupada, embora concordasse que tinha de melhorar ainda mais. O problema era que, logo que percebia que começava a engordar, tinha medo que tivesse que parar de comer (esta era a preocupação do momento). Assim, Carolina fugia do terapeuta, para não ter que se pesar. A mãe dizia sentir raiva quando percebia que a filha estava “enrolando”; seu Rubens, por sua vez, manifestava o desejo de acompanhar mais de perto o tratamento de Carolina para poder ajudá-la, havia tentado entrar em contato com o psiquiatra para uma conversa, mas ficou intimidado por que o médico lembrou que esta conversa seria cobrada como mais uma consulta. Carolina disse sentir-se invadida com tanta preocupação com ela; no seu entendimento os pais é que estavam precisando de terapia, apesar de concordar que era bom que conversassem com o médico a respeito dela. O fechamento da sessão caminhou no sentido de explorar a possibilidade de o irmão, Renato, poder participar das sessões de família, encontrando uma outra forma de participar sem invadir, pensando juntos que novos caminhos poderiam ser encontrados, talvez algo mais diferente, não tão o “mesmo”. A pergunta que ficou foi: “Como incluir sem que o outro se sinta invadido?”, ou seja, como trabalhar a inclusão colaborativa nesta família?
Na quarta sessão surgiu a questão da preocupação da mãe de não conseguir dar atenção suficiente aos filhos em casa; tinha até pensado em deixar o trabalho, mas logo desistia porque sabia que ia acabar batendo de frente com Carolina. Houve um relato de suas dificuldades de mudar, não conseguia relaxar e deixar de cobrar, impacientando-se com a demora para as coisas acontecerem. Da. Elza falou sobre mudar de apartamento, mas os filhos não queriam; angustiava-se também com a situação financeira. A terapeuta perguntou a Carolina se ela tinha alguma idéia sobre o que gostaria de mudar, e perguntou ao pai o que ele achava que poderia fazer para participar mais. Da. Elza disse que pensava em tirar a filha da natação, que às vezes achava que tinha que dar mais limites. Carolina já havia ameaçado se matar, se isto de fato acontecesse, e disse: “E quando eu falo, eu faço. E vai ser tomando remédios!”.
No quinto encontro do recontrato o assunto foi o ritmo das mudanças. Para Carolina, as coisas não estavam indo nem devagar, nem rápido. O pai e a mãe concordaram que falar sobre o conflito com Renato, o irmão, seria um bom assunto. As brigas aconteciam pelos mesmos motivos sempre, e os irmãos só falavam o mínimo necessário. Segundo Carolina, Renato não era em nada prestativo com ela, enquanto ela se dizia comunicativa. Os terapeutas exploraram com Carolina como achava que seria se o irmão estivesse presente naquela sessão. Ela respondeu que os dois provavelmente ficariam calados, mesmo que tivessem que “fazer força” para não falar. O padrão comunicacional da família era muito tenso, conflituoso, com alguns canais cortados: o pai e a mãe não se falavam, não se olhavam, sentavam-se distantes um do outro na sessão; pai e filho não se falavam também; muitas brigas entre os irmãos; o relacionamento do pai com a filha é que estava melhorando, segundo Carolina.
Para ela, antigamente era ainda pior (as brigas do casal) e com a relação ao irmão, não via diferença. Já seu Rubens achava terrível o bloqueio da comunicação; para ele esta era a razão de estarem em terapia. Para ele, o bloqueio entre ele e sua ex-mulher dificultava e até impossibilitava dar mais ajuda aos dois filhos. Sentia-se mal de não poder acompanhar e saber mais o que estava acontecendo. A mãe, por sua vez, achava preferível não haver comunicação alguma do que ter de manter diálogo no conflito. Os terapeutas interrogaram em que situações ou temas o esforço de entendimento poderia trazer algum benefício – mais benefício do que desconforto. Da. Elza falou de situações de emergência, questões de dinheiro, quando já não sabia mais o que fazer. Mas não acreditava como poderia recuperar a relação com seu Rubens como “parceiro” na criação dos filhos. Ela dizia haver construído uma barreira para se proteger e proteger os filhos. A terapeuta pontuou que não ter conversa é uma “vantagem”, mas que traz efeitos colaterais. A equipe refletiu sobre o divórcio de opiniões e posições entre os irmãos. Relembrou-se o quanto foi difícil para os dois estarem juntos na terapia, a despeito do hiato entre eles, e este esforço estava ajudando Da. Elza e Renato a se fortalecerem, apesar dos desgastes.
Na sessão seguinte o irmão Renato pode vir, porque estava de férias, e porque, segundo ele, sua mãe havia pedido. Além dele, estavam presentes Carolina, seu Rubens e Da. Elza. Renato esteve monossilábico no início, respondendo apenas ao que havia sido perguntado, sem se estender. A mãe relatou uma briga em casa quando descobriu que Carolina andava subindo e descendo escadas, provavelmente para queimar calorias, já que havia voltado a comer mais. A filha vivia insistindo em fazer ginástica na academia, e a mãe não ia permitir ginástica junto com natação. Carolina não soube responder porque queria fazer este exercício, mas achava que estava melhor com relação à alimentação. Após um tempo, Renato diz que nunca havia se sentido muito próximo da irmã (apesar de demonstrar preocupação com ela...). Para o pai Carolina estava bem melhor, mais bonita, com melhor aspecto. Ela havia engordado 2 kg, o que para ela ainda era muito ruim. (Será que ela dizia isto porque a mãe e o pai achavam bom ela ganhar peso? Seria a expressão de um desejo de autonomia?). O pai também perguntou a Carolina o que a havia levado a procurar um psiquiatra. Ela respondeu que buscava controle emocional, controle da “cabeça” (para o vestibular). Da. Elza disse que este descontrole da filha não era intencional, era provocado pela situação dela (da anorexia ou da separação do casal?). Renato cobrou mais rigor da mãe e lembrou o quanto era desconfortável para ele estar presente na sessão pelo fato de não conseguir falar com o pai. O terapeuta de campo falou do silêncio e seus significados, e das mudanças percebidas no ritmo das sessões: Renato havia trazido de volta uma certa “cerimônia”. Foi feita a proposta de que se tentasse recortes para futuros encontros, contemplando o desconforto de algumas situações (por exemplo, Renato com o pai), cuidando do que cada um precisava para poder falar de si e do outro.
Na oitava sessão seu Rubens disse que achava que deviam continuar a terapia com os recortes (duplas ou trios), com o objetivo de tentar superar as barreiras na comunicação, não só individualmente, mas no contexto geral. Carolina também achava que devia continuar para alcançar o que ainda não havia sido resolvido (por exemplo, melhorar o relacionamento entre os pais, entre ela e o irmão). Na fala de Da. Elza, a presença do filho foi muito importante, venceu uma resistência. Isto era visto por ela como uma vitória, já que muitas vezes Renato não conseguia superar aquilo que o incomodava. Para Da. Elza ainda era um pouco difícil estar na terapia, mas percebendo a filha satisfeita, ficava satisfeita também. Achava que não valia a pena falar sobre o passado (com o ex-marido), mas que tinha que melhorar os conflitos em casa (entre ela e os dois filhos). Da. Elza vivia tentando contemplar os dois, e resolveu começar a conversar com os filhos abertamente sobre estes conflitos. Percebia que todos (incluindo o ex-marido), esperavam isto dela, que ela fosse a porta-voz dos conflitos da família. A terapeuta interrogou se, para sair deste lugar de mediadora, era preciso que Renato entrasse e participasse mais. A terapeuta propôs também pensar sobre possíveis formatos para os encontros seguintes, que ajudassem a mudar de posições (os dois filhos com mãe, os dois filhos com o pai, os irmãos, ou então encontros individuais). Da. Elza voltou a falar de férias, e sobre a questão de procurar apartamento. Aí também existia divergência: Carolina não queria mudar; Da. Elza e Renato queriam muito se mudar para um lugar com mais espaço. Da. Elza falava também de um projeto de tentar fazer mestrado.
Na reflexão falou-se de como os canais (de comunicação) iam sendo corroídos, enferrujados com o tempo, precisando ser substituídos por uma nova “tubulação”. A função de Da. Elza em relação aos filhos era outra, agora que estavam maiores. Ela dizia que não ia desistir dos filhos, e que ter família, além da responsabilidde, é um privilégio. Queria era se afastar daquele lugar de “porta-voz”; agora era a vez deles se colocaram. No final ficou acertado que o próximo encontro seria dali a três semanas, a mãe com os dois filhos. Foi feito também o convite para Carolina e Renato participarem do grupo de adolescentes com pais separados.
Para concluir
Através deste pequeno relato pudemos constatar o quanto a questão dos vínculos desempenha um papel fundamental no processo terapêutico de famílias que lidam com o transtorno da anorexia. Pudemos também “ouvir”, sobretudo nas falas de Carolina, como a mudança, ou a possibilidade de se conectar mantendo a autonomia, ainda era de certa maneira uma dificuldade; por isto a sensação e a descrença de que as coisas pudessem de fato mudar. Confirmamos também as hipóteses de Mia Andersson a respeito do medo e da enorme preocupação da anoréxica com sua mãe: um temor tão intenso, seguido por uma sensação de impotência tão grande, que a jovem desiste de viver, recusando a se alimentar. É bastante comum, na clínica de famílias, encontrarmos situações em que uma jovem torna-se anoréxica em seguida ao divórcio dos pais, como no caso de Carolina.
No trabalho terapêutico com esta família, além de confirmarmos muitas das idéias e premissas acerca da anorexia que foram apresentadas ao longo do texto, pudemos também validar a importância do recurso a novas metáforas sempre que o sistema tende à paralisação, a ficar empacado. Além idéia da conexão-desconexão e das metáforas que foram construídas ao longo do processo terapêutico (como a da nova “tubulação”, um novo sistema de comunicação na família...), a atuação da equipe reflexiva também funcionou como uma metáfora para uma outra possibilidade de comunicação, uma comunicação que gere a diferença, mas que não seja sentida como “invasiva” ou “intrusiva”.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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1. Freud sublinhou o significado marcante das experiências libidinais infantis, no contato da criança com o seio materno e o concomitante estabelecimento da oralidade. A identificação com o seio materno foi descrita por Freud como uma das formas mais precoces de vinculação. Melanie Klein, por sua vez, acreditava que a atitude da criança em relação a seus objetos seria inteiramente determinada por necessidades físicas, por impulsos e fantasias. Através de suas sensações a criança vive e experiencia seus objetos, e com a predominância dos instintos orais na fase precoce do desenvolvimento libidinal, um bom objeto, para o bebê, é o que tem bom sabor e dá prazer à boca. Depois de deglutido, sacia a fome e aplaca as sensações de desconforto. O mau objeto é o que frustra, tem um mau sabor e não é bem aproveitado. De acordo com as idéias kleinianas, haveria tendências para a criança usurpar o “bom objeto”, incorporando suas qualidades, e projetar as qualidades do “mau objeto”, ou seja, introjetar o que é agradável e projetar o que é desagradável (Gilda Kelner, 2004). Mas é Winnicott quem mais se aproxima da perspectiva que partilhamos sobre a origem dos transtornos alimentares, qual seja, a de que os ditos transtornos têm a ver com a capacidade de se relacionar e de se conectar. Winnicott ressalta que, quando faz referência à capacidade adaptativa da mãe suficientemente boa, isto tem apenas pouco a ver com sua habilidade de satisfazer os impulsos orais da criança, ao dar alimentação satisfatória: “É necessário pensar no bebê não como uma pessoa que sente fome, cujos impulsos instintivos podem ser satisfeitos ou frustrados, e sim como um ser imaturo que está continuamente a pique de sofrer uma ansiedade inimaginável. (...) A ansiedade inimaginável tem algumas poucas variedades, sendo cada uma a chave de um aspecto do crescimento normal: 1) desintegração; 2) cair para sempre; 3) não ter conexão alguma com o corpo; e 4) carecer de orientação” (Winnicott, 1982, p. 56-57)
2. Minuchin substitui as explicações lineares a respeito da origem dos transtornos alimentares em um indivíduo por uma explicação sistêmica, em que o portador do sintoma é também o regulador da homeostase familiar e do conflito entre os pais, sendo um elemento-chave na manutenção do sintoma.
3. Cf., para mais detalhes, o tópico “Teoria Feminista” no texto La conexión madre-hija como fuerza curativa, de Mia Andersson (1997).
4. Para preservar as pessoas
envolvidas neste atendimento, os nomes próprios foram substituídos
por nomes fictícios.