ARTIGO

Clínica dos ajustamentos psicóticos: uma proposta a partir da Gestalt-terapia.

Psychotic adjustment clinic: a Gestalt-Therapy proposal.

Marcos José Müller-Granzotto

Rosane Lorena Müller-Granzotto


RESUMO

O texto que ora propomos não é um artigo científico. Ele tem como base nossa experiência clínica de acompanhamento terapêutico de pessoas que se ajustam psicoticamente e se destina a apresentar reflexões iniciais sobre uma possível leitura dos ajustamentos psicóticos à luz da teoria do self e de suas funções fenomenológicas descritas por Perls, Hefferline e Goodman na obra Gestalt Therapy (1951). Conforme tal obra, a psicose é um tipo de ajustamento criador em que a função de ego opera em proveito da suplência do fundo temporal de vivências que, espontaneamente, a função id não reteve ou não pôde articular como base para os processos de contato. O trabalho de intervenção gestáltica que estabelecemos procurou assegurar, às pessoas terapeuticamente acompanhadas, suporte para a constituição de laços sociais necessários às elaborações alucinatórias e delirantes, na forma das quais essas mesmas pessoas tentavam preencher e articular cada qual seu próprio fundo de excitamentos.

Palavras-chave: psicose; ajustamento psicótico; função Id; alucinação; delírio; identificação.


ABSTRACT

The text we here propose is not a scientific article. It is based on our clinical experience of therapeutic accompaniment with patients who adjust themselves psychotically and aimed, as well, at presenting initial reflections on a possible reading of psychotic adjustments under the light of the self theory and of its phenomenological functions described by Perls, Hefferline and Goodman in the work Gestalt Therapy (1951). According to that work, psychosis is a sort of creative adjustment in which the functions of the ego operate on behalf of the supplying of the temporary living experiences background that, spontaneously, the function id could not retain nor articulate as a basis of the contacting process. The gestaltic intervention work we established tried to make sure, to therapeutically accompanied patients, support to the constitution of social bonds necessary to hallucinatory and delirious elaborations, in the form of which these same people tried to fill in and articulate each one his own background of excitements.

Keywords: Psychosis; Psychosis adjustment; Function id; Hallucination; Delirious; Identification.


1. Psicose na “literatura de base” da Gestalt-terapia.

No prefácio à edição de 1945 da Knox Publishing Company da obra “Ego, Fome e Agressão”, Perls anuncia que “no presente momento estou envolvido em um trabalho de pesquisa sobre o mal funcionamento do fenômeno figura-fundo nas psicoses em geral e na estrutura da esquizofrenia em particular” (1942, p. 32). Mais do que sua relevância clínica, a pesquisa veicula uma hipótese que dá continuidade às intuições de Perls relativamente aos ajustamentos neuróticos: que todo ajustamento é um fenômeno figura-fundo e que a “psicopatologia” é tão-somente um mal funcionamento desse fenômeno. Mas, como se Perls soubesse de antemão que não poderia dar cabo deste projeto, anuncia: “(a)inda é cedo demais para dizer quais serão os resultados; parece que vai resultar em alguma coisa” (1942, p.32). E até os dias de hoje estamos no aguardo desses resultados que, entretanto, nunca se fizeram conhecer.

Alguns anos mais tarde, pela pena de Paul Goodman, Perls e seus companheiros de fundação da Gestalt-terapia afirmaram, em trecho que tratava da “neurose como perda das funções de ego”, que: “como distúrbio da função de self, a neurose encontra-se a meio caminho entre o distúrbio do self espontâneo, que é a aflição, e o distúrbio das funções de id, que é a psicose” (1951, p. 235). Para eles, a psicose pode ser entendida como “a aniquilação de parte da concretude da experiência; por exemplo, as excitações perceptivas ou proprioceptivas. Na medida em que há alguma integração, o self preenche a experiência: ou está degradado por completo ou incomensuravelmente grandioso, o objeto de uma conspiração total, etc.” (1951, p. 235). Com certeza, a passagem mais aprofundada escrita por Perls e seus companheiros sobre a psicose. Mas lacônica demais para orientar, por exemplo, uma prática clínica.

Já no livro “Gestalt-terapia explicada”, Perls escreve:


(e)u tenho muito pouco, ainda, a dizer sobre a psicose. [...] O psicótico tem uma camada de morte muito grande, e esta zona morta não consegue ser alimentada pela força vital. Uma coisa que sabemos ao certo é que a energia vital, energia biológica [...], torna-se incontrolável no caso da psicose. [...] o psicótico nem mesmo tenta lidar com as frustrações; ele simplesmente nega as frustrações e se comporta como se elas não existissem”. (1969, p.173-5)


Tudo se passa como se, no enfrentamento das demandas do cotidiano, às quais incluem tanto as necessidades biológicas quanto os pedidos formulados no laço social, o “psicótico” se visse desprovido daquela camada de excitamentos (também denominada de função id), a partir da qual ele poderia operar com seu próprio corpo ou responder aos apelos sociais. O que nos sinaliza para o entendimento de que, para Perls: a psicose poderia ser um ajustamento em que, mais do que realizar os excitamentos (junto às possibilidades abertas pelos dados na fronteira de contato), procura preencher ou organizar o próprio fundo de excitamentos (função id) que, no dizer de Perls, apresenta-se como uma “camada de morte”.

De todo modo, dizer que a psicose é um ajustamento cuja meta é preencher ou organizar o fundo de excitamentos (função id) não é ainda uma conclusão; apenas uma hipótese psicodinâmica. Para ratificá-la, temos de esclarecer os possíveis empregos que os autores deram a expressões como “concretude da experiência”, “função id”, “mal funcionamento do fenômeno figura-fundo”, “preenchimento”, “degradação”, “engrandecimento”, “camada de morte”. Nesse sentido, propomos como norte para a nossa especulação as seguintes perguntas: o que Perls, Hefferline e Goodman querem dizer quando se referem à aniquilação de parte da concretude da experiência? Em que sentido as excitações perceptivas e proprioceptivas constituem a concretude da experiência? Que ações são essas por cujo meio o self “preenche” a experiência, constitui um objeto de conspiração total, se “degrada” ou se “engrandece” incomensuravelmente? Trata-se de uma referência aos quadros clássicos da esquizofrenia, da paranóia, da melancolia e da mania?

Conforme se pode perceber a partir das perguntas norteadoras supra, nosso trabalho toma partido das formulações sugeridas na obra “Gestalt-terapia”. Ele consiste, por conseguinte, numa tentativa de aprofundamento dessas “pistas” legadas pelos fundadores da Gestalt-terapia no sentido de pensar a psicose à luz da teoria do self. Dentre os esforços de elaboração aos quais nos afiliamos vale destacar o trabalho de Sérgio Buarque, do qual temos uma amostra exemplar no verbete “Psicose” do recém-publicado livro “Gestaltês” (2007, p. 177-180). Assim como ele, acreditamos que uma leitura fenomenológica da teoria do self pode nos ajudar a ampliar os rudimentos de elaboração formulados por Perls, Hefferline e Goodman e subsidiar uma prática que já é fato entre nós e que Sérgio Buarque, há muitas décadas, vem inserindo na pauta de discussões de nossa comunidade.


2. Função id: uma leitura fenomenológica.

Conforme sabemos, para Perls, Hefferline e Goodman (1951), a descrição do self – ou, o que é a mesma coisa, a descrição dos processos que constituem essa reedição criativa de nós mesmos no campo organismo/meio – é um trabalho fenomenológico. Afinal, trata-se da descrição do que há de “essencial” nessa experiência. Mais precisamente, trata-se da descrição das “estruturas ou funções” por cujo meio estabelecemos o contato entre nossa atualidade material e nossa inatualidade temporal, seja esta o domínio dos excitamentos que repetimos desde o passado seja ela o horizonte de possibilidades na direção do qual nos lançamos por meio da ação. Eis por que razão Perls, Hefferline e Goodman propõem não uma teoria da personalidade ou uma metapsicologia. Propõem, sim, uma psicologia formal, a qual é a descrição fenomenológica da temporalidade específica do processo de contato entre a atualidade e a inatualidade de nossa experiência; qual seja aquela temporalidade, a assimilação das vivências passadas (o que nos permite a continuidade) e o crescimento (em direção a novidade). Nas palavras dos autores, na a teoria do self trata “da descrição e análise exaustivas de estruturas possíveis”, por cujo meio poderíamos nos representar uma “continuidade” no processo de “crescimento” (retomada criadora) do organismo (PERLS, HEFFERLINE e GOODMAN, 1951, p. 184). Por meio dessa descrição, apartam o sistema self da visada naturalista do cientista e do homem comum; visada esta que interpreta o self como se ele fosse um predicado que pertencesse a uma entidade empírica, quando na verdade, conforme, Perls, Hefferline e Goodman, as entidades empíricas é que são aspectos do sistema self, objetivações (no tempo e no espaço físicos) de nossas vivências de contato. Todavia, conservam a linguagem utilizada, por um lado, pela teoria organísmica de Goldstein e, por outro, pela psicanálise freudiana. Afinal, tais linguagens são capazes de remarcar (ainda que precariamente) o caráter eminentemente holístico (1) das funções por cujo meio o self se manifesta como um sistema de contatos entre a atualidade e a inatualidade, em proveito da constituição de unidades presuntivas; muito embora nem Goldstein nem Freud compreendessem o self de forma temporal.

Baseados nessa forma peculiar de se fazer fenomenologia, Perls, Hefferline e Goodman (1951) propõem a discriminação entre, pelo menos, três funções ou operações básicas do self, às quais eles denominaram de “estruturas” (p. 184) ou “sistemas parciais do self” (p. 177), a saber: a função id, a função de ego e a função personalidade. Elas não são três partes do sistema self, ou três etapas que eu poderia observar numa sucessão cronológica. Ao contrário, as três funções são apenas três pontos de vista diferentes que eu posso ter de uma mesma experiência de contato entre o atual e o inatual, experiência essa que é o próprio sistema self “em funcionamento”. O que significa que, em cada experiência vivida (em cada experiência em que posso verificar um passado buscando se repetir junto às possibilidades abertas pela atualidade material), eu tenho concomitantemente as três funções. A visada de uma ou de outra é uma escolha teórica de quem está a descrever a experiência. A frase “Sou eu que estou respirando neste momento” designa, simultaneamente: i) uma personalidade, uma réplica verbal de um “conteúdo objetivo” (marcado pelo pronome reto “eu”), o qual “representa” a unidade de uma experiência que antecedeu a frase em questão; ii) uma função de ego, que é a ação mesma do dizer, a qual só é possível se retomo, por meio de meu aparelho fonador e de suas possibilidades de articulação motora, uma forma linguageira adquirida no passado ; iii) e uma função id, que é a própria forma linguageira, a qual não é ainda um conteúdo objetivo, uma função personalidade, apenas o índice impessoal de minha ligação mundana com o semelhante e que, no momento do dizer, tenta se repetir, impulsionando a função de ego a criar um novo dizer por meio das possibilidades abertas por minha atualidade física. Falemos um pouco da função id, em cujo comprometimento Perls, Hefferline e Goodman localizam a gênese dos ajustamentos psicóticos, conforme vimos acima.

Por função id, Perls, Hefferline e Goodman (1951, p. 154) compreendem:


o fundo determinado que se dissolve em suas possibilidades, incluindo as excitações orgânicas e as situações passadas inacabadas que se tornam conscientes, o ambiente percebido de maneira vaga e os sentimentos incipientes que conectam o organismo e o ambiente.


Como podemos interpretar essa passagem? Comecemos por entender o que significa “fundo determinado que se dissolve em suas possibilidades”. Algo só está determinado quando capturado por um gradiente, por um sistema interpretativo, enfim, pela linguagem. De sorte que, um fundo determinado não é senão o passado lingüisticamente determinado, o qual, conforme mencionamos acima, corresponde à função personalidade. Todavia, nós esquecemos a maior parte daquilo que nós mesmos, em algum momento de nossa vida, significamos (por meio de formas linguageiras). Com freqüência, surpreendemo-nos com cenas e pensamentos que retornam até nós pelo relato de familiares ou pelas imagens das velhas fotografias. Mas, esse esquecimento não é capaz de aplacar a forma linguageira por cujo meio os significados, agora esquecidos, foram originalmente formulados. Eis em que sentido Perls, Hefferline e Goodman podem falar da dissolução de um fundo determinado. Quando os conteúdos semânticos outrora determinados caem no esquecimento, eles são diluídos. O que não significa que, no fundo, tudo desapareceu. Restou a forma linguageira, a qual está disponível para que eu possa construir, em minha atualidade um juízo de recordação ou um juízo de antecipação sobre o futuro. Mas a forma linguageira não é ela mesma um juízo atual, tampouco um conteúdo semântico (um pensamento) ainda vivo. A forma linguageira é a permanência de algo que surge do passado de maneira espontânea, sem que tenhamos de evocá-la por meio de nossos juízos. Por vezes, somos flagrados emitindo certas expressões, que não sabemos ao certo o que querem dizer (quais os conteúdos semânticos ou pensamentos por ela veiculados), nem quando nós as adquirimos. Esse é o caso das expressões idiomáticas, mas também dos lapsos de linguagem (como o “ato falho”) e do próprio sonho. Ora, a retenção espontânea dessas formas linguageiras – às quais também podemos chamar de “hábitos verbais” - constitui um dos aspectos da função id, ao qual a passagem supra faz referência.

Daqui não se segue, conforme a mesma passagem, que a função id se restrinja aos hábitos verbais. Ela inclui também as formas oriundas da dissolução da consistência orgânica de nossa fisiologia e de nossa experiência perceptiva. Por outras palavras: a função id inclui nossos hábitos motores e perceptivos. Tal como os hábitos verbais, os hábitos motores e perceptivos não dependem dos conteúdos (físicos ou semânticos) aos quais estiveram originalmente associados. Ainda que a bicicleta na qual eu tenha aprendido a pedalar tenha se decomposto por inteiro, ainda que a paisagem onde aprendi a distinguir o fruto “verde” do “maduro” tenha sido inundada pelo lago de uma hidroelétrica, a ação de pedalar ou o “tino” para apanhar o fruto que me interessa, ambos permanecem como hábitos que eu repito sem que eu tenha de produzi-los a partir do zero. Trata-se de formas as quais não estão mais acompanhadas das matérias que lhes deram origem. Elas mesmas não existem em um lugar ou em um momento do espaço e do tempo objetivos. São ocorrências vagas, que nos advém sem que as tivéssemos solicitado, como o movimento de proteção dos ouvidos ante um som muito estridente. De onde se segue que os autores se refiram a função id como se ela também fosse uma espécie de percepção vaga, uma sorte de corpo agigantado, sem limite ou definição objetiva (o que significa dizer: sem conteúdo no espaço e no tempo da física): “(o) Id então surge como sendo passivo, disperso e irracional; seus conteúdos são alucinatórios e o corpo se agiganta enormemente” (PHG, 1951, p. 187).

De sorte que, mais além dos conteúdos semanticamente determinados com os quais nos representamos o passado, mais além da própria existência ôntica de nosso passado, seja ele perceptivo ou lingüístico: a função id é a sobrevivência anônima e não localizada (no espaço e no tempo da física) de nossos hábitos perceptivos e linguageiros. E aqui é muito importante não confundirmos tais hábitos com as representações sociais, com os conteúdos semânticos (ou pensamentos) por cujo meio “conjeturamos”, a partir de um sistema qualquer, como o modelo físico do tempo e do espaço, a “existência empírica” (ou natural) de nosso passado ou de nosso futuro. Tais representações não são mais que nossa função personalidade, nossa tentativa imaginária de dar “visibilidade” a esse “invisível” de nosso cotidiano: o hábito.

Mas a função id, conforme a passagem acima, não se limita ao nosso corpo habitual, às nossas formas habituais adquiridas, sejam elas sensíveis, motoras ou linguageiras. A função id também inclui o fato de essas formas serem capazes de imprimir, às nossas experiências cotidianas, uma espécie de orientação intencional (awareness) que se sobrepõe ao nosso controle judicativo, como se fosse um excesso que nunca conseguimos deter ou controlar. Eis aqui a emoção ou, nas palavras dos autores, “os sentimentos incipientes que nos conectam o organismo e o ambiente” (1951, p. 154). Os sentimentos não são entidades empíricas. Nem mesmo suas partes são localizadas no espaço e no tempo da física. Trata-se, antes, de uma totalidade espontânea, de uma gestalt que enovela, de maneira indeterminada, os muitos hábitos retidos como corpo habitual. Essa totalidade, a sua vez, impõe-se a nossa atualidade (ao nosso corpo atual) como um impulso para a ação, como uma orientação para a ação. De onde se segue que, como aspecto da função id, os sentimentos (ou emoções) dizem respeito ao próprio efeito de orientação que os hábitos perceptivos e linguageiros exercem junto às nossas funções sensomotoras e linguageiras atuais.

Tais reflexões nos permitem enfim formular, ao menos provisoriamente, que a função id é, de um lado, a “retenção” de algo que não permanece como conteúdo, apenas como hábito: forma impessoal e genérica, presença anônima do mundo em mim. De outro lado, id é a “repetição” desse hábito, sua reedição como orientação tácita de nossa vida atual: sentimento (ou emoção). Em ambos os casos, id significa a “impossibilidade” de eu me desligar do mundo, a manifestação “invisível” do mundo em mim, a “generalidade” de minha inserção na vida dos semelhantes e das coisas, a “ambigüidade” permanente de minha existência. Mas, também, id significa o todo emotivo que orienta minha ação e meu dizer na atualidade. Trata-se daquilo que Perls, Hefferline e Goodman denominaram de “concretude de nossa experiência”, à qual, uma vez retida, oferece-se como fundo de preteridade e orientação afetiva para a experiência de contato.

Para nossos propósitos atuais, interessa-nos tão somente remarcar essas duas operações fenomenológicas fundamentais implícitas à função id, que é a retenção e a repetição do retido junto aos novos dados na fronteira de contato (entre o passado e o futuro). A retenção não é diferente da formação do hábito. Ou, o que é a mesma coisa, a retenção não é diferente da assimilação de parte da experiência de contato, precisamente, daquela parte denominada de “forma”. Tal forma pode ser fixada como padrão motor, sensitivo ou articulação verbal. Já a repetição, a qual sempre depende do surgimento de um dado novo na fronteira de contato, não é diferente da configuração das formas retidas enquanto um fundo disponível para o novo dado que se apresenta. Ela corresponde ao primeiro passo para a formação de uma gestalt, de um todo indeterminado em torno do dado na fronteira de contato. A repetição é a própria orientação afetiva que se impõe ao ego na fronteira de contado. Retenção e repetição, em conjunto, constituem aquilo que Perls, Hefferline e Goodman denominaram de awareness sensorial.

E, conforme nosso entendimento, quando Perls, Hefferline e Goodman afirmam ser a psicose a “aniquilação de parte da concretude da experiência” é ao comprometimento das operações elementares da função de id que eles se referem. Tema que vamos, então, tratar a seguir.


3. Psicose como um ajustamento.

A partir das pistas legadas por Perls, Hefferline e Goodman e de nossa leitura fenomenológica da função id, propomos à comunidade de gestalt-terapeutas a seguinte hipótese psicodinâmica: a psicose poderia ser definida como uma forma de ajustamento do sistema self em que os dados vivenciados (na fronteira de contato entre o passado e o futuro desse mesmo sistema): i) ou não são assimilados e, nesse sentido, retidos como fundo de excitamento de novas vivências, ii) ou, uma vez assimilados, não se integram entre si, de modo a também não se constituírem como fundo para os novos dados na fronteira de contato. De certa maneira, é como se as experiências de contato: i) ou não pudessem ser “esquecidas” e, nesse sentido, inscritas como uma estrutura habitual, ii) ou não pudessem estabelecer, depois de retidas, uma relação espontânea capaz de servir de orientação intencional (ou afetiva) para as novas experiências de contato. Por esse motivo, as novas experiências aconteceriam privadas de uma intencionalidade específica ou, conforme a linguagem própria da Gestalt-terapia, desprovidas de awareness sensorial. Em rigor, nessa forma de ajustamento, a função id (que justamente se caracteriza pela formação e mobilização do fundo de excitamentos) não cumpriria seu papel, razão pela qual a função de ego (caracterizada pela ação motora e linguageira) estaria desprovida dos “motivos” para lidar com o dado na fronteira de contato. O sistema self seria, então, acometido de uma espécie de “rigidez (fixação)” (1951, p. 34), tal como aquela observável nos comportamentos por vezes descritos pela psiquiatria.

Aqui é preciso introduzir um parêntesis, em que possamos distinguir nossa hipótese sobre a “psicose como um ajustamento” da noção psiquiátrica de psicose. Afinal, de um modo geral, a psiquiatria se ocupa mais do malogro de nossas tentativas de elaboração social daquilo que em nós não se retém ou se articula espontaneamente; e menos de nosso esforço para estabelecer um ajustamento capaz de preencher ou articular, junto aos dados na fronteira de contato, o fundo (id) que deveria poder se repetir. Por outras palavras: a psiquiatria não descreve aquilo que, aqui, estamos chamando de ajustamento psicótico propriamente dito, mas a falência social dele. Exceção para a psiquiatria fenomenológica descritiva de Minkowsky, Straus e Von Gebssathel, para a Daseynanálise de Binswanger, Von Bayer e seguidores (Kisher, Häffner, Tellenbach e Tatossian), para a antropologia compreensiva de Zutt e Kulenkampf, para a anti-psiquiatria de Ronald Laing, David Cooper, Maxwell Jones e John Rosen e, muito recentemente, para a psiquiatria gestáltica de Wilson van Dusen e Sérgio Buarque. De um modo geral, podemos dizer que esses autores (2), assim como Jacques Lacan (em seus muitos trabalhos dedicados a pensar a psicose(3) ), preocupam-se em fazer a distinção entre: i) a psicose enquanto um modo de funcionamento ou estrutura e ii) a psicose como um fenômeno propriamente patológico, o que significa dizer, como um quadro em que os envolvidos perdem a capacidade para administrar o próprio estado psíquico (4).

Feito esse parêntesis, voltamos a insistir na importância de não se confundir o “surto” psicótico com o “ajustamento” psicótico, tal como o estamos propondo. O surto psicótico consiste no estado aflitivo que acomete aqueles que não encontram, nos diversos laços sociais dos quais participam, condições para estabelecer ajustamentos psicóticos. Os ajustamentos psicóticos, a sua vez, são tentativas socialmente integradas de organização do fundo de excitamentos espontâneos (5).

Nesse sentido, quando se diz que, nos ajustamentos psicóticos, percebemos uma espécie de rigidez, tal não tem relação com aquelas respostas comportamentais aparentemente desorganizadas, com os quais, na maioria das vezes, costumamos caracterizar a psicose como uma sorte de “doença”. A rigidez tem antes relação com a “repetição” das tentativas de preenchimento e articulação daquilo que, espontaneamente, não se organiza em alguns momentos de nossa vida, a saber, nosso próprio desejo, nossos próprios excitamentos. Na ausência deles, alucinamos, deliramos e identificamos, nos dados materiais presentes em nosso campo de relações, possíveis representantes daquilo que nossos excitamentos haveriam de ser. Muitos consulentes (6), por exemplo, insistem em perguntar, ao terapeuta, se o que eles estão fazendo é certo ou errado, adequado ou não adequado. Os terapeutas podem nem desconfiar que, nessas solicitações, possa estar acontecendo um ajustamento psicótico. É verdade que, algumas vezes, os consulentes fazem essas perguntas por que tentam manipular o clínico, atribuindo a este uma responsabilidade da qual querem se desincumbir, o que poderia perfeitamente bem ser entendido pelo clínico como um ajustamento neurótico (7). Mas, outras vezes, os consulentes fazem-nas porque simplesmente não conseguem compreender o que lhes é solicitado no dia-a-dia, ou organizar o que sentem ante as solicitações. E é possível que possam “identificar” na palavra do terapeuta uma forma de preencher ou organizar o fundo de excitamentos que, para eles, não se define.

Razão pela qual, por mais rígidos que sejam, nos ajustamentos psicóticos, há um intenso trabalho de criação na fronteira de contato. O ajustamento psicótico não é uma doença. Ele também é um ajustamento criador, para usar a letra de Jean-Marie Robine (8). É uma forma de viver face às condições de campo que a ele se impõem e que tem relação com um funcionamento atípico da função id. Nos ajustamentos psicóticos, o self inventa - junto aos dados na fronteira de contato - a história que ele não pode reter ou espontaneamente arranjar. Quando bem sucedida, essa invenção vem substituir os excitamentos que, diante do dado, i) ou não se apresentaram, ii) ou se apresentaram de modo falhado ou, ainda, iii) se apresentaram de modo desarticulado.


4. Ações da função de ego nos ajustamentos psicóticos.

O agente dessa invenção é o aspecto do self denominado de função de ego. A função de ego, entretanto, não opera do mesmo modo como ela operaria se tivesse a sua disposição um fundo espontaneamente articulado. Não se trata de encontrar, no dado, possibilidades de expansão do fundo de excitamentos disponível. Afinal, nos ajustamentos psicóticos, esse fundo não está disponível, ao menos como um todo organizado, como uma orientação intencional para a ação do ego. Ou, o que é a mesma coisa, nos ajustamentos psicóticos, a awareness sensorial está comprometida (ausente, falhada ou desarticulada) e, conseqüentemente, ela não se constitui como base, como motivo para a ação da função de ego junto aos dados na fronteira. Ao ego resta então operar de um modo diferente. Em vez de buscar, nos dados, possibilidades de expansão do excitamento (awareness sensorial), ele procura no dado (seja este o corpo próprio, o corpo de outrem, uma palavra ou uma coisa mundana) o excitamento que a função id ela própria não forneceu, ou forneceu a maior, como um elemento desarticulado. Tudo se passa como se o dado pudesse preencher aquilo que, espontaneamente, não se apresentou; ou, como se o dado pudesse dar um limite à angústia proveniente de múltiplos excitamentos que, por conta própria, não se distinguiram quanto a sua relevância ou emergência.

Até o presente momento, nossa pesquisa pôde identificar três tipos fundamentais de ação do ego nos ajustamentos psicóticos: os ajustamentos psicóticos de ausência de fundo (autismos), os ajustamentos psicóticos de preenchimento do fundo e os ajustamentos de articulação de fundo. A diferença nessas ações tem relação com o modo como o fundo se caracteriza no momento da vivência do contato.


4.1 Ajustamentos psicóticos de ausência de fundo (autismos).

Conforme a leitura que pudemos fazer até aqui, há certos tipos de ajustamento em que a função de ego está presente, mas opera como se não dispusesse de um fundo de co-dados retidos. Denominaremos tais ajustamentos de “ajustamentos de ausência de fundo” ou “autismos”. Neles, a função id apresenta-se severamente comprometida. Nossa hipótese é de que tenha acontecido uma falha na operação de retenção de formas relativas às vivências primitivas de interação intercorporal da criança no meio. Por outras palavras, a intersubjetividade primária, nos termos da qual o infante inicia seu processo de constituição de uma identidade especular, não se deixa fixar como um fundo assimilado. Tudo se passa como se os gestos desempenhados pelo infante na fronteira de contato não visassem coisa alguma, tampouco respondessem aos apelos vindos dos semelhantes.

Esse é o caso, por exemplo, dos quadros tradicionalmente descritos a partir dos critérios diagnósticos do Dr. Kanner. A função de ego é refratária aos apelos ou necessidades advindas dos semelhantes, razão pela qual sua ação parece acontecer sem meta, como se fosse acometida de uma desorientação. O isolamento, concretizado na forma de um mutismo, parece oferecer um tipo de satisfação sem objeto, sem corpo.

Há, além desses quadros, aqueles classificados como síndrome de Asperger. Diferentemente dos primeiros, os segundos conseguem circular muito bem em determinados contextos produzidos de maneira simbólica. Ainda assim, nesses casos, o sofredor não consegue agregar, a essa produção cultural, um fundo emocional. Mesmo dispondo de um verbalismo, trata-se de um verbalismo abstrato que raramente é capaz de acompanhar as sutilezas do emprego cotidiano, como o emprego metafórico, por exemplo. De todo modo, podemos identificar uma forma metonímica de produzir ligações entre determinadas classes de abstração, onde se deixa verificar uma certa satisfação.

Nesse ponto é importante esclarecer que, diferentemente daqueles que defendem que o autismo é primordialmente uma patologia orgânica ou uma síndrome invasiva, sem traços tipicamente psicóticos, como a alucinação e o delírio, acreditamos se tratar de um ajustamento que partilha, com as outras formas de psicose, um traço comportamental comum, precisamente, a criatividade aleatória – refratária aos apelos sociais, especialmente àqueles formulados de maneira primitiva, na forma de uma comunicação intercorporal não lingüística, como a que estabelecemos por meio do olhar, das expressões faciais e de nossa gestualidade pragmática. Tanto nas esquizofrenias quanto no autismo, por exemplo, podemos testemunhar ações desprovidas de metas que pudessem ser reconhecidas no laço social. Assim como os “esquizofrênicos”, os autistas produzem respostas que, mais do que exprimir um entendimento ou acolhida, tentam deter as demandas afetivas em proveito de um modo de satisfação totalmente alheio às expectativas abertas pelos demandantes. Tudo se passa como se, em ambos os casos, a função de ego tentasse aplacar a angústia que, a partir da demanda, anunciou-se como ausência de fundo intercorporal. É verdade que podemos encontrar, associado ao ajustamento autista, um quadro de deficiência cognitiva em decorrência de uma falha anatômica ou neurofisiológica. Mas essas “deficiências” não se confundem com o ajustamento autista. Afinal, mesmo entre pessoas anatomicamente “normais” ou fisiologicamente “compensadas”, podemos verificar comportamentos alienados, o que nos faz crer que o autismo tem menos a ver com o efeito comportamental de uma disfunção orgânica e mais relação com um tipo de resposta em face da inexistência de um fundo intercorporal primário, o qual não é uma instância orgânica, localizada no tempo e no espaço da física, mas uma inatualidade fenomenológica.

De toda sorte, somos partidários do entendimento de que o autismo é um ajustamento psicótico especial, uma vez que, diferentemente de todos os outros, ele não consegue elaborar, nas relações sociais, aquilo que o exige, precisamente, a angústia decorrente da ausência de fundo intercorporal. Por isso, independentemente dos grupos sociais em que esteja inserido, as pessoas que se ajustam de modo autista sempre se comportarão de modo autista; coisa que não verificamos noutros ajustamentos psicóticos: quem se ajusta de maneira alucinatória (esquizofrênica), por exemplo, nem sempre responde de maneira alucinatória, podendo, inclusive, responder de maneira manipuladora (ajustamento neurótico).

Ainda assim, mesmo no caso dos ajustamentos autistas mais graves, como os de Kanner, podemos observar uma tolerância às intervenções terapêuticas que buscam estabelecer uma espécie de inclusão pedagógica. A proposta de intervenção é que o terapeuta possa colaborar para a ampliação do corpo daquele que se ajusta de maneira autista; o que significa dizer, colaborar para a ampliação da forma mais elementar da função de ego no autista. Dessa forma, o autista terá a chance de “responder”, não a partir de um fundo de excitamentos intercorporais, certamente, mas a partir do que foi fabricado, produzido pedagogicamente como linguagem. Aliás, é importante frisar que, nesses ajustamentos, dificilmente essas fabricações pedagógicas conseguem agregar algum valor afetivo. Em decorrência de um longo trabalho de acompanhamento terapêutico, uma consulente conseguiu, passados alguns anos, assimilar um vocabulário com o qual conseguia responder às demandas do meio social ao qual pertencia. Um dia após o falecimento de sua tia, a consulente foi levada ao consultório por sua mãe, a qual, diante da terapeuta, dirigiu a seguinte questão à filha: “você não está triste com a morte da minha irmã? Como você pode não chorar a morte da sua tia, que lhe alimentava todos os dias? Você não vai dizer nada?” Ao que a consulente respondeu: “Eu não sei dizer. Só sei falar”. A fala aprendida não arrastava consigo um fundo afetivo. A consulente não podia “dizer” nenhum sentimento, pois não os tinha. Quando muito, debatia-se com a angústia de não conseguir aplacar a demanda da mãe. Ainda assim, as palavras aprendidas – boa parte delas em terapia - criaram para ela a possibilidade de um laço social, ainda que aleatório, onde ela se sentia defendida daquilo que ela não podia entender, precisamente, a demanda afetiva formulada no comportamento choroso e nos ditos inconformados da mãe.


4.2 Ajustamento psicótico de preenchimento de fundo.

Nesses casos, a função de ego atua como se estivesse a preencher, por meio de alucinações de toda ordem (auditivas, visuais, cinestésicas e verbais, como as logolalias e as ecolalias), a inexistência dos excitamentos com os quais poderia responder ao apelo do semelhante na fronteira de contato. A demanda do semelhante, na fronteira de contato, desencadeia em mim a compreensão de que, nessa experiência especificamente (nesse sistema self, particularmente), não tenho como responder, não tenho como fazer cessar o apelo que a mim é dirigido. Diferentemente do que acontece, caso me ajustasse de modo autista, compreendo que se quer algo de mim, disponho de um fundo intercorporal que me permite compreender estar havendo, entre eu e o semelhante, uma situação de contato. Ainda assim, a função de ego – que estabelece nesse momento minha singularidade no campo - não dispõe de parâmetro para interagir com esse apelo que, de alguma maneira, solicita o que não sei de forma alguma. Compreendo que algo é pedido, mas não sei o que se pede. A palavra, o gesto, a ação demandada são incompreensíveis. Tudo se passa como se a função de ego na qual estou polarizado não fizesse parte da comunidade lingüística do demandante, não participasse do mesmo mundo, do mesmo sistema self.

Ora, aqui, como nos ajustamentos autistas, a função de ego está às voltas com a ausência de um vivido (co-dado) que não foi retido. Porém, diferentemente dos ajustamentos autistas, os vividos não retidos não dizem respeito às experiências intercorporais que constituem nossa intersubjetividade primária (a percepção do olhar, da voz, do gesto do semelhante e assim por diante). Dessa vez, o não retido tem relação com as vivências de contato instituídas pela linguagem, especificamente com as vivências culturais em que se procura deslocar, para o campo simbólico, os excitamentos primitivos originalmente vividos de maneira corporal. Por outras palavras, o que não se retém é o simbolismo na forma da qual transformamos em “valor” social o afeto, a agressividade, a curiosidade, enfim, toda ordem de experiência até então vivida como uma intersubjetividade primária, intercorporal.

Ora, diante de um símbolo que demanda um fundo de outros símbolos investidos de um valor afetivo, se estes outros símbolos não estiverem retidos, a função de ego precisa produzi-los ou, o que é a mesma coisa, a função de ego necessita aluciná-los (9). Nesse sentido, é freqüente observarmos ações em que o agente do contato parece abandonar as possibilidades abertas pelo dado na fronteira para se ocupar de algo anacrônico. É como se ele abandonasse as evidências em proveito de um irreal que não está anunciado como uma possibilidade a partir dos dados, mas consiste em algo estranho, não disponível, precisamente, o excitamento que deveria dar sentido ou tornar o dado na fronteira algo desejável. Um consulente relata seu grande desconforto ao cruzar por homens mais velhos onde quer que esteja. Se, por um instante, um desses homens lhe dirige a palavra, ele sente seu pescoço formigar, como se a resposta estivesse presa na garganta. Ele produz com a garganta a resposta que não encontra em sua linguagem, não porque não domine o idioma, ou esteja acometido de qualquer distúrbio fonológico ou cognitivo. Não há em seu fundo de pensamentos uma representação que possa ser repetida naquele instante. A alternativa do ego, naquele momento, foi responder por meio de uma alucinação sinestésica. O comportamento que aqui – como em todos os ajustamentos de preenchimento de fundo - podemos observar parece algo dividido, o que poderia justificar o emprego do termo clássico “esquizofrenia” para designá-los. Sem dúvida, a fenomenologia clássica dos comportamentos esquizofrênicos ajuda-nos a compreender certas características típicas que julgamos constitutivas desses ajustamentos, especialmente, a resposta paranóide e a catatonia. Porém, para não corrermos o risco de vermos confundidos os ajustamentos psicóticos e os quadros psiquiátricos de esquizofrenia, optamos por denominar os ajustamentos de preenchimento da seguinte forma: alucinação paranóide e alucinação catatônica. Afinal, mais do que a suposta “divisão”, é a presença da alucinação o que dá especialidade aos ajustamentos de preenchimento.


4.2.1 Alucinação (ou esquizofrenia) paranóide.

No caso da alucinação (ou esquizofrenia) paranóide, o que fundamentalmente caracteriza a ação da função de ego é a ostensiva tentativa de utilização do dado na fronteira como um meio para preencher a ausência de fundo cultural, o qual não se inscreveu. Esse dado, na maioria das vezes, é o próprio corpo no qual se verifica a presença de uma função de ego. Esta usa o corpo (o próprio e o do semelhante) para fazer às vezes daquelas palavras, daquelas instituições culturais que tornariam desejáveis as outras palavras, as outras instituições produzidas na fronteira. Assim, o corpo não só é empregado de modo a buscar algo ausente, mas, sobretudo, para representar uma ausência cultural. O corpo, nesses termos, assume o valor de um corpo-palavra, tal como naqueles episódios em que o esquizofrênico, para responder a uma demanda sobre o quanto ele “gosta” do calor, põe sua mão numa chama. Ou, então, para responder à questão: “você está com medo?”, ele “literalmente vê” uma figura bizarra (a qual, entretanto, nunca é definida, investida de predicados socialmente aceitos, como no caso das paranóias, sobre as quais falaremos mais à frente).

A reação imediata às demandas sociais, entretanto, é precedida por um uso do corpo para fazer eco. É o caso das ecolalias, logolalias e todas as formas de repetição, por meio das quais a função de ego, nesses ajustamentos, faz duplo aos semelhantes no laço social. As alucinações produzidas a partir do corpo parecem oferecer, nesse tipo de ajustamento, uma sorte de satisfação, porquanto detém, por um instante, a demanda simbólica que vem do semelhante.

A intervenção terapêutica, nesses casos, consiste em colaborar para que a função de ego no consulente possa “alucinar” o fundo de que não dispõe. O terapeuta, em algum sentido, “empresta” sua percepção e sua linguagem para que os consulentes possam, num primeiro momento, se apropriar das formas com as quais criam respostas. Trata-se de um trabalho de pontuação dos movimentos, repetições, logolalias, enfim, quaisquer alucinações que estejam sendo produzidas. A idéia é ampliar essas alucinações e tratar delas como se fossem “jogos”, “atividades” das quais o próprio terapeuta pudesse participar. Essa estratégia não só valida a função de ego no consulente como amplia enormemente a contratualidade social dos ajustamentos por ela produzidos. Não se deve, em hipótese alguma, desqualificar, ou mesmo interpretar a alucinação produzida, como se ela tivesse um sentido, algo por se descobrir. Ao contrário, é preciso perceber que a alucinação é indício da autonomia da função de ego no consulente, autonomia essa que deve ser secretariada, protegida e, na medida do possível, ampliada.


4.2.2 Alucinação (ou esquizofrenia) catatônica.

A alucinação (ou esquizofrenia) catatônica é um desdobramento da alucinação paranóide. Trata-se de um ajustamento em que a função de ego, em vez de continuar produzindo novas alucinações que pudessem deter as demandas sociais na fronteira de contato, procura então se fixar naquelas já produzidas. Trata-se de uma cronificação das alucinações paranóides, que ficam parcialmente fixadas. Aliás, a fixação da função de ego em alucinações corporais já estabelecidas é a forma típica da alucinação (ou esquizofrenia) catatônica. Se, na paranóide, o corpo era, simultaneamente, um corpo-palavra, agora ele aparece como um resto de palavra, um vestígio de uma alucinação que outrora talvez tivesse funcionado. Nesse sentido, testemunhamos na fronteira comportamentos repetitivos, como se fossem rituais. Em verdade, trata-se de expedientes que, alguma vez, obtiveram algum êxito. Mas, depois disso, não foram assimilados como fundo de novas criações. Eles permanecem apenas como vestígio de um conteúdo remoto; e não como uma forma, como um hábito que pudesse ser retomado enquanto fundo de novas criações. Razão pela qual observamos, no decurso dos anos, uma deterioração das alucinações, que ficam reduzidas a um conteúdo mínimo, a um gesto mínimo.

Essa deterioração se agrava a ponto de alcançarmos o ostracismo, a desistência ou abandono da palavra-corpo. Nesses casos, o embotamento e o isolamento social são constantes. O quadro evolui para um estado de mutismo, que muito se assemelha ao mutismo do autismo. Mas, diferentemente deste, em que não há resposta aos apelos elementares constituídos no campo de nossa intersubjetividade primária (olhar, gestualidade...), o mutismo das alucinações (ou esquizofrenias) catatônicas é sempre uma deliberação, uma resposta aos apelos sociais. A função de ego efetivamente delibera em favor do isolamento e do mutismo, razão pela qual empregamos o termo “mutismo secundário” para designá-lo.

A intervenção aqui não é diferente daquela recomendada no caso dos ajustamentos alucinatórios paranóides. Ela consiste na ampliação do vigor criativo da função de ego no consulente. Aqui, entretanto, o clínico dispõe de um fragmento de simbolização, o qual justifica não uma interpretação, mas uma sorte de trabalho “arqueológico”, como se a alucinação original pudesse ser resgatada. Esse trabalho é importante na medida em que pode favorecer a assimilação dos ajustamentos anteriores. Tudo se passa como se, ao emprestar sua “memória” ao consulente, o terapeuta favorecesse a transformação da alucinação em hábito e, nesse sentido, em fundo assimilado.


4.3 – Ajustamento psicótico de articulação de fundo.

Nos ajustamentos psicóticos de articulação de fundo, o que se passa é possivelmente algo bem diferente do que acontecia nos dois anteriores. Conforme nossa hipótese acerca da gênese dos ajustamentos psicóticos, diferentemente dos ajustamentos de preenchimento, nos de articulação, há retenção. As vivências de contato anteriormente estabelecidas são assimiladas, sejam elas intercorporais ou culturais. Acontece, entretanto, que a falha agora repousa no processo de repetição desse fundo junto aos novos dados na fronteira de contato. Ou, mais precisamente, os dados retidos não comparecem, junto ao dado, como um fundo de excitamento articulado, integrado entre si, como um só sentimento ou orientação intencional. É como se os muitos co-dados retidos se apresentassem como fundos diferentes, havendo não apenas um fundo, mas muitos.

Em decorrência dessa desarticulação, também aqui o sistema self não dispõe de uma orientação intencional espontânea (awareness sensorial), ao menos de uma orientação unificada. Conseqüentemente, a função de ego não sabe com qual fundo operar, a partir de qual parâmetro considerar o dado. Por conta disso, não se forma, para a função de ego, uma figura definida. A função de ego precisa antes se ocupar do fundo, articulá-lo, estabelecer para os muitos co-dados uma organização que, espontaneamente eles não têm.

Para ilustrar esse quadro, retornemos a um exemplo clínico. Aquele mesmo consulente que produzia, com sua garganta, alucinações sinestésicas para responder às demandas dos homens mais velhos, noutra ocasião chegou à clínica sem saber exatamente o que queria daquele lugar. A secretária, à qual ele via semanalmente, convidou-o para tomar um café no refeitório da instituição. Lá ele encontrou a faxineira, com a qual, nessa altura, já tinha uma relação de amizade. Acontece que apareceu um gato, que rapidamente atraiu a atenção do consulente para a área externa da instituição. Foi quando viu os filhotes de cão labrador no terreno do vizinho. E já não sabia se estava ali para comprar um filhote, adotar um gato, contar as novidades para a amiga faxineira, tomar café com a secretária, ou fazer terapia... Até que, já na sala com seu terapeuta, o consulente reconheceu, no ruído produzido pelo ar condicionado, a regularidade de uma linguagem, a qual, uma vez decodificada, revelaria uma ameaça de morte que o persegue em seu ambiente de trabalho, onde também ouve os mesmos ruídos. Na semana seguinte, ele chega à sessão dizendo que não tem mais nada para falar, porque suas falas são falas mortas, “literalmente” mortas e que não surtirão efeito algum nem mesmo para o terapeuta. E, do nada, no meio da sessão, ele se apercebe que as palavras do terapeuta são verdadeiras soluções para os seus problemas, verdadeiras epifanias, de onde infere entusiasmadas conclusões sobre a importância desse terapeuta em sua vida. Ora, o que aqui se passa?

O que nós podemos observar no modo como a função de ego opera nesse caso e em todos aqueles em que estiver acontecendo um ajustamento de articulação de fundo é que ela estabelece ao menos duas estratégias de organização.

Por um lado, temos a estratégia que consiste em articular os vários co-dados como se tratasse de algo que não pertencesse ao self. Trata-se de uma estratégia de alienação dos co-dados junto aos dados que se apresentam na fronteira de contato. Conseqüentemente, o self não reconhece como seus os co-dados que chegam até a fronteira de contato. Para tanto, a função de ego fragmenta, de maneira delirante, o dado em múltiplas partes, de modo a poder atribuir a cada uma delas os múltiplos co-dados que se apresentam. O consulente acima descrito fragmenta sua estada na clínica em múltiplas partes, passando de uma a outra (da recepção para o cafezinho na cozinha, do cafezinho para o gato na área externa da instituição, desta para o quintal do vizinho) como se, nenhuma delas fosse suficiente para aplacar a angústia de não saber o que, enfim, ele procura, o que ele busca naquele lugar. Eis aqui o delírio dissociativo. Mas a função de ego também pode tentar articular os múltiplos co-dados, os diferentes hábitos que se apresentam de maneira desorganizada, elegendo no meio um dado que àqueles unifique. Com muita freqüência, esse dado é um objeto ameaçador e que, nesse sentido, deve ser excluído, tal como no caso daquela sessão em que, ao ouvir os ruídos “ameaçadores” do ar condicionado, o consulente exigiu que o clínico desligasse o aparelho. Temos aqui um ajustamento que doravante denominaremos de delírio persecutório.

Por outro lado, a função de ego pode tentar se “identificar” com esses co-dados. Para tanto, ou a função de ego visa, nessa desarticulação, a perda da unidade, a perda da integração espontânea do self ou, o que é a mesma coisa: a morte do excitamento (tal como na chegada do consulente supra à sessão seguinte àquela em que ele se ajustou de modo delirante). Temos aqui, então, uma identificação depressiva. Ou, então, a função de ego intenciona, na desarticulação do fundo, uma sorte de ampliação ao infinito do sistema self. Para tanto, procura agregar, as suas próprias possibilidades, aquelas que ele reconhece em um semelhante com o qual se identifica (no caso do exemplo supra, o próprio clínico). Eis aqui um ajustamento de identificação eufórica.

Por meio dessas duas estratégias (de alienação delirante ou de identificação), o que a função de ego está tentando fazer é estabelecer um limite para esse fundo desarticulado. Por meio desse limite, a função de ego torna tal fundo desarticulado algo suportável e, em alguma medida, parâmetro para que se possa assumir ou rejeitar as novas possibilidades abertas pelos dados na fronteira de contato.


4.3.1 Delírio dissociativo (ou paranóia dissociativa).

A principal característica desse tipo de ajustamento é a fragmentação do dado na fronteira em múltiplas partes desconectadas entre si. Tal fragmentação corresponde a um delírio dissociativo, o qual permite ao ego atribuir, a cada parte, um dos co-dados que esteja a sentir de maneira desarticulada. Por outras palavras, trata-se de uma estratégia delirante, em que o dado, seja ele o corpo próprio, uma coisa ou o corpo do semelhante, é decomposto em tantas partes quantas forem necessárias para que os múltiplos co-dados (excitamentos) possam ser dissipados.

Em decorrência desse expediente, é freqüente testemunharmos tentativas de ajustamento em que alguém, por exemplo, fragmente seu corpo em várias partes isoladas, como se se tratasse de uma comunidade de sujeitos separados. Ele trata os braços, o cabelo, as pernas, os pulmões, o coração, como se fossem entidades diferentes. Cada órgão tem a sua doença, convalesce de um excitamento diferente. Aliás, a doença é sempre algo buscado, pois é uma forma de decretar que o excitamento está se esvaindo, indo embora. Nesse sentido, podemos falar aqui de uma dissociação hipocondríaca.

Ainda nesse tipo de ajustamento, podemos freqüentemente observar a errância comportamental. A pessoa, a cada momento, está assumindo uma atividade nova, deixando para trás as outras e assim sucessivamente. Ele desliza metonimicamente de uma tarefa a outra, de uma direção a outra, de uma dívida a outra, de uma relação a outra, de um trabalho a outro. Não porque ele quer tudo, mas para poder se livrar do anterior e, um por um, de todos. Afinal, cada via, cada dado que se apresenta é uma ocasião para ele eliminar isso que ele sente, mas não consegue compreender como seu, precisamente, o fundo de excitamentos.

Em certa medida, esses delírios de fragmentação dão ao sistema self um certo alívio, uma dissipação dos excitamentos, o que nos permite falar do delírio dissociativo como a satisfação possível desse tipo de ajustamento.

A intervenção nesses casos consiste em assegurar, ao consulente, que ele possa desfrutar de muitas alternativas. O terapeuta zela para que o consulente possa continuar “caminhando”, possa continuar buscando novas formas de alienação de seus excitamentos. Não se trata de fazer com que o consulente se responsabilize pelas suas escolhas, mas, ao contrário, que ele possa se desincumbir delas em proveito de novas. Dessa maneira, ele amplia as possibilidades de atenuar a angústia advinda da presença incessante de excitamentos que não se articulam segundo uma ordem de prioridade a cada instante de sua vida. O terapeuta deve poder fluir de um assunto a outro, de um lugar a outro, sem se preocupar em amarrar coisa alguma numa totalidade de sentido. O deslocamento metonímico não é, para esse tipo de ajustamento, uma dissimulação projetiva de excitamentos inibidos. É, ao contrário, uma tentativa de por limite nos excitamentos que, assim, tornam-se suportáveis.


4.3.2 Delírio persecutório (ou paranóia persecutória).

Nesse tipo de ajustamento, a estratégia assumida pela função de ego não é fragmentar o dado em múltiplas partes e distribuir entre elas os múltiplos excitamentos vividos de maneira desarticulada. Ao contrário, dessa vez, a função de ego passa a considerar o dado uma unidade estranha, um pólo estrangeiro que reúne em si todos os excitamentos desarticulados que estejam sendo sentidos na fronteira de contato.

Para isso, a função de ego precisa constituir o dado, que pode ser o próprio corpo, ou o corpo do semelhante, como esse estranho, diante do qual ela então passa a sentir pânico. Afinal, se a função de ego está acometida da presença de excitamentos estranhos, tais excitamentos têm relação com esse dado que, a sua vez, haveria de querer destruir a função de ego. Ou seja, a função de ego delira que os excitamentos que estão sendo sentidos em verdade são efeitos da ação persecutória de um dado ameaçador bem definido e claramente identificável na fronteira de contato.

Frente a esse semelhante ameaçador, a função de ego desencadeia uma reação de fuga e de conflito. Ela faz guerra. Tal guerra, enquanto um delírio persecutório, implica certa acomodação dos excitamentos desarticulados vividos pela função de ego. Por conseguinte, há aqui certa satisfação, certa limitação da angústia decorrente da apresentação desarticulada dos excitamentos.

A intervenção nesses casos também não se pauta pela desqualificação do delírio. Afinal, somente depois de ter sido unificado como um “perseguir conhecido” é que o fundo de excitamentos torna-se algo suportável para a função de ego. Ainda assim, o terapeuta deve poder caracterizar, para seu consulente, o valor de troca social que o delírio produzido representa. De posse desse saber sobre si, o consulente pode reivindicar “proteção”, “soluções”, enfim, contratos sociais que validem suas construções.


4.3.3 – Identificação depressiva.

Nesse tipo de ajustamento, a função de ego já não procura organizar os co-dados (desarticulados entre si) atribuindo-os a uma multiplicidade de partes ou a um perseguidor estranho. A função de ego agora assume a desarticulação do fundo, identifica-se com ela. Eis por que, com freqüência, nesse tipo de ajustamento, a função de ego se apresenta como um objeto perdido, como um objeto morto. O que é o mesmo que dizer que a função de ego, nas identificações depressivas, trabalha no sentido de promover a mortificação do self. O objeto perdido, por conseguinte, fixa essa mortificação e permite a vivência do luto, da despedida em relação aos excitamentos desarticulados. O luto, nesse caso, é a satisfação possível alcançada pela função de ego.

Diferentemente do que acontecia nas paranóias, a função de ego não se ocupa de dispersar ou alienar os excitamentos que não se apresentaram para ela de maneira articulada, o que quer dizer, segundo uma ordem de importância. A função de ego agora assume essa desarticulação e sua impotência frente a ela. Mas, para isso se tornar suportável, a função de ego precisa deprimir; ela precisa elaborar essa desarticulação e essa impotência como uma morte ou como um processo de morrer. É freqüente, nesse sentido, a função de ego operar com os excitamentos como se se tratasse de mortes efetivas, vivências aniquiladas e que, portanto, perderam a energia e a capacidade de repetição. Ou, ainda, nesses casos, é freqüente a função de ego buscar, nos dados na fronteira de contato, a confirmação de que: “já não há o que fazer”, como se o sistema self tivesse se transformado em um projeto malogrado, fracassado, ou, então, que não fosse mais merecedor de novas oportunidades. De todo modo, a função de ego se “fixa” nessas perdas, como se as carregasse no próprio corpo; ou, o que pode ser muito grave, como se fosse essa perda, casos em que a função de ego deixa de operar, porquanto considera o self um sistema morto, a própria experiência da morte.

A estratégia de intervenção, nesses casos, consiste em ajudar o consulente a fazer o “luto” das experiências em que ele próprio fracassou. Trata-se de ajudá-lo a fazer o luto dos excitamentos que não se articularam para ele como um todo de sentido, como uma personalidade na qual ele pudesse se identificar. A despedida em relação a essas experiências é de fundamental importância, uma vez que somente depois de abandoná-las a função de ego torna-se disponível aos novos dados e aos excitamentos de que ela dispõe, apesar da desarticulação.


4.3.4 – Identificação eufórica.

Na via inversa do que se passa na identificação depressiva, na euforia, a função de ego opera no sentido de negar a desarticulação dos co-dados. Em vez de celebrar a perda, agora a função de ego nega qualquer tipo de perda. Para tanto, a função de ego lê, nas possibilidades abertas pelo dado na fronteira de contato, a infinitude de sua própria capacidade de articulação. Se esse dado for o corpo do semelhante, é como se a função de ego pudesse incorporar, às suas possibilidades de articulação, aquelas advindas do semelhante. O semelhante já não será um simples semelhante, mas o duplo da função de ego que funciona de maneira eufórica. De sorte que, nesse tipo de ajustamento, a função de ego opera como se ela mesma fosse muitos outros simultaneamente, como se dispusesse de muitos corpos.

Tal identificação megalomaníaca com as possibilidades abertas pelo dado constitui o que na tradição fenomenológica da psiquiatria chamamos de “foliex à deux”. Tudo se passa como se a função de ego percebesse, nas possibilidades abertas pelos dados na fronteira de contato, uma parceria incondicional capaz de potencializar a capacidade da própria função de ego para articular o que não se articulava de modo espontâneo. Aliás, a megalomania é a satisfação possível alcançada nesse ajustamento.

A intervenção terapêutica nesse tipo de ajustamento consiste no oferecimento de limites concretos às empresas estabelecidas pela função de ego no consulente. Trata-se de pontuar até onde a terapia e os laços sociais do próprio consulente suportam as ações propostas por este. A formulação desse limite atenua a angústia generalizada decorrente do fato de o consulente não vislumbrar para si uma meta. Não apenas isso, esse limite viabiliza, para o consulente, a discriminação entre quais excitamentos são seus e quais não são. Dessa maneira, o terapeuta viabiliza a passagem do consulente de ajustamentos de menor aceitação social para ajustamentos em que os riscos de rejeição sejam menores. Esse escopo, aliás, deve orientar o terapeuta em quaisquer ajustamentos psicóticos. Afinal, o malogro social consiste numa injunção cuja conseqüência pode ser o surto do ajustamento psicótico.


5. O clínico como acompanhante solitário.

No trabalho clínico com consulentes que, por vezes ou na maioria delas, se ajustam psicoticamente, os clínicos raramente identificam as categorias com as quais, até aqui, nos ocupamos de caracterizar as diferentes ações da função de ego (aprender, preencher, articular...). Os ajustamentos psicóticos, na maioria das vezes, são muito sutis e, sobretudo, não dirigem ao clínico uma demanda que os denunciasse, como no caso dos ajustamentos neuróticos. Nestes, os consulentes freqüentemente reclamam do clínico que este lide com a ansiedade advinda os excitamentos que os próprios consulentes inibiram de maneira inconsciente. Nesse sentido, demandam ao clínico: seja meu modelo (confluência); seja minha lei (introjeção); seja meu réu (projeção); seja meu algoz, talvez, meu cuidador (retroflexão); seja meu fã (egotismo) e assim por diante (10). Nos ajustamentos psicóticos, a sua vez, os consulentes não demandam nada. Quando muito, “fazem uso” da imagem, das ações e das palavras do clínico, servindo-se delas para preencher ou articular algo que, de forma alguma, é uma tentativa de manipulação ou dissimulação. Os consulentes, quando se ajustam psicoticamente, estão tentando compreender algo que se passa com eles; o que é diferente de quando se ajustam neuroticamente, ocasião em que procuram fugir daquilo que estão sentindo (como ansiedade advinda do excitamento inibido). Por isso, nos ajustamentos psicóticos, o clínico quase não tem lugar. O que não apenas dificulta qualquer tentativa de classificação que o clínico nesse momento tentasse fazer, quanto também desencadeia, nesse mesmo clínico, um insuportável estado de angústia. Afinal, o clínico fica sem saber o que se passa e sem saber o que dele se quer. O clínico sente-se um acompanhante solitário.

A experiência clínica nos ensinou essa dura lição: somente quando alcançamos este estado de profunda insegurança e angústia ante os ajustamentos produzidos pelos nossos consulentes é que nos tornamos aptos a participar do esforço que estejam empreendendo para se ajustar. É fato que, depois de tanto tempo de acompanhamento e reflexão, nossa ação parece estar instruída por um fundo de pensamentos já estabelecido – e que este pequeno texto tenta tornar público. Mas a intervenção é mais intuitiva do que planejada; e consiste em ocupar um lugar de secretário, de auxiliar nas ações que a função de ego no consulente esteja desempenhando, sejam elas autistas, alucinatórias, delirantes ou identificatórias. Afinal, não conseguimos compreender o que o consulente elabora, onde ele quer chegar, o que ele está omitindo ou procurando. Ele não dá sinais disso, não percebemos nele traços ansiogênicos, os quais denunciariam para nós a presença de uma inibição inconsciente. Ao contrário, nos momentos em que se ajusta psicoticamente, o consulente age como se tivesse uma certeza impenetrável: a de que só ele pode dar conta da dúvida que o abate. Tentar afrontar essa condição ou roubar do consulente o lugar de protagonista redundaria no fracasso da terapia; ocasionalmente, num pequeno surto.

Respeitar esse limite e, ao mesmo tempo, se fazer disponível para secretariar o ajustamento que, naquele momento, estiver acontecendo é algo muito difícil de fazer. Implica, para o clínico, a suspensão das próprias expectativas. Em alguma medida, temos de ter a coragem de confiar nos consulentes e nos deixar levar para onde eles quiserem nos levar – até o limite em que os honorários ou nossa generosidade justificarem essa disponibilidade. Mas não apenas isso. Precisamos compreender que o nosso limite, o limite que impomos aos nossos consulentes, tal é um parâmetro de extrema relevância para que eles possam se certificar do êxito de seus ajustamentos. Nossa pontuação do término da sessão, a denúncia de nossa própria ignorância para acompanhar o delírio que estejam produzindo ou a declaração de nosso mal-estar frente ao contato físico muito intenso que procuram às vezes estabelecer: tudo isso ajuda os consulentes a se organizarem em seus ajustamentos, seja porque podem então compreender a finitude das solicitações que dirigimos a eles, seja porque podem enfim compreender que estamos acompanhando o que eles estão fazendo. De um modo geral, podemos dizer que a melhor intervenção em ajustamentos psicóticos é aquela em que o clínico aprende, alucina, delira e se identifica junto com seu consulente, de modo a poder estabelecer, “de dentro”, o limite do ajustamento que estiver acontecendo.


6. Considerações finais.

Com o presente trabalho, quisemos apresentar uma hipótese que ampliasse as formulações lacunares com as quais os fundadores da Gestalt-terapia se referiram às psicoses. Dessa forma, pretendíamos submeter, à critica da comunidade de gestalt-terapeutas, uma elaboração que tivesse efeito em nossas clínicas. E, segundo tal elaboração, poderíamos entender que a psicose é, por um lado, o comprometimento da função id ou, o que é a mesma coisa, da capacidade do sistema self para espontaneamente articular, quando não para disponibilizar, um fundo de co-dados (excitamentos ou intenções). Mas, por outro, a psicose é um ajustamento. Trata-se da efetiva capacidade da função de ego para aprender, preencher e articular seu próprio fundo, de modo a poder operar fluidamente com os dados na fronteira de contato. Cada uma dessas atividades da função de ego (aprender, preencher e articular) caracteriza um tipo de ajustamento (autista, de preenchimento ou de articulação), o qual sempre depende do laço social para poder se efetivar. O surto, a sua vez, é o malogro social desses ajustamentos e a conseqüente emergência de um estado aflitivo, no qual o sistema self não encontra força para operar com os dados e com os próprios excitamentos, caso eles se apresentem. A função do terapeuta é assegurar direito de cidadania aos ajustamentos psicóticos produzidos pelos consulentes – estejam estes ou não em surto. Para tanto, os terapeutas devem poder promover o deslocamento seguro dos ajustamentos com menor poder de contratualidade para ajustamentos com maior aceitação social; o que de forma alguma se confunde com a eliminação dos ajustamentos psicóticos em proveito de um padrão de comportamento adaptado, freqüentemente neurótico. Trata-se, ao contrário, de apoiar o consulente para que este possa fazer valer seu modo de vida, seus ajustamentos psicóticos nos contextos nos quais se insere. O que, em última instância, ilustra o caráter também “político” do trabalho de acompanhamento terapêutico de pessoas que se ajustam psicoticamente.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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_____. 1969. Gestalt-terapia explicada. Trad. Georges Schlesinger. São Paulo: Summus. 1981.

PERLS, Frederick; HEFFERLINE, Ralph; GOODMAN, Paul. 1951. Gestalt Therapy: excitement and growth in the human personality. Second Printing. New York: Delta Book, 1965.Tradução utilizada: Gestalt-Terapia. Trad. Fernando Rosa Ribeiro. São Paulo: Summus, 1997.

ROBINE, Jean-Marie. 2004. S’apparaître à l’occasion d’un autre – Etudes pur la psychothérapie. Bordeaux: L’Exprimerie, 2004.

TATOSSIAN, Arthur. 2006. Fenomenologia das psicoses. Trad. Célio Freire. São Paulo: Escuta.


(1) As noções freudianas de isso (id), eu (ego) e supereu (superego) designam funções surgidas no interior do laço social estabelecido entre duas ocorrências empíricas (por exemplo, o bebê e sua mãe). Da mesma forma, as noções goldsteinianas de organismo e meio designam dimensões distintas no interior de um campo formado pela intersecção de determinados dados materiais. Por conseguinte, tanto as noções de isso, eu e supereu, como as noções de organismo e meio designam funções pertencentes às correlações e não aos elementos correlacionados.

(2) As noções freudianas de isso (id), eu (ego) e supereu (superego) designam funções surgidas no interior do laço social estabelecido entre duas ocorrências empíricas (por exemplo, o bebê e sua mãe). Da mesma forma, as noções goldsteinianas de organismo e meio designam dimensões distintas no interior de um campo formado pela intersecção de determinados dados materiais. Por conseguinte, tanto as noções de isso, eu e supereu, como as noções de organismo e meio designam funções pertencentes às correlações e não aos elementos correlacionados.

(3) Por exemplo, sua tese de doutorado intitulada “Psicose Paranóica e Suas Relações com a Personalidade”. Um estudo esclarecedor sobre a maneira como Jacques Lacan compreendeu, nos vários momentos da sua obra, a psicose, nós o podemos encontrar em Calligaris (1989), no livro “Introdução a uma clínica diferencial das psicoses”.

(4) Em outro texto, no qual estamos ainda trabalhando, estabelecemos um estudo aprofundado sobre as possíveis aproximações entre essas escolas e tradições de investigação e de intervenção no campo da psicose e nossa proposição de uma clínica dos ajustamentos psicóticos. No contexto do presente artigo, é nosso propósito tão-somente apresentar nossa idéia de uma clínica gestáltica dos ajustamentos psicóticos à luz da teoria do self.

(5) Uma alternativa que estamos ainda avaliando e que poderia contribuir para a melhor distinção entre o “surto” e o “ajustamento” psicótico talvez fosse a utilização de uma nova nomenclatura para designar os ajustamentos psicóticos. Nesse sentido, estamos sugerindo a utilização da expressão “ajustamento de busca”, como um termo equivalente à noção de ajustamento psicótico. Busca significaria aqui o trabalho criador de alucinação, delírio ou identificação de um fundo que está ausente, falhado ou desarticulado. O ajustamento de busca, nesse sentido, seria diferente do ajustamento de fuga (que é o ajustamento neurótico e no qual tudo se passaria como se algo devesse ser evitado, um excitamento devesse ser omitido, muito embora a forma de evitação ela-mesma permanecesse ignorada). A desvantagem na utilização. dessa nova nomenclatura repousaria no fato de ela afastar o gestalt-terapeuta de uma tradição multidisciplinar que emprega o termo psicose para designar não apenas o surto, mas certa estrutura ou psicodinâmica específica, se comparada à psicodinâmica neurótica. Por ora, no contexto deste artigo, vamos manter a terminologia “ajustamento psicótico”. Em futuro próximo, almejamos abrir mão desses termos carregados de conotação patológica (como são os termos psicose e neurose, por exemplo) em proveito de uma terminologia mais afinada com a maneira como os fundadores da Gestalt-terapia consideram a neurose e a psicose, precisamente, como ajustamentos. Nesse sentido, apostaremos nas expressões: ajustamentos de busca (para a psicose) e ajustamento de fuga (para a neurose). Na experiência clínica, a utilização das expressões “psicose” e “neurose” é, nas mais das vezes, desastrosa. Já a utilização dos termos busca e fuga tem se revelado como uma estratégia bem sucedida na emancipação da autonomia dos consulentes para compreenderem seus próprios modos de funcionamento.

(6) Consulente é aquele que vêm ao nosso consultório fazer uma consulta sobre algo que se passa consigo na esperança de que possamos intervir em seu favor. O gestalt-terapeuta, a sua vez, não é aquele que responde a essa consulta, mas alguém que se compromete em pontuar a “forma” implicada nessa consulta, especialmente no modo como esta é proposta. Não se trata de uma prestação de serviço (sugestão) a um “cliente” ou de uma intervenção (de cuidado) em benefício de alguém que abre mão de sua autonomia para se tornar nosso “paciente”. Ao pontuar a forma da consulta, o gestalt-terapeuta procura implicar o consulente em sua própria consulta. De onde se segue enfim, que o consulente é quem consulta, consulta a si mesmo em um campo onde o interlocutor, denominado gestalt-terapeuta, permite àquele aperceber-se, tomar posse de seu próprio fluxo de awareness ou do modo como o interrrompe.

(7) Em nosso livro “Fenomenologia e Gestalt-terapia” (Summus, 2007), especialmente nos capítulos 7, 8 e 9, estabelecemos um estudo aprofundado sobre a gênese, caracterização, ética e estilo de intervenção gestáltica nos ajustamentos neuróticos.

(8) Em sua obra S’apparâitre l’occasion d’un autre (2004, p. 83), Robine advoga em favor da tradução da expressão Creative Adjustement como “ajustamento criador”, de modo a tornar claro que o termo ajustamento é menos um substantivo e mais uma ação.

(9) Alucinação não é aqui, como para a tradição médico-psiquiátrica, a produção imaginária sem o aporte sensível que a justificaria. Por outras palavras, alucinação não é uma ilusão carente de dado sensível que a pudesse ensejar. A alucinação é antes um trabalho de produção de formas, sejam elas sensíveis, motoras ou linguageiras; e por cujo meio a função de ego preenche o fundo que ela momentaneamente não tem e com o qual poderia responder às demandas do meio.

(10) Aprofundamos a discussão dos ajustamentos neuróticos na Gestalt-terapia em nosso livro “Fenomenologia e Gestalt-terapia” (2007, capítulos 7, 8 e 9).