A concepção de sintoma à luz da Gestalt-terapia.
The concept of symptom in gestalt-therapy.
Gladys D’Acri
RESUMO
A concepção de sintoma na abordagem gestáltica traz importantes contribuições para como compreendê-lo e considerá-lo no trabalho terapêutico. Perls, desde a publicação do seu livro “Ego Fome e Agressão: uma revisão da psicanálise”, em 1942, discute a noção de sintoma, demonstrando as influências exercidas do Holismo de Jan Smutz e da Teoria Organísmica de Kurt Goldstein. Posteriormente, dedica passagens sobre o tema em sua obra inaugural - “Gestalt-therapy” - escrito com Paul Goodman e Ralph Hefferline, marcando o surgimento da Gestalt-terapia. Acrescenta outras informações nos demais livros de sua autoria ou dos que participa. Na contemporaneidade, novos autores contribuem com seus pontos de vista, embora acrescentem pouco ao que Perls desenvolveu. O presente artigo tem como objetivo apresentar uma amostra da literatura gestáltica sobre o tema e propor algumas reflexões.
Palavras-chave: sintoma; gestalt-terapia; queixa; gestalt oculta.
ABSTRACT
In Gestalt-Therapy, the concept of symptom brings important contributions for how to understand it and to consider it in the therapeutic work. Since the publication of his book, “Ego, Hunger and Aggression: a review of psychoanalysis” , in 1942, Perls discusses the notion o symptom, also showing the influences of the Holism of Jan Smuts and the Organismic Theory of Kurt Goldstein. Afterwards, he writes about this theme in some passages of his inaugural book “Gestalt-Therapy” , written with Paul Goodman and Ralph Hefferline, which marks the birth of Gestalt-Therapy. He adds other information on his other books and in those in which he participates. Contemporarily, other authors contribute with their points of view, but they add little to what Perls developed. The presente article has as its aim to present a review of the gestalt literature about this theme and also do propose some reflections on it.
Keywords: symptom; gestalt-therapy; complaint; occult gestalt.
Há quem afirme que o sintoma não deve ser considerado, que não é essencial. Mas como não demonstrar interesse para uma maneira de expressar do próprio organismo? Como desconsiderar a forma criativa que o indivíduo lança mão quando não encontra uma nova resposta? É relevante considerarmos a comunicação inicial, traduzida como sintoma e apresentada como queixa de quem nos procura?
Desde o seu primeiro livro “Ego, fome e agressão: uma revisão da teoria e método de Freud”, publicado em 1942, concomitante às influências do Holismo de Jan Smuts e a Teoria Organísmica de Kurt Goldstein, que Perls apresenta uma proposição com relação ao tema em questão: “Não devemos perder o fio que leva do sintoma à gestalt oculta” (op.cit. 2002, p. 269). Através da análise de um sintoma é que podemos chegar à situação inacabada que se relaciona a ele. Uma situação inacabada é constituída quando há qualquer perturbação no equilíbrio do organismo, que por sua vez é forçado a encontrar meios para restaurar o equilíbrio. Quando uma situação inacabada em busca de um fechamento é impedida de chegar à consciência, a conseqüência é a formação do sintoma neurótico.
Perls considerava a maneira como as famílias e instituições se organizavam diante do avanço industrial e da vida urbana como os vilões responsáveis pelas neuroses. E propunha a desestruturação do sintoma como a forma para integrar a personalidade neurótica. Em “Isto é Gestalt”, ele dizia: “(...) nós nos propomos a reorganizar, desestruturar e reestruturar a personalidade. Ao fazê-lo, invariavelmente encontramos uma considerável quantidade de agressão canalizada para o autocontrole, autopunição e até mesmo a autodestruição.” (1977, p. 58). A agressão é essencial para a sobrevivência e crescimento, então, na medida em que é impedida de assumir seu duplo objetivo, a saber: desestruturar qualquer inimigo ameaçador, de forma que ele se torne impotente e desestruturar a substância necessária para o crescimento, tornando-a assimilável, é quando se transforma num sintoma.
Embora por vezes desconsiderado no trabalho psicanalítico, por ser compreendido apenas como um sinal para autodescoberta, a contribuição de Freud com relação à natureza dupla do sintoma é essencial para compreendermos o seu sentido de funcionalidade, conforme Perls, Hefferline e Goodman comentam no livro “Gestalt Therapy” (1951/1997): “o sintoma é tanto uma expressão de vitalidade quanto uma “defesa” contra a vitalidade.” (p. 93). Em uma contribuição mais contemporânea da Gestalt-terapia para esta perspectiva psicanalítica, Secadas (1988) esclarece: “O sintoma é, portanto, ambas as coisas: um sinal de transtorno no processo e simultaneamente uma ajuda para conservar o processo em equilíbrio. O objetivo do encontro terapêutico é ajudar o paciente a restaurar as forças de seu processo sintomático, de tal forma que não precise mais do sintoma e que possa viver em equilíbrio sem ele (...).” ( p. 64, tradução nossa).
Inicialmente, Perls utilizava a técnica de concentração como recurso para alcançar as resistências, por compreender a resistência como caminho para a gestalt oculta, embora soubesse que desta forma permanecia na periferia da gestalt reprimida. Considerava que é a partir daí que podem se mobilizar as funções egóicas de identificação e alienação, que permitirão ao organismo retomar o funcionamento saudável da sua personalidade. “Sem transformar os sintomas neuróticos em funções egóicas conscientes, nenhuma cura é possível.” (2002, p. 304-305).
O organismo é capaz, então, de desenvolver mecanismos adaptativos que deverão ser compreendidos como ajustamentos criativos, pois como disse Thérèse (1984) “um sintoma é, antes de mais nada, uma forma de ajustamento.” (p. 39). É a forma possível e escolhida, mesmo que não consciente, de expressão do organismo.
Frazão (1981) traz contribuições ao tema em seu artigo “Pensamento Diagnóstico em Gestalt-terapia”, quando se refere ao sintoma como a queixa do cliente que todavia representa a figura cristalizada: “um padrão que se repete; uma re-petição, i.e., um pedir novamente e este pedir se repete justamente em busca de um atendimento do pedido. Trata-se de uma gestalt incompleta que busca, por repetição, um fechamento.” (p. 42). Este padrão que se repete seriam as necessidades vitais e os afetos que por algum impedimento não completam a gestalt causando, conseqüentemente, angústia e sofrimento. Na tentativa de restaurar o equilíbrio, ou seja, diminuir esta angústia, o organismo produz uma nova forma, porém que é ainda uma deformação da forma original. Desta maneira, pode haver sucessivas tentativas de fechamento da gestalt, tanto quanto deformações da forma original. Com isto, o sintoma deve ser compreendido como uma “adaptação insatisfatória, que causa sofrimento, impede o contato pleno, a relação.” (id ibid, p. 42).
Em outro artigo, Frazão (1992) apresenta contribuições da Teoria de Relações Objetais ao sentido de sintoma na abordagem gestáltica compreendido por ela como “ajustamentos criativos disfuncionais”. Justifica esta necessidade quando tentava um melhor entendimento da articulação presente-passado nas perturbações mais graves. Autores como Winnicott, Melanie Klein, Fairbain - alguns representantes da Teoria de Relações Objetais - são citados por corroborarem com o objetivo da autora que é “mostrar que a centralidade que as relações interpessoais ocupam, no cenário do desenvolvimento emocional saudável, é cada vez maior.” (p. 47) E o que possibilita este desenvolvimento é o “fato de o indivíduo ter experienciado relações interpessoais primárias nutritivas, amorosas e boas.” (id ibid, p. 47). Conclui o artigo com uma proposta: “pensar os sintomas como ajustamentos criativos não implica apenas uma mudança de nome. O que estou propondo é uma mudança de atitude, que tem, implícita, uma ideologia, em que a patologia é vista como o único caminho adaptativo possível para o indivíduo.” (p. 49, grifos da autora).
Kurt Goldstein exerceu grande influência em Perls através de sua Teoria Organísmica e contribuiu, particularmente, para o tema em questão, quando concluiu que “um sintoma não podia ser considerado ou compreendido a partir apenas de uma lesão orgânica, senão a partir da consideração do organismo como o todo.” (in RIBEIRO, 1985, p. 107). Esta noção de organismo como um todo serviu para a construção das bases da Gestalt-terapia e como resultado da sua evolução, a proposta de tratamento expressa por Ginger (1985) sintetiza: “o sintoma, especialmente o corporal, será geralmente ‘a porta de entrada’ que permite o contato mais profundo com o cliente.” (1985, p. 72).
Na minha experiência clínica com pessoas que apresentam um mesmo sintoma como, por exemplo, a obesidade, o que as diferencia é como cada uma faz com o seu sintoma, que função assume na sua vida, pois é através destas respostas que poderemos ajudá-las. Caso contrário, como disse Juliano (1999): “Se não soubermos essas respostas, estaremos perdendo um tempo valioso tentando “combater” o inimigo... Levantando defesas ainda mais altas. Afinal, defesas foram feitas para defender...”. (p. 38).
A gestalt-terapia preconiza a indissolubilidade corpo/mente. A busca pela completude, a necessidade de encontrar meios criativos para fechar a gestalt possibilita o surgimento do sintoma manifestado de maneira somática e psíquica sem, contudo, representar um retrocesso ao pensamento cartesiano. Não se trata de privilegiar um em detrimento do outro, sendo apenas duas formas de expressão de uma gestalt. Caberá ao terapeuta, dentro dos preceitos desta abordagem, amplificá-los para melhor escutá-los. O cliente, então, poderá reconhecê-los como sua forma de comunicação e integrá-los à medida que aumenta sua awareness. É importante ressaltar que no trabalho terapêutico, deparamo-nos com a imensa força de manutenção do sintoma confirmando muitas vezes a máxima de que aquilo a que você resiste, persiste. Sua funcionalidade contribui para esta resistência e, neste ponto, a proposta de trabalho da Gestalt-terapia é torná-lo consciente e não combatê-lo, como preconizam algumas abordagens. Desta maneira, aumentando a awareness, aumentam as possibilidades de acesso ao fundo de situações inacabadas, reconfigurando-as. Isto é diferente de curar ou, até mesmo, aliviar o sintoma.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
FRAZÃO, L. M. (1991). Pensamento diagnóstico em Gestalt-terapia. In Revista de Gestalt, ano 1 (1): 41- 46.
_________. (1992). A importância de compreender o sentido do sintoma em Gestalt-terapia: contribuições da teoria de relação objetal. In Revista de Gestalt, ano 2 (2): 41-51.
JULIANO, J. C. (1999). A arte de restaurar histórias : libertando o diálogo. São Paulo : Summus.
PERLS, F. S. (1942/2002). Ego, Fome e Agressão. São Paulo: Summus.
PERLS, F. S, HEFFERLINE, R. & GOODMAN, P. (1951/1997). Gestalt-terapia. São Paulo: Summus.
RIBEIRO, J. P. (1985). Gestalt-Terapia: refazendo um caminho. São Paulo: Summus.
SECADAS, C. S. (1988). Enfoque centrado em aqui y el ahora. Barcelona: Editorial Herder.
STEVENS, J.O. (1977). Isto é Gestalt. São Paulo: Summus.
TELLEGEN, T. (1984). Gestalt e grupos. São Paulo: