A questão da psicossomática à luz da fenomenologia-existencial e da abordagem gestáltica.
The issue of psychosomatic in the light of the existential-phenomenology and of the gestaltic approach.
Elizabeth da Costa Ribeiro
RESUMO
O presente artigo tem como objetivo abordar a questão da psicossomática à luz da Fenomenologia-existencial e da Abordagem Gestáltica. Para tal, iniciamos com as idéias acerca do paradigma mecanicista cartesiano, sua perspectiva dicotomizada do homem e a sua influência na produção de um modelo biomédico que entende o corpo como uma máquina. Em seguida, passamos a tratar das concepções de Martin Heidegger e Medard Boss como críticas ao dualismo soma x psique. Finalizando, abordamos a perspectiva da Gestalt-terapia de Fritz Perls, a qual, sintonizada com a Fenomenologia-existencial, afirma a necessidade de uma compreensão holística do homem em seu mundo.
Palavras-chave: psicossomática, fenomenologia-existencial, Gestalt-terapia.
ABSTRACT
The present article aims at focusing all psychosomatic question phrough both phenomenological-existential and Gestalt approaches. It begins with Descartes`mechanicist paradigm concept, its dichotmy about men and also its influence on the production of a biomedical model which understands the body as a machine. Furthermore, Martin Heidegger`s and Medard Boss`s concepts are dealt with as critical views of the duality soma x psique. To conclude, an analysis of Fritz Perls`Gestalt-terapy pespective is presented, which related to the existential-fenomenology states the necessity of a holistic comprehension of men in his wold.
Keywords: psycossomatic, phenomenological-existencial, Gestalt-terapy.
1. O dualismo soma x psique no modelo cartesiano
A cisão mente x corpo aparece de maneira contundente em Descartes (1983). Ele opõe o cogito (pensamento) a uma realidade extensa (material). Para este filósofo o homem, por um lado, é uma res cogitans, uma substância que pensa a si mesma, e por outro, uma res extensa, uma substância física. O sujeito é um eu, uma alma, uma substância pensante que tem um corpo que faz parte da realidade material, extensa. A filosofia cartesiana concebe o homem com duas substâncias distintas em sua essência e independentes por princípio. Ou seja: o pensamento é dado por Deus e o corpo é submetido às leis do movimento e da mecânica, da mesma maneira que todos os objetos físicos que encontramos no mundo. Aqui, realidade extensa, material, torna-se o âmbito próprio para a investigação científica, pois pode ser concretamente investigada, explicada, prevista e controlada.
Produz-se, assim, a noção de objeto em função da criação de uma concepção de sujeito racional apartado do mundo, e ainda, a idéia de que o objeto deve ser entendido mediante a mensuração feita por um sujeito racional. Estes são conceitos modernos gerados pelo fato de Descartes (1983) opor o cogito, o sujeito que pensa, a uma realidade objetiva, material. Com ele há uma mudança radical da posição do homem diante dos entes e da vida.
O paradigma cartesiano instaura uma concepção de mundo que dá impulso às chamadas ciências da natureza: a física, a química, a biologia. A idéia de um corpo sem alma, como mera materialidade, impulsiona as pesquisas em fisiologia e anatomia, assim como uma abordagem do corpo, da doença e da dor como fenômenos físicos que merecem intervenção direta, pragmática e que são passíveis de correção.
Descartes (1983) impulsiona o desenvolvimento de um modelo biomédico positivista, que entende o corpo como um conjunto físico de sistemas relacionados, relativamente independentes. Este modelo se baseia na pesquisa em fisiologia experimental, ou seja, na busca de padrões constituídos por lesões anatomo-fisiológicas para as doenças. O foco passa a ser a anormalidade biológica, a taxionomia, os aspectos universais da patologia. A clínica médica, enquanto clínica das doenças expõe o corpo que deve ser pesquisado e aberto na procura das causas físicas dos males e sofrimentos humanos. O que antes era oculto na pessoa, agora, o olhar médico controla, supondo tratar e curar.
Neste viés a psiquiatria toma a loucura como desordem a qual também deve ser tratada como entidade nosológica. Esta passa a buscar causas orgânicas e uma descrição sintomatológica, o que origina o desenvolvimento de uma psicopatologia nos moldes biomédicos. Assim, a loucura é transformada em doença mental, passível do controle médico.
E, ainda, produz-se também, a psicologia como ciência positiva, a qual toma a consciência como objeto de estudo, que deve ser investigada, como fato registrável, nos mesmos moldes das ciências fisiológicas. Assim temos a reflexologia de Pavlov, a psicologia experimental de Wundt e o behaviorismo de Watson. Pensamos que a psicanálise freudiana também seguiu uma concepção mecanicista, pois tomou o inconsciente como objeto de investigação do analista, e entendeu as chamadas pulsões inconscientes como determinantes de sintomas somáticos (as chamadas doenças psicossomáticas). Não é este o nosso entendimento sobre a questão da psicossomática e vamos tentar esclarecê-lo, a seguir, com a perspectiva fenomenológico-existencial de Martin Heidegger (2001) e Medard Boss (1997).
2. A concepção de Heidegger e Boss acerca da psicossomática
Para Martin Heidegger (2001) o homem não está no mundo da mesma maneira que as coisas e por isso não pode ser investigado e explicado da mesma maneira que os objetos. O homem encontra-se lançado-no-mundo, interrogando-se pelo seu sentido de vida e sempre se relacionando com as coisas e com as pessoas. Podemos entender então a insuficiência da metodologia cartesiana, objetivante, aplicada ao homem. Num esforço de tornar o ser-homem objeto de estudo, este modelo perde de vista o homem tal como se dá em sua existência no mundo.
Heidegger (2001) chama a nossa atenção para o fato de que o modelo quantitativo transforma a questão da verdade, que o grego entende como ocultamento e desocultamento (alethéia), em uma busca de certeza segura e indubitável, que para ser alcançada, deve ser investigada e registrada quantitativamente, eliminando tudo que for duvidoso, chegando a um fundamento absoluto e inabalável. Com esta metodologia, tudo que não apresente o caráter dos objetos passíveis de determinação matemática é eliminado como sendo incerto e inverídico. Assim o homem, do alto de sua racionalidade e do método científico, é quem decide o que é verdadeiro ou não.
Há, segundo Heidegger (2001), uma ditadura racionalista que só deixa valer seu pensamento como um manipular de conceitos operativos e representações de modelos, ou seja, a imposição de uma lógica determinista, explicativa e quantitativa na apreensão da realidade. O filósofo fala da cegueira da ciência positivista, que não permite que o homem se revele em sua fenomenologia. E questiona em que medida a ciência teria a capacidade de dar base à existência humana e, afirma ainda, que o modelo científico não dá conta da existencialidade do homem. Assim, contrapõe o método mecanicista ao fenomenológico, ou seja, a objetivação científico-natural dos entes, que existem no mundo, em confronto com o desvelamento dos entes em sua fenomenologia.
Para o filósofo, existe um abismo entre a metodologia quantitativa aplicada nas ciências físicas e a compreensão do homem. As ciências naturais não alcançam o “ser-homem” em sua totalidade, mas apenas como objeto, como mais um ente presente na natureza. O método das ciências naturais não pode se aplicar ao humano por ser incompatível com a noção de singularidade.
Heidegger utiliza a palavra alemã Dasein para se referir ao ser humano. Traduzida literalmente, “Da” significa “aí” e “sein” quer dizer “ser”, portanto, “ser-aí”. Assim, numa acepção heideggeriana, o homem é aquele ente que está presente no mundo de forma peculiar. Ele é um aberto para sua própria experiência de existir, ele tem autoconsciência, ele temporaliza, tem noção de que vive, mas não sabe o que irá acontecer com ele, daí sua angústia existencial e a necessidade de construir um sentido de vida.
Assim podemos entender melhor que, existencialmente, o fenômeno humano, em sua totalidade, não pode ser apreendido estatisticamente. Mensurar o ser humano significa descaracterizá-lo. Numa perspectiva existencial, o enfoque é no mundo vivido. Como exemplifica o psiquiatra Medard Boss (1997), aluno de Heidegger: diz ele que o fenômeno corpóreo das lágrimas de uma pessoa enlutada está intimamente ligado ao fenômeno do sentimento de perda e saudade, assim como o rubor da face está relacionado aos atos destrutivos de uma pessoa com raiva, o corpo contraído e os olhos arregalados se referem ao medo. Entretanto, as lágrimas de um enlutado podem ser avaliadas em seus aspectos químicos, mas não serão jamais as mesmas lágrimas de uma pessoa numa situação de alegria, assim como, o rubor da vergonha não é o mesmo que acontece na febre.
Portanto, do ponto de vista da fenomenologia existencial, a tentativa científica de mensuração de estados emocionais já transgride o sentido da própria emoção. Uma emoção só pode ser compreendida na abertura de seu instante.
Para Heidegger (2001) a questão não está em pensar o psíquico e o somático, nem tampouco as possibilidades de integração ou articulação destas duas dimensões, tal como o fez a psicossomática nos moldes psicanalíticos, a qual fala de representações psíquicas no corpo (somatizações). Este filósofo, antes fala da necessidade de um modo próprio de aproximação do humano que possibilite vislumbrá-lo em sua complexidade e não como soma e psique. Segundo ele, o modelo cartesiano aplicado ao homem divide, separa e empobrece o homem em sua humanidade.
Entretanto, como afirma Boss (1997), os fenômenos somáticos e psíquicos se diferenciam, não podem ser tomados como iguais, mas em sua diferenciação, devem ser compreendidos quando remetidos a sua realidade comum. Assim, como só podemos perceber o verde e o vermelho em sua distinção e peculiaridade quando sabemos que ambos se referem ao fenômeno da cor, da mesma forma, só podemos compreender o psíquico e o somático referidos ao homem. Portanto psíquico e somático são dois modos diferentes pelos quais se dá o acontecimento da existência humana.
Uma outra análise importante de Heidegger (2001) é a distinção que faz da questão do corpo para os gregos. Diz ele que há no grego uma discriminação entre svma (soma) e demaz (forma). Homero usa soma referindo-se ao corpo material, físico, ao corpo morto ou mesmo à massa humana e forma para se referir ao corpo vivo. Segundo Heidegger, a nossa representação moderna vem do latim corpus, que a partir da escolástica e posteriormente com Descartes toma um sentido de corpo material animado.
Baseando-se numa etimologia grega, Heidegger (2001) situa a diferença das palavras corpo (Leib) e corpo material (Körper). O corpo de Descartes é o corpo material, tornado máquina animado por uma alma, mas que pode ser dissecado e analisado em suas partes elementares. Já em Heidegger corpo é sempre um corporar (Leiben). O corporar é sempre o modo-singular-de-ser-do-homem-no-mundo. Portanto o fenômeno do corporar opõe-se à mensurabilidade.
Nunca o corpo é um mero objeto, o corporar é a minha relação direta com o mundo, é o horizonte existencial no qual eu permaneço. Por exemplo: o engordar e o emagrecer podem ser entendidos, racional e mecanicamente, como peso e volume de um corpo material. Mas, fenomenologicamente, a magreza ou a gordura dizem respeito à “minha magreza” ou à ”minha gordura”, uma ou outra tem um sentido ek-stático, ou seja, de um desvelamento de minha própria maneira de ser-no-mundo.
Um outro exemplo: atendo em domicílio um homem de 45 anos, vítima de um acidente que o tornou tetraplégico. Já transcorreram três anos após o acidente. Depois de ter se submetido a uma série de cirurgias, este cliente vem fazendo sessões de fisioterapia, antes diárias, atualmente três vezes por semana. Entretanto, esta pessoa reclama constantemente de dores por todo o corpo. No contato que fiz com sua fisioterapeuta, a mesma afirma: “ele não tem mais nada que possa estar causando estas dores”. Se entendermos esta pessoa como uma res extensa, um corpo/máquina , diríamos que não há motivos para tais dores. Entretanto, o ser humano não habita numa ordem dada, estática, mas sim o aberto da existência. Esta dimensão genuinamente humana, a visão mecanicista não contempla, reduzindo o ser-homem.
O homem em Heidegger (2001) não é definido como uma coisa ou outra, ou mesmo como um agrupamento de partes orgânicas ou instâncias, mas em seu sentido de abertura ao mundo. Definições compartimentalizadas do homem, em termos de um ser bio-psico-social ou de estrutura psíquica, por exemplo, comprometem o entendimento do fenômeno do existir humano. E, ainda, a busca de nexos causais, de forças psíquicas inconscientes baseia-se, segundo Heidegger, numa metodologia reducionista.
A natureza das ciências físicas é a previsibilidade para a posse e dominação dos processos naturais, como podemos constatar em Descartes (1983), na parte final do Discurso do Método, no qual afirma que devemos nos tornar mestres e donos da natureza. O tema da objetividade é o traço fundamental do método mecanicista, que para Heidegger (2001) não pode ser aplicado ao homem.
Para ele a metodologia das ciências físicas tem um limite. O não entendimento deste limite recai no equivoco do cientificismo e dos discursos de poder sobre o homem. Tanto para Martin Heidegger (2001), quanto para Medard Boss (1997), é necessário um olhar que possa compreender o homem em sua complexidade e inteireza. Não separando para depois agrupar, mas uma metodologia que já de início contemple o ser-homem existencialmente-no-mundo.
3. A abordagem gestáltica e a psicossomática
Entendemos que Fritz Perls (1997), como médico e psicanalista, tenha sido influenciado pelas concepções clássicas da psicossomática a partir da noção de psicogênese. Entretanto, seu espírito artístico, libertário, revolucionário e, ainda, seu contato com perspectivas inovadoras de sua época, ajudaram-no na construção de uma concepção que se aproxima das idéias encontradas na fenomenologia-existencial.
Consideramos a Gestalt-terapia uma abordagem fenomenológico-existencial, e compreedemos que Perls (1997) buscava uma maneira de abordar a realidade humana sem partir de referências tais como estruturas ou instâncias psíquicas. De um modelo psicopatológico, passamos aqui a uma visão de homem em sua abertura, liberdade, possibilidades, criatividade, auto-organização e busca de seu sentido de vida.
Perls (1988) utiliza a palavra organismo para se referir à pessoa em sua totalidade. Entretanto, organismo aqui não se refere a uma visão organicista do homem como um conjunto de sistemas e órgão físicos. O autor utiliza a palavra na acepção de Goldstein, referindo-se à constituição de totalidade própria do existir humano. E exemplifica isto quando afirma que quando sentimos sede podemos dizer que o sangue perde H2O, o sistema fisiológico está num processo de desidratação, ocorre secura na boca e cansaço, vem a sensação de sede e o desejo de beber água. Tudo isto acontece ao mesmo tempo, a pessoa não pode ser vista unilateralmente. Podemos estudar processos fisiológicos ou psicológicos, mas este entendimento de estruturas e mecanismos seria abstração e não é uma compreensão da vida humana tal como ela se dá.
Um dos fatos mais notórios a respeito do homem é que ele é um organismo unificado. E, todavia, este fato é completamente ignorado pelas escolas tradicionais de psiquiatria e psicoterapia que, não importa como descrevam seu enfoque, continuam a operar em termos da velha cisão corpo/mente. Desde o surgimento da medicina psicossomática, a estreita relação entre atividade mental e física se tornou cada vez mais flagrante. E não obstante essa persistência do paralelismo psicofísico, este avanço no conhecimento não progrediu tanto quanto deveria. Continua preso aos conceitos de causalidade, tratando a doença funcional como um distúrbio físico causado por um fato psíquico. (PERLS, 1988, p.24)
Além da dicotomia corpo x mente, Perls (1988) aponta outras dicotomias que imperam em nossa mentalidade tais como: self x mundo externo, subjetivo x objetivo, infantil x maduro, biológico x cultural, pessoal x social, amor x raiva, inconsciente x consciente. Aponta “distinções falsas”, “dicotomias neuróticas”, “erros teóricos fundamentais” e propõe um “método contextual” que considere o conjunto do problema, inclusive as condições de sua experienciação, o meio social e o próprio observador. Este autor afirma que há uma relação entre teoria, procedimento e objeto. Isto quer dizer que o que encontramos, como também afirma Heidegger, depende necessariamente da metodologia que utilizamos.
Não tem sentido falar, por exemplo, de um animal que respira sem considerar o ar e o oxigênio como parte da definição deste, ou falar de comer sem mencionar a comida, ou de enxergar sem luz, ou de locomoção sem gravidade e um chão para apoio, ou da fala sem comunicadores (...) O significado da raiva compreende um obstáculo frustrante; o significado do raciocínio compreende problemas de prática (...) lembremo-nos de que qualquer que seja a maneira pela qual teorizamos sobre impulsos, instintos etc, estamos nos referindo sempre a esse campo interacional e não a um animal isolado. (PERLS, 1997, p.42)
Segundo Perls (1997) o ser humano tem a possibilidade de ser-no-mundo de várias maneiras e em níveis qualitativamente distintos. Este autor assinala o nível do pensar e o nível do agir. Da mesma forma que Boss (1997), como vimos, afirma ser o psíquico e o somático dois modos referentes a realidade humana que não podem ser tomados em si mesmos. Perls (1997) chama a atenção para o fato de a ciência ter tomado estas duas possibilidades como independentes entre si e, conseqüentemente, como áreas de estudo distintas. Sabemos que tal equívoco baseia-se nos pressupostos do paradigma cartesiano que o movimento inaugurado pela psicanálise tenta repensar, entretanto, segundo Perls (1997), ainda de uma forma incipiente, pois entende ainda causas inconscientes. Tal visão causalística pressupõe um entendimento mecanicista. Segundo este autor sofremos de um sentimento de desconexão (de não ser eu mesmo) visto que experimentamos o eu (pensar/sentir), o corpo e o mundo distintamente.
Suponha agora que ele tenha muitos motivos para chorar. Todas as vezes que se emociona até ficar à beira das lágrimas, ele, não obstante, não ‘se sente com vontade de chorar’, e não chora; isto é porque se habituou, há muito tempo, a não perceber como está inibindo muscularmente essa função e cortando o sentimento - pois há muito tempo esse sentimento levou-o a ser humilhado e, até mesmo, surrado. Em vez disso, ele agora sofre de dores de cabeça, falta de fôlego, e até de sinusite.
(...) Os músculos dos olhos, a garganta e o diafragma são
imobilizados para impedir a expressão e a awareness do choro que está
vindo. Contudo, esse autocontorcer-se e auto-sufocar-se provocam excitações
(de dor, irritação ou fuga) que devem, por sua vez, ser bloqueadas
(...)
(...) Finalmente, quando ele começa a ficar muito doente, com fortes
dores de cabeça, asma e acessos de vertigem, esses reveses lhe chegam
de um mundo completamente estranho: seu corpo. (PERLS, 1997, p. 78)
Perls (1988) afirma que temos a capacidade de agir tanto fisicamente como simbolicamente. O autor chama de “atividade de fantasia” uma gama de atividades simbólicas tais como: pensamento, conscientização, atenção, vontade, teorização, sonho, imaginação, antecipação....
A atividade mental parece ser a atividade que a pessoa total exerce num nível energético inferior ao nível das atividades que denominamos físicas. (PERLS, 1988, p.28)
Inferior aqui não significa uma apreciação de valor. O autor assinala que as atividades mentais exigem menos dispêndio de energia física. Para ele, a atividade mental parece agir como um economizador de tempo, energia e trabalho físico para o indivíduo. Isto possibilita ao ser humano uma vantagem diante dos outros seres da natureza. Os animais são determinados por sua condição biológica, instintiva. Já o ser humano também é regido por um determinismo biológico, mas não se restringe a ele, pois vivencia a liberdade da ordem simbólico-cultural. Portanto, entendemos como concepção de ser humano a perspectiva que leve em consideração tal complexidade; caso contrário, é restringir e tornar a pessoa um objeto, perdendo de vista aquilo que faz sua marca.
Assim como a água se transforma em vapor pela aplicação do calor, a atividade corporal oculta se transforma em atividade latente, particular, que chamamos de mental, devido a uma diminuição de intensidade. O organismo age e reage a seu meio, com maior ou menor intensidade; a medida que diminui de intensidade o comportamento físico se transforma em comportamento mental. Quando a intensidade aumenta, o comportamento mental torna-se comportamento físico. (PERLS, 1988,p. 28)
Para Perls (1988) a concepção de homem como constituído por níveis de atividade acaba com a doutrina do paralelismo psicofísico. Soma e psique não são entidades separadas e independentes, mas possibilidades do existir humano. Pensamentos e ação são maneiras de ser da pessoa total que se desvela ora de uma forma ora de outra.
Perls (1997) define o conceito de “campo unificado” como instrumento conceitual para o entendimento deste homem global, que se caracteriza como um ser no qual ações físicas e mentais estão entrelaçadas.
Encontramos na literatura gestáltica a denominação do ser humano como um “organismo total”. Isto significa que a pessoa vive no mundo num constante processo de auto-regulação organísmica. Esta conceitualização exclui os problemas causados pelas denominações de soma e psique.
Entretanto o fluxo natural da auto-regulação pode ser dificultado por “situações inacabadas”. A tendência será completar as situações inacabadas, o que faz parte do processo de fechamento da Gestalt e da natural auto-regulação organísmica.
Se o terapeuta considera a situação terapêutica por este prisma, como parte da contínua situação inacabada do paciente, que a está enfrentando por meio de sua própria auto-regulação, existe a possibilidade maior de o terapeuta ser útil do que se ele considerar o paciente como alguém equivocado, doente ou ‘morto’. Porque não é certamente por meio da energia do terapeuta, mas por meio de sua própria energia, que o paciente, em última instância, completará a situação. (PERLS, 1997, p. 86)
Esta abordagem tem como objetivo fazer o paciente compreender a si mesmo como
existente no mundo. Isto será possível pelo contato e a vivência
de suas possibilidades existenciais como a corporeidade e a emotividade.
4. Considerações finais
Vimos que o método de Descartes exclui, separa, dicotomiza. As ciências biológicas surgem como o estudo da vida e da natureza física, que através dos fatos registráveis, racionalizados, abstraídos e generalizados, deduzem teorias. Da mesma premissa, nasce a psicologia como ciência que investiga a natureza subjetiva, a qual pretende estudar os processos da consciência utilizando-se do mesmo modelo científico. Do mesmo modo a psicanálise pretende investigar fatores inconscientes e suas representações psicopatológicas. As concepções de Freud dão impulso para as primeiras teorias em psicossomática as quais concebem causas psíquicas para problemas físicos, sendo seu objetivo o de poder explicar as chamadas somatizações relacionando, assim, físico e psíquico. As teorias tradicionais em psicossomáticas fundamentam-se na idéia freudiana de complacência somática (na histeria, a escolha de um órgão expressando simbolicamente o conflito inconsciente), perspectiva esta que tanto a fenomenologia-existencial quanto a perspectiva holística de Fritz Perls irão criticar, pois partem do homem em seu ser-no-mundo. Para estas perspectivas a compreensão deve se dar pelo entendimento da experiência humana nas situações concretas da existência, em suas múltiplas afetações, enfim, em sua imanência.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BOSS, Medard. Medicina psicossomática: ciência ou magia? Bases filosóficas para uma medicina psicossomática. In: revista de Daseinsanalyse. São Paulo: Assoc. Bras. de Daseinsanalyse, nº 8, 1997.
HEIDEGGER, M. Seminários de Zollikon. Editado por Medard Boss. Petrópolis: Vozes, 2001.
DESCARTES, R. Discurso do método. In: Os Pensadores. São Paulo: Abril, 1983.
PERLS, Fritz. A abordagem gestáltica e a testemunha ocular da terapia. Rio de Janeiro: LTC, 1988.
PERLS, HEFFERLINE e GOODMAN. Gestalt-terapia. São Paulo: Summus, 1997.