ARTIGO

A gestalt terapia entre a filosofia, a psicologia e os desafios da cotidianidade.

The Gestalt therapy among the philosophy, the psychology and the challenges of the quotidianity.

Luciana Bicalho Cavanellas


RESUMO

Este trabalho pretende questionar o lugar da Gestalt Terapia num universo cotidiano de respostas imediatas e ausência de perguntas. Inserida na psicologia e, portanto, no cenário científico, mas atraída pela filosofia em sua busca essencial, cabe-lhe ir ao encontro de sua verdadeira natureza e sabedoria.

Palavras-chave: Gestalt Terapia; Filosofia; Ciência.


ABSTRACT

This work aims to call in question the place of the Gestalt Therapy in a quotidian universe of immediate answers and absence of questions. As part of psychology and, therefore, in the scientific scene, but attracted by the philosophy in its essential search, it is supposed to go after its true nature and wisdom.

Keywords: Gestalt-Therapy; Philosophy; science.


 

É preciso a angústia de ser um caos para se gerar uma estrela.
(F. Nietzsche)

 

É bom ter o que pensar. E angustiante também. Bom pela possibilidade de ir a qualquer lugar. Angustiante pela liberdade de não saber onde se vai chegar.

Portanto, antes que fiquem apenas com a imagem pretensiosa de um título instigador, apresento, humilde, minha angustiante alegria de aqui me apresentar.

Na verdade, por trás deste título espetaculoso, encontra-se um desejo sincero de abrir um caminho de reflexão para os que chegam e de dar continuidade para os que já estão.

Só há uma certeza: não se pode parar de perguntar; pois é esta mesma a nossa sina. Tentar achar a luz no escuro, sabendo que logo outro escuro advirá.

Comecemos pois nos perguntando por que é que estamos aqui hoje? O que viemos buscar? De novo e mais alto para dentro de nós mesmos, tentando ouvir a voz que poderá nos elucidar. Mas não nos contentemos com respostas prontas e determinadas. Abramo-nos para deixar ecoar a pergunta até que nenhuma resposta mais se mantenha de pé.

O que faço eu hoje aqui, neste lugar? Estou em busca de que?

Assim começa o caminho do despojamento, do striptease de nossas pseudoverdades, em direção ao descobrimento do que realmente pode ser.

E aí, quando estamos nus ou quase nus, há um aceno de luz, uma indicação, um convite. Algo que nos faça lembrar quem somos ou do que somos feitos; qual a nossa miséria e a nossa grandeza.

Cotidianamente temos nos esquecido de fazer perguntas e só corremos atrás de respostas. Ficamos presos à coisificação de tudo, porque queremos controle e poder.

Não me refiro aqui a pessoas que nos parecem distantes, como governantes e políticos ou grandes empresários que mal conhecemos e consideramos não fazendo parte de nossa micro-realidade; pois é assim que costumamos proceder quando ouvimos palavras tais como dominação ou domínio, controle e poder.

Não se trata do domínio do fraco pelo forte, ou do pobre pelo rico, ou do ignorante pelo que tem informação; trata-se antes de nossa necessidade cotidiana de segurança, nos moldes que nos têm sido destinado desde que fazemos parte de uma tal época chamada moderna ocidental.

Trazemos tudo para perto para podermos enxergar, manipular, conhecer, dominar.

 

Todo distanciamento no tempo e todo afastamento no espaço estão encolhendo. [...] O homem está superando as longitudes mais afastadas no menor espaço de tempo. Está deixando para trás de si as maiores distâncias e pondo tudo diante de si na menor distância. E, no entanto, a supressão apressada de todo distanciamento não lhe traz proximidade. Proximidade não é pouca distância. (HEIDEGGER, 1997).

 

Como então podemos nos aproximar de algo sem achar que já o pegamos, entendemos, conseqüentemente explicamos, enfim conhecemos? Como deixar que o fenômeno se revele por si só, diante de nós, com o mínimo de interferência, a não ser a da própria presença? É preciso uma outra abordagem. Um olhar que se permita recuar, por saber-se desde há muito impregnado pelo desejo de conhecer. É preciso ter paciência e não ter pressa em chegar. Isto a filosofia parece nos dar.

Não a filosofia de modo geral ou qualquer atitude dita filosófica, mas aquela comprometida “apenas” com a liberdade do pensar. A Filosofia que namora o abismo, por não ter medo de fracassar; afinal não serve a ninguém, não tem que funcionar; pelo contrário, precisa escapar das garras do funcionalismo utilitário que a todos nós capturou. Este é o terreno da ciência, onde já nos encontramos.

Por toda a parte somos hoje um pensamento que calcula. E calcula com [...] possibilidades cada vez mais abrangentes. Progressivamente o pensamento, que calcula, pula com sucesso de um campo para outro. Passa de chance em chance. O pensamento que calcula não pode parar. Nunca chega à serenidade do sentido. O pensamento, que calcula, não é um pensamento do sentido, um pensamento que pensa o sentido de si mesmo ou de qualquer coisa.

 

Há pois duas possibilidades, que brotam, se complementam e se integram na estrutura do pensar: o pensamento irrequieto, que calcula, e o pensamento sereno, que pensa o sentido. É da angústia deste pensamento do sentido que estamos fugindo hoje e na fuga lhe sentimos a falta. (LEÃO, 1991a).

 

É importante sentir a falta, deixar-se sentir a falta, deixar a pergunta ecoar sem a previsão da resposta. Pois quando nos apressamos em responder, nem mesmo nos ouvimos direito, nem mesmo nos sabemos ser; muito menos podemos ouvir o ser do outro. Distantes de nosso mistério, não reconhecemos o mistério do outro e desmistificamos tudo, dando nomes e atribuições. Deixamo-nos enganar e enganados estamos em nosso modo próprio de conhecer, que não sabe esperar e precisa apreender, controlar, resolver.

Com o que queremos nos comprometer?

Ou com o que já estamos comprometidos, sem mesmo o saber?

A Gestalt terapia não foge à regra, quando precisa responder, acertar, resolver e então se irmana com as outras correntes de pensamento científico, que buscam teorias que lhe sirvam de referência para lidar com o ser-objeto humano. Refiro-me aqui a situações em que a gestalt terapia se sente comprometida com a resposta certa, lidando com os fenômenos à luz da ciência; ou seja, como objetos. Diante da dor, apressam-se por fazê-la calar, sem mesmo abrir-lhe a possibilidade de descobrir-lhe o sentido. A técnica apresenta-se aí soberana e nos agarramos a ela, temerosos e reféns de nosso destino.


A revolta contra a dor, como limite, constitui-se na questão mesma da tecnologia, enquanto representante da técnica moderna, trazendo a necessidade de superá-la a qualquer custo, ainda que em face do sacrifício do sentido mesmo do existir. [...]

 

No âmbito do humano, tratado à maneira do ente, restrito à objetividade imposta pela ciência, deparamo-nos com formas distintas de tratar o homem, ainda que reunidas sob a guarda específica da psicologia. Divergentes, rebeldes ou orgulhosas deste sobrenome, carregam esta herança e constroem sua história. A Gestalt terapia não escapa deste destino (CAVANELLAS, 1998).

 

Como então honrar nosso compromisso com a psicologia, como ciência, sem perder a essência mesma de nosso olhar e de nossa fé? Será-nos possível tal empreendimento? Ou, em outras palavras: estará mesmo a Gestalt terapia inserida em tal contexto, qual seja a Psicologia como ciência, onde vimos batalhando por reconhecê-la, mas cujo estranhamento permanece, ainda que silenciado? Ou será que já não permanece?

Caberá nosso conhecimento, enquanto gestalt terapeutas, no arcabouço teórico-técnico reconhecido pela ciência? Estará ela, a Gestalt terapia, então perfeitamente adequada a este tipo de saber? Será possível escapar deste destino?

Podemos começar observando a lista de requisitos desejáveis ou recomendáveis, na opinião de alguns autores, para aqueles que pretendem se arvorar ao papel de psicoterapeuta ou analista (CARDOSO, 1985):

· qualidades que inspiram, no paciente, esperança, fé, confiança, gosto e liberdade para responder (WOLBERG, 1967);

· “dom especial” e grande maturidade pessoal (FORDHAM, 1957);

· capacidade de empatia e boa vontade e capacidade de efetuar o trabalho de uma pessoa excepcional (HEIMAN, in MANNONI,1971);

· sua formação deve ter sido conferida por um instituto acadêmico reconhecido e estar em constante aperfeiçoamento. Seu comportamento deve ser “quente”, caloroso (MORENO);

· deve ser um catalisador que dê saída ao conflito, o mais claramente possível (BUSTOS, 1974);

· deve ter conhecimentos pedagógicos teóricos e práticos e se as circunstâncias tornam necessário, assumir as funções de educador durante todo o curso da análise (ANNA FREUD, 1949);

· estar totalmente presente, nos aspectos afetivo e cognitivo, atuando segundo aquilo que sente (ROGERS, 1972);

· aceitar a responsabilidade de ajudar a efetuar as mudanças desejadas e de se manter dentro dos limites do contrato, assumindo uma relação de adulto para adulto, essencial para uma terapia eficaz (BERNE, 1974);

· fazer análise pessoal periodicamente e ter conhecimento, intuição, talento, capacidade didática, empatia, etc (GRINBERG, 1975);

· deve saber escutar (FROMM-REICHMANN, 1975);

· além do processo de autoconhecimento, deve ter fontes de satisfação e segurança, para que não use o paciente como sua própria fonte de satisfação (idem,1975);

· grande maleabilidade psicológica que permita ao terapeuta adaptar-se a qualquer papel ou situação (WIDLOCHER,1962).

Sentimo-nos capazes e adequados, então? Podemos, sem hesitar, vestir a camisa do terapeuta que se identifica, se enquadra e faz por merecer tal lugar? Sentimo-nos confortáveis em aceder a tantos e delicados atributos para nos tornarmos dignos da confiança do outro? Finalmente, o que pediremos em troca?

É preciso tomar cuidado antes de aceitar tão delicada missão e aceitar fazer parte de um grupo, de uma instituição, de uma categoria. As roupas do conhecimento à maneira da ciência nem sempre nos servirão. Tampouco poderemos abandoná-las, simplesmente, se não tivermos o que vestir.

Onde buscaremos nossas referências, onde encontraremos nossos pares, se formos sempre estrangeiros a tudo, tal qual a filosofia verdadeiramente se propõe?

Precisamos encontrar nossa casa, acolher nossos amigos e gerar nossos filhos. Precisamos nos saber em nosso projeto fundamental, para que mesmo arrebatados por um grito de socorro ou tombados por um tropeço na vaidade, não nos esqueçamos de quem somos e no que acreditamos.

Perls (in CAVANELLAS, 1998) nos fala de personalidades integradas que estejam dispostas a viver perigosamente e inseguramente, mas com sinceridade e espontaneidade.

Estaria ele referindo-se a nós? É desta forma que nos percebemos? De que modo nos fazemos reconhecer?

Que tipo de risco estamos dispostos a correr?

Para a filosofia todo e qualquer tipo de risco, pois não está comprometida com o acerto; não teme o fracasso, mas para a ciência, praticamente nenhum. Para a filosofia, abertura. Para a ciência, fechamento. Para a filosofia, perguntas. Para a ciência, respostas. Para a filosofia, pensamento. Para a ciência, produção. E no meio, angústia e mistério.

Onde estamos, afinal? No escuro?

 

Vivemos presos ao imediato. À medida que o homem mais desconhece a razão de ser de sua vida, tanto mais ele se agarra às pequeninas coisas do cotidiano. Tanto menos ele conhece o sentido de sua vida, mais é tomado de angústia e paixão, que deixam a impressão de uma pressa de chegar sem que ele saiba onde (MENDONÇA, 1996).

 

Tentemos mais alguns passos. “Pois todo saber é um presente que se conquista na paciência [...]” (BORNHEIM,1969).

 

Para o homem finito não há saber que seja completo, definitivo, satisfatório. [...] Mas, em si mesmo, o saber humano como tal, justamente por ser finito, é sempre trabalhado por uma insatisfação sem fim: ‘no vigor de sua constituição ontológica todos os homens desejam ardentemente saber’" (LEÃO, 1991b).

 

E cá estamos. Achados e perdidos, em busca de um refúgio, onde possamos descansar.

Se ao menos soubéssemos o que não somos ou não queremos ser... mas mesmo aí nos enganamos.

Precisamos do espanto, da admiração e da surpresa; romper com os grilhões das certezas prematuras e do tédio conseqüente.

Precisamos ir atrás daquilo que nos é mais intrínseco, nosso tesouro, nossa verdade essencial. Precisamos descobrir, para muito além de nossos conhecimentos, nossa sabedoria. Precisamos descobrirmo-nos sábios, elevarmo-nos a outras regiões, ocuparmos outras paragens. Entregarmo-nos à natureza de que somos feitos e da qual nos apartamos. Recobrar nossa liberdade e consciência.

 

A nossa primeira tarefa, como seres humanos livres e conscientes, é a de trabalharmos a nossa Neurose, a nossa mediocridade, a nossa estupidez, a nossa burrice, a nossa passionalidade, o nosso egoísmo, o nosso orgulho, a nossa autocompaixão e as demais distorções. Isto em si já é um Grande Caminho de Iniciação (MORAES, 1997a).

 

Estamos dispostos?

 

Sabedoria é aprendizado. [...] Mas onde está o progresso humano e espiritual? Onde estão os homens sábios? Onde estão as mulheres sábias? Onde estão os médicos sábios, os pedagogos sábios, os agricultores sábios, os artistas sábios, os políticos sábios, os comerciantes sábios, as mães sábias, os pais sábios? Onde estão? [...]

E como se torna um ser humano sábio? (MORAES, 1997b).

 

É o que desejamos ou podemos nos contentar com a avalanche de informações e com a quantidade de certificados acumulados?
Precisamos decidir em que caminho queremos nos postar e aí termos a coragem de segui-lo.

A escolha cabe a cada um de nós.

“Germinam os desejos da alma,
crescem os frutos da vontade,
maturam os frutos da vida.

Eu sinto meu destino,
meu destino me encontra.
Eu sinto minha estrela,
minha estrela me encontra.
Eu sinto meus objetivos,
meus objetivos me encontram.

Minha alma e o mundo são um só”.

(RUDOLF STEINER in HAETINGER, 2005)


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ABRANCHES, A. (org.) - O que nos faz pensar. Cadernos do Departamento de Filosofia da Puc-Rio. Rio de Janeiro, 1996.

BORNHEIM, G. A. - Introdução ao Filosofar: O Pensamento Filosófico em Bases Existenciais. Ed. Globo. São Paulo, 1969.

CALLIGARIS, C. - Cartas a um Jovem Terapeuta. Elsevier Editora. Rio de Janeiro, 2004.

CARDOSO, E. R. G. - A Formação Profissional do Psicoterapeuta. Summus Editorial. São Paulo, 1985.

CAVANELLAS, L. B. - A Gestalt Terapia no Envio da Modernidade: Teoria e Técnica na Confrontação da Dor. Dissertação de mestrado defendida em 1998 no Instituto de Filosofia da Uerj.

HAETINGER, H. (org.) - Poemas, Pensamentos. Editora Antroposófica. São Paulo, 2005.

HEIDEGGER, M. - Ensaios e Conferências. Editora Vozes. Rio de Janeiro, 1997.

LEÃO, E. C. - Aprendendo a Pensar. Editora Vozes. Rio de Janeiro, 1991.

MENDONÇA, E. P. - O Mundo precisa de Filosofia. Editora Agir. Rio de Janeiro, 1996.

MORAES, W. A. - O Caminho Interior (e o Exterior) do Médico (ou do Terapeuta). Apostila do Instituto Gaia. Rio de Janeiro, 1997.


ANEXO

(C. Calligaris)

Resumindo, meu jovem amigo que pensa em ser terapeuta, se você sofre, se seus desejos são um pouco (ou mesmo muito) estranhos, se (graças à sua estranheza) você contempla com carinho e sem julgar (ou quase) a variedade das condutas humanas, se gosta da palavra e se não é animado pelo projeto de se tornar um notável de sua comunidade, amado e respeitado pela vida afora, então, bem-vindo ao clube: talvez a psicoterapia seja uma profissão para você.