ARTIGO

Onde estávamos, como estamos, para onde pretendemos ir: em busca de um formato terapêutico para o atendimento de famílias em situação de violência.*

Where we were, how we are, for where we intend to go: in search of a therapeutic format to treat families in situations of violence.

Cintia Brasil Simões Pires
Heloísa Costa
Maria Adélia Saturnino
Eliane Messina
Ludmila Azambuja.

As autoras são afiliadas ao ITF – Instituto de Terapia de Família do Rio de Janeiro , atual Multiversa – Rio de Janeiro (RJ)


RESUMO

Este artigo propõe apresentar o processo de formação de uma equipe de atendimento a famílias em situação de violência, na Clínica Social do ITF/RJ. A riqueza da especificidade deste tema trouxe a idéia de escrever o presente trabalho. Esse tipo de atendimento inclui algumas particularidades que motivaram a criação e recriação de uma metodologia própria, norteada na flexibilização dos formatos da Clínica Social. O embasamento teórico é sistêmico e construcionista, e nos amparam as crenças no potencial de mudança e crescimento da família, no resgate da dignidade de cada indivíduo e na construção de novas relações. O trabalho executado inclui, ainda, a construção de uma linguagem comum e de vínculos de confiança entre os membros da equipe, imprescindíveis para nos aproximar e compartilhar a dor das famílias e criar contextos de conversa produtiva. Em relação aos resultados obtidos, acreditamos que o ponto de partida seja a criação de contextos adequados de conversação, onde se inclui paciência, sensibilidade, delicadeza, respeito, compreensão e confiança na sabedoria das famílias, regidos pela ética da visão sistêmica.

Palavras-chave: terapia de família, violência, atendimento terapêutico.


ABSTRACT

This article intends to present the shaping of a workgroup specialized in counseling families living with violence at the Social Clinic of the Institute of Family Therapy of Rio de Janeiro. The magnitude and specificity of this subject have generated the idea of writing this paper. This kind of clinic practice includes some particularities which have motivated the creation and recreation of a specific methodology inspired in rewriting the patterns of the Social Clinic. The theoretical support is systemic and constructionist based in the belief of the potential for change and growth within these families, as well as the possibility for them in rescuing the dignity of each individual and building more viable relationships. The work carried out includes the construction of a common language and trust bonds between the family members. These aspects are unavoidable if we intend to get closer and share these families’ pain, as well as creating productive conversation contexts. As for the results obtained we believe the starting point is the creation of adequate conversation contexts in which we are able to enhance patience, sensitiveness, delicacy, respect, comprehension and the wisdom of these families, oriented by the ethics of the systemic vision.

Keywords: family therapy, violence, clinical practice.


INTRODUÇÃO

Neste trabalho, nosso propósito é contar a história da formação de nossa equipe de Atendimento de Famílias em Situação de Violência. Contar como começamos, que expectativas trazíamos e como essas expectativas foram se redimensionando e permitindo a construção de uma prática diferente daquela que imaginávamos. Trataremos mais detidamente dos desafios que nos levaram a constantemente indagar e revisitar essa mesma prática.

A idéia de escrever esse trabalho estava presente, inicialmente, na necessidade de dividir com outras pessoas a riqueza da especificidade do tema e, com grande satisfação, percebemos o quanto escrevê-lo nos ajudou na sistematização da nossa experiência, permitindo ampliar reflexões e projetar caminhos possíveis.

Compartilhamos a visão de Tom Andersen quando, com base em Thomas Kuhn, ele alerta para o fato de que, quando se pesquisa com objetivos muito consolidados dentro de determinado paradigma, reforça-se a certeza de encontrar somente respostas que corroborem essas mesmas teorias. Assim, procuramos fazer, aqui, o que Tom Andersen (1998) diz fazer quando deixa falar, primeiramente, sua intuição:

Ao retraçar meus caminhos profissionais, minha intuição me diz que devo primeiro tomar parte e, então sentar e pensar a respeito deste tomar parte, e não pensar primeiro e só então tomar parte. Como estou certo de que meu pensamento está comigo ao tomar parte, sinto-me muito confortável fazendo o que minha intuição sugere. (p.70).

Assim, acreditamos, como Andersen, que “permitindo que a prática seja tão livre quanto possível em sua busca de descrições e entendimentos” ela pode “desafiar e até mesmo expandir estas teorias”. Nesse sentido, nós também falaremos da “prática em primeiro lugar”, para então, a partir dela, ensaiar algumas teorizações.

Quem somos e onde estávamos:

Somos 7 profissionais – psicólogas, fonoaudióloga e assistente social –, com formação em terapia de família, direito e mediação, coordenadas por Rosana Rapizo, na Clínica Social do Instituto de Terapia de Família do Rio de Janeiro.

Nosso trabalho começou há um ano e meio e tinha como proposta inicial o atendimento a famílias em situação de violência, que, antes da formação da equipe, eram absorvidas dentro do público da Clínica Social, sem receberem uma atenção especial.

Este grupo surgiu, então, a partir da compreensão de que estas famílias mereciam uma atenção específica, em função das peculiaridades que envolviam esse tipo de atendimento: situações de risco; necessidade de suporte institucional; intercâmbio e comunicação freqüente com outras instituições afins; temores dos profissionais ao conviver com situações limite; o tempo de cronificação reportado em alguns casos.

Antes de dar início aos atendimentos começamos como um grupo de estudos, com leituras, conversas e reflexões. Alguns conceitos estudados mostraram-se especialmente significativos e tornaram-se norteadores de nosso trabalho.

 

A leitura do livro de Cristina Ravazzola (1999) foi de fundamental importância. Ela nos ensinou que “as emoções de mal estar, indignação, asco, medo, raiva...” e “a consciência do horror que despertam as relações de abuso na família têm resultados benéficos. Permitem que falemos em voz alta de nossas histórias; que a contemos (...) como forma de chegar a todos e de sensibilizarmo-nos, e assim livra-nos de nossa “anestesia”. (p.26).

 

Outras leituras também foram necessárias para nos lembrar que um terapeuta “busca sua identidade, sua coerência, sabendo que seu conhecimento revela muito mais de si mesmo do que de um mundo independente de sua ação. Surge um terapeuta que, envolvido no processo terapêutico, tem como tarefa cotidiana, possivelmente, como maior desafio, o exercício da auto-referência e reflexão”. (RAPIZO, 1998, p.99).

 

Nesse sentido, as nossas próprias reflexões, nossa possibilidade de falar “em voz alta” sobre nossos preconceitos e limitações, fizeram-nos pensar que já estávamos prontas para os atendimentos. Além disso, ao criarmos um ambiente propício para que cada uma de nós se sentisse acolhida, com nossos sentimentos e limitações, acreditávamos que poderíamos oferecer este mesmo ambiente para as famílias.

Tomamos como ponto de partida a definição de violência familiar proposta por Ravazzola (1999) que considera que “em um grupo social doméstico que mantém uma relação cotidiana e significativa, supostamente, de amor e proteção existe “ violência familiar” quando uma pessoa, fisicamente mais frágil que a outra, é vítima de abuso físico ou psíquico por parte da outra. Aos atos mesmos se somam as condições em que se produzem, que são de tal natureza que tornam difícil implementar recursos de controle social capazes de regular e impedir essas práticas, as quais, portanto, tendem a repetir-se.( p.40)

A autora ainda nos propõe que a violência familiar é parte de uma estrutura que possui algumas características que tornam possível a interação violenta:

· Quando os membros da família não têm autonomia para eleger outros grupos de pertencimento, e se mostram dependentes uns dos outros;
· Quando há subordinação dos membros a um estereótipo que implica numa desigualdade hierárquica fixa e no reconhecimento de uma autoridade, guardião do sistema; e
· Quando o entrelaçamento dessas (anteriores) legitima o abuso, pois está apoiado por um consenso que o justifica, e proporciona impunidade ao abusador.

Então, estabelecendo nossos vínculos, trocando nossas histórias e experiências, estávamos construindo uma linguagem própria que pudesse dar conta da compreensão do sofrimento trazido pelas famílias, bem como do eco que esses sentimentos produziam em nós mesmas.

Após, aproximadamente, seis meses de estudo começamos o atendimento clínico.

Organização do tempo da equipe

Inicialmente, nossos encontros duravam duas horas, sendo uma hora de atendimento e uma hora dedicada à pré e pós-sessão.

Posteriormente ampliamos esse espaço para três horas, visando incluir um tempo para estudo. Atualmente, o horário está sendo dividido entre dois atendimentos: meia hora para pré e pós-sessão e meia hora para supervisão e estudos ocasionais. Essa última alteração se deu em função de um amadurecimento da equipe, possibilitando um maior número de atendimentos, bem como do aumento da demanda da clínica social.

Formato do atendimento terapêutico

O atendimento se dá em etapas distintas e sucessivas, que incluem sala de espera e atendimento propriamente dito.

1. Sala de Espera
Trata-se de uma reunião na qual participam todas as famílias (ou seus representantes) inscritas na clínica social do ITF. Uma equipe conduz a sessão enquanto outra observa e complementa os dados já informados pela família. Após esse encontro, fichas são preenchidas e repassadas a equipes de atendimento. As famílias na fila de espera são convidadas a continuar vindo a essas sessões, que ocorrem a cada quinze dias.

Em um primeiro formato, os casos para equipe de violência eram selecionados quando constava na ficha alguma alusão a algum tipo de violência familiar. Percebeu-se que muitas vezes esse tema não era trazido neste primeiro momento em função das pessoas nem sempre se sentirem à vontade para fazê-lo. Em outros casos, tocavam no tema violência de forma muito minimizada para o que estava de fato acontecendo na família. E ainda, em outros casos, embora raramente, este tema aparecia na ficha ou na conversa da sala de espera de forma muito forte, que nem sempre correspondia a narrativas posteriores.

A partir destas constatações, ficou resolvido que as pessoas cujas fichas ou relatos incluíssem algum tipo de possibilidade de violência familiar seriam convidadas por um dos membros da equipe da Sala de Espera para uma conversa que pudesse melhor focar o problema.

Embora essa seja a forma que estamos experimentando no momento, continuamos abertas para modificar este procedimento no sentido de dar conta das dificuldades que as famílias encontram em tocar em temas tão constrangedores em um primeiro contato. As dificuldades de reconhecer estes casos em um processo inicial de triagem e, muitas vezes, até mesmo nas sessões iniciais de um processo terapêutico, nos fazem permanecer flexíveis para experimentar novos formatos de triagem e atendimento.

2. Atendimento Terapêutico
O atendimento dessas famílias é feito a partir de um contato inicial por telefone e agendamento da primeira sessão. As sessões duram sessenta minutos, com um ou dois terapeutas no campo e o restante da equipe atrás do espelho. A participação da equipe pode ocorrer pela entrada de uma ou mais pessoas, inclusive para realizar um trabalho de equipe reflexiva nos moldes propostos por Tom Andersen (2002, p. 65).

Inicialmente, fazíamos um contrato de oito sessões podendo ser renovado de acordo com a necessidade da família. Em função do aumento da demanda e da percepção de que alguns casos não necessitavam permanecer na instituição, usufruindo o atendimento da equipe completa, modificamos novamente o contrato.

Atualmente, estamos experimentando um novo formato com contrato inicial de três sessões “de esclarecimento”, que têm por finalidade conhecer melhor a história da família e, então, pensar em conjunto qual seria a melhor forma de dar prosseguimento: continuar com a equipe no ITF, ser encaminhada para outra instituição, ser indicada para atendimento clínico individual, ou de família, em consultório particular com, no mínimo, duas pessoas da equipe.

A permanência na instituição depois das três sessões de esclarecimento dependerá do tipo de encaminhamento – quando judicial a família não poderá ser atendida fora do ITF – ou da gravidade do caso que determinaria a necessidade de apoio institucional.


Nossas expectativas

Quando nos propusemos a atender famílias em situação de violência sabíamos que encontraríamos diversos desafios, mas não avaliávamos com clareza que as peculiaridades deste tipo de trabalho nos levariam a ter de fazer algumas modificações no processo de triagem e em algumas das exigências do ITF, cujas regras de atendimento de família dentro da clínica social – sessões quinzenais, desligamento automático no caso de uma falta não avisada com antecedência, valor da consulta de zero a R$ 70,00 (setenta reais), nem sempre puderam ser seguidas.

Tínhamos também algumas expectativas quanto ao tipo de clientela que procuraria nosso serviço. Acreditávamos que, na maioria dos casos, a violência familiar estaria ligada a uma questão de gênero e/ou dependência econômica. Na nossa prática, esses fatores têm aparecido com uma freqüência muito menor do que imaginávamos. Deparamo-nos com uma grande diversidade de comportamentos violentos em múltiplos contextos relacionais (mulher-marido, filhos-pais, ex-cônjuge, irmãos, parentes, etc.).

Também esperávamos atender predominantemente casos pertencentes a classes socialmente desfavorecidas o que, na realidade, não se confirmou. Tivemos famílias provenientes de diferentes classes sociais.

Desafios da Prática e Caminhos Possíveis

Atender famílias em situação de violência tem sido um grande desafio para todas nós. Independentemente do tempo de experiência clínica com famílias, deparamo-nos a cada passo com a necessidade de revermos nossos norteadores e adequá-los a uma demanda que se apresenta como nova e diferenciada a cada situação.

O início da terapia em geral é um momento de conhecimento mútuo, de dar os primeiros passos em direção à exploração de um terreno, que nestes casos, é muito tortuoso. Percebemos algumas ambivalências: no que tange à forma como o tema violência é trazido, em alguns casos este demora a aparecer ou aparece, durante um bom tempo, com outro nome (dificuldade de relacionamento, conflito, agressividade), em outros, as famílias preferem falar sistematicamente dos episódios de violência, de forma tal que nos parece ser esta a única linguagem conhecida e possível no relacionamento entre eles naquele momento.

Percebemos também que o fato violento é raramente trazido com as mesmas dimensões nos relatos que a própria família faz nas diferentes instâncias pelas quais passou (Juizados, Conselhos Tutelares, Sala de Espera e Atendimento). Na realidade, as famílias parecem relatar os episódios de violência de acordo com a forma como conseguiram digerir essas experiências, com o tempo passado, o momento e os interlocutores. As mesmas experiências aparecem ora evidenciadas, ora como “pano de fundo”.

Assim, um de nossos desafios é conseguir criar contextos adequados para conversarmos com famílias que precisam cuidar de temas tão delicados. Sendo o motivo da consulta, - a violência, maus tratos, etc, - este assunto tende a aparecer na primeira sessão (explícita ou implicitamente), quando ainda não se criou com a família um clima propício, um contexto que torne possível uma conversa mais fluida e produtiva para abordar temas que causam vergonha, constrangimento, medo de ser acusado, criticado ou julgado.

Além disso, muitas dessas famílias já passaram por outros lugares e equipes, inclusive procedimentos judiciais que, por terem outros objetivos, trataram a situação de forma diferenciada, oferecendo-lhes outros recursos que não terapia de família. Todos estes cenários estarão permeando e interferindo no início do atendimento.

O primeiro contato telefônico, além de todas as funções já conhecidas por nós, adquire muitas vezes, nestas situações, uma forma de se começar a criar vínculos, diminuir possíveis inibições e constrangimentos, conhecer possibilidades e limites das famílias e de nosso trabalho. Chamou-nos a atenção que, em alguns casos, a conversa por telefone foi determinante nos caminhos tomados pelo processo terapêutico.

Ao longo de nosso trabalho temos percebido também que as famílias que nos procuram têm dificuldades em organizar-se quanto aos horários pré-estabelecidos, à freqüência e aos diferentes acordos feitos com os terapeutas. Isso tudo nos faz pensar que talvez seja a violência que ocupa tanto espaço, desorganizando o cotidiano e atrapalhando a noção de tempo. Achamos que, de fato, a tensão proveniente da imprevisibilidade da violência gera um estresse que interfere na capacidade da pessoa planejar seu dia a dia e dificulta a tomada de decisões. Esta é uma hipótese para os recorrentes atrasos, esquecimentos e confusões.

Ainda em relação ao que percebemos, há um ponto inquietante para nós. As pessoas da família envolvidas nos episódios de violência parecem estar de alguma forma coladas, como se não percebessem suas fronteiras física e psíquica. Achamos que as provocações feitas ao agressor pelos que sofrem a violência têm a finalidade de barrar a invasão psíquica desse, quebrar a expectativa, devolver à vítima o controle de suas ansiedade e tensão, e deter o poder do agressor de transtornar sua vida, mesmo que por um momento.

Recentemente, estamos nos propondo a telefonar um dia antes da sessão, confirmando a presença das pessoas e a disponibilidade dos terapeutas. Decidimos por esta forma em função da grande quantidade de faltas que ocorriam e, acima de tudo, porque entendemos que estas famílias, mais que outras, precisam se sentir acolhidas e cuidadas, e este telefonema de confirmação também tem como finalidade dar um novo fôlego à família para se organizar e administrar possíveis imprevistos.

Hoje também nos vemos avaliando, a cada caso, qual será a periodicidade possível entre uma sessão e outra. Em algumas situações, achamos o intervalo de 15 (quinze) dias entre as sessões enorme. Em outros, não vemos nenhuma possibilidade da família ter mais de uma sessão por mês. Elas sinalizam suas possibilidades de diferentes maneiras – urgência do assunto, incompatibilidades de horários dos membros da família.

Outra situação enfrentada pelo grupo, que não é diferente de outros casos dentro da instituição, é a presença de algum tipo de demanda psiquiátrica. O que temos feito até agora é observar caso a caso, sempre levando em conta e avaliando a possibilidade do bom prosseguimento do trabalho.

Outro desafio é a heterogeneidade da clientela que atendemos. Recebemos casos cujos episódios de violência tinham começado a acontecer recentemente na família, outros com histórias crônicas e ainda outros nos quais a violência física tinha ocorrido em uma geração anterior, mas cujos efeitos continuavam muito presentes.

Há ainda outros pontos delicados para nós terapeutas quando, por exemplo, já fazendo parte do contexto, somos alvo de agressões e de questionamentos por parte dos familiares, ou quando, na ciranda das conversas, a violência se exacerba, o que foi construído se desfaz, e nós terapeutas somos obrigados a frustrar nossa hipótese, abandonar a tenda em que nos encontramos e nos sentimos protegidos, lembrando que eles são os especialistas e que devemos confiar na sabedoria de suas escolhas.

Atender a este tipo de demanda nos põe em contato com algumas situações que não fazem parte da nossa vida cotidiana pessoal. Temos percebido que isso gera impactos que precisam ser absorvidos pela equipe. Neste sentido mostrou-se essencial que já tivéssemos construído vínculos de confiança e uma linguagem em comum para poder receber e resignificar estas situações e, assim, criar novas condições de atendimento.

Também estamos sempre atentas a alguns sentimentos e sintomas físicos que aparecem na equipe. Algumas vezes esses sentimentos são antagônicos ao que está acontecendo no campo durante o atendimento (sessões verbalmente intensas que geram uma certa apatia e sono na equipe). Em outros momentos, o que acontece no campo desperta sentimentos que nos prendem na mesma sintonia da família (impotência, irritabilidade, tristeza, raiva, etc.). As reflexões pós-sessão são fundamentais para nos revitalizar e nos preparar no delicado aprendizado de identificar essas situações.

CONCLUSÃO

Perceber como a violência agride o ser mais essencial das pessoas, sua intimidade, sua sensibilidade, como deixa marcas profundas, permanece um dos grandes desafios deste trabalho. Muitas dessas experiências parecem irreparáveis. Acreditar no resgate dessas histórias, no resgate da dignidade dessas pessoas nem sempre é fácil. Procuramos inspiração em Ravazzola (1999) quando diz:

Tenho aprendido a apreciar a enorme capacidade de mudança e de crescimento de cada ser humano. A partir destas experiências, percebo igualmente que não sou melhor que eles, e que o que faz com que me respeitem, e me faça respeitar os demais, é que tomei a decisão de esforçar-me, em cada momento, no exercício da necessária contenção quanto a mim mesma e aos demais (p. 27).

Nosso percurso de descobertas ao longo deste trabalho nos fez crer e ver as diferentes tonalidades das histórias dessas famílias. Compreendemos que não é um trabalho simples de se executar. Como um restaurador de obras de arte, precisamos ter paciência, sensibilidade, delicadeza, respeito, compreensão e confiança de que cada um tem o seu próprio tempo interno para se restaurar.

Parece-nos que, inicialmente, precisamos resgatar a confiança estética que tem o restaurador, quando, ao se deparar com uma obra de arte, consegue vislumbrar nela seu potencial. Ao mesmo tempo deixar que nossa “ética, baseada na visão sistêmica e na possibilidade de multiversos, permita que possamos trabalhar nossos preconceitos para mergulhar no mundo de outras pessoas, mas sem nunca deixar de nortear nosso trabalho pelo repúdio e pela não aceitação da violência como forma de relação”. (RAPIZO, 2003 – em colóquio interno)

A equipe foi e voltou várias vezes no seu percurso. Cada caso que surgia trazia uma nova fala, uma descoberta diferenciada, um sentimento novo despertado dentro de nós. E foi compartilhando a dor de cada família que conseguimos desenhar nosso trabalho.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ANDERSEN, Tom. “Reflexões sobre a reflexão com as famílias”. In: McNAMEE, S. & GERGEN, K. (Orgs.). A terapia como construção social. Porto Alegre: Artes Médicas, 1998.

______ Processos reflexivos. Rio de Janeiro: Instituto NOOS/ITF, 2002.

RAPIZO, R. Terapia Sistêmica de Família: da instrução à construção. Rio de Janeiro: Instituto NOOS, 1998.

RAVAZZOLA, María Cristina. Historias infames: los maltratos en las relaciones. Buenos Aires: Paidós, 1999.

 

* Este artigo foi originalmente escrito para ser apresentado no I Congresso de Terapia de Família, realizado em Florianópolis, em 2004.