ARTIGO

Gestalterapia: dialógica da provocação.

Afonso Henrique Lisboa da Fonseca


É evidente o caráter provocativo das atitudes, do método, do fundamento da Gestalterapia.

Isto é muito claro, em particular no estilo de Fritz Perls.

É uma compreensão superficial deste caráter provocativo, todavia, uma incompreensão de seus fundamentos, um fator responsável por distorções de cunho empirista, muito comuns na concepção e na prática da Gestalterapia.

Indubitavelmente, entretanto, a Gestalterapia tem este caráter eminentemente provocativo. É essencial portanto compreender o que significa a natureza deste seu caráter. Compreender, em especial, o intrínseco e indissociável aspecto dialógico deste do caráter provocativo da Gestalterapia.

Da mesma forma que o seu caráter provocativo, a dimensão dialógica deste caráter é uma intrínseca e indissociável conditio sine qua non da concepção e da prática da Gestalterapia.

Devidamente considerada esta articulação intrínseca e necessária, parece certamente uma boa compreensão da Gestalterapia a que deriva da expressão Dialógica da Provocação.

Numa certa perspectiva fundamental, pelo menos, a prática da Gestalterapia é isto: uma dialógica da provocação. Mas é necessário que se evite uma perspectiva vulgar de concepção dos termos desta expressão e de concepção da própria Gestalterapia. Perspectiva vulgar que tem sido muito comum na sua disseminação, resultando em grosseria empirista, ou pura grosseria e falta de educação, no contexto de delicadas relações entre cliente e um suposto terapeuta, ou entre facilitadores e os participantes de grupos.

PROVOCAÇÃO

De um modo geral, o termo "provocador" ou "provocação" não têm uma boa reputação, a não ser em certos sentidos bem específicos. Não é algo com que alguém queira identificar-se normalmente. Esta aversão simples e automática a estes termos decorre naturalmente dos mecanismo de domesticação da agressividade saudável que desenvolveram-se na cultura da Civilização Ocidental. Mecanismos que nos fazem perder simbolicamente dentes e garras, e nos transformam em dóceis animais de rebanho, como já observava Nietzsche.

Estes mecanismos, reconhecidos como "patogênicos" (digamos), foram agressivamente confrontados e afrontados por Perls e por seu estilo, no desenvolvimento de sua concepção e prática da Gestalterapia. De modo que um traço marcante da concepção e da prática da Gestalterapia é exatamente uma aversão à docilidade compulsiva e doentia, paralisante – fonte e implicação necessária do niilismo e do ressentimento, e de uma paralisia e imobilização da potência criativa da vida: um resgate e uma busca da potencialização da agressividade saudável, da qual todos carecemos para afirmarmo-nos, para viver, ser e efetivamente acontecer no mundo. Agressividade que nada tem a ver com destrutividade ou violência, e que é, sempre, momento de um investimento criativo.

Provocativa é, assim, o mínimo que se pode dizer da auto-imagem da Gestalterapia.

Mas há que se entender que provocação, neste sentido, jamais tem haver com hostilidade, ofensa ou hostilização... Quando estas ocorrem na pratica de um suposto terapeuta, são indubitavelmente características pessoais nocivas deste, e jamais elementos da concepção da Gestalterapia.

O termo provocação vem de provocare*. Pro-vocare: favorecer a vocalização, favorecer a fala.

Vocalização e fala, não têm evidentemente, neste sentido, em particular em Gestalterapia, o seu sentido estrito. Não se trata apenas de favorecer meramente o verbal, o vocal, a verborréia. Mas de favorecer a própria ação, seja ela vocalização ou não, seja ela vocalização, ou a atualização de formas das múltiplas possibilidades da ação – fenomenação --, no instante vivido, vividamente vivido de preferência: fenomenação.

Ação é diferente de comportamento (cum portare, portar consigo).

A ação guarda fundamentalmente algo de fenomenal, algo de autoria original e singular, momentânea, pontual e pontualmente vivida, algo de unicidade, de irrepetibilidade, de dialógico. O comportamento diz respeito ao assimilado, ao que é comum à particularidade da pessoa e é compartilhado por outros.

Hannah Arendt observa:

A ação seria um luxo desnecessário, uma caprichosa interferência com as leis gerais do comportamento, se os homens não passassem de repetições interminavelmente reproduzíveis do mesmo modelo, todas dotadas da mesma natureza e essência, tão previsíveis quanto a natureza e a essência de qualquer outra coisa. A pluralidade é a condição da ação humana pelo fato de sermos todos os mesmos, isto é humanos, sem que ninguém seja exatamente igual a qualquer pessoa que tenha existido ou venha a existir.

No limite, é a possibilidade da ação que caracteriza o homem e a comunidade dos homens. A ação tem este caráter eminentemente inter humano

Hannah Arendt ainda dirá:

Só a ação é exclusiva do homem; nem um animal nem um deus é capaz de ação. E só a ação depende inteiramente da constante presença de outros.

É na potencialização da possibilidade humana especificamente ontológica da ação que a Gestalterapia vai constituir o seu fundamento. Trata-se de potencializar a ação, a cri-ação no contexto, e a partir, da atualidade existencial, do momentum vivido da pessoa. Trata-se especificamente de favorecer esta especifica potencialidade da pessoa. Potencialidade que se configura própria e especificamente na esfera do inter humano.

Trata-se de potencializar a ruptura da clausura do mero comportamento e da agressividade domesticada, através da potencialização da eclosão da possibilidade sempre latente da ação. Mesmo que seja mínima e efêmera esta eclosão, mas que possa encaminhar-se para uma habitualidade orgânica e saudável, compatível com as possibilidades, necessidades e carecimentos da pessoa e do mundo que lhe diz respeito.

De modo que a provocação gestáltica favorece fundamentalmente à expressividade, à existencialização do vivido único e irrepetível, a fenomenação, na potência de sua atualidade. Favorece assim a uma ruptura pontual com os padrões do mero comportamento. A situação gestáltica pretende-se eminentemente assim uma situação provocativa. O getalterapeuta pretende-se, assim, um provocador. O que interessa é exercer-se como provocador, neste sentido, no contexto, no âmbito e duração da relação pontual com o cliente. Subentendido, naturalmente, que isto nada guarda de hostilidade ou hostilização, de grosseria.

Ainda que possam ser intensivas, a provocação ou a ação provocada não carecem de ser compulsivas ou obsessivas. De modo rigorosamente distraído – "distraídos venceremos" (Leminsky) --, a provocação gestáltica busca constituir-se nos fluxos e contra-fluxos ativos e afirmativos do vivido, nos fluxos e contrafluxos da espontaneidade da auto-regulação organísmica.

Nunca seria demais observar a sensatez organísmica que se expressa no I Ching:

As palavras são um movimento do interior para o exterior. Comer e beber são movimentos do exterior para o interior. Essas duas formas de movimento podem ser moderadas através da tranqüilidade. A tranqüilidade faz com que as palavras e os alimentos não excedam a justa medida. Deste modo cultiva-se o caráter (27. I/AS BORDAS DA BOCA -- PROVER ALIMENTO).

DIALOGICIDADE E PROVOCAÇÃO

A situação gestáltica e o getalterapeutas são provocativos em sua efetividade especificamente porque são dialógicos. E o são especificamente porque entendem o quanto da possibilidade da ontogênese do humano, da criação e da recriação do humano, repousam na possibilidade do dialógico.

Quanto de fundador da psicologia e da psicoterapia fenomenológico existencial não está contido no sentido da simples frase de Buber: "O homem se torna EU na relação com o TU..."

Funda-se aí, na consideração pelo sentido ontogênico fundamental do dialógico inter humano desta formulação, a possibilidade e a efetividade de uma psicologia e psicoterapia fenomenológico existencial dialógica. Pauta-se esta por uma certa reciprocidade pontual, por uma atenção interessada e ativa, confirmativa, pela atualidade e presença pontual, diferença, do outro.

Reciprocidade e atenção estas que se dão na medida em que se pode, na afirmação do devir, do ser do devir, atualizar-se efetivamente como outro. Outro do outro, e outro de si mesmo.

Digo efetivamente porque ser outro é efetivamente ser ator: ser sensível e fidedignamente ativo e expressivo, atuação, do sentido da diferença pontual emergente na fugacidade do encontro.

O sentido do ser outro do outro ganha uma formulação sublime nas palavras cristalinas e um tanto quanto perplexas de Clarice Lispector:

Eu antes tinha querido ser os outros para conhecer o que não era eu, entendí então que eu já tinha sido os outros e isso era fácil. Minha experiência maior seria ser o outro dos outros, e o outro dos outros era eu.

Qualquer terapeuta ou psicólogo fenomenológico existencial efetivo vê-se uma hora envolvido pelo insight e perplexidade de Clarice. Porque é esta a matéria prima e o substrato fundamental de seu trabalho.

Confrontar-se e abrir-se para a outridade do outro. Para com ele ser outro.

Por interesse e entusiasmo ontológico, oferecer-se para a relação, abrir-se e confrontar-se com o outro, ser ativa e afirmativamente o outro do outro. Potencializar, desta forma, da mesma forma que ele pode potencializar em mim, a possibilidade de que ele possa ativa e afirmativamente ser outro, de si próprio e de mim. Autor, ativa e afirmativamente, expressivamente, ator da emergência (em ambos os sentidos) da diferença de si... Possibilitando assim a ruptura da repetitividade, da mesmidade, da fatalidade pretensa, do comportamento mero e medíocre.

Ser ativa e afirmativamente o outro do outro é enormemente provocativo...

Envolve a abertura para e o privilegiamento da presença pontual, e em devir, do outro, do diferente em sua diferença, em devir.

Buber observará que só existe presente na presença, e o que caracteriza a presença é a atualidade e a atualização da diferença, da alteridade, do TU. Com relação ao caráter eminentemente ativo da presença e da atualidade (atualização/atuação/fenomenação) Buber observa:

Na atualidade vivida não há unidade do ser. A atualidade é somente ação. Sua força e profundidade são as desta ação. E mais, só há "interior" na medida em que houver ação mútua. A atualidade mais forte e profunda é aquela onde tudo dirige-se à ação...

De modo que Gestalterapia é, assim, uma dialógica da provocação. A compreensão e a efetivação da Gestalterapia neste seu caráter dialógico de provocação demandam sutileza e paciência, paciência que na verdade é momento rítmico da afirmação, mais precisamente, da afirmação da afirmação, dos fluxos do vivido na pontualidade do instante.