ARTIGO

A utilização do atendimento em equipe no treinamento de gestalt-terapeutas.

The use of the team attendance in the training of gestalt-therapists.

Marcelo Pinheiro


RESUMO

Neste trabalho busco discutir a riqueza do atendimento de famílias em equipe como método de treinamento de gestalt-terapeutas, especialmente no que se refere a um aspecto fundamental neste processo que é a possibilidade de facilitar que os alunos construam suas identidades enquanto psicoterapeutas com este referencial. Para tanto inicialmente defino o que é Gestalt-Terapia, sublinho alguns aspectos fundamentais no treinamento de profissionais nesta abordagem, cito as principais estratégias utilizadas neste tipo de treinamento e descrevo a metodologia utilizada no curso “Especialização em Psicologia Clinica - Gestalt-Terapia (Individuo Grupo e Família)” ministrado no IGT - Instituto de Gestalt-Terapia e Atendimento Familiar. A partir desta base busco compartilhar minha experiência com o uso do atendimento em equipe, e em especial com a utilização do método reflexivo no treinamento de terapeutas no referencial gestáltico.

Palavras-chave: gestalt-Terapia; treinamento; terapia familiar; formação; especialização; psicologia clínica; atendimento em equipe; equipe reflexiva.


ABSTRACT

In this work I intend to discuss the richness of the family attendance in team as a training method of gestalt-therapists, especially when it refers to a basic aspect in this process that is the possibility of facilitate that the students to construct its identities as gestalt-therapists. First of all I define what is Gestalt-Therapy, salient some basic aspects in the professional training in this approach, mention the main strategies used in this type of training and describe the methodology used in the course "Specialization in Clinical Psychology - Gestalt-Therapy (Individual, Group and Family)" given in the IGT - Institute of Gestalt-Therapy and Familiar Attendance. Based on it I try to share my experience on using the team attendance, specially with the utilization of the reflexive method in the training of the gestalt-therapists.

Keywords: gestalt-Therapy; training; familiar therapy; formation; specialization; clinical psychology; attendance in team; reflexive team.


INTRODUÇÃO

O treinamento de um gestalt-terapeuta é uma daquelas tarefas que é fácil e difícil ao mesmo tempo. Digo isso por que treinar um gestalt-terapeuta é antes de tudo facilitar que uma pessoa seja ela mesma. É criar um contexto adequado para que alguém aprenda como utilizar seu “ser” de forma a facilitar o desenvolvimento de uma outra pessoa. É como ajudar alguém a conhecer sua própria casa, conhecer o que ela tem de mais pessoal. Tarefa simples e ao mesmo tempo complexa. Simples por que olhar para o que se é a princípio seria fácil, pois não existe nada mais próximo de mim do que eu mesmo. Porém pode ser difícil enxergar o óbvio! É sempre impressionante perceber quantos universos de perspectivas são desconhecidos em nossa própria casa. É fascinante perceber quantas novidades podem ser descobertas se olharmos com curiosidade para as coisas que nos são mais familiares como, por exemplo, nosso próprio quarto. Se é possível encontrar um universo extremamente amplo de possibilidades observando algo concreto, imagine o que podemos encontrar olhando para um ser humano. Olhando para forma como um ser humano olha o mundo.

É com este desafio sempre renovado que temos nos deparado nos últimos anos no IGT. É claro que treinar um gestalt-terapeuta não é apenas ajudá-lo a ser ele mesmo. É certo que existem uma série de conhecimentos que dão sustentação a um tipo de atitude que ganham nome de Gestalt-Terapia, mas como é próprio desta abordagem este conhecimento deve ser desenvolvido no entre. Não é um conhecimento morto, não é um conhecimento desencarnado. É um conhecimento que só pode ser construído a partir de nossas experiências pessoais. Entender o pensamento gestáltico passa necessariamente por uma apropriação de nossas experiências pessoais a partir de uma determinada perspectiva. Toda vez que ensinamos este tipo de conceitos é como se eles tivessem que ser re-inventados junto com o a pessoa que está aprendendo.

Neste trabalho buscarei compartilhar um pouco de minha experiência e dos recursos que tenho utilizado na lida com esta tarefa. Vou abordar em especial a riqueza encontrada na utilização do atendimento em equipe como facilitador do desenvolvimento da identidade de um gestalt-terapeuta.

1) As peculiaridades do treinamento de um Gestalt-Terapeuta.

a. O que é Gestalt-Terapia.

Existem vários caminhos possíveis para se construir uma definição do que seja Gestalt-Terapia. Há quem afirme que Gestalt-Terapia “é o que Fritz fazia”. Outros buscariam defini-la a partir de bases de sustentação filosóficas afirmando ser “uma abordagem existencial fenomenológica...”. Poderíamos também seguir o caminho da comparação afirmando, por exemplo, que "A Gestalt é uma abordagem que valoriza o ”como” em detrimento do “por que?” característico de outras abordagens”. Outra nuance marcante passa pela afirmação da postura holística desta perspectiva. Todas essas colocações têm seu valor de verdade e além destes existem muitos outros caminhos possíveis para dar forma ao que é conhecido pelo nome de Gestalt-Terapia. Não pretendo aqui esgotar todos estes caminhos, isto seria impossível.

Pessoalmente gosto muito de olhar a Gestalt-terapia como uma abordagem radicalmente fenomenológica*, como uma ética e uma atitude, como uma determinada postura diante do universo, ou melhor, do multiverso que nos rodeia. Uma postura que envolve respeito humildade e presença. Respeito e humildade em função de uma noção clara da provisoriedade de toda e qualquer compreensão que possamos construir a cerca do nosso universo. O gestalt-terapeuta acredita que toda a percepção está atrelada a sua perspectiva, a seu ponto de vista, e o que chamo de ponto de vista não é apenas uma localização espacial, mas é também a constituição de um ser que observa e que para observar precisa partir de referenciais relacionados a sua história, história que se transforma continuamente e que em cada pequena transformação modifica, sutil, porém integralmente a perspectiva deste ser.

Respeito, humildade e presença. Por que presença? Presença porque, por mais que um gestalt-terapeuta busque estar atento a suas limitações diante de seu universo (e a palavra limitação aqui pode ser tranqüilamente substituída por identidade), ele tem uma noção clara de sua responsabilidade, de que a neutralidade é impossível. É impossível não influenciar, estamos sempre influenciando, estamos irremediavelmente condenados à conexão com o outro, pois somos esta conexão. Não existe um esconderijo ou abrigo aonde possamos nos resguardar de nossa responsabilidade em relação ao humano, ou melhor, em relação a nosso universo que abrange ainda mais que o humano que abrange toda a nossa realidade em suas várias dimensões. Inclusive passado presente e futuro (alguns dos autores ditos existencialistas trabalharam muito bem esta perspectiva). O gestalt-terapeuta está sempre buscando o ponto de equilíbrio, o limite saudável entre respeito e intervenção. A omissão é uma escolha e gera conseqüências. A intervenção é uma escolha e gera conseqüências. A busca vai na direção de estar ao lado do cliente. Nem à frente nem atrás. Ao lado. Nem fazer no lugar do cliente o que não gera saúde nem se omitir diante do cliente, o que também não traz equilíbrio. Estar ao lado é acompanhá-lo em sua busca. A ética entra aqui no amor a vida, no amor a relação. No amor ao equilíbrio, a sintonia, a harmonia, sempre presente no fluir construtivo da vida, e que deixa de existir quando as fronteiras, quando os limites são violentados ou perdidos. O gestalt-terapeuta é antes de tudo um guardião da relação. Usa de todos os recursos que dispõe para tornar claro o contorno, o limite, os aspectos presentes nas relações. Vida é relação. Cuidar de relação é cuidar de vida.

b. Objetivos do treinamento.

Treinar um gestalt-terapeuta é criar um ambiente adequado para que uma pessoa compreenda esta forma de olhar o mundo. À medida que um indivíduo constrói identidade com esse olhar, constrói aos poucos também a ampliação de sua compreensão acerca de seu ponto de vista, o que significa conhecer mais sobre de onde está olhando e sobre quem ele é enquanto quem olha.
Para criar este ambiente são necessários muitos ingredientes: é importante uma compreensão histórico-filosófica acerca desta maneira de olhar; é imprescindível propiciar a assimilação de uma série de conceitos que dão sustentação a prática; é fundamental construir mapas detalhados sobre a situação da prática clínica, sobre a condição humana, sobre o sentido do sofrimento humano, sobre o processo de desdobramento do ser humano etc.
Para que tudo isso possa ocorrer é fundamental a existência de um clima de confiança, de um clima de segurança onde o aluno possa se mostrar, se arriscar na exposição de sua compreensão e com isso se perceber e aprender.

c. Formas de treinamento mais encontradas em centros formadoras.

Aulas teórico-vivenciais associadas a workshops e a supervisões realizadas a partir de relatos de casos de atendimentos individuais, somados a prática em tríades onde os alunos atendem uns aos outros, ora tratando de situações verídicas, ora trabalhando com dramatizações. Estes recursos são extremamente válidos, porém tem algumas limitações: A supervisão a partir de relatos de sessões de atendimentos individuais é riquíssima e necessária, porém o supervisor trabalha a partir do relato construído através da perspectiva do supervisionando. Certamente é possível enxergar muitos aspectos da dinâmica terapeuta/cliente desta forma, porém com certeza outros aspectos que escapam a perspectiva do supervisionando jamais serão identificados através desta prática ou pelo menos demorarão muito a serem percebidos.

O atendimento observado de alunos por alunos supre em parte a lacuna deixada pela supervisão a partir de relatos de casos clínicos. A maior virtude desta prática está no fato de que o atendimento é assistido por pares e supervisores. Este contexto dá condição à entrada em cena de outras perspectivas além da do próprio aluno que fez o atendimento. Porém esta ainda é uma situação artificial na qual existe uma série de fatores que interferem na dinâmica, o que diminui a clareza da expressão do “ser” do terapeuta. Como fatores que interferem na presença do terapeuta na situação da tríade me refiro em especial a simples existência do observador que cria uma série de tensões estruturalmente distintas das tensões típicas da situação terapêutica individual.

d. Formato de treinamento utilizado no IGT na “Especialização em Psicologia Clinica - Gestalt-Terapia (Individuo Grupo e Família)”.

Da mesma forma que nos modelos mais tradicionais também utilizamos aulas teórico-vivenciais associadas a workshops. Buscamos criar várias situações com o objetivo de fornecer um contexto propício para que o aluno desenvolva, apoiado na prática, sua identidade como gestalt-terapeuta. Trabalhamos com o atendimento em tríades, acompanhamos os alunos na dinamização de sua própria turma, entre outras possibilidades. Nesta linha de prática com membros da própria turma no lugar de clientes utilizamos uma série de recursos que não estão ligados ao foco central deste trabalho por isso não entrarei em mais detalhes.

Quanto aos recursos que utilizamos na prática clínica propriamente dita, isto é, que envolve clientes de nossa clínica social, temos: atendimento individual supervisionado através de relatos do supervisionando, atendimento de grupo em co-terapia e atendimento de casais e famílias realizado por uma equipe terapêutica.

O atendimento a grupos em co-terapia já traz diferenças muito interessantes se comparado ao atendimento individual. Nesta situação são dois terapeutas vivenciando a interação clínica. Temos pelo menos duas perspectivas o que enriquece muito o contexto de supervisão. Entra em cena a dinâmica da dupla terapêutica que também merece extremo cuidado por parte do supervisor e traz toda uma possibilidade de experiências e de referências que facilitam de forma marcante na construção da identidade de cada um dos integrantes.

Desde 2002 temos usado o recurso do atendimento em equipe no treinamento de nossos alunos para o acompanhamento a casais e famílias no IGT. Temos adotado o recurso da equipe reflexiva que foi criado enquanto técnica e tem sido bastante divulgado pelo psiquiatra norueguês, Tom Andersen (2002).

O modelo de equipe que adotamos no IGT é o de 5 (cinco) alunos, sendo que 2 (dois) ficam com a família na sala de atendimento (equipe de campo) e 3 (três) acompanham o atendimento em uma sala ao lado, através de um espelho unidirecional na companhia de um supervisor (equipe reflexiva). Em determinados momentos da sessão, quando se faz necessário, os integrantes da equipe reflexiva conversam entre si, sendo vistos e escutados pela família e pelos terapeutas de campo, sobre o que chamou a atenção de cada um deles enquanto estavam assistindo o atendimento, sem nenhuma preocupação em chegar a um consenso ou a uma verdade única. Após esta intervenção o conjunto família / terapeutas de campo buscam conversar sobre o que acabaram de assistir. Os terapeutas de campo buscam utilizar as portas abertas pela equipe reflexiva, aprofundando ou tocando em novos temas.

São destinadas 2h (duas horas) para cada sessão terapêutica sendo que a primeira meia hora é destinada a pré-sessão, momento de troca que visa preparar a equipe para o atendimento, a duração da sessão é de 1h (uma hora) e a última meia hora é destinada a pós-sessão, novo momento de troca no qual a equipe reflete sobre o processo terapêutico.

Os momentos de pré-sessão e pós-sessão são extremamente ricos, especialmente no que se refere ao aprendizado dos alunos. Nestes momentos podemos trocar sobre a experiência de cada um dos participantes no calor dos acontecimentos. Temos a oportunidade de refletir sobre a família, sobre o funcionamento da equipe, sobre as diferentes perspectivas sempre presentes no atendimento e assim por diante.

Vale ressaltar a identidade deste tipo de prática com alguns dos valores mais caros para nossa abordagem. A aposta na relação terapêutica como fator facilitador do desenvolvimento humano se mostra evidente. A exposição da equipe reflexiva traz transparência, honestidade, presença e respeito por parte da família de terapeutas em relação à família que está sendo atendida. Alguns terapeutas se impressionam com a presença do espelho uni-direcional como se ele fosse atrapalhar o contato íntimo entre equipe e família. O espelho funciona como uma fronteira, marcante, porém permeável. Esta permeabilidade é controlável e é utilizada a serviço da relação. Não devemos esquecer que sem fronteiras não existe contato. Este tema é discutido de forma bem detalhada por mim em uma monografia publicada na IGT na Rede nº 3 com o título de “Equipe Reflexiva: Quais são as diferenças que criam diferenças?” (PINHEIRO, 2007).

2) Comentários Finais sobre os motivos e vantagens do uso do atendimento em equipe no treinamento de gestalt-terapeutas.

Esta tem sido uma prática extremamente útil no treinamento de terapeutas. Nesta situação os treinandos são assistidos por seus colegas de turma e pelo supervisor durante o atendimento. O supervisor coordena a equipe buscando construir um clima amistoso e saudável, de forma a que as diferentes perspectivas possam trazer riqueza para a dinâmica terapêutica, evitando disputas entre as diversas percepções, criando espaço para a convivência de olhares distintos, para a existência de um multiverso.

Há algumas semanas pude experienciar uma situação bastante e ilustrativa em relação à riqueza do convívio entre perspectivas distintas. Atendíamos a uma família composta por mãe e filha adolescente. Na equipe tínhamos pessoas que viviam momentos opostos em seus ciclos vitais familiares. Uma das terapeutas de campo na faixa dos 40 anos tinha enteados adolescentes. Uma das componentes da equipe reflexiva com cerca de 25 anos ainda morava na casa de seus pais experienciando um contexto de certa dependência muito parecido com o vivenciado pela filha da família. Rapidamente cada uma das duas terapeutas se identificou com a pessoa mais próxima de seu momento em seu ciclo vital familiar. A partir desta situação foi possível dialogar durante uma das pós-sessões de forma a que cada integrante da equipe buscasse descrever sua compreensão acerca das dificuldades encontradas por aquela família. Naquele momento certos aspectos da percepção de cada um dos integrantes da equipe ficaram claramente atrelados a perspectiva que suas próprias histórias familiares lhes apresentavam. O contraste entre estes diferentes olhares e a coerência das percepções com as histórias de vida, formam uma situação propícia para a conscientização por parte de cada membro da equipe a acerca de certos aspectos de suas identidades enquanto gestalt-terapeutas.

"Ao vivo e a cores" se pode ter uma condição privilegiada para discutir a atuação dos terapeutas. O supervisor assiste, participa da sessão e observa o processo, ao invés de receber um relato da sessão. Como ele normalmente também faz parte da equipe reflexiva, os alunos têm a chance de observá-lo trabalhando com a família. A troca se dá a partir do que se vê e não apenas de um relato.

O fato dos terapeutas de campo trabalharem em dupla traz mais uma vez uma situação interessante, pois duas pessoas diferentes estão vivendo a interação direta com a família. Esta situação permite a troca de experiências entre os terapeutas, dando margem à comparação das vivências, o que auxilia muito a que cada terapeuta se dê conta de sua forma de ser. De suas peculiaridades que se expressam naquela relação. O mesmo acontece na equipe reflexiva, pois são pessoas diferentes assistindo a uma mesma situação, cada uma reagindo de acordo com suas características, com sua personalidade. O contraste entre a forma de reagir e de se posicionar de cada uma daquelas pessoas como exemplifiquei acima cria um ambiente extremamente propício para que elas se apropriem de aspectos importantes de suas características pessoais, facilitando o desenvolvimento de suas identidades como gestalt-terapeutas. Vale à pena ressaltar que o amadurecimento dessa identidade adquirida no contexto do atendimento familiar evidentemente também se expressa de forma marcante tanto no atendimento individual como no atendimento de grupos.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ANDERSEN, Tom – Processos Reflexivos / Tom Andersen - Tradução: Rosa Maria Bergallo. Rio de Janeiro: Instituto NOOS: ITF 2002. 2º edição.

PINHEIRO, Marcelo – Equipe Reflexiva: Quais são as diferenças que criam diferenças? – Disponível na internet em <http://www.igt.psc.br/Revistas/R3/>: consulta efetuada em 10 fev. 2007.


* coloco a Gestalt como radicalmente fenomenológica em função de sua ênfase na observação do fenômeno a partir de sentidos, a partir de sua expressão no corpo, a partir das essências operativas.