A Formação de identidade

 

Silvana Bagno


O Brasil, desde a sua descoberta e colonização, é uma nação intercultural. Nosso povo é constituído pelas mais diversas etnias: indígenas nativos, portugueses, africanos, espanhóis, italianos, japoneses, etc. Parece-me relevante questionar como ocorrem os processos de migração e de adaptação sócio-cultural do imigrante e seus descendentes, e mais especificamente, do imigrante italiano; ou seja, quais as implicações de sair de seu país de origem, chegar a um novo país, se fixar nele e criar novas raízes? E ainda, como se dá o processo de aculturação por ocasião da imigração, de integração das duas culturas na formação da identidade, no senso de competência sócio-cultural e de auto-estima? Finalmente, qual a contribuição que o imigrante traz para a sociedade brasileira.
Tendo em vista que os temas propostos – “família de imigrantes italianos”, “aculturação”, “construção de identidade” e “formação de redes sociais em território brasileiro” - situam-se na interface entre produção de subjetividade e ordem social; nas relações entre indivíduo e sociedade, cultura e sociedade, história e imaginário social - carregada de crenças, valores, costumes, hábitos, rituais e tradições oriundos de práticas culturais específicas – e que o Fenômeno Migratório traz em si implicações políticas, econômicas, sociais e individuais, onde podemos perceber os seus desdobramentos para o indivíduo e seu grupo, abordaremos esse fenômeno através da interdisciplinaridade entre antropologia, sociologia, psicologia e história.
Este trabalho trata da formação da identidade e de redes sociais de famílias de imigrantes italianos de primeira, segunda e terceira gerações, que se estabeleceram no Rio de Janeiro, entre o final da Segunda Guerra Mundial e anos anteriores ao Golpe Militar de 1964, contextualizando o processo de aculturação, o resgate e/ou manutenção da cultura de origem e a construção de uma biculturalidade.
Fundamentação teórica
A construção da identidade nacional do povo brasileiro é atravessada pelo fenômeno da imigração européia, asiática, além da imigração forçada de escravos africanos. Gerações de brasileiros são filhos, netos e bisnetos de imigrantes. No período da “grande imigração” (1870-1920), do total de imigrantes no Brasil, 42% eram italianos. Portanto, estudar o processo da aculturação, formação de identidade, construção de redes sociais, é fundamental para se compreender o legado sócio-econômico-cultural do imigrante italiano e seus descendentes ao Brasil e ao povo brasileiro; suas influências recíprocas; e a especificidade da marca do italiano na identidade nacional, através da comida, da música, das artes, dos hábitos e atitude laborais. O estudo do processo de formação das famílias de imigrantes italianos, incluindo os casamentos mistos entre brasileiras(os) e italianos(as), trará luz para a compreensão das diferenças culturais, assujeitamentos e formas de resistência, nas primeira, segunda e terceira gerações.
A fim de fundamentar o tema do processo imigratório de italianos no Brasil no pós-guerra, da formação de identidade e de redes sociais, irei definir alguns conceitos-chave: “migração”, “identidade”, “aculturação”, “construção de redes sociais” e “projetos de auto-realização”.
A migração, fenômeno essencialmente social, ocorre devido aos problemas político-econômicos da cada país, sendo estes determinados historicamente por um processo de mudanças econômicas mundiais que afetam uma região. Interesso-me, neste estudo, por reconstituir ambos os sentidos: do emigrar e partir ao imigrar e chegar. Segundo DeBiaggi (2004), o fenômeno migratório tem implicações concretas para o indivíduo, seu grupo familiar, sua comunidade e nação. Ser imigrante, filho ou neto de imigrantes e, portanto, entrar em contato com um novo universo cultural, nos remete a questionamentos quanto aos nossos valores e nossas relações interpessoais. Discernir sobre que aspecto novo “integrar” se torna um desafio, tanto individual como familiar e grupal. Phinney (2004), ao abordar o processo de formação de identidade e mudança entre migrantes e seus filhos, aponta como um aspecto fundamental da experiência migratória, a redefinição das identidades culturais e nacionais, que ocorre quando os indivíduos deixam uma sociedade ou cultura e se tornam parte de outra, e ressalta que a resolução das questões identitárias têm importantes implicações para o bem-estar psicológico, tanto individual como social.
As dificuldades vinculadas às questões culturais envolvem o próprio senso de identidade, valores, atitudes, padrões de comportamento, e têm repercussão na vida familiar, pessoal, amorosa e profissional. De acordo com Sluski (1996, apud McGoldric, 2003), nossa rede social pessoal constitui um depositário fundamental da nossa identidade, da nossa história e do nosso bem-estar. Com a migração, ocorre um rompimento no nicho social do indivíduo. A imigração e o reajustamento a uma nova cultura afetam os membros da família de modo diferente, dependendo de sua fase de ciclo de vida no momento da transição (Carter & McGoldrick, 1995) e principalmente, sobrecarrega o casal parental.
Herskovitz (apud DeBiaggi, 2004), compreende aculturação como os fenômenos que resultam do contato direto e contínuo entre grupos de indivíduos de diferentes culturas, com subseqüentes mudanças nos padrões culturais de um ou de ambos os grupos. Segundo Berry (2006), aqueles que migraram de uma sociedade para outra precisam viver em uma sociedade na qual não foram criados, gerando uma situação de aculturação, que requer várias formas de adaptação ao novo contexto cultural para que seja bem-sucedida, sendo a integração a mais completa; a biculturalidade refere-se a esse processo, em que o indivíduo adquire costumes da nova sociedade, assim como retém os costumes da cultura nativa. Para se obter a integração, é necessária uma acomodação mútua, em que a identidade cultural de origem é mantida ao mesmo tempo em que se faz um esforço para se inserir na sociedade dominante.
Sartre considerava que todas as pessoas são movidas por um projeto fundamental, o projeto de auto-realização, de transcendência; cada pessoa a cada momento pode escolher o que fará de sua vida e as escolhas são direcionadas por projetos. Irei abordar o tema do impacto da imigração enquanto “escolha, responsabilidade e angústia existencial”, como projeto de vida, visão de mundo, do ser e do estar no mundo, através do pensamento existencialista de Sartre e de algumas de suas déias centrais, utilizado para abordar a formação e construção da identidade do imigrante e seus descendentes, em que “somente através dos olhos de outras pessoas, alguém consegue se perceber por inteiro, ter acesso à sua própria essência”. Só a convivência é capaz de me dar a certeza de que estou fazendo as escolhas que desejo. Todas as escolhas de uma pessoa levam à transformação do mundo para que ele se adapte ao seu projeto.
Além disso, abordarei a questão a luz dos conceitos gestálticos de Contato, Fronteiras de Contato e de Vazio Fértil.
Segundo Polster (1979, p. 101), cada pessoa tem a chance de se encontrar com o mundo exterior através do contato; para se viver o eu deve encontrar o você. Além disso, “somente através da função de contato pode se desenvolver plenamente a compreensão das nossas identidades”. Mais adiante, Polster afirma que é na fronteira que o que é assimilável é selecionado, os obstáculos, ultrapassados e que a sobrevivência do organismo se dá “pela assimilação do novo, pela mudança e crescimento” (p. 102). O contato é o meio de modificação da pessoa e das experiências que ela tem do mundo. Finalmente, vemos em Polster (p. 104), “a habilidade de discriminar o universo em eu e não-eu transforma este paradoxo em uma excitante experiência de escolha”.
Por outro lado, contato implica em mudança, e a experiência da migração é uma total mudança de vida. Pode-se inferir que o imigrante, diante de sua escolha, esteja diante de uma rica experiência de “vazio fértil”.

Referências bibliográficas
BERRY, J.W. “Migração, Aculturação e Adaptação” In: Psicologia, E/Imigração e Cultura. SP: Casa do Psicólogo, 2004, p.29-45.
CARTER, B., MCGOLDRICK, M. As Mudanças no Ciclo de Vida Familiar. 2a.ed.Porto alegre: Artes Médicas, 1995
DeBIAGGI, S.D., PAIVA, G.J. (org.). Psicologia, E/Imigração e Cultura. SP: Casa do Psicólogo, 2004.
PHINNEY, J.S. Formação da Identidade de Grupo e Mudança entre Migrantes e seus Filhos. “Migração, Aculturação e Adaptação” In: Psicologia, E/Imigração e Cultura. SP: Casa do Psicólogo, 2004, p.47-62.
POLSTER, E. & M. – . MG: Interlivros, 1979, p. 100-104.