Luiz Fernando Calaça de Sá Júnior
RESUMO:
Este trabalho tenta estabelecer uma conexão entre Gestalt Terapia e literatura,
relacionando suas origens histórico-culturais com o Expressionismo Alemão
no início do século XX e o Movimento Beat americano dos anos 50,
analisando um possível caráter literário presente nas narrativas
autobiográficas e teorizações de obras da Psicologia Humanista
e Gestalt-Terapia, e refletindo sobre a atual produção de uma
"literatura gestáltica" brasileira.
Palavras-chave: Gestalt-terapia, literatura, expressionismo alemão, contracultura,
movimento beat, psicologia humanista, narrativas autobiográficas.
Gestalt, literature and “gestalt-literature”:
expressionism, contra culture and autobiographic narratives.
ABSTRACT:
This work tries to establish a connection between Gestalt Therapy and Literature,
linking that historic-cultural beginnings and the German Expressionism, in the
beginnings of 20th century, and the American Beat Movement in 50’s, analyzing
a possible literary character presents in autobiographic narratives and theorizations
in Humanistic Psychology and Gestalt-Therapy’s books, and thinking about
the actual production of a brazilian “gestalt-literature”.
Key-words: Gestalt Therapy, literature, germane expressionism, contra culture,
Beat movement, Humanist Psychology, autobiographic narratives.
Comecei esse trabalho por um projeto, um esboço que, de algum modo, é
um esboço de mim. Venho trabalhando algumas idéias desde meu primeiro
ano de Psicologia, desde antes mesmo, antes de entrar na universidade, ao trazer
a poesia para minha vida. A relação que faço entre Psicologia
e Literatura é a que faço entre elas e mim, e é a que vejo,
e de certa forma busco, na Gestalt-Terapia.
Neste trabalho proponho um esboço de projeto, ainda a ser desenvolvido futuramente, numa possível articulação entre a Gestalt-Terapia e a Literatura. Tentarei aqui, na medida do possível, estabelecer um paralelo entre GT, arte e literatura, relacionando possíveis influências do expressionismo alemão do início de século XX e da contracultura e movimento beat americano dos anos 60 sobre as origens da GT, além de sumariar algumas obras em que observo possíveis traços literários, presentes na forma de narrativas autobiográficas, e em teorizações da GT. Por fim, pretendo refletir sobre a atual produção de uma "literatura gestáltica" brasileira.
Assim, levarei em consideração três contextos e momentos histórico-culturais distintos: 1) a Europa do início do século XX, envolvendo a 1ª Guerra Mundial, o surgimento e declínio do movimento expressionista alemão; 2) os EUA das décadas de 40 a 80, envolvendo a Contracultura, e a emergência da Psicologia Humanista e a literatura beat e, por fim, 3) o Brasil da década de 80 à atualidade, com o desenvolvimento e consolidação da GT no Brasil e a literatura produzida dentro da abordagem.
Tais paralelos histórico-culturais das artes/literatura, contexto político e cronológico da Gestalt Terapia, pode ser visualizado no seguinte esquema:
1) Alemanha: Início do século XX. Primeira Guerra Mundial. Expressionismo Alemão: Max Reinhardt, Salomo Friedlander, Martin Buber e Jacob Levy Moreno.
O primeiro paralelo que pretendo desenvolver é fruto de idéias em que entrei em contato a cerca de dois anos, em 2005, quando assisti uma aula aberta realizada por Afonso Henrique da Fonseca. Na ocasião, ele foi a Salvador vindo de Maceió para o Encontro Norte-Nordeste de Psicologia, e apresentou uma palestra sobre “Atualidades da GT”. Nesta apresentação ele trouxe algumas idéias sobre a influência do movimento expressionista sobre a GT, principalmente através do contato de Fritz Perls com o dramaturgo Max Reinhardt, trabalhando principalmente com a idéias de “performance”, “expressão” e “interpretação”, presentes nas técnicas gestálticas e na própria sua visão fenomenológica-existencial e hermenêutica de homem.
Meses depois, ao concluir a disciplina Teorias e Sistemas Psicológicos
II, sobre Fenomenologia e Gestalt, ministrada por Lika Queiroz, montei com meus
colegas um grupo de estudos, onde lemos textos introdutórios de GT e
buscamos estabelecer conexões com temas que nos interessavam e emergiam
das discussões. Na primeira reunião, lemos o capítulo sobre
os pressupostos filosóficos da GT contido no livro de Ana Maria Kiyan
(2001, 2006). Este continha uma visão cronológica da vida de Perls
e as principais influências teórico-filosóficas que contribuíram
para a fundamentação da GT. Nada se dizia, no entanto, a respeito
do Expressionismo.
Busquei então fontes bibliográficas que apresentasse alguma noção
do que foi esse movimento artístico e literário, e encontrei alguns
fragmentos de textos expressionistas no livro de “Vanguarda Européia
e Modernismo Brasileiro” da Gilberto Mendonça Teles (1999). Chamou-me
atenção especialmente, o manifesto intitulado “Expressionismo
na poesia” de Kasimir Edschmid, datado de 1918, que traz o seguinte fragmento:
“A terra é uma paisagem imensa que Deus nos deu. Temos que olhar
para ela de tal modo que ela chegue a nós sem deformação.
Ninguém duvida de que a essência das coisas não seja a sua
realidade exterior. A realidade tem que ser criada por nós. A significação
do assunto deve ser sentida. Os fatos acreditados, imaginados, anotados não
são o suficiente; ao contrário, a imagem do mundo tem que ser
espelhada puramente e não falsificada. Mas isso está apenas dentro
de nós mesmos.
Assim o universo total do artista expressionista torna-se visão. Ele
não vê, mas percebe. Ele não descreve, acumula vivências.
Ele não reproduz, ele estrutura (gestaltet). Ele não colhe, ele
procura. Agora não existe mais a cadeia de fatos (...) Agora existe a
visão disso. Os fatos tem significado somente até o ponto em que
o mão do artista o atravessa para agarrar o que se encontra além
deles”. (grifos meus)
.
Quando li este fragmento pela primeira vez, vi conexões diretas com o
que havia estudado sobre Fenomenologia, saltando aos olhos a busca pela essência
das coisas, através da percepção da realidade a partir
das significações criadas por nós por meio da experiência
sentida, que espelha o mundo. Tocou em mim, em especial, a idéia do papel
ativo do poeta, como aquele que percebe o mundo de forma vivencial e subjetiva,
sendo ele o que estrutura, organiza e dá forma a essa percepção.
Essa aparente conexão entre a Fenomenologia e o Expressionismo (e a própria
Psicologia da Gestalt, que ecoa pelo uso da expressão alemã gestaltet),
de início, me causou grande fascínio, de modo que fiquei a especular
ingenuamente se o Expressionismo era fenomenológico ou a Fenomenologia
era expressionista. Hoje tento responder a essa questão levando em consideração
o contexto histórico-cultural em comum em que ambos os movimentos, filosófico
e artístico, se desenvolveram na Alemanha de fins do século XIX
e início do XX.
Buscando outras referências sobre o Expressionismo, descubro que este
se desenvolveu em diversos campos, envolvendo desde uma fase pré-expressionista
na pintura de Cézanne e Van Gogh, na segunda metade do século
XIX; movimentos literários e artísticos, com o surgimento de revistas
de cunho político, artístico e filosófico, na Alemanha
das duas primeiras décadas do século XX; tendo, por fim, seu término
decretado pela ascensão do nazismo em 1933. O Expressionismo, nas suas
mais variadas manifestações (literatura, artes plásticas,
teatro e cinema), refletia sobre o caos político, social e religioso
que marcou a Europa, sendo influenciado pelo pensamento de Nietzsche e pelo
decadentismo fin de siècle.
Tratou-se, no entanto, não de um movimento de caráter popular, mas sim intelectual, em que se engajavam jovens escritores, artistas e filósofos, muitos de ascendência judaica, que no período da 1ª Guerra Mundial se movimentaram contra os a guerra e propunham reformas sociais radicais, tendo como base um espírito comunitário e um humanismo universal. Esse caráter intelectual é descrito na citação do texto “A Revolta Expressionista”, de Luiz Nazário (1999, 2001), em referência extraída de Lionel Richard , em “D’un Apocalypse à l’autre”, pp 129-133:
Espírito prático, Wilhelm Michael propôs a formação
de um Congresso Internacional de Intelectuais: cada país elegeria seus
poetas, escritores, artistas, sábios e pacifistas e os encarregaria de
representá-los. Estes formariam o primeiro Parlamento da Comunidade Universal,
reunindo-se a cada ano num país deferente para conferenciar sobre as
possibilidades de educar os povos no sentido da amizade e do combate ao ódio,
destruindo, sob o fogo do espírito do amor, o bloco de violência
e injustiça que o mundo civilizado representava. Kurt Hiller foi mais
longe e sugeriu a formação de um Partido dos Intelectuais, com
o objetivo de conquistar o Paraíso na Terra; seu programa incluía
a suspensão da guerra, reformas econômicas para garantir o mínimo
vital a todo cidadão; ajuda aos desempregados e aos criadores; liberdade
sexual com o reconhecimento da homossexualidade; racionalização
da procriação; abolição da pena de morte; proteção
do indivíduo diante do crescente poderio da psiquiatria; transformação
das escolas de ensino em escolas de pensar; combate contra as Igrejas e Parlamentos;
estabelecimento de uma aristocracia do espírito; liberdade total de expressão
. (grifo meu)
Este contexto sócio-político-cultural, que constituiu a Zeitgeit,
a cosmovisão da Europa do início do século XX, serviu como
base e influência para a formação intelectual Fritz Perls
nos 30 primeiros anos de sua vida, em especial no período em que viveu
em Berlim, quando participou de círculos intelectuais e boêmios.
O contato com o Expressionismo não se restringiu à sua experiência no teatro de Max Reinhardt , mas também pelo contato com Salomo Freidlander, que, além de filósofo, era escritor expressionista e dadaísta, que, sob o pseudônimo de Mynona, contribuir para revistas expressionistas como Der Sturm (A Tempestade), Die Aktion (A Ação), Der Einzige (O Único) e Der Jugend, além de ter realizado escritos dadaístas intitulados Groteske e Parodie. (Dos escritos literários de Friedlander, tive contato apenas com 2 textos traduzidos para a língua inglesa, intitulados “Gramophone” e “Abduction”, disponíveis na internet, que versam sobre aspectos da modernização industrial).
Em sua autobiografia “Escarafuchando Fritz: Dentro e fora da lata de lixo” (1969), Perls registra o círculo cultural boêmio freqüentado por ele em Berlim, e o contato com esta face expressionista/dadaísta de Friedlander, para além da influência deste como filósofo, com a teoria da Indiferença Criativa:
Eu e alguns médicos amigos pertencíamos à classe boêmia
de Berlim, que tinha como ponto de encontro o Café do Oeste , e mais
tarde o Romanische Café.
Ali se reunia muitos filósofos, escritores, pintores, políticos
radicais e ainda um sem-número de freqüentadores. Uma das pessoas
obviamente era Friedlander, embora nos encontrássemos quase sempre no
estúdio de um pintor. Friedlander ganhava dinheiro escrevendo estórias
muito engraçadas sob o nome de Mynona, que é a palavra anonym
(anônimo) escrita ao contrário. Seu trabalho filosófico
Creative Indifference (Indiferença Criativa) teve tremendo impacto sobre
mim.
Também Martin Buber, filósofo que muito influenciou Laura Perls, e consequentemente das bases filosóficas da GT, pelo existencialismo dialógico e relação EU-TU, contribuiu para revistas expressionistas pioneiras, como a Die Neue Gemeinschaft (A Nova Comunidade), onde propagava a filosofia romântica do retorno à natureza como condição para o nascimento do Novo Homem , tendo como base o judaísmo hassídico.
É importante ressaltar, ainda que de passagem, a fim de conclusão dessa primeira articulação entre a GT e o Expressionismo, a presença de J. L. Moreno como outro representante do movimento expressionista, ao ser organizador e colaborador da revista existencialista e expressionista Daimon Magazine, de 1917 a 1920, juntamente com Max Scheler, Franz Kafka e Martin Buber , e pelo desenvolvimento do seu Teatro Vienense da Espontaneidade, em 1921, que serviria como embrião do Psicodrama. Embora o Psicodrama e a Gestalt-Terapia sejam abordagens distintas, é inevitável a aproximação entre eles, tanto pelo uso de recursos dramáticos, como técnicas e experimentos, quanto por serem contemporâneas nas origens do movimento da Psicologia Humanista.
2) Estados Unidos: décadas de 40 a 60. Contracultura, Movimento Beat.
O segundo paralelo que me proponho a estabelecer nesta aproximação entre GT e Literatura se dá pela presença de Fritz Perls nos Estados Unidos, a partir da década de 40, vindo a entrar em contato e a fazer parte do movimento da Contracultura.
Conforme é apresentado por Kyian (2006), após a 2ª Guerra Mundial, Fritz Perls decide sair da África do Sul, onde havia se exilado juntamente com Laura, devido a ascensão do nazismo, e parte para os Estados Unidos, onde se estabelece em Nova York, num período de dez anos, que vai de 1946 a 1956. Lá conhece Paul Goodman, escritor e crítico, bissexual e anarquista, considerado um intelectual controvertido, mas bastante respeitado. Nesse primeiro contato com Paul Goodman, Perls é inserido em um grupo de intelectuais compostos por John Cage, James Agee, Dwight McDonald, Julian Beck e Judith Molina, onde se propunha uma vivência de honestidade e experimentação que fugisse ao contexto social e repressor vivido na sociedade americana.
Posteriormente, ele é apresentado a Elliot Shapiro (educador), Paul Weiz (médico que apresenta a Perls o zen-budista), Isadore From (homossexual), Ralph Heferline (acadêmico) e Jim Simkin, que formaram, juntamente com Fritz, Laura Perls e Paul Goodman, o Grupo dos Sete, responsável pela organizou e sistematização das bases teóricas da GT, em 1950. Dessa união viria a surgir “bíblia” da GT, o Gestalt-Terapy (1952), além da criação do Instituto de Gestalt-Terapia de Nova York.
Perls, no entanto, dedicou-se, a partir desse período, a uma vida “andarilha”, contribuindo pouco para sistematização da GT, encarregando-se principalmente da divulgação da abordagem em outras regiões dos EUA, em viagens que fez a Cleveland, Detroit, Toronto, Miami. Entre 1959 e 1963, Perls empreendeu viagens ao redor do mundo, entrando em contato com comunidades beatniks, em Israel, e em um mosteiro zen no Japão. Nesse ponto específico é que surge meu interesse em pontuar a conexão que vejo entre a GT e o movimento beat.
No mesmo período da ida de Perls a Nova York, na década de 40,
surge nos EUA, também nesta cidade, um grupo de jovens intelectuais e
“vagabundos” composto por Allen Ginsberg, Jack Kerouac, William
Burroughs, Neal Cassady e Carl Salomon, que vem a se consolidar na década
de 50 como o movimento literário e cultural Beat, que sob a influência
do jazz e do rock n’roll, deu início a uma geração
marcada por uma cultura de contestação ao Establishment que viria
a culminar com a Contracultura dos anos 60 e 70.
Elias Boainain Jr. (1998) descreve esses anos da Contracultura, esse novo Zeitgeist
revolucionário – muito semelhante ao vivido no início do
século na Alemanha expressionista –, da seguinte forma:
Anos de revoltas políticas e de costumes, sobretudo entre a juventude, e em que mais do que nunca a contestação ao sistema e aos valores estabelecidos estava na ordem do dia. Anos marcados pelo que, na expressão cunhada por Theodore Roszak (s/d.), foi chamado de contracultura: revoltas estudantis, movimento hippie, mobilização pacifista contra a Guerra do Vietnã, ativismo político, organização das minorias raciais e feministas, desafio á autoridade, revolução underground nas artes, oposição ao materialismo consumista, valorização do corpo, do sentimento, do amor livre, da experimentação psíquica por meio de drogas psicodélicas, da ecologia, da auto-expressão espontânea e das experiências meditativas e espirituais. Essas tendências todas convergiriam na rejeição aos modelos tradicionais de família, trabalho, escola, relações interpessoais, igreja, governo, instituições em geral e da própria cultura ocidental. (grifo meu)
(Este contexto histórico cultural é apontado como o propiciador do desenvolvimento da 3ª Força em Psicologia, o Movimento Humanista, do qual tratarei posteriormente, quando discutirei a questão referente aos relatos autobiográficos.)
Voltando ao termo beat, este, além de designar o movimento literário que deu início à Contracultura nos anos 50, significa, dentre outras coisas, beatitude, beato, santificação, além da batida do jazz, o embalo, o ritmo, sendo usado também para expressar cansaço e saturação, tendo o movimento beat como marca a vida nômade e a estrada sem rumo de On The Road, de Jack Kerouac, escrito em 1951 e publicado em 1957 (Carmo, 2003) . Essa obra cria o mito do vagabundo e relata
as experiências e atitudes de um grupo de jovens norte-americanos, loucos por emoções fortes e cujos principais interesses na vida, além da literatura, giram em torno de viagens, estradas, agitadas festas, jazz, sexo, carona, drogas. (...) Ao rejeitar os valores burgueses, os beatniks valorizavam a espontaneidade, a natureza e a expansão da percepção, que alcançariam através das drogas, do jazz e das religiões orientais. (grifo meu)
Em sua autobiografia, Perls relata o mesmo tipo de experiência de errância descrito por Kerouac em On The Road, ao atravessar o deserto de Israel, quando vai a um kibutz e entra em contato com um grupo de hippies e de beatniks. Diante desse contato, no entanto, Perls faz uma diferenciação entre essa nova juventude que ele vê surgir e o grupo boêmio do qual fez parte, na Alemanha berlinense:
O fato é que guiei sozinho aqueles 500 quilometros pelo deserto (...) Ao contrário das minhas expectativas, a viagem não foi nem um pouco chata. A estrada era estreita, mas asfaltada e, em sua maior parte, em boas condições. (...) Achei alguns vagabundos de praia, em sua maioria americanos, fascinantes. Hoje os chamamos de hippies, e eles são encontrados aos milhares. É claro que entre a nossa turma boêmia de Berlim havia um ou outro tipo ocasional cuja profissão era não fazer nada; mas a maioria era constituída de gente ávida de se tornar importante e conseguir algo na vida, e muitos conseguiram. Eu também tinha encontrado beatnicks, que haviam tentado e desistido; gente zangada batendo cabeça contra as regras de ferro da sociedade. (p. 117-118)
Outro representante importante do movimento beat e posteriormente da contracultura americana, foi Allen Ginsberg, autor do poema Howl (Uivo), publicado em 1958, que sintetiza as experiências de toda a Geração Beat, como no fragmento inicial citado a seguir:
Eu vi os expoentes da minha geração destruídos pela loucura,
morrendo de fome, histéricos, nus,
arrastando-se pelas ruas do bairro negro de madrugada em busca de uma dose violenta
de qualquer coisa,
hipsters com cabeça de anjo ansiando pelo antigo contato celestial com
o dínamo estrelado na maquinaria da noite,
que pobres, esfarrapados e olheiras fundas, viajaram fumando sentados na sobrenatural
escuridão dos miseráveis apartamentos sem água quente,
flutuando sobre os tetos das cidades contemplando jazz (...)
No editorial da edição de 1997, da Gestalt Review, Joseph Melnick compara Allen Ginsberg aos fundadores do movimento da Gestalt Terapia, Fritz Perls e Paul Goodman, quanto a alguns valores filosófico, social e políticos, colocando-os como líderes do progressivo Zeitgeist que contestou a ordem social conservadora dominante na década de 50.
Melnick compara Ginsberg e Perls pelo otimismo radical, dividindo ambos a posição de “gurus da Contracultura”. Eles teriam em comum o discurso marginal e a valorização do conflito criativo e da expressão honesta das diferenças.
Já as semelhanças de Ginsberg com Paul Goodman se dariam pela defesa que faziam da homossexualidade e do pacifismo anti-guerra, empreendidos na década de 60, bem como o pouco reconhecimento que tiveram, Ginsberg e Goodman, na poesia e na produção psicológica, respectivamente.
Desta forma, podemos verificar grandes aproximações entre as origens da GT e o movimento beat, havendo inclusive algumas “coincidências”, como o fato de tanto o Grupo dos 7 quanto o composto por Ginsberg, Kerouac e outros, terem se dado em Nova York, e de Perls ter empreendido viagens, assim como os beats, em direção à Califórnia (como fez Kerouac, em On The Road) e, posteriormente ao redor do mundo, entrando em contato com o orientalismo zen.
A casa onde Perls residiu no período de 1964 a 1969, em Esalen, localizava-se
em Big Sur, e bem poderia ser a mesma cabana vista a distância e descrita
por Kerouac, na obra também intitulada Big Sur (1962):
Naquela primeira noite a primeira coisa que percebo é que a luz da cozinha
está acesa, no alto do despenhadeiro, à direita onde alguém
construiu uma cabana onde se descortina toda a paisagem terrível de Big
Sur, alguém lá no alto está fazendo uma ceia leve e gostosa
é só o que eu sei – A luz da cozinha da cabana lá
no alto é como um farolzinho fraco e morre em pleno ar suspensa a trezentos
metros acima das ondas furiosas – Para construir uma cabana lá
no alto só mesmo um arquiteto blasé velho gruisalho aventureiro
(...)
A descrição feita por Perls de Esalen é semelhante à
realizada por Kerouac, principalmente na descrição da paisagem
composta por mar e rochedos:
A minha casa fica a cem metros acima dos banhos, bem sobre o rochedo. Ela é
em grande parte escavada na montanha, então tem uma vista de milhares
de quilômetros quadrados de oceano, e também dos rochedos selvagens,
interrompendo o ruído e o balanço incansável do mar, cedendo
apenas algumas rochas para as ondas existentes.
A gente não sai pela porta, a gente emerge, não como antes, entrando
na natureza intocada, mas numa mistura de visão magnífica, degraus
de pedras naturais que são uma extensão da parede de pedra circular,
cabanas e automóveis, mais embaixo.
Esses fragmentos servem como exemplo do contato, mesmo que indireto, entre Perls e o movimento beat, no caldeirão cultural que representou a Contracultura americana, celeiro para a emergência de várias das principais abordagens que constituíram o movimento humanista da 3ª Força da Psicologia.
3) EUA e Brasil. Décadas de 60 a 80: Psicologia Humanista, Gestalt-Terapia e narrativas autobiográficas.
É importante salientar que é nas décadas de 50 e 60 que, nos EUA, o movimento Humanista se estabelece, muito influenciado pela Psicologia da Gestalt de Wertheimer, Koffka e Kohler e por psicólogos humanistas de inspiração gestaltista (influenciados pela Psicologia da Gestalt) como Goldstein, Angyal e Lewin, tendo também como influência as Teorias Neopsicanalíticas, Holistas, as Psicologias Existenciais e as Escolas americanas de Psicologia da Personalidade .
As duas principais abordagens a que me proponho reportar nesta terceira parte do trabalho são a GT e a Abordagem Centrada na Pessoa – ACP – de Carl Rogers, tendo como principal argumento o fato de a literatura rogeriana ter servido de grande influência, na década de 60, para os primeiros gestalt-terapeutas do Brasil . (Juliano, 2004).
Meu interesse consiste em elencar as narrativas e relatos autobiográficos produzidos tanto na GT quanto na literatura da ACP, por considerar estas obras como de grande importância, não apenas histórica.
O que se tem observado, no Brasil, nas produções teóricas dos últimos 30 anos em GT, é uma ênfase maior na fundamentação teórico-filosófica da GT, em detrimento, com algumas exceções, do caráter vivencial e reflexivo presente nessas obras iniciais.
As narrativas que busco resgatar, a título de indicação bibliográfica, trazem o que considero a matriz da experiência gestáltica, com uma ênfase dirigida ao vivido, ao aqui-agora, a vida cotidiana do homem e do terapeuta humanista gestáltico.
Dentre as obras que classifico como narrativas, situo primeiro alguns "clássicos" de autores humanistas de influência rogeriana como:
• As obras "Tornar-se pessoa" (1961) e o “Um Jeito de Ser” (1980) de Carl Rogers, em que este mescla, em alguns capítulos, reflexões pessoais sobre o desenvolvimento da teoria da ACP, apresentando uma perspectiva autobiográfica;
• Os capítulos autobiográficos de Barry Stevens contidos no "De Pessoa para Pessoa" (1967), sob o título “Da minha Vida” em que ela dialoga com a teoria de Rogers, através de uma leitura pessoal, associada a fatos de sua vida, sentimentos e pensamentos decorrentes de vivências cotidianas;
• “A mulher emergente: uma experiência de vida” de Nathalie Rogers (1980), filha de Carl Rogers, que traz em uma obra autobiográfico reflexões sobre a mulher, a busca do feminino, o uso de drogas alucinógenas e o despertar da sexualidade, temas emergentes no movimento de Contracultura americano;
• "Vestígios de Espanto: notas de fim de semana de um psicólogo" (1985) de John Keith Wood, que traz uma coleção de relatos cotidianos e narrativas curtas, poemas, ensaios sobre a ACP, em que ele faz uma crítica à ciência positivista americana, em favor de um olhar de estranhamento e reencantamento diante do mundo e do homem.
Dentre as obras de inspiração gestáltica, cito:
• A já comentada autobiografia do Fritz Perls, "Escarafuchando Fritz: dentro e fora da lata do lixo" (1969), escrita em Esalen e Cowikan, em 1969, na qual ele faz um retrospecto de sua vida, revive experiências e tenta fechar gestalten inacabadas, utilizando-se de uma escrita fragmentada e polimorfa em prosa, poesia e drama (nos momentos top dog-under dog) e realiza importantes reflexões teóricas sobre a Gestalt-Terapia;
Essa obra em especial é muito criticada, pelo seu caráter confuso e fragmentado (Kyian, 2006), mas considero de grande importância por trazer uma reflexão do próprio Perls sobre sua trajetória pessoal e da abordagem, na forma como ele a concebia. As aberturas deixadas por Perls servem, a meu ver, como brechas e portas para o desenvolvimento da Gestalt-Terapia e os vários estilos empregados em sua narrativa reproduz a premissa tão enfatizada, mas às vezes esquecida, do gestaltista que, fazendo seu próprio trajeto de vida, configura a GT da sua forma, a partir de sua experiência pessoal.
• "Não Apresse o Rio: ele corre sozinho" (1970) de Barry Stevens, que envolve um relato em primeira pessoa sobre suas experiência no Instituto Gestalt do Canadá, o gestalt-kibuts em Cowikan, em 1969. Esta serve quase como uma continuidade e um contraponto à auto-imagem do “Fritz” do “Escarafuchando Fritz”, onde ela o descreve de forma distinta a que Perls, por ele mesmo, se faz representar. Além disso, ela descreve o convívio em comunidade, a focalização de continuum de awareness em momentos do aqui e agora, e revisita, através das memórias, experiências vividas em aldeias de índios americanos, numa perspectiva etnográfica sobre o cotidiano, se aproximando pela simplicidade da narrativa do censo comum, ou à denominada “psicologia popular”, tecendo também reflexões sobre o envelhecimento e maternidade.
Além dessas duas obras ligadas mais diretamente ao que se poderia chamar de uma "literatura gestaltica", pontuo também o artigo de J. Lederman, "A cólera e a cadeira de balanço" (FAGAN e SHEPHERD, 1980), onde esta relata na forma de poesia um caso envolvendo a aplicação de técnicas gestalt com crianças.
A dimensão e o estilo autobiográfico dessas obras é também observado nas primeiras obras de caráter teórico mais sistematizado, da GT, como o "Gestalt Terapia Integrada", do casal Polsters (1973; 2001) e o "Gestalt - uma terapia do contato" de Serge e Anne Ginger (1987; 1995). Nestes, os autores se utilizam de exemplos da esfera do vivido, seja pessoal, seja da experiência clínica, para desenvolver uma articulação teórica e conceitual sob uma perspectiva fenomenológico-existencial em GT.
4) Brasil, 1980 até os dias atuais. Escritos poéticos e a arte de contar histórias.
O último ponto que pretendo tratar diz respeito à "literatura gestáltica" que emerge atualmente no Brasil, paralelamente ao número significativo de publicações teóricas. Durante os mais de trinta anos de GT no Brasil, como já mencionei, observamos uma grande preocupação dos gestalt-terapeutas no sentido de tornar evidente a consistência da abordagem, através da exploração e explicitação de suas bases filosóficas e fundamentação teórica, bem como a questão da técnica clínica e ou instrumentais, o que teria repercutido de forma evidente o crescimento de produções de mestrado e doutorado nos últimos 30 anos (Holanda, A. F. e Karwowski, S. L., 2004). Esses anseios de fundamentação da abordagem vêm da demanda dos gestalt-terapeutas de dar mais legitimidade à GT no campo das práticas psi, buscando tornar mais consistente sua formação profissional (Frazão, 1995).
Neste contexto cito três representantes deste movimento que creio seguiram caminhos bem próprios e poéticos: Jorge Ponciano Ribeiro, Jean Clark Juliano e Paulo Barros.
Paulo Barros foi um importante impulsionador da GT no Brasil, ao viabilizar a publicação de livros clássico da abordagem, junto à editora Summus, na condição de tradutor, revisor e organizador de traduções de obras estrangeiras.
Em "Narciso, a bruxa e outras histórias psi" (1994), Barros é fortemente influenciado pela Psicologia Analítica e pela Dasainanálise. Seus contos em formas de fábulas e histórias infantis trazem personagens arquetípicos, e seus poemas refletem questões como a existência, a temporalidade e a finitude humana. Além disso, suas articulações teóricas, do início da década de 90, já apontam para críticas aos caminhos adotados pelos gestalt-terapeutas, ressaltando a necessidade de não se esquecer a dimensão sensível e experiencial do terapeuta, suas falhas, suas feridas e sua condição de humano. Em uma escrita “polimorfa” que, tal como a de Perls em sua autobiografia, mescla poesia, prosa e teorizações, os “ruídos” que emanam de sua escrita servem como potencializadores de “insights”, e, em suas narrativas, desenvolve-se um olhar para o vivido, para uma psicologia popular, um saber ancestral e mítico, ateórico. Arte de contar histórias.
Em "Amor e ética" (2006), sua última obra publicada,
Barros segue o mesmo estilo, mas inova ao trazer discussões sobre a internet
como forma de pesquisa, apontado para os novos tempos, o mundo virtual. (Nesse
ponto abro um parêntese e ressalto um interesse pessoal meu por um fenômeno
atual: o blog e as escritas autobiográficas. Conteúdo ainda inexplorado,
ou pouco explorado no campo psi.)
Jorge Ponciano Ribeiro certamente é o que desenvolveu de forma mais significativa,
ao menos em número de publicações, obras que serviram ao
objetivo de consolidar a GT enquanto abordagem reconhecida no campo da Psicologia.
É interessante notar, no entanto, o seu estilo próprio de fazer
teoria, muitas vezes recorrendo a uma linguagem poética pouco acessível
ao leitor num primeiro momento.
Apenas a título de exemplo, cito uma das definições de contato que ele traz nas primeiras páginas do seu livro “O Ciclo de Contato” (1997):
CONTATO É ARTE. Ternura, suavidade, carinho, disciplina, clareza, muitas vezes são os verdadeiros alimentos do contato. O corpo é o santuário onde habitamos, uma oração visível saudando o universo. Obra de arte, a mais fina, imagem e semelhança de Deus, o corpo é a projeção da arte interior de cada um de nós. O corpo é a pessoa, é o retrato de si mesmo, da minha história, por isso só pode ser falado por mim. Se o outro me toca ou eu toco o outro, devo fazê-lo com a reverência própria de quem entra num santuário à procura do sagrado.
Esse estilo poético, marcado por reflexões que transcendem a teoria e se desenvolve em direção ao sagrado, é evidenciado pelo estilo literário de Ponciano, e, em sua última obra "Ruídos: contato, luz, liberdade: um jeito gestaltica de falar do espaço e do tempo vividos" (2006). Nesata, a escrita ganha uma forma livre, voltada para a narrativa do cotidiano, através de contos, crônicas, reflexões de pensamento livre em articulação com o vivido. Tais reflexões voltam-se para temas da religião (cristianismo), espiritualidade, viagens (Santiago de Compostela), em conexões entre natureza, holismo e totalidade.
Por último, mas não menos importante, Jean Clark Juliano, uma
das pioneiras da GT no Brasil, traz, em diversos artigos, essa história
por ela vivida, refletindo sobre o caminho trilhado no Brasil, pontuando seus
conflitos, buscas por aprofundamento teórico, tentativas e erros.
Em seu livro “A Arte de Restaurar Histórias” (1999), ela
trata do trabalho do psicólogo, utilizando como metáfora a imagem
do terapeuta como artesão que cria colchas a partir dos retalhos de vida
de seus clientes. Retalhos que são fragmentos de histórias. Nesta
obra, também, num estilo próprio, ela traz cartas, reflexões,
memórias pessoais, memórias da GT brasileira, um olhar sobre o
envelhecimento, sobre a morte, o luto. Temas gerais sob uma perspectiva não
teórica, poética, através de um olhar sobre o mundo e a
vida.
Estes autores brasileiros, cada qual com sua especificidade, com seu "estilo" próprio, faz articulações entre fantasia, ficção e autobiografia, numa proposta que transcende o campo da teorização e adentra uma metapsicologia, uma reflexão sobre a vida e a existência, sobre o ser pessoa, o ser psicólogo, num processo de construção e desconstrução de significados.
Vale a pena sinalizar para a recente publicação de duas obras de poesia publicadas por gestalt-terapeutas: “Gestando poesias”, de Márcia Lilla, e “Janelas da Alma” de Silvério Lucio Karwowski, ambos pela editora Livro Pleno. Tais publicações podem ser entendidas tanto como um movimento pessoal dos autores, quanto do resgate e redescoberta de uma linguagem poética em GT, para além de um modo acadêmico de afirmar os pressupostos e a visão de mundo da abordagem gestáltica.
CONCLUSÃO
Considero este trabalho uma tentativa de abrir uma via de articulação possível entre Gestalt-Terapia e a literatura, buscando compreender vínculos existentes entre a experiência vivida e significada e as construções poéticas e narrativas dos relatos autobiográficos presentes em obras da Abordagem centrada na Pessoa e da Gestalt-Terapia, ambas representantes e contemporâneas no surgimento da Psicologia Humanista americana e brasileira.
Acredito que estes registros por mim sumariados seriam embriões para
um possível uso da literatura enquanto momento de contato e awareness,
da pessoa consigo mesma e com sua história de vida, significada e ressignificada
no momento da escrita, nas construções e reconstruções
do si-mesmo.
A título de complementação, aponto para atuais “descobertas”
que venho realizando em busca de maior fundamentação para esse
voltar-se para a literatura dentro da Gestalt Terapia. Recentemente encontrei,
em obras de língua inglês ainda sem tradução para
o português, possíveis elos dirigidos a essa articulação
que busco estabelecer entre Gestalt, Literatura e Poesia. Trata-se dos livros
Speaking and Language: defence of Poetry (1972) e Creator Spirit Come: The Literary
Essays of Paul Goodman (1979), do Paul Goodman, e o livro Every Person’s
life is worth a novel (1987), do Erving Polster.
Não sei dizer até que ponto essas obras são de conhecimento dos gestalt-terapautas, porém, ao menos para mim, me parecem elos importantes para se entrever possíveis olhares para a escrita autobiográfica e da literatura como recurso terapêutico, ao apontar para dimensões significativas da experiência que emerge das histórias de vida, da fala e da memória narrativa.
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