GESTALT E LITERATURA:
ESBOÇOS E PARALELOS, GÊNESE E ATUALIDADE
Durante os mais de trinta anos de Gestalt-Terapia no Brasil
observamos uma grande preocupação dos gestalt-terapeutas no sentido
de tornar evidente a consistência da abordagem através da exploração
e explicitação de suas bases filosóficas e fundamentação
teórica, bem como a questão da técnica clínica e
ou instrumentais, o que teria repercutido de forma evidente nas produções
de mestrado e doutorado nos últimos 30 anos (HOLANDA, A. F. e KARWOWSKI,
S. L., 2004). Esses anseios de fundamentação da abordagem vêm
da demanda dos gestalt-terapeutas de dar mais legitimidade à GT no campo
das práticas psi, buscando tornar mais consistente sua formação
profissional (FRAZÃO. L. M. in CIORNAI, S., 1995).
Neste trabalho, no entanto, proponho trilhar um caminho distinto, tentando estabelecer
uma articulação que considero ainda pouco explorada nas investigações
empreendidas sobre a abordagem. Trata-se de traçar possíveis relações
entre a Gestalt-Terapia e a literatura.
Na própria Psicologia a articulação com a literatura ainda
é pouco explorada, ou é feita principalmente pela Psicanálise,
que tende a trabalhar com aspectos ligados a projeção e sublimação
dos desejos do autor, num enfoque que enfatiza aspectos de sua personalidade
e/ou possíveis efeitos catárticos sobre o leitor (LEITE, 1962).
Proponho, então, uma leitura indireta, levando em consideração
três contextos e momentos histórico-culturais distintos: 1) o pós
1º Guerra Mundial e emergência do movimento expressionista alemão;
2) os EUA das décadas de 60-80, envolvendo o movimento da contracultura,
a emergência da Psicologia Humanista e a literatura beat, e 3) o Brasil
da década de 90 à atualidade.
A primeira articulação, situada no contexto da Alemanha pós
1ª Guerra Mundial, diz respeito ao impacto do expressionismo sobre a primeira
etapa da vida de Perls, geralmente associada à sua participação
no teatro de Max Reinhardt (PERLS, 1979), e ao contato com S. Friedlaender,
grande influenciador de Perls através de sua filosofia da Indiferença
Criativa (PERLS, 1979 e 2002; STEVENSEN, 2004). O que geralmente é pouco
considerado é a participação de Friedlaender como parte
desse movimento expressionista, sob o pseudônimo de Mynona.
Não pretendo me aprofundar muito nesse recorte, proponho apenas para
a conexão que há entre a poesia expressionista em seus fundamentos
e uma dimensão vivencial e fenomenológica da poesia, conforme
se apresentada de forma implícita no manifesto “Expressionismo
na poesia” de Kasimir Edschmid (TELLES, 1997).
A segunda articulação, na qual pretendo me deter mais extensamente,
relaciona-se às narrativas e relatos autobiográficos produzidos
tanto na Gestalt-Terapia, quanto em representantes da Psicologia Humanista.
Dentre essas obras situo “Escarafuchando Fritz: dentro e fora da lata
do lixo” (1969), a autobiografia do Fritz Perls, escrita em Esalen, na
qual ele narra passagens de sua vida e realiza reflexões sobre a Gestalt-Terapia
e “Não Apresse o Rio: ele corre sozinho” (1970) de Barry
Stevens, que envolve um relato em primeira pessoa sobre suas experiência
no Instituto Gestalt do Canadá em Cowikan, em 1969.
Além dessas duas obras ligadas mais diretamente ao que se poderia chamar
de uma “literatura gestaltica”, pontuo também o artigo de
J. Lederman, “A cólera e a cadeira de balanço” (FAGAN
e SHEPHERD, 1980), onde esta relata na forma de poesia um caso envolvendo a
aplicação de técnicas gestalt com crianças, além
de “clássicos” de autores humanistas como o “Tornar-se
pessoa” (1961) de Carl Rogers, os relatos autobiográficos de Barry
Stevens contidos no “De Pessoa para Pessoa” (1967), além
do “Vestígios de Espanto” (1985) de John Keith Wood.
O que há em comum entre esses relatos, e que de alguma forma se manifesta
em menor escala também em obras teóricas como o “Gestalt
Terapia Integrada”, dos Polsters (1973; 2001) e o “Gestalt –
uma terapia do contato” de Serge e Anne Ginger (1987; 1995), é
a dimensão pessoal e autobiográfica que esses autores utilizam
ao trazer a esfera do vivido para uma articulação com o pensamento
fenomenológico-existencial. Cada qual com sua especificidade, com seu
“estilo” próprio, faz articulações entre fantasia,
ficção e autobiografia, numa proposta que transcende o campo da
teorização e adentra uma metapsicologia, uma reflexão sobre
a vida e a existência, sobre o ser pessoa, o ser psicólogo, num
processo de construção e desconstrução de significados.
A partir dessas obras creio ser possível estabelecer também uma
relação com aspectos da contracultura (PEREIRA, 1984), contexto
de emergência das abordagens humanistas (CIORNAI, 1995; BOAINAIN JR.,
1998), e com o movimento literário beat (BUENO e GÓES, 1984).
Esta última relação, por analogia, seria possível
principalmente na autobiografia do Perls (1979), posto que esta evidencia uma
grande aproximação entre o percurso de vida de Perls e a dos poetas
beat americanos, pelo registro das viagens ao redor do mundo, uso de drogas,
orientalismo e liberdade sexual.
Creio que, em grande medida, essas obras se encontram um pouco negligenciadas
nas discussões atuais na abordagem gestáltica, justamente por
seu caráter desatrelado de uma proposta formadora de teorização
e fundamentação científica da Gestalt ou da Psicologia
Humanista. Acredito que este abandono é perigoso, posto que essa “literatura”
representa um documento histórico importante para se compreender não
só as origens da 3ª Força em Psicologia, como pode conter
elementos latentes ainda por serem melhor explorados, principalmente no que
tange a relação entre psicologia e literatura.
O terceiro e último ponto que pretendo tratar diz respeito à “literatura
gestaltica” que emerge atualmente no Brasil, paralelamente ao número
significativo de publicações teóricas. Trata-se das obras
“Narciso, a bruxa e outras histórias psi” (1994) e “Amor
e ética” (2006) de Paulo Barros, “A arte de restaurar histórias:
libertando o diálogo” (1999), de Jean Clark Juliano e o “Ruídos:
contato, luz, liberdade: um jeito gestaltico de falar do espaço e do
tempo vividos” (2006), de Jorge Ponciano Ribeiro.
Proponho com esse trabalho, pois, abrir uma via de articulação
possível entre Gestalt-Terapia e a literatura, buscando compreender vínculos
existentes entre a experiência vivida e significada e as construções
poéticas e narrativas dos relatos autobiográficos presentes em
obras da Psicologia Humanista e Gestalt-Terapia. Acredito que estes registros
seriam embriões para um possível uso da literatura enquanto momento
de contato e awareness da pessoa consigo mesma e com sua história de
vida (POLSTER e POLSTER, 2001), significada e ressignificada no momento da escrita,
nas construções e reconstruções do si-mesmo.
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disponível no site:
http://www.clevelandconsultinggroup.com/pdfs/paradoxical_theory_of_change_iii.pdf
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– São Paulo: Agora, 1985.