Desirée Machado Teixeira
Este trabalho tem
por objetivo identificar e apresentar alguns fundamentos gestálticos
utilizados na construção do trabalho de supervisão técnica
da intervenção produzida pela equipe do Programa de Atenção
a Crianças e Adolescentes Vítimas de Maus-Tratos, da FIA/RJ.
A construção desse trabalho se deu ao longo de 6 anos de atuação
no enfrentamento a violência doméstica contra crianças e
adolescentes. No lugar de supervisora técnica dessa ação,
me defrontei com a responsabilidade de construir e desenvolver a metodologia
de supervisão do Programa, sempre com o objetivo, em última análise,
de garantir à população atendida, um serviço de
qualidade.
Para enfrentar tal desafio trazia fundamentalmente a militância política
como experiência de vida e 15 anos de prática clínica, como
gestalt-terapeuta, em consultório particular, como experiência
profissional. A Gestalt-terapia referenciava minha identidade profissional e
o materialismo histórico dialético referenciava a minha compreensão
das relações sociais. Estas eram as ferramentas que eu contava
para desempenhar tal tarefa.
Nessa construção, o Existencialismo emergiu como importante fundamento
ético que determinou a escolha da interdisciplinaridade como estratégia
de desenvolvimento do trabalho de supervisão técnica, além
de fornecer importantes elementos para a compreensão e análise
das questões sociais. A supervisão contribui, numa relação
dialética, na construção de uma prática profissional
comprometida com a construção da liberdade, com a valorização
do trabalho coletivo e com a efetivação de direitos para todos.
É possível identificar, na apresentação a seguir,
a presença de vários elementos da Gestalt na metodologia de supervisão
técnica implantada no Programa. Poderíamos, enumerar outros tantos
não citados. No entanto, considero os melhores exemplos das possibilidades
e do alcance da Gestalt-terapia, as inúmeras crianças, adolescentes
e famílias que, a partir de um trabalho técnico conseqüente
e responsável, tiveram garantidas a possibilidade de proteção,
a possibilidade de serem respeitadas em sua integridade, a possibilidade de
crescer e desenvolver suas potencialidades, a possibilidade de realizar novas
e melhores escolhas no seu processo de construção e reconstrução
de si mesmo e de sua vida.
VIOLÊNCIA E COMPLEXIDADE
Ao nos defrontarmos
com a complexidade do fenômeno da violência doméstica contra
crianças e adolescentes, constata-se a necessidade de se levar em conta
o conhecimento produzido por diferentes saberes. Como é um fenômeno,
na maioria dos casos, de longa duração e oculto pelo chamado complô
do silencio, requer uma intervenção especializada e qualificada,
que seja capaz de avaliar a dinâmica familiar e o contexto sócio-econômico
cultural no qual, tanto a família quanto ação executada
está inserida, analisadas em sua processualidade. Deve fazer parte desta
análise a implicação dos profissionais com o caso bem como
uma constate avaliação crítica das condições
nas quais se executa o trabalho, a fim de que se possa atingir os objetivos
propostos pelo Programa. Significa dizer que o campo requer escolhas precisas
de abordagens, que compatibilizem uma perspectiva de atenção integral
e responsabilidade social (Mioto, 1998).
Para sustentar a intervenção na realidade concreta que se apresenta,
é necessário que tais saberes se articulem dinamicamente, a fim
de que proporcionem, para além do conhecimento da complexidade teórica
da temática, o entendimento da realidade e dinâmica particulares
de cada situação concreta. Na perspectiva da luta pela efetivação
de direitos sociais, a intervenção deve-se orientar para identificação
das necessidades concretas das pessoas envolvidas a fim de subsidiar o encaminhamento
para satisfação das mesmas.
A produção organizada do conhecimento científico se realiza
em uma complexa rede institucional, operada por agentes históricos concretos,
inserida e determinada pelo contexto sóciopolítico mais amplo.
Nesse sentido, as disciplinas são o resultado de recortes e seleções
arbitrários, historicamente constituídos, expressões de
interesses e de relações de poder que ressaltam, ocultam ou negam
saberes. Quando nos referimos ao intercâmbio entre os campos disciplinares,
estamos dizendo de sujeitos sociais que interagem entre si na prática
científica cotidiana. A interdisciplinaridade, portanto, não se
baseia somente na circulação dos discursos entre os diferentes
campos disciplinares, mas, principalmente, na possibilidade de trânsito
e comunicação entre os sujeitos em cada campo. Sendo assim, um
trabalho interdisciplinar crítico (não ingênuo), diz respeito
a inúmeras interações e interferências, e, portanto,
é sinônimo de complexidade.
O PROGRAMA
Esse Programa é
uma ação pública e é executado pela Fundação
para Infância e Adolescência – FIA/RJ, órgão
da administração indireta do Estado, em parceria com organizações
não-governamentais especializadas na temática. Possui 4 núcleos
de atenção situados nos municípios de Volta Redonda, Nova
Friburgo, São Gonçalo e Rio de Janeiro. Tem como objetivo investigar
as notificações de suspeita de violência doméstica
contra crianças e adolescentes, buscando a reversão da situação
de violência e evitar sua repetição. O trabalho é
iniciado a partir das solicitações de serviço encaminhadas
pelos CT, Ministério Público e Juizados de Infância e Juventude,
em ação articulada. É importante ressaltar que dentre os
tipos de violência passíveis de serem perpetrados contra crianças
e adolescentes no contexto familiar (violência física, violência
psicológica, negligência e abuso sexual), o Programa conta com
a média de 70% do número de casos composto por abuso sexual, por
ser este tipo de violência o mais difícil de ser comprovado pelas
instâncias de defesa de direitos.
As equipes são compostas por advogado, psicólogos e assistentes
sociais, especializados na temática. Cabe ao psicólogo, preferencialmente,
a realização das entrevistas com a criança, e ao assistente
social, não exclusivamente, o atendimento à família. Ao
advogado cabem as orientações jurídicas às famílias,
quando necessárias, e a elaboração da estratégia
jurídica a ser aplicada a cada caso, no sentido de proteger a criança.
Dessa forma, os casos contam desde seu início com uma intervenção
planejada entre os profissionais das três áreas, com espaço
garantido pela própria metodologia do Programa para troca permanente
de informações e experiências entre profissionais.
No cotidiano do trabalho, essa troca é realizada entre os profissionais
responsáveis pelo caso de maneira informal, sendo reservado espaço
semanal para troca entre todos os membros da equipe. A supervisão, com
periodicidade mensal, tem por objetivo fundamental garantir a interdisciplinaridade
da intervenção, através da permanente problematização
e atualização teórica do tema, buscando assim garantir
a unidade (e não homogeneização) dos procedimentos e da
diretriz política do Programa. Além disso, o fortalecimento da
prática interdisciplinar visa a diminuir a ocorrência de possíveis
equívocos, identificados na intervenção, através
da ampliação da discussão e a confrontação
de olhares plurais na observação da situação concreta..
A SUPERVISÃO TÉCNICA NA PERSPECTIVA INTERDISCIPLINAR
Segundo Fazenda (1992),
o primeiro fundamento da interdisciplinaridade está no que a autora define
como “atitude interdisciplinar”. Esta atitude sustenta-se na capacidade
do sujeito de viver e compreender o movimento dialético, através
do qual se flexibilizam idéias. Para tanto, o exercício do diálogo,
seja do sujeito com suas próprias produções, seja com o
outro, é condição essencial. Esta atitude dialógica
é o que possibilita a construção de novos conhecimentos,
novas posturas, novos indicadores e novas possibilidades.
O segundo fundamento da prática interdisciplinar diz respeito à
parceria, que é a capacidade de dialogar com outras formas de conhecimento,
com lógicas diferentes daquela que estamos habituados a utilizar, e,
nesse processo, construir a possibilidade de interpenetração entre
elas. No sentido amplo, este fundamento sustenta a proposta da produção
coletiva do conhecimento, implícita na interdisciplinaridade, em oposição
ao individualismo fragmentador.
O terceiro fundamento assenta-se no pressuposto de que o conhecimento interdisciplinar
busca a totalidade do conhecimento, respeitando a especificidade das disciplinas.
Nele encontramos o compromisso, de caráter humanista, com a superação
da alienação e fragmentação humanas e das barreiras
que nos separam.
Um projeto interdisciplinar, portanto, apresenta fundamentos epistemológicos
e metodológicos que são definidos pelo movimento que contém,
alimentado pela ousadia da busca e pela transformação da insegurança
num exercício do pensar, num construir (Fazenda, 1993:18), que colocam
o homem como centro e protagonista deste processo. Desta forma, a interdisciplinaridade
busca abarcar a complexidade da realidade humana, assentada em um renovado e
necessário humanismo, apresentando-se como possibilidade concreta frente
ao reducionismo que caracteriza o paradigma cartesiano e que aponta o método
analítico como sendo a única forma válida de produzir conhecimento
e de oferecer explicações completas.
Como afirma Fazenda:
(...) atitude interdisciplinar, uma atitude frente a alternativas para conhecer
mais e melhor; atitude de espera frente aos atos não consumados, atitude
de reciprocidade que impele à troca, que impele ao diálogo, ao
diálogo com pares anônimos ou consigo mesmo, atitude de humildade
frente à limitação do próprio saber, atitude de
perplexidade frente à possibilidade de desvendar novos saberes, atitude
de desafio frente ao novo, desafio em redimensionar o velho, atitude de envolvimento
e comprometimento com os projetos e com as pessoas neles envolvidas, atitude
pois, de compromisso em construir sempre da melhor forma possível, atitude
de responsabilidade, mas sobretudo de alegria, de revelação, de
encontro, enfim, de vida. (Fazenda, 1992)
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
FAZENDA, I. (org)
– Novos enfoques na pesquisa educacional. SP: Cortez, 1992.
FAZENDA, I. C. A. (org.) – Práticas interdisciplinares na escola.
2.ed, S.P: Cortez, 1993.
MIOTO, R. C. T. – Cuidados sociais dirigidos à família e
segmentos sociais vulneráveis. In: CFESS-ABEPSS-CEAD/NED – UnB.
Capacitação em Serviço Social e Política Social.
Módulo 04: O trabalho do assistente social e as políticas sociais.
Brasília, 2000.