RELATO DE EXPERIÊNCIA: FRONTEIRAS DE CONTATO E A CRIANÇA RETRAÍDA

 

Márcia Hillebrand


Aprendi em Oaklander (1980) que a melhor apresentação da teoria ocorre quando a integramos ao fazer, e que cada experiência enriquece não só o paciente, mas também o terapeuta. Proponho esta discussão de caso englobando a experiência, a teoria e as novas aprendizagens proporcionadas por esta relação.
IDENTIFICAÇÃO DO CASO:
Recebi Leo, de 6 anos, encaminhado pelo pediatra e pela escola, cujas queixas estavam focalizadas na dificuldade de aprendizagem.
No primeiro contato observei um retraimento significativo, acompanhado de sintomas físicos como tremores e sudorese. Leo permaneceu imóvel durante toda a sessão, olhava-me fixamente, mas não se movia, nem falava.
Leo nasceu aos seis meses de gestação e ficou 61 dias internado, a duas horas da residência da família, sendo que a mãe viajava todos os dias para vê-lo. Foi um período de muito sofrimento, com eminência de morte muito próxima.
Durante estes seis anos Leo não precisou mais de internação e, embora seu desenvolvimento cognitivo e motor apresentassem algum atraso, bem como tenha sido constatada a ausência do corpo caloso, Leo não havia apresentado sintomas físicos relevantes. Os sintomas psicológicos passaram a chamar a atenção quando Leo alcançou a idade escolar.
Em seus primeiros dias de aula sentia ânsia de vômito e ficava imóvel na sala de aula, precisando da presença da mãe. Com o passar do tempo, conseguiu permanecer na escola sem a mãe, mas não interagia com as demais crianças, nem fazia as atividades.
Em casa, segundo sua mãe, Leo dormia no próprio quarto, brincava sozinho, conversava com os pais e “não fazia arte” (sic).
O pai não participou de muitos encontros, porém a mãe sempre demonstrou muito interesse e esteve presente durante todo o processo.
DIAGNÓSTICO:
Seguindo as orientações de Yontef (1998) de que a compreensão diagnóstica é fundamental para que o terapeuta possa escolher melhor as intervenções que ajudarão cada paciente, foi realizada uma cuidadosa análise interdisciplinar, que envolveu avaliação psicológica, pediátrica e neurológica. Havia forte evidência de que outras partes do cérebro tivessem assumido as funções do corpo caloso, uma vez que esta era uma má formação congênita. Mas também não poderia ser descartada a hipótese de que as dificuldades estivessem, em parte, associadas a este fato. De qualquer forma, havia demonstrações de uma grave introversão, resultado provável da relação confluente com a mãe. Seus contatos com o mundo externo eram limitados e parecia incapaz de fazer trocas com o ambiente sem mediação da mãe.
Oaklander (1980, p.257) lembra que o conceito de retraído diz respeito a retirar-se, afastar-se, e que algumas crianças podem fazer isso por ter construído um senso de que tudo é muito perigoso ou doloroso. Importante é lembrar que a mãe relatou muito medo de perdê-lo durante todos estes anos, protegendo-o excessivamente ou até mesmo “vivendo por ele” (sic). A forma de contato que Leo havia experimentado até então era através dela. Quando ingressou na escola e precisou tomar algumas iniciativas e interagir com outras pessoas, não conseguiu, pois não tinha vivenciado esta independência até então.
EVOLUÇÃO DO CASO:
Partindo desta compreensão diagnóstica, utilizei com Leo várias atividades propostas por Oaklander (1980), no que diz respeito à ampliação das fronteiras de contato. Esta autora coloca que:
“...a maioria das crianças consideradas necessitadas de ajuda possuem uma coisa em comum: alguma deficiência em suas funções de contato. Os instrumentos de contato são olhar, falar, tocar, escutar, mover-se, cheirar e sentir o gosto.” (Oaklander, 1980, p.73)
Neste caso o papel do psicólogo é facilitar o processo de contato, ampliando suas fronteiras, no ritmo possível para cada criança. Segundo Polster & Polster (1979), o simples fato de fazer contato propicia mudanças, porque a relação eu/mundo se transforma.
Durante os dois primeiros meses de psicoterapia Leo precisou que a mãe estivesse muito próxima fisicamente. Sempre que pegava um lápis, se movia ou se aproximava de algum brinquedo, olhava para ela, parecendo pedir aprovação. Inventei, nessa ocasião, uma brincadeira onde encenava que estava passando uma chave na boca da mãe para que ela não se metesse na nossa brincadeira, mas entregava a chave a ele para que pudesse utilizá-la caso precisasse de ajuda. Ele dava um “sorrisinho” e aceitava se afastar um pouco dela.
Nestes primeiros encontros utilizei materiais comuns, conhecidos seus (lápis de cor, jogos, carrinhos...) para facilitar a interação. Percebia que materiais diferentes o deixavam ainda mais ansioso, quanto mais complexas eram as atividades, maior era a resistência. No entanto, essa resistência foi sempre respeitada, para que uma maior amplitude fosse alcançada com segurança. As atividades que envolviam todo o corpo, bem como movimentos mais amplos, precisaram de tempo para se tornar confortáveis, assim como as cenas da caixa de areia que passaram de uma completa confusão (com todas as miniaturas misturadas), até a criação de histórias coerentes, com início, meio e fim.
Na quarta sessão me emociono quando, sem querer, lê as regras de um jogo com uma fluência surpreendente. Ele percebe minha surpresa e não repete o feito. Mas nas sessões seguintes escolhe o mesmo jogo e se arrisca a ler. Eu não digo mais nada, apenas sorrio. Nas sessões seguintes Leo faz, em massinha de modelar, “uma tartaruga que não sabia falar, então falava com os olhos (sic)”. Eu pedi que ele me ajudasse a entender o que ela estava dizendo com os olhos e ele respondeu: “olha para ela que tu vai ver” (sic). Desta forma abria espaço para que fossem checadas algumas hipóteses e ampliada sua comunicação comigo, além da compreensão de si próprio.
No segundo mês começa a deixar a mãe sair da sessão. Parece que conforme vai se vinculando a mim, sente-se seguro para deixá-la ir.
A postura corporal rígida e corcunda comunica muita tensão, trabalhos que envolvem o corpo lhe paralisam, não aceita brincar perto do espelho, ou fazer movimentos amplos. Porém atualmente consegue dizer que sente vergonha e não quer fazer esta ou aquela brincadeira.
Ainda antes do final do período letivo, consigo gravar suas leituras e, com autorização tanto dele quanto da mãe, levo para a escola e evitamos sua reprovação. Já na segunda série, ele começa a brincar de ser o “cachorro inteligente”. Traz seu cachorrinho de pelúcia dizendo: “Este é o Bob, ás vezes ele não fala nada e eu não sei o que ele quer, tem vergonha, tanta vergonha!”. Observamos como aprendeu a utilizar um novo meio de comunicação para demonstrar o que sente e aos poucos se sentir menos tenso fisicamente.
Oriento a mãe sobre a importância da independência gradativa de Leo e as mudanças que poderão acontecer em seu comportamento, uma vez que o pai pensa em tirá-lo da psicoterapia por estar muito “mandão”, piorando, na sua concepção. A mãe comenta, com certo pesar, que ele a está dispensando nas atividades rotineiras.
A introversão foi gradativamente amenizada e a questão neurológica é ainda um mistério, até mesmo para os médicos que acompanham o caso. Não há como quantificar sua influência nos comportamentos dos quais estamos tratando, mas é possível continuar a investir. Ultimamente tenho trabalhado com ele possibilidades de negociação entre suas vontades, as vontades dos outros, e reforçado sua independência. Leo já volta para casa sem a mãe e possui um amigo com quem brinca na escola e nas tardes livres. Completamos dois anos de psicoterapia, até o momento atual.
CONSIDERAÇÕES FINAIS:
Através desta discussão fica evidente tanto a importância do diagnostico psicológico e interdisciplinar, quanto dos experimentos para ampliação das fronteiras de contato.
Algumas questões técnicas relevantes estiveram presente em todos os momentos: a importância de seguir sempre o ritmo de Leo, sem apressar, nem insistir em atividades que causassem muita ansiedade; o uso de todas as formas possíveis de atividades com os sentidos, que auxiliassem a ampliar as suas fronteiras de contato; a forma casual de lidar com ele.
BIBLIOGRAFIA:
POLSTER, E. & POLSTER, M.Gestalt Terapia Integrada. Belo Horizonte: Interlivros, 1979.
YONTEF, G. Processo, diálogo e awareness. São Paulo: Summus,1998.
OAKLANDER, Violet. Descobrindo crianças: a abordagem gestáltica com crianças e adolescentes. São Paulo: Summus, 1980.