Mesa 19 – "Trabalhando com as crianças e suas limitações no contato."

Uma criança cega e sua relação com o aprender: contribuições da Gestalt-terapia à Psicopedagogia (TL)
Clarissa Arruda Nicolaiwevsky.


Após alguns anos de atendimento psicopedagógico a crianças com dificuldade de aprendizagem na aquisição da língua escrita e a partir da realização paralela do Curso de Formação em Gestalt-terapia fui me dando conta das semelhanças existentes na minha postura e no meu olhar enquanto educadora e gestalt-terapeuta. Mais ainda, percebi a importância da visão de homem que desenvolvi ao longo de minha formação para meus atendimentos psicopedagógicos e o quanto minha atitude facilitava o processo de aprendizagem daquelas crianças atendidas. Foi então que surgiu a motivação e interesse em investigar essa possível correlação, proporcionando embasamento teórico para o que experienciei ao longo daqueles atendimentos e, quem sabe, mediando o encontro de outros profissionais que atuem na área da educação com a visão de mundo gestáltica, visão esta que proporciona ferramentas que permitem ao educador estabelecer uma postura de respeito e aceitação em relação ao aprendiz e a seu processo de aprendizagem.
Pretendo, primeiramente, explicitar o tipo de atendimento realizado para, a partir daí, apontar os conceitos da Gestalt-terapia que se inserem no âmbito da psicopedagogia. Realizarei, então, um recorte de um estudo de caso onde seja possível apresentar claramente essa correlação. O caso em questão se refere ao atendimento a uma menina cega, participante de uma pesquisa-intervenção que resultou em minha monografia de final de curso da Graduação em Psicologia (Nicolaiewsky, 2004).
O objeto de estudo da Psicopedagogia é o processo de aprendizagem, sendo seu objetivo facilitá-lo. São indicados, então, para atendimento psicopedagógico, aqueles que por diferentes motivos encontram dificuldades no aprender. Sendo assim, poderíamos dizer que o psicopedagogo visa, através de intervenções específicas, possibilitar um maior desenvolvimento do processo de aprendizado daquele em atendimento. Os atendimentos realizados por mim têm como base algumas pesquisas na área da Psicologia do Desenvolvimento Cognitivo onde se investiga a importância do desenvolvimento de habilidades metalingüísticas para a aquisição da língua escrita. Metalinguagem se refere à reflexão sobre a linguagem e à manipulação intencional de seus componentes (Correa, 2004). Desta forma, a utilização de atividades de natureza metalingüística, ou seja, que tenham como objetivo a reflexão acerca da língua (oral e/ou escrita) facilitam o processo de aprendizagem da leitura e da escrita.
Em minha busca por fundamentação teórica na área da psicopedagogia deparei-me com uma quantidade significativa de autores que priorizam o aspecto afetivo no atendimento psicopedagógico, atuando, assim, mais no âmbito psi do que no âmbito pedagógico. Gillig (1999) critica justamente a escolha dos profissionais por um dos pólos, seja o cognitivo, seja o psicoafetivo, e vai além, afirmando que o objetivo do psicopedagogo se insere entre os dois saberes, ou seja, levar a criança a um estado de bem-estar e também de ‘melhor-saber’.
É interessante perceber que o foco de meu trabalho, o desenvolvimento de habilidades cognitivas, não se refere apenas ao eixo pedagógico, já que surgiu de estudos na área da Psicologia. Além disso, o tipo de intervenções propostas e minha postura nos atendimentos possibilitam transformações no desenvolvimento emocional e afetivo das crianças atendidas. De fato, é possível então afirmar que meu trabalho também vem se desenvolvendo no sentido apontado por Jean-Marie Gillig, já que proporciona uma fluidez no processo de aprendizagem e nas relações afetivas que a criança estabelece com o aprender e consigo. Assim sendo, apontarei os conceitos centrais da Gestalt-terapia que podem ser articulados com a psicopedagogia. Dentre eles, irei destacar a importância das relações para o desenvolvimento humano e, conseqüentemente, a relevância da construção de uma relação dialógica, de respeito e aceitação. Para isso é fundamental que se estabeleça uma crença positiva no homem, que é visto repleto de possibilidades e potencialidades (Ribeiro, 1999).
Apresentarei, então, um recorte do estudo de caso de uma menina cega de 11 anos. Tatiana (nome fictício), após alguns meses de atendimento, já apresentava domínio na compreensão textual. Encontrava, contudo, maiores dificuldades na escrita, já que cometia muitos erros, inclusive por conta do próprio instrumental utilizado no Sistema Braille. A revisão é uma tarefa metalingüística para a qual o debruçar sobre o próprio erro é fundamental. No entanto, esta não era uma atividade possível à Tatiana em função do que o erro representava para ela, já que o percebia como uma comprovação de seu fracasso. Deparamo-nos, assim, com um impasse: Tatiana não conseguiria continuar o seu processo de aprendizado se não lidasse com seus próprios erros, sendo que encará-los era uma experiência frustrante. Lancei mão, então, de uma adaptação da técnica de inversão de papéis, utilizada na clínica da Gestalt-terapia. Esta técnica consiste em propor que o indivíduo se coloque no lugar de outra pessoa, de forma a propiciar uma maior conscientização de seus sentimentos e pensamentos. A partir desse novo olhar é possível agir e explorar diversas alternativas de forma segura, já que se encontra em uma relação acolhedora (Polster & Polster, 2001). Assim, Tatiana precisaria experimentar estar em outro papel, daquele que ensina, o que lhe permitiria lidar com o erro com uma implicação afetiva menor. De fato, após uma série de atividades onde ela pôde experienciar novas formas de lidar com erros, Tatiana reconfigurou sua relação com seus próprios erros, sendo, então, capaz de revisar seus próprios textos sem a ansiedade presenciada anteriormente. Proporcionar novas experiências onde o aprendiz possa se relacionar de uma outra forma com o objeto de conhecimento é de grande importância. Para isso é necessário que o psicopedagogo se coloque no papel de mediador, elaborando intervenções que possam ser realizadas pelo aprendiz. Este respeito pelo ritmo do aprendiz é fundamental para que o aprendizado aconteça de forma significativa. Na prática psicoterápica é um desserviço ao cliente fazer algo por ele, retirando-lhe assim sua responsabilidade e privando-o da experiência de aprendizagem e do estímulo resultante de fazer algo por si próprio (Fagan & Shepherd, 1980) e o mesmo pode ser dito em relação à prática psicopedagógica.
A atitude de respeito do psicopedagogo em relação à criança em aprendizagem, com aceitação plena de suas características e crença em suas potencialidades, fundamenta-se nos preceitos da relação dialógica (Aguiar, 2005; Hycner, 1995). Tal forma de agir é importante para o estabelecimento de uma relação construtiva, na qual, a partir do momento em que a criança se sente amada e respeitada, também será capaz de se aceitar, podendo estar mais atenta à forma como se relaciona com o mundo. Somente através deste tipo de relação, onde há uma aceitação genuína, é possível estabelecer um processo de aprendizagem realmente significativo (Elias, 2000; Rogers, 1961), já que, através da relação estabelecida entre o aprendiz e o educador, a criança se perceberá como sujeito ativo em seu próprio processo de aprendizado. Tatiana foi demonstrando cada vez mais curiosidade e vontade de aprender, pedindo que fossem levados diferentes gêneros textuais: letras de música, uma biografia de Louis Braille e mesmo frases com mentiras para o dia primeiro de abril. Esta mudança significativa na relação que ela estabeleceu com sua produção escrita possibilitou uma transformação na compreensão que tinha de seu próprio aprendizado. Tais mudanças, como a própria reconceitualização do erro, acarretaram, conseqüentemente, em uma melhora significativa em sua auto-estima. Tatiana passou a acreditar em suas potencialidades e a se perceber como alguém capaz de aprender cada vez mais. A ida à classe regular, que anteriormente era imaginada com grande grau de ansiedade, pôde ser experimentada de forma mais tranqüila e confiante, ao afirmar que estava ‘indo muito bem’ e que iria ‘passar de ano’. Assim, a realização de tais atividades em um contexto dialógico permite o entendimento das dificuldades encontradas como possibilidades de reconstrução e aprimoramento do conhecimento. A visão gestáltica permite, enfim, que a clínica psicopedagógica se estabeleça de uma nova forma, mais respeitosa e amorosa, promovendo um crescimento global do ser em processo de aprendizagem.

Referências bibliográficas:
AGUIAR, L. Gestalt-terapia com crianças: teoria e prática. São Paulo: Livro Pleno, 2005.
CORREA, J. A avaliação da consciência sintática na criança: uma análise metodológica. Psicologia: Teoria e Pesquisa, v. 20, n.1, p. 69-75, 2004.
ELIAS, G.P. A relação dialógica no processo de aprendizagem. Revista do VI Encontro Goiano da Abordagem Gestáltica, Goiânia, p.43-49, 2000.
FAGAN, J. & SHEPHERD, I.L. Gestalt-Terapia: teoria, técnicas e aplicações. Rio de Janeiro: Zahar, 1980.
GILLIG, J.M. (1999). O conto na psicopedagogia. Porto Alegre: Artmed editora.
HYCNER, R. De pessoa a pessoa. São Paulo: Summus Editorial, 1995.
NICOLAIEWSKY, C.A. O Desenvolvimento de competências metalingüísticas e o aprendizado da escrita através do Sistema Braille. Monografia - Instituto de Psicologia, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2004.
POLSTER, E. & POLSTER, M. Gestalt-terapia integrada. São Paulo: Summus, 2001.
RIBEIRO, M. A relação terapêutica como o experimento em si. Revista de Gestalt. no 1, 1991.
ROGERS, C. Tornar-se pessoa. São Paulo: Martins Fontes, 1961.

RELATO DE EXPERIÊNCIA: FRONTEIRAS DE CONTATO E A CRIANÇA RETRAÍDA (TL)

Márcia Hillebrand


Aprendi em Oaklander (1980) que a melhor apresentação da teoria ocorre quando a integramos ao fazer, e que cada experiência enriquece não só o paciente, mas também o terapeuta. Proponho esta discussão de caso englobando a experiência, a teoria e as novas aprendizagens proporcionadas por esta relação.
IDENTIFICAÇÃO DO CASO:
Recebi Leo, de 6 anos, encaminhado pelo pediatra e pela escola, cujas queixas estavam focalizadas na dificuldade de aprendizagem.
No primeiro contato observei um retraimento significativo, acompanhado de sintomas físicos como tremores e sudorese. Leo permaneceu imóvel durante toda a sessão, olhava-me fixamente, mas não se movia, nem falava.
Leo nasceu aos seis meses de gestação e ficou 61 dias internado, a duas horas da residência da família, sendo que a mãe viajava todos os dias para vê-lo. Foi um período de muito sofrimento, com eminência de morte muito próxima.
Durante estes seis anos Leo não precisou mais de internação e, embora seu desenvolvimento cognitivo e motor apresentassem algum atraso, bem como tenha sido constatada a ausência do corpo caloso, Leo não havia apresentado sintomas físicos relevantes. Os sintomas psicológicos passaram a chamar a atenção quando Leo alcançou a idade escolar.
Em seus primeiros dias de aula sentia ânsia de vômito e ficava imóvel na sala de aula, precisando da presença da mãe. Com o passar do tempo, conseguiu permanecer na escola sem a mãe, mas não interagia com as demais crianças, nem fazia as atividades.
Em casa, segundo sua mãe, Leo dormia no próprio quarto, brincava sozinho, conversava com os pais e “não fazia arte” (sic).
O pai não participou de muitos encontros, porém a mãe sempre demonstrou muito interesse e esteve presente durante todo o processo.
DIAGNÓSTICO:
Seguindo as orientações de Yontef (1998) de que a compreensão diagnóstica é fundamental para que o terapeuta possa escolher melhor as intervenções que ajudarão cada paciente, foi realizada uma cuidadosa análise interdisciplinar, que envolveu avaliação psicológica, pediátrica e neurológica. Havia forte evidência de que outras partes do cérebro tivessem assumido as funções do corpo caloso, uma vez que esta era uma má formação congênita. Mas também não poderia ser descartada a hipótese de que as dificuldades estivessem, em parte, associadas a este fato. De qualquer forma, havia demonstrações de uma grave introversão, resultado provável da relação confluente com a mãe. Seus contatos com o mundo externo eram limitados e parecia incapaz de fazer trocas com o ambiente sem mediação da mãe.
Oaklander (1980, p.257) lembra que o conceito de retraído diz respeito a retirar-se, afastar-se, e que algumas crianças podem fazer isso por ter construído um senso de que tudo é muito perigoso ou doloroso. Importante é lembrar que a mãe relatou muito medo de perdê-lo durante todos estes anos, protegendo-o excessivamente ou até mesmo “vivendo por ele” (sic). A forma de contato que Leo havia experimentado até então era através dela. Quando ingressou na escola e precisou tomar algumas iniciativas e interagir com outras pessoas, não conseguiu, pois não tinha vivenciado esta independência até então.
EVOLUÇÃO DO CASO:
Partindo desta compreensão diagnóstica, utilizei com Leo várias atividades propostas por Oaklander (1980), no que diz respeito à ampliação das fronteiras de contato. Esta autora coloca que:
“...a maioria das crianças consideradas necessitadas de ajuda possuem uma coisa em comum: alguma deficiência em suas funções de contato. Os instrumentos de contato são olhar, falar, tocar, escutar, mover-se, cheirar e sentir o gosto.” (Oaklander, 1980, p.73)
Neste caso o papel do psicólogo é facilitar o processo de contato, ampliando suas fronteiras, no ritmo possível para cada criança. Segundo Polster & Polster (1979), o simples fato de fazer contato propicia mudanças, porque a relação eu/mundo se transforma.
Durante os dois primeiros meses de psicoterapia Leo precisou que a mãe estivesse muito próxima fisicamente. Sempre que pegava um lápis, se movia ou se aproximava de algum brinquedo, olhava para ela, parecendo pedir aprovação. Inventei, nessa ocasião, uma brincadeira onde encenava que estava passando uma chave na boca da mãe para que ela não se metesse na nossa brincadeira, mas entregava a chave a ele para que pudesse utilizá-la caso precisasse de ajuda. Ele dava um “sorrisinho” e aceitava se afastar um pouco dela.
Nestes primeiros encontros utilizei materiais comuns, conhecidos seus (lápis de cor, jogos, carrinhos...) para facilitar a interação. Percebia que materiais diferentes o deixavam ainda mais ansioso, quanto mais complexas eram as atividades, maior era a resistência. No entanto, essa resistência foi sempre respeitada, para que uma maior amplitude fosse alcançada com segurança. As atividades que envolviam todo o corpo, bem como movimentos mais amplos, precisaram de tempo para se tornar confortáveis, assim como as cenas da caixa de areia que passaram de uma completa confusão (com todas as miniaturas misturadas), até a criação de histórias coerentes, com início, meio e fim.
Na quarta sessão me emociono quando, sem querer, lê as regras de um jogo com uma fluência surpreendente. Ele percebe minha surpresa e não repete o feito. Mas nas sessões seguintes escolhe o mesmo jogo e se arrisca a ler. Eu não digo mais nada, apenas sorrio. Nas sessões seguintes Leo faz, em massinha de modelar, “uma tartaruga que não sabia falar, então falava com os olhos (sic)”. Eu pedi que ele me ajudasse a entender o que ela estava dizendo com os olhos e ele respondeu: “olha para ela que tu vai ver” (sic). Desta forma abria espaço para que fossem checadas algumas hipóteses e ampliada sua comunicação comigo, além da compreensão de si próprio.
No segundo mês começa a deixar a mãe sair da sessão. Parece que conforme vai se vinculando a mim, sente-se seguro para deixá-la ir.
A postura corporal rígida e corcunda comunica muita tensão, trabalhos que envolvem o corpo lhe paralisam, não aceita brincar perto do espelho, ou fazer movimentos amplos. Porém atualmente consegue dizer que sente vergonha e não quer fazer esta ou aquela brincadeira.
Ainda antes do final do período letivo, consigo gravar suas leituras e, com autorização tanto dele quanto da mãe, levo para a escola e evitamos sua reprovação. Já na segunda série, ele começa a brincar de ser o “cachorro inteligente”. Traz seu cachorrinho de pelúcia dizendo: “Este é o Bob, ás vezes ele não fala nada e eu não sei o que ele quer, tem vergonha, tanta vergonha!”. Observamos como aprendeu a utilizar um novo meio de comunicação para demonstrar o que sente e aos poucos se sentir menos tenso fisicamente.
Oriento a mãe sobre a importância da independência gradativa de Leo e as mudanças que poderão acontecer em seu comportamento, uma vez que o pai pensa em tirá-lo da psicoterapia por estar muito “mandão”, piorando, na sua concepção. A mãe comenta, com certo pesar, que ele a está dispensando nas atividades rotineiras.
A introversão foi gradativamente amenizada e a questão neurológica é ainda um mistério, até mesmo para os médicos que acompanham o caso. Não há como quantificar sua influência nos comportamentos dos quais estamos tratando, mas é possível continuar a investir. Ultimamente tenho trabalhado com ele possibilidades de negociação entre suas vontades, as vontades dos outros, e reforçado sua independência. Leo já volta para casa sem a mãe e possui um amigo com quem brinca na escola e nas tardes livres. Completamos dois anos de psicoterapia, até o momento atual.
CONSIDERAÇÕES FINAIS:
Através desta discussão fica evidente tanto a importância do diagnostico psicológico e interdisciplinar, quanto dos experimentos para ampliação das fronteiras de contato.

Algumas questões técnicas relevantes estiveram presente em todos os momentos: a importância de seguir sempre o ritmo de Leo, sem apressar, nem insistir em atividades que causassem muita ansiedade; o uso de todas as formas possíveis de atividades com os sentidos, que auxiliassem a ampliar as suas fronteiras de contato; a forma casual de lidar com ele.

BIBLIOGRAFIA:
POLSTER, E. & POLSTER, M.Gestalt Terapia Integrada. Belo Horizonte: Interlivros, 1979.