Uma criança cega e sua relação com o aprender:
contribuições da Gestalt-terapia à Psicopedagogia (TL)
Clarissa Arruda Nicolaiwevsky.
Após alguns anos de atendimento psicopedagógico a crianças
com dificuldade de aprendizagem na aquisição da língua
escrita e a partir da realização paralela do Curso de Formação
em Gestalt-terapia fui me dando conta das semelhanças existentes na minha
postura e no meu olhar enquanto educadora e gestalt-terapeuta. Mais ainda, percebi
a importância da visão de homem que desenvolvi ao longo de minha
formação para meus atendimentos psicopedagógicos e o quanto
minha atitude facilitava o processo de aprendizagem daquelas crianças
atendidas. Foi então que surgiu a motivação e interesse
em investigar essa possível correlação, proporcionando
embasamento teórico para o que experienciei ao longo daqueles atendimentos
e, quem sabe, mediando o encontro de outros profissionais que atuem na área
da educação com a visão de mundo gestáltica, visão
esta que proporciona ferramentas que permitem ao educador estabelecer uma postura
de respeito e aceitação em relação ao aprendiz e
a seu processo de aprendizagem.
Pretendo, primeiramente, explicitar o tipo de atendimento realizado para, a
partir daí, apontar os conceitos da Gestalt-terapia que se inserem no
âmbito da psicopedagogia. Realizarei, então, um recorte de um estudo
de caso onde seja possível apresentar claramente essa correlação.
O caso em questão se refere ao atendimento a uma menina cega, participante
de uma pesquisa-intervenção que resultou em minha monografia de
final de curso da Graduação em Psicologia (Nicolaiewsky, 2004).
O objeto de estudo da Psicopedagogia é o processo de aprendizagem, sendo
seu objetivo facilitá-lo. São indicados, então, para atendimento
psicopedagógico, aqueles que por diferentes motivos encontram dificuldades
no aprender. Sendo assim, poderíamos dizer que o psicopedagogo visa,
através de intervenções específicas, possibilitar
um maior desenvolvimento do processo de aprendizado daquele em atendimento.
Os atendimentos realizados por mim têm como base algumas pesquisas na
área da Psicologia do Desenvolvimento Cognitivo onde se investiga a importância
do desenvolvimento de habilidades metalingüísticas para a aquisição
da língua escrita. Metalinguagem se refere à reflexão sobre
a linguagem e à manipulação intencional de seus componentes
(Correa, 2004). Desta forma, a utilização de atividades de natureza
metalingüística, ou seja, que tenham como objetivo a reflexão
acerca da língua (oral e/ou escrita) facilitam o processo de aprendizagem
da leitura e da escrita.
Em minha busca por fundamentação teórica na área
da psicopedagogia deparei-me com uma quantidade significativa de autores que
priorizam o aspecto afetivo no atendimento psicopedagógico, atuando,
assim, mais no âmbito psi do que no âmbito pedagógico. Gillig
(1999) critica justamente a escolha dos profissionais por um dos pólos,
seja o cognitivo, seja o psicoafetivo, e vai além, afirmando que o objetivo
do psicopedagogo se insere entre os dois saberes, ou seja, levar a criança
a um estado de bem-estar e também de ‘melhor-saber’.
É interessante perceber que o foco de meu trabalho, o desenvolvimento
de habilidades cognitivas, não se refere apenas ao eixo pedagógico,
já que surgiu de estudos na área da Psicologia. Além disso,
o tipo de intervenções propostas e minha postura nos atendimentos
possibilitam transformações no desenvolvimento emocional e afetivo
das crianças atendidas. De fato, é possível então
afirmar que meu trabalho também vem se desenvolvendo no sentido apontado
por Jean-Marie Gillig, já que proporciona uma fluidez no processo de
aprendizagem e nas relações afetivas que a criança estabelece
com o aprender e consigo. Assim sendo, apontarei os conceitos centrais da Gestalt-terapia
que podem ser articulados com a psicopedagogia. Dentre eles, irei destacar a
importância das relações para o desenvolvimento humano e,
conseqüentemente, a relevância da construção de uma
relação dialógica, de respeito e aceitação.
Para isso é fundamental que se estabeleça uma crença positiva
no homem, que é visto repleto de possibilidades e potencialidades (Ribeiro,
1999).
Apresentarei, então, um recorte do estudo de caso de uma menina cega
de 11 anos. Tatiana (nome fictício), após alguns meses de atendimento,
já apresentava domínio na compreensão textual. Encontrava,
contudo, maiores dificuldades na escrita, já que cometia muitos erros,
inclusive por conta do próprio instrumental utilizado no Sistema Braille.
A revisão é uma tarefa metalingüística para a qual
o debruçar sobre o próprio erro é fundamental. No entanto,
esta não era uma atividade possível à Tatiana em função
do que o erro representava para ela, já que o percebia como uma comprovação
de seu fracasso. Deparamo-nos, assim, com um impasse: Tatiana não conseguiria
continuar o seu processo de aprendizado se não lidasse com seus próprios
erros, sendo que encará-los era uma experiência frustrante. Lancei
mão, então, de uma adaptação da técnica de
inversão de papéis, utilizada na clínica da Gestalt-terapia.
Esta técnica consiste em propor que o indivíduo se coloque no
lugar de outra pessoa, de forma a propiciar uma maior conscientização
de seus sentimentos e pensamentos. A partir desse novo olhar é possível
agir e explorar diversas alternativas de forma segura, já que se encontra
em uma relação acolhedora (Polster & Polster, 2001). Assim,
Tatiana precisaria experimentar estar em outro papel, daquele que ensina, o
que lhe permitiria lidar com o erro com uma implicação afetiva
menor. De fato, após uma série de atividades onde ela pôde
experienciar novas formas de lidar com erros, Tatiana reconfigurou sua relação
com seus próprios erros, sendo, então, capaz de revisar seus próprios
textos sem a ansiedade presenciada anteriormente. Proporcionar novas experiências
onde o aprendiz possa se relacionar de uma outra forma com o objeto de conhecimento
é de grande importância. Para isso é necessário que
o psicopedagogo se coloque no papel de mediador, elaborando intervenções
que possam ser realizadas pelo aprendiz. Este respeito pelo ritmo do aprendiz
é fundamental para que o aprendizado aconteça de forma significativa.
Na prática psicoterápica é um desserviço ao cliente
fazer algo por ele, retirando-lhe assim sua responsabilidade e privando-o da
experiência de aprendizagem e do estímulo resultante de fazer algo
por si próprio (Fagan & Shepherd, 1980) e o mesmo pode ser dito em
relação à prática psicopedagógica.
A atitude de respeito do psicopedagogo em relação à criança
em aprendizagem, com aceitação plena de suas características
e crença em suas potencialidades, fundamenta-se nos preceitos da relação
dialógica (Aguiar, 2005; Hycner, 1995). Tal forma de agir é importante
para o estabelecimento de uma relação construtiva, na qual, a
partir do momento em que a criança se sente amada e respeitada, também
será capaz de se aceitar, podendo estar mais atenta à forma como
se relaciona com o mundo. Somente através deste tipo de relação,
onde há uma aceitação genuína, é possível
estabelecer um processo de aprendizagem realmente significativo (Elias, 2000;
Rogers, 1961), já que, através da relação estabelecida
entre o aprendiz e o educador, a criança se perceberá como sujeito
ativo em seu próprio processo de aprendizado. Tatiana foi demonstrando
cada vez mais curiosidade e vontade de aprender, pedindo que fossem levados
diferentes gêneros textuais: letras de música, uma biografia de
Louis Braille e mesmo frases com mentiras para o dia primeiro de abril. Esta
mudança significativa na relação que ela estabeleceu com
sua produção escrita possibilitou uma transformação
na compreensão que tinha de seu próprio aprendizado. Tais mudanças,
como a própria reconceitualização do erro, acarretaram,
conseqüentemente, em uma melhora significativa em sua auto-estima. Tatiana
passou a acreditar em suas potencialidades e a se perceber como alguém
capaz de aprender cada vez mais. A ida à classe regular, que anteriormente
era imaginada com grande grau de ansiedade, pôde ser experimentada de
forma mais tranqüila e confiante, ao afirmar que estava ‘indo muito
bem’ e que iria ‘passar de ano’. Assim, a realização
de tais atividades em um contexto dialógico permite o entendimento das
dificuldades encontradas como possibilidades de reconstrução e
aprimoramento do conhecimento. A visão gestáltica permite, enfim,
que a clínica psicopedagógica se estabeleça de uma nova
forma, mais respeitosa e amorosa, promovendo um crescimento global do ser em
processo de aprendizagem.
Referências
bibliográficas:
AGUIAR, L. Gestalt-terapia com crianças: teoria e prática. São
Paulo: Livro Pleno, 2005.
CORREA, J. A avaliação da consciência sintática na
criança: uma análise metodológica. Psicologia: Teoria e
Pesquisa, v. 20, n.1, p. 69-75, 2004.
ELIAS, G.P. A relação dialógica no processo de aprendizagem.
Revista do VI Encontro Goiano da Abordagem Gestáltica, Goiânia,
p.43-49, 2000.
FAGAN, J. & SHEPHERD, I.L. Gestalt-Terapia: teoria, técnicas e aplicações.
Rio de Janeiro: Zahar, 1980.
GILLIG, J.M. (1999). O conto na psicopedagogia. Porto Alegre: Artmed editora.
HYCNER, R. De pessoa a pessoa. São Paulo: Summus Editorial, 1995.
NICOLAIEWSKY, C.A. O Desenvolvimento de competências metalingüísticas
e o aprendizado da escrita através do Sistema Braille. Monografia - Instituto
de Psicologia, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2004.
POLSTER, E. & POLSTER, M. Gestalt-terapia integrada. São Paulo: Summus,
2001.
RIBEIRO, M. A relação terapêutica como o experimento em
si. Revista de Gestalt. no 1, 1991.
ROGERS, C. Tornar-se pessoa. São Paulo: Martins Fontes, 1961.
RELATO DE EXPERIÊNCIA: FRONTEIRAS DE CONTATO E A CRIANÇA RETRAÍDA (TL)
Márcia Hillebrand
Aprendi em Oaklander (1980) que a melhor apresentação da teoria
ocorre quando a integramos ao fazer, e que cada experiência enriquece
não só o paciente, mas também o terapeuta. Proponho esta
discussão de caso englobando a experiência, a teoria e as novas
aprendizagens proporcionadas por esta relação.
IDENTIFICAÇÃO DO CASO:
Recebi Leo, de 6 anos, encaminhado pelo pediatra e pela escola, cujas queixas
estavam focalizadas na dificuldade de aprendizagem.
No primeiro contato observei um retraimento significativo, acompanhado de sintomas
físicos como tremores e sudorese. Leo permaneceu imóvel durante
toda a sessão, olhava-me fixamente, mas não se movia, nem falava.
Leo nasceu aos seis meses de gestação e ficou 61 dias internado,
a duas horas da residência da família, sendo que a mãe viajava
todos os dias para vê-lo. Foi um período de muito sofrimento, com
eminência de morte muito próxima.
Durante estes seis anos Leo não precisou mais de internação
e, embora seu desenvolvimento cognitivo e motor apresentassem algum atraso,
bem como tenha sido constatada a ausência do corpo caloso, Leo não
havia apresentado sintomas físicos relevantes. Os sintomas psicológicos
passaram a chamar a atenção quando Leo alcançou a idade
escolar.
Em seus primeiros dias de aula sentia ânsia de vômito e ficava imóvel
na sala de aula, precisando da presença da mãe. Com o passar do
tempo, conseguiu permanecer na escola sem a mãe, mas não interagia
com as demais crianças, nem fazia as atividades.
Em casa, segundo sua mãe, Leo dormia no próprio quarto, brincava
sozinho, conversava com os pais e “não fazia arte” (sic).
O pai não participou de muitos encontros, porém a mãe sempre
demonstrou muito interesse e esteve presente durante todo o processo.
DIAGNÓSTICO:
Seguindo as orientações de Yontef (1998) de que a compreensão
diagnóstica é fundamental para que o terapeuta possa escolher
melhor as intervenções que ajudarão cada paciente, foi
realizada uma cuidadosa análise interdisciplinar, que envolveu avaliação
psicológica, pediátrica e neurológica. Havia forte evidência
de que outras partes do cérebro tivessem assumido as funções
do corpo caloso, uma vez que esta era uma má formação congênita.
Mas também não poderia ser descartada a hipótese de que
as dificuldades estivessem, em parte, associadas a este fato. De qualquer forma,
havia demonstrações de uma grave introversão, resultado
provável da relação confluente com a mãe. Seus contatos
com o mundo externo eram limitados e parecia incapaz de fazer trocas com o ambiente
sem mediação da mãe.
Oaklander (1980, p.257) lembra que o conceito de retraído diz respeito
a retirar-se, afastar-se, e que algumas crianças podem fazer isso por
ter construído um senso de que tudo é muito perigoso ou doloroso.
Importante é lembrar que a mãe relatou muito medo de perdê-lo
durante todos estes anos, protegendo-o excessivamente ou até mesmo “vivendo
por ele” (sic). A forma de contato que Leo havia experimentado até
então era através dela. Quando ingressou na escola e precisou
tomar algumas iniciativas e interagir com outras pessoas, não conseguiu,
pois não tinha vivenciado esta independência até então.
EVOLUÇÃO DO CASO:
Partindo desta compreensão diagnóstica, utilizei com Leo várias
atividades propostas por Oaklander (1980), no que diz respeito à ampliação
das fronteiras de contato. Esta autora coloca que:
“...a maioria das crianças consideradas necessitadas de ajuda possuem
uma coisa em comum: alguma deficiência em suas funções de
contato. Os instrumentos de contato são olhar, falar, tocar, escutar,
mover-se, cheirar e sentir o gosto.” (Oaklander, 1980, p.73)
Neste caso o papel do psicólogo é facilitar o processo de contato,
ampliando suas fronteiras, no ritmo possível para cada criança.
Segundo Polster & Polster (1979), o simples fato de fazer contato propicia
mudanças, porque a relação eu/mundo se transforma.
Durante os dois primeiros meses de psicoterapia Leo precisou que a mãe
estivesse muito próxima fisicamente. Sempre que pegava um lápis,
se movia ou se aproximava de algum brinquedo, olhava para ela, parecendo pedir
aprovação. Inventei, nessa ocasião, uma brincadeira onde
encenava que estava passando uma chave na boca da mãe para que ela não
se metesse na nossa brincadeira, mas entregava a chave a ele para que pudesse
utilizá-la caso precisasse de ajuda. Ele dava um “sorrisinho”
e aceitava se afastar um pouco dela.
Nestes primeiros encontros utilizei materiais comuns, conhecidos seus (lápis
de cor, jogos, carrinhos...) para facilitar a interação. Percebia
que materiais diferentes o deixavam ainda mais ansioso, quanto mais complexas
eram as atividades, maior era a resistência. No entanto, essa resistência
foi sempre respeitada, para que uma maior amplitude fosse alcançada com
segurança. As atividades que envolviam todo o corpo, bem como movimentos
mais amplos, precisaram de tempo para se tornar confortáveis, assim como
as cenas da caixa de areia que passaram de uma completa confusão (com
todas as miniaturas misturadas), até a criação de histórias
coerentes, com início, meio e fim.
Na quarta sessão me emociono quando, sem querer, lê as regras de
um jogo com uma fluência surpreendente. Ele percebe minha surpresa e não
repete o feito. Mas nas sessões seguintes escolhe o mesmo jogo e se arrisca
a ler. Eu não digo mais nada, apenas sorrio. Nas sessões seguintes
Leo faz, em massinha de modelar, “uma tartaruga que não sabia falar,
então falava com os olhos (sic)”. Eu pedi que ele me ajudasse a
entender o que ela estava dizendo com os olhos e ele respondeu: “olha
para ela que tu vai ver” (sic). Desta forma abria espaço para que
fossem checadas algumas hipóteses e ampliada sua comunicação
comigo, além da compreensão de si próprio.
No segundo mês começa a deixar a mãe sair da sessão.
Parece que conforme vai se vinculando a mim, sente-se seguro para deixá-la
ir.
A postura corporal rígida e corcunda comunica muita tensão, trabalhos
que envolvem o corpo lhe paralisam, não aceita brincar perto do espelho,
ou fazer movimentos amplos. Porém atualmente consegue dizer que sente
vergonha e não quer fazer esta ou aquela brincadeira.
Ainda antes do final do período letivo, consigo gravar suas leituras
e, com autorização tanto dele quanto da mãe, levo para
a escola e evitamos sua reprovação. Já na segunda série,
ele começa a brincar de ser o “cachorro inteligente”. Traz
seu cachorrinho de pelúcia dizendo: “Este é o Bob, ás
vezes ele não fala nada e eu não sei o que ele quer, tem vergonha,
tanta vergonha!”. Observamos como aprendeu a utilizar um novo meio de
comunicação para demonstrar o que sente e aos poucos se sentir
menos tenso fisicamente.
Oriento a mãe sobre a importância da independência gradativa
de Leo e as mudanças que poderão acontecer em seu comportamento,
uma vez que o pai pensa em tirá-lo da psicoterapia por estar muito “mandão”,
piorando, na sua concepção. A mãe comenta, com certo pesar,
que ele a está dispensando nas atividades rotineiras.
A introversão foi gradativamente amenizada e a questão neurológica
é ainda um mistério, até mesmo para os médicos que
acompanham o caso. Não há como quantificar sua influência
nos comportamentos dos quais estamos tratando, mas é possível
continuar a investir. Ultimamente tenho trabalhado com ele possibilidades de
negociação entre suas vontades, as vontades dos outros, e reforçado
sua independência. Leo já volta para casa sem a mãe e possui
um amigo com quem brinca na escola e nas tardes livres. Completamos dois anos
de psicoterapia, até o momento atual.
CONSIDERAÇÕES FINAIS:
Através desta discussão fica evidente tanto a importância
do diagnostico psicológico e interdisciplinar, quanto dos experimentos
para ampliação das fronteiras de contato.
Algumas questões técnicas relevantes estiveram presente em todos
os momentos: a importância de seguir sempre o ritmo de Leo, sem apressar,
nem insistir em atividades que causassem muita ansiedade; o uso de todas as
formas possíveis de atividades com os sentidos, que auxiliassem a ampliar
as suas fronteiras de contato; a forma casual de lidar com ele.
BIBLIOGRAFIA:
POLSTER, E. & POLSTER, M.Gestalt Terapia Integrada. Belo Horizonte: Interlivros,
1979.