OUTRA POSSIBILIDADE DE PENSARMOS A SUTIL DIFERENÇA ENTRE ENCONTRO E ESCOLHA EM GESTALT-TERAPIA

Cláudia Barbeito

RESUMO

A nossa intenção é apresentar outra possibilidade de pensarmos a escolha em gestalt-terapia, ao tratarmos, principalmente, de escolhas afetivas – não mais escolha, mas encontro. Acreditamos que não escolhemos os nossos afetos. A escolha é condição do livre-arbítrio e o encontro gerado à luz da liberdade.

Palavras-chave: encontro, escolha, afetos, livre-arbítrio e liberdade.

 

Abstract

Our intention is to present another possibility to think the choice in gestalt-therapy, when treating, mainly, of affective choices – no more choice, but meeting. We belive that we don’t choose our affection. The choice is a condition of the free-will and the meeting generated to the light of the freedom.

Key-words: meet, choose, affection, free-will and freedom.

INTRODUÇÃO

A capacidade de renunciar, de abandonar respostas obsoletas e abrir mão de relacionamentos esgotados e, de tarefas além do próprio potencial, é parte essencial da sabedoria de viver.


A nossa intenção é apresentar outra possibilidade de pensarmos a escolha em gestalt-terapia, ao tratarmos, principalmente, de escolhas afetivas – não mais escolha, mas encontro. Entendemos como encontro toda e qualquer experiência vivida por nós capaz de determinar e ser determinada pelos afetos, posto que somos afetados por uma infinidade de possibilidades, que geram diversas maneiras de percorrermos o nosso caminho, com alguém, ao longo de nossa vida. Realizamos encontros, o tempo todo; alguns deles aumentam a nossa potência de agir e outros diminuem essa potência, mas, por esta perspectiva, não há possibilidade de estar no mundo sem a realização de encontros. Para tanto, o despertar da criatividade torna-se sine qua non no encontro do ser humano com seus afetos potentes e transformadores.
Quanto mais conhecemos os nossos afetos, maior a possibilidade de realizarmos bons encontros e, conseqüentemente, mais possibilidades estaremos criando para aumentarmos a nossa potência de agir. Quanto mais aumentamos a nossa potência de agir, mais conhecemos as causas dos afetos adequadamente, favorecendo, assim, nossas alegrias – ou melhor, a possibilidade de vivenciarmos felicidades , aqui e agora, na experiência. Porém, nem sempre vivenciar felicidades é tão simples quanto parece, pois somos afetados por uma infinidade de coisas a todo instante; sendo assim, não há felicidade absoluta ou perene, pois nos afetamos sempre tanto por alegria quanto por tristeza necessariamente, e por esta razão o conhecimento das coisas, bem como dos afetos são fundamentais para que o ser humano possa transformar o que lhe está causando tristeza, em alegria, em causa de felicidade. A alegria surge quando o homem é determinado pelo que é adequado à sua natureza singular. Assim sendo, torna-se possível vivenciar felicidades através da experiência afetiva que o ser humano tem em relação ao mundo. Essa experiência depende das nossas relações, dos encontros, que realizamos no meio em que habitamos.
Entendemos por escolha a opção entre uma ou outra coisa , na vida. Apresentamos, ao longo da nossa pesquisa, a possibilidade de que realizamos encontros afetivos e estes não são, necessariamente, escolhas, quando falamos de seres humanos. Acreditamos que não escolhemos os nossos afetos – afetamos e somos afetamos o tempo todo. Escolhemos coisas e não pessoas, salvo quando coisificamos pessoas. A escolha é condição do livre-arbítrio e o encontro gerado à luz da liberdade .

CAPÍTULO 1

Uma verdade muito difícil de ensinar é que apenas o presente existe agora, e desviar-se dele nos afasta da qualidade viva da realidade.


Estudando a prática da Gestalt-Terapia ouvimos inúmeras vezes o seguinte comentário, de modo geral: “A clínica em Gestalt-Terapia é vivencial e como tal, orienta-se pela intuição do terapeuta bem como pelo conhecimento conceitual.”
A partir disso seguimos com três questões que nos inquietam:
1ª Entendendo que Nietzsche tenha sido o primeiro psicólogo da Europa, aproveitamos a seguinte passagem:

Vida e Vivência: Se observamos como alguns indivíduos sabem lidar com suas vivências – suas insignificantes vivências diárias -, de modo a elas se tornarem uma terra arável que produz três vezes por ano; enquanto outros – muitos outros! – são impelidos através das ondas dos destinos mais agitados, das multifárias correntes de tempos e povos, e, no entanto continuam leves, sempre em cima, como cortiça: então ficamos tentados a dividir a humanidade numa maioria (“minimaria”) que sabe transformar o pouco em muito e numa maioria que sabe transformar muito em pouco; sim, deparamos com esses bruxos ao avesso, que, em vez de criar o mundo a partir do nada, criam o nada a partir do mundo.

Nietzsche fala da importância de vivermos cada instante da vida tendo como referência o potencial de criação do ser humano. A Gestalt-Terapia, aponta para a singularidade de cada encontro terapêutico, somado a relevância da transformação a partir da vivência.

2ª O que chamamos intuitivo é também fruto de conhecimento, e, o mais “verdadeiro” deles. É aquele que nos conduz ao conhecimento de nós mesmos, da nossa singularidade. Este conhecimento é aquele que aparece de repente, geralmente quando menos esperamos, deixando a impressão de que não há conhecimento anterior a ele. Ao contrário, ele é seletivo e fica arquivado em nossa memória; quando menos o esperamos vem à luz. Resumindo: O que chamamos de intuitivo é necessariamente verdadeiro e fruto de muito conhecimento.

(Conhecimento intuitivo) É um conhecimento que leva a uma visão de nossa vida, do seu significado e fundamento enquanto partes de um todo. A razão estrita é ultrapassada nessa vivência e nos sentimentos que provoca dado que ela ‘não tem o poder de conduzir à felicidade’ e ‘não é por si o meio de adquirirmos a nossa perfeição’. Ninguém se salva a estudar as leis do universo.
Interessa, pois precisar as relações entre ‘ratio’ e ‘scientia intuitiva’.

O que nos interessa, a partir da fala de Maria Luísa, é compreender que não “devemos” abrir mão da nossa capacidade racional, mas, tê-la como ponto de partida para podermos vivenciar as relações que se estabelecem, dando oportunidade para que a nossa intuição flua naturalmente.

3ª A gestalt-terapia só acontece no aqui e agora, a partir do processo criativo. A ação do gestalt-terapeuta deve, antes de tudo, estar voltada para cada encontro, como se aquele fosse o primeiro; Isto a torna legítima prática do conhecimento intuitivo entre terapeuta/cliente. Acreditamos que ai encontra-se o sucesso do gestalt-terapeuta, posto que ao longo dos encontros entre ambos – terapeuta e cliente – deva acontecer o envolvimento necessário para a experiência terapêutica, que vai se estabelecendo logo no início e a partir de então se transformando ao longo do processo, conforme o percurso da relação, conforme forem surgindo as gestalts.

a) A singularidade do encontro terapêutico

 

Cântico XXIV

Não digas: Este que me deu corpo é meu Pai.
Esta que me deu corpo é minha Mãe.
Muito mais teu Pai e tua Mãe são os que te fizeram
Em espírito.
E esses foram sem número.
Sem nome.
De todos os tempos.
Deixaram o rastro pelos caminhos de hoje.
Todos os que já viveram
E andam fazendo-te dia a dia
Os de hoje, os de amanhã.
E os homens, e as coisas todas silenciosas.
A tua extensão prolonga-se em todos os sentidos.
O teu mundo não tem pólos.
E tu és o próprio mundo.
(Cecília Meireles)

 

A peculiaridade do processo gestaltico-terapêutico, para nós, está na poesia em que o encontro terapeuta/cliente acontece; em outras palavras: no respeito que o terapeuta tem às diferenças de cada ser humano, o que o coloca na condição de facilitador do processo, enquanto aquele que favorece ao cliente possibilidades únicas, singulares e potentes de vivenciar sua vida, autorizando-o na mudança da awareness e de comportamento, atualizando e ampliando a sua auto-imagem, aqui e agora.
Tal processo só é possível de acontecer quando o cliente confia as suas questões ao terapeuta que o convida a caminhar seu próprio percurso, encontrando ao longo deste diferentes possibilidades de atravessá-lo, a partir, principalmente, de suas diferenças singulares (somos qualquer coisa de intermédio entre o “eu sou” e o “outro”).
Entraremos aqui com a diferença entre escolher e encontrar.
Para nós, o ser humano tem a possibilidade de escolher o caminho, a direção que irá percorrer, mas não tem o poder de escolher quem percorrerá tal caminho ao seu lado. Veremos isso com mais detalhe adiante, por hora, para começar o diálogo entre nós e os diversos pensadores apresentados ao longo dessas linhas, nos concentraremos nas seguintes questões: Como tratar esse caminhante - Ele é um ser individual ou singular? Ele é sujeito ou objeto? Acreditamos que tratar o ser humano como um indivíduo torna-se a maior das blasfêmias do campo terapêutico contemporâneo, uma vez que o termo indivíduo nos remete àquele que está separado do todo, que rompe com a continuidade indistinta, o que está acabado, pronto, “fabricado”. Por outro lado, tratá-lo como sujeito é referi-lo ao pronome pessoal reto, sendo assim é afirmar que “eu” (“tu, ele, nós, vós ou eles”), o sujeito não tenho valor em mim mesmo, mas tão somente em relação a algo. Sendo assim, sujeito e objeto são e estão em relação constante e permanente. A partir daqui entramos com a intersubjetividade do processo terapêutico, onde terapeuta e cliente são seres singulares, atuando na construção do inevitável inacabamento de suas vidas: um grito da impotência humana nos consultórios... onde até então preludiava-se o mais profundo silêncio, posto que a idéia cartesiana de ser humano vem colocá-lo no centro do universo. Pensando com Bataille:

“Se agora imaginamos homens que concebem o mundo sob a luz da existência contínua (em relação à sua intimidade, à sua subjetividade profunda), devemos perceber também que eles têm necessidade de atribuir-lhe as virtudes de uma coisa ‘capaz de agir, de pensar e de falar’ (exatamente como fazem os homens)” .

No conceito de singularidade o sujeito e objeto não são reconhecidos como uno, mas nas suas diferentes formas de habitar o mundo, ou seja, nas suas multiplicidades.
Nós acreditamos que o sujeito acessa diferentes semióticas , quando organiza sua ação na vida e, dependendo das representações simbólicas acessadas por ele, pode assumir diferentes atitudes. Tais representações, neste sentido, tendem a organizar no sujeito um modo específico de ver e atuar no mundo. A partir dessa perspectiva, o olhar do terapeuta para a ação do cliente compreende sua atitude, subjetivamente, através das representações simbólicas, nos diversos vetores de formação da realidade, presentes no cotidiano.
O processo terapêutico tem como uma de suas principais características o alto grau de autonomia dos terapeutas com o seu próprio trabalho. Estes atuam a partir de um modo específico de ser; assim a singularidade pode revelar a atuação de terapeutas que conduzem os sistemas produtivos de suas práticas. Singularidade na idéia articulada pela esquizoanálise vem dizer respeito ao fato de que o sujeito não é uno, mas pessoa singular, porque cada um atua conforme representações simbólicas que definem o modo de agir em determinado tempo e lugar específicos: “Escrevemos o Anti-Édipo a dois. Como cada um de nós era vários, já era muita gente” . Os autores aqui citados estão apontando para a inexorável desventura de acessarem símbolos diferentes, como referenciais na construção da sua atuação na vida. Cada pessoa pode ser vários. A singularidade pode fazer com que terapeutas atuem de forma solidária e harmônica com seus clientes, pois os habilita empaticamente. As atitudes do terapeuta dependerão do referencial simbólico apresentado em cada cessão, sempre remetida ao “aqui e agora”. O simbólico pertence ao mundo do conhecer, isto é, saberes, cultura, valores, história, artes, linguagem e às múltiplas expressões da realidade. A subjetividade pertence ao mundo do ser, o que não é necessariamente sabido, mas extremamente expressivo na produção do socius, que no caso da relação terapeuta/cliente torna-se expressão repleta de significações. Neste momento,
Apontamos para a idéia de imanência na ação terapêutica, o que é particularmente importante, pois nos fala de que sempre haverá a articulação de diversas unidades, saberes, fazeres, subjetividades, singularidades, atuando de modo correlato para fazer com que o cuidado no ato da relação terapeuta/cliente seja prioritário. Por outro lado, a subjetividade, segundo Deleuze e Guattari, não é dada; ela é objeto de produções inesgotáveis que transbordam no indivíduo. Tais processos podem se estabelecer à medida que ou tanto mais quanto as relações terapeuta/cliente vinculam ou não o contato “aqui e agora”. Sendo assim, as figuras da subjetividade são, por princípio, transitórias, e sua formação pressupõe, necessariamente, agenciamentos coletivos e impessoais. Tais possibilidades acabam, neste momento – “aqui e agora” literalmente – por nos remeter ao poeta, ator, escritor, dramaturgo, roteirista e diretor de teatro francês, de aspirações anarquistas, Antoine Marie Joseph Artaud, plagiando, única e tão somente, a expressão por ele usada “Corpo sem Órgãos” para fazermos uma analogia: corpo onde os encontros com o outro, geram intensidades que irão transbordar os contornos dos “indivíduos” . Esse transbordamento proporcionará a reconstrução do ser e traduzirá, assim, o processo subjetivo: “o escoamento indistinto do ser no ser” , trazendo à luz a sua singularidade. Tudo isso junto, proporcionará o conhecimento intuitivo, das vivências e encontros do ser humano, ao longo de sua vida.

b) O conhecimento intuitivo e a prática terapêutica


NOSSAS ERUPÇÕES
Inumeráveis coisas que a humanidade adquiriu em estágios anteriores, de modo tão frágil e embrionário que ninguém pôde perceber tal aquisição, vêm à luz repentinamente, após muito tempo, talvez séculos depois: tornaram-se maduras e fortes nesse intervalo. Algumas épocas, assim como alguns indivíduos, parecem não possuir este ou aquele talento, esta ou aquela virtude: mas esperemos tão-só os netos e os filhos dos netos, se tivermos tempo para isso – eles trazem à luz do sol interior de seus avós, esse interior do qual os avós mesmos nada sabiam. Com freqüência o filho denuncia o pai: este compreende melhor a si mesmo, depois que tem o filho. Todos nós temos jardins e plantações ocultas em nós; e, numa outra imagem, somos todos vulcões em crescimento, que terão sua hora de erupção: - mas se ela está longe ou perto, isso ninguém sabe, nem mesmo Deus.

Porém, uma terapia potente nos ajuda na reorientação das decisões parentais, trazendo-as para nós, decidindo por uma nova possibilidade de ação. Mas para que isto ocorra, torna-se preciso conhecer tais decisões. Como podemos conhecer adequadamente os nossos afetos para que possamos reorientar as decisões parentais? Para que o ser humano conheça intuitivamente as causas que movem àquilo que o afeta, torna-se necessário que ele seja dirigido pela razão - esta que opera na organização dos pensamentos, tornando-nos capazes de criar e construir a nossa história. A riqueza da razão encontra-se na comunhão do ritmo do pensar com o ritmo do ser. Tal comunhão oportunará no sentimento potente face ao mundo, impedindo o ser humano de vincular suas ações a acasos favoráveis, passando, ao contrário, a se determinar em um mundo de acontecimentos que não dependem exclusivamente dele, mas da sua relação com este meio que habita.
A potência dos afetos humanos depende do conhecimento que cada um tem das coisas e de seus próprios afetos, conduzindo-o a se afetar com o mundo no que este tem de necessário, de modo que lhe seja singularmente bom. Cada ser humano se manifesta no mundo de acordo com a sua experiência privada, no e do coletivo. Acreditamos com Espinosa que o ser humano é capaz de conhecer intuitivamente seus afetos porque pensa, bem como experimenta esse pensamento com o seu corpo; o que implica dizer que a questão da existência introduz a importância do sentimento com relação a cada vivência, traduzindo-a em experiência. Estas são frutos de afetos passivos e ativos, independentes de uma temporalidade no tocante ao aumento ou diminuição da potência humana. A atemporalidade da transformação dos afetos no ser se deve a que eles são infinitos e, por tanto, não podem ser pré-determinados quanto a sua duração em suas vidas. A busca que cada ser humano empreende pelo conhecimento dos seus afetos deve ocorrer quando tal afeto exerce importância em sua existência. Uma vez iniciada essa busca, tornar-se-á possível ao ser uma diversidade de encontros que o influenciarão em sua trajetória. A importância de conhecermos o mais perfeitamente que pudermos os nossos afetos, se constitui na ação efetivamente ética no que diz respeito ao modo que percorremos o nosso caminho, singularmente.

...modificamos comportamentos concretos de maneira graduada e cuidadosamente articulada. Com isso, uma das qualidades singulares da Gestalt-terapia é a ênfase na modificação do comportamento de uma pessoa, dentro da própria situação terapêutica. Essa modificação comportamental sistemática, quando brota da experiência pessoal do cliente, é chamada de experimento.

O processo terapêutico contribui no encontro do ser com a sua história familiar e social, colaborando para as diferentes escolhas de caminhos ao longo das diferentes possibilidades que lhe aparecerão durante seu percurso.
Dizer que cabe escolher caminho torna-o “coisa” de nossas possibilidades existenciais? Por mais contraditório que pareça, cabe aqui, a afirmativa. A saber:

Certa vez uma criança arrebatou o melhor de mim. Eu viajava e me encontrava diante de uma encruzilhada. Vi então um menino e lhe perguntei qual seria o caminho para a cidade. Ele respondeu: ‘Este é o caminho curto e longo e este o longo e curto’. Tomei o curto e longo e logo deparei com obstáculos intransponíveis de jardins e pomares. Ao retornar, reclamei: ‘Meu filho, você não me disse que era o caminho curto?’ O menino então respondeu: ‘Porém lhe disse que era longo!’.

Na trilha da sobrevivência, a ‘mesmice’ muitas vezes é o caminho curto, o mais simples, e que tem os custos mais elevados (longos). Ir pelo caminho mais simples e mais curto é uma lei evolucionista. Certamente os corpos se movem na direção mais imediata e curta. Os galhos buscam a luz e o animal a água, mas sua inteligência interna, sua alma, está atenta a longas modificações. A tentativa de sobrevivência acontece nos campos de batalha do mundo curto e do mundo longo. As chances de extinção dos que percorrem caminhos curtos que são longos é muito grande. As espécies sobreviventes são aquelas que souberam fazer opções pelo longo caminho curto.


Eis a tarefa do gestal-terapeuta: apresentar ao cliente as possibilidades de escolher longos caminhos curtos; autorizando-o a escolher seus caminhos ele torna possível a realização da experiência entre o falar e agir singularmente potente. Como diz Zinker: “transformar o falar no fazer” para que possa encontrar adequadamente quem percorrerá o caminho ao seu lado. Processo pelo qual ocorre através do conhecimento intuitivo dos afetos capazes de aumentar a sua potência de agir. Terapeuta e facilitador, nessa concepção, são termos sinônimos – na condição de terapeutas, não temos o poder sobre a vida alheia, mas podemos e devemos criar condições potentes de convites, para que nossos clientes possam percorrer longos caminhos curtos.

c) O processo criativo na prática terapêutica

O que o olhar não olha é a verdadeira obediência propiciada pelo desvio.


Como afirmou Perls: “a Gestalt-terapia é um exemplo único de integração das abordagens comportamental e fenomenológica.” Sofreu influência das “visões organísmicas de Kurt Goldstein e Wilhelm Reich.
O gestal-terapeuta é facilitador do processo da pessoa, e necessita, antes de qualquer coisa, ser um curioso da vida. A construção teórica da prática terapêutica em gestalt é aquela que não busca nada fora do processo em que o cliente se apresenta. Para tanto, torna-se necessário ao gestalt-terapeuta o exercício da criatividade.
No processo criativo é exigido que o terapeuta olhe o seu cliente como um ser singular que está inserido no contexto social. O que vale dizer que esta pessoa que está diante dele é um universo a ser explorado sem cartilhas, sem censura, sem receitas, apenas com o projeto que se constituirá a partir da relação entre ambos. A criatividade do terapeuta em conduzir cada encontro convidará a exploração do processo criativo do cliente. O terapeuta é um artista que é capaz de transformar, de ser um agente facilitador de mudanças. A terapia criativa evoca alguns aspectos que seguirão como um grande convite a respostas.
O contato amoroso é, talvez, o ponto de partida do processo terapêutico. O amor do terapeuta é altruísta, repleto de sentimento de Boa Vontade, para com a humanidade. A aceitação do terapeuta pelo cliente, neste sentido, é incondicional.

Como sei que você me aceita totalmente, posso expor meu lado mais suave, receptivo. Delicado, bonito e vulnerável.

A aceitação passa pela disponibilidade do terapeuta em criar encontros. Proporcionar processos criativos é o mesmo que proporcionar crescimento. Zinker defende a arte para pessoas, simplesmente. A arte como desabrochar e não como processo erudito.
Quando o terapeuta proporciona a abertura necessária ao processo do cliente ele faz arte e contribui com a permissão criativa em seu cliente. Torna-se necessário que terapeuta e cliente entrem em contato com a vida, no detalhe que lhes for principal. A vida corrida e superficial distancia o homem de si mesmo. Eis um problema terapêutico.
Zinker aponta a idéia de que o processo terapêutico acontece diante de um problema. Ousamos afirmar que a vida acontece diante de situações-problema. O ser humano tem sempre algo a resolver. É isto que caracteriza um problema. Quando não temos mais nada a realizar, mais nada para resolver é sinal de que estamos paralisados diante da vida – não ter problema é um problema! A existência implica em resolver situações para o desenvolvimento, o crescimento; logo, podemos concluir que viver é superar cada instante, quando o instante não é superado é sinal de interrupção do movimento, gerando ressentimentos.
O problema do terapeuta consiste em conhecer os diferentes caminhos que seu cliente sinaliza, para que possa facilitar o processo de escolha que acarretará em encontros afetivos ao longo do percurso que o cliente desejar caminhar; propiciar que seu cliente “des-cubra” e, assim, aprenda a experimentar com suavidade. Isto ocorre quando a pessoa começa a ir de um pequeno passo do processo em direção ao seguinte, respeitando seus limites, sem paralisar seu processo - um passo de cada vez.
Todo processo criativo é transcendente. A criação, como já dissemos, é a liberdade que o ser humano tem em criar novas possibilidades para sua vida, de ir além; esta criação, embora se dê na imanência do tempo, transcende na possibilidade do próprio tempo. “Um minuto de água fervendo na panela, não representa o mesmo minuto de água fervendo sobre o corpo de uma pessoa, por exemplo.”
Para Zinker o termo transcendência é sinônimo de religioso. Isto porque o termo religião origina-se no latim com o verbo religare, que significa em fusão, em comunhão, para além de si. A experiência religiosa é aquela em que terapeuta e cliente fundem seus projetos, criando apenas àqueles que conduzirão o cliente aos seus objetivos; parafraseando Zinker, mais corajoso, ampliando fronteiras, experimentando novos comportamentos. Sendo assim, podemos dizer que a gestalt-terapia permite a pessoa comum contactar com a criatividade que é própria ao ser humano. Ela transforma o processo terapeuta-cliente naquele que é capaz de oportunizar o processo integrativo de crescimento. O terapeuta está sempre convidando o cliente a ser um “experimentador, um professor e um modificador ativo”, ao mesmo tempo em que mantém uma atitude compreensiva e respeitosa em relação ao que o cliente pode “naquele momento”. Como diz Zinker, cabe ao terapeuta saber usar os olhos e as mãos a fim de localizar a energia do cliente. Para tanto se torna necessário usar a criatividade para integrar os modos polares sem adotar uma única postura de ação, pois assim estará imobilizando seu comportamento. Tudo isso aqui e agora.
O gestalt-terapeuta deve ter metas e aspirações em seu trabalho, bem como buscar diferentes formas para alcançá-las ao longo do processo. Para melhor atuação neste sentido, Zinker usa o ciclo do contato criado por Perls (pré-contato, contato e pós-contato). Este ciclo é traduzido por ele por curvas que são conhecidas como “curvas de Zinker”. Todas as etapas do processo terapêutico podem seguir uma ordem ou ter uma seqüência arbitrária. O principal é respeitar cada processo e entende-lo como único. O experimento criativo brota de várias imagens, conforme a experiência de cada um – seja na terapia de grupo ou na individual.
Em terapias de grupo é importante salientar que naquele espaço encontram-se pessoas em busca de aprendizagem. A identidade de cada componente acarretará na identidade daquele grupo, especificamente. Esta identidade não é estática e se transforma conforme a transformação do processo grupal. Tanto na terapia de grupo como na individual é necessário que os conflitos apareçam e que sejam encarados como motivadores de transformações. Se eu não tenho nada a resolver, entendo que está tudo bem e, assim, não tenho porque mudar. Para que a mudança ocorra, o conflito é fundamental; ele está para o grupo ou para a pessoa assim como o rim, o coração, os pulmões estão para o corpo humano – ele é visceral, e como tal, existe independente da minha vontade. O mais importante é saber conduzi-lo para que as metas sejam cumpridas e o caminho bem percorrido.

CAPÍTULO 2
A Liberdade em gestalt-terapia

A capacidade de renunciar, de abandonar respostas obsoletas e abrir mão de relacionamentos esgotados e, de tarefas além do próprio potencial, é parte essencial da sabedoria de viver.


Sugerimos trabalhar os termos ‘livre-arbítrio’ e ‘liberdade’ para concluirmos a nossa proposta temática.
Para nós, o ser humano não é livre para escolher entre um e outro afeto, posto que esteja no mundo afetando e sendo afetado, necessariamente. Como vimos, torna-se condição, entretanto que conheçamos os nossos afetos para aumentarmos a nossa potência de agir, pois para que sejamos ativos precisamos criar condições afetivas favoráveis e, assim, transformarmos os afetos tristes em bons encontros - encontros potentes. Acreditamos que somos capazes de criar condições que favoreçam ao ser humano a realização de tais encontros. As nossas escolhas ficam por conta do que segue desses encontros, ou seja, não escolhemos o nosso amor, mas se casamos ou não; não escolhemos se temos sede, mas se bebemos água ou mate para acabar com ela, não escolhemos nossos amigos, mas qual o caminho que percorreremos com eles...
Segundo Descartes, livre arbítrio é condição de escolha humana, o que significa dizer que o homem é livre para escolher entre uma ou outra ação em sua vida, entre o Bem e o Mal. Porém, acreditamos com Espinosa que homem nenhum escolhe o mal. A escolha é necessariamente arbitrária e tratando-se das ações humanas não cabe dizer que o homem escolha, por exemplo, pela sua condição social de pobreza ou mesmo de ser um bandido violento, entre tantas outras coisas. Esta dinâmica funciona a partir dos encontros que o ser humano tem na vida. Uma criança, ao nascer, recebe de quem se torna responsável por ela no que diz respeito a sua formação – pai, mãe, avós, vizinho, babá...- os valores desta pessoa. São estes valores que a acompanharão nos estágios iniciais da sua vida e que irão se transformando, de acordo com as circunstâncias, ao longo do tempo.
A nossa proposta é pensar a liberdade como a capacidade que só os seres humanos têm de inventar, de elaborar o pensamento e ai transformar a realidade – condição da racionalidade. Nesta perspectiva, a liberdade implica em vivenciarmos autenticamente as diferentes possibilidades criativas para habitarmos o mundo. Tais vivências não podem ser repetidas, reproduzidas, porque são únicas, se dão na singularidade do momento da pessoa que a experimenta. Cada experiência que nos coloca diante da condição humana de sermos livres, nos torna potencialmente construtores de um percurso singular, in-pensável . Essa construção se dá no aqui e agora, na caminhada, na constituição da própria construção. Não há como prever ou planejar que percurso será esse. É preciso conhecer diferentes possibilidades de caminhos e, assim, escolher intuitivamente percorrer o caminho que não se sabe, arriscar-se nesta ponte desconhecida. Acreditamos que dessa forma seremos capazes de potencializar o nosso processo criativo, tanto quanto for possível a nós. Poderíamos concluir apresentando uma análise filosófica, mas vamos fazê-la de maneira pouquíssimo acadêmica, vale dizer, na poesia, com a música de Milton Nascimento e Ronaldo Bastos:

Cais
Para quem quer se soltar
Invento o cais
Invento mais que a solidão me dá
Invento a lua nova a clarear
Invento o amor
E sei a dor de me lançar
Eu queria ser feliz invento o mar
Invento em mim o sonhador
Para quem quer me seguir eu quero mais
Tenho o caminho que sempre quis
E um saveiro pronto pra partir
Invento o cais
E sei a vez de me lançar


Gostamos de dizer que o terapeuta potente é aquele que se lança na sua prática criando, inventando sempre diferentes maneiras de produção do seu trabalho, ou seja, transgredindo valores e apresentando outros diferentes. O Gestalt-terapeuta é aquele que escolhe seu caminho e encontra seres humanos potentes ao longo do seu percurso, buscando sempre diferentes “formas” de caminhar, favorecendo pluralidade de encontros.

C O N C L U S Ã O


A diferença entre escolha e encontro na gestalt-terapia poderá estar assim representada, teoricamente: ao invés de pensarmos em livre-arbítrio, ou seja, na condição que o ser humano tem para escolher entre uma ou outra coisa, entre bem e mal – que implica, necessariamente em julgamento de valor – sugerimos humanizar o pensamento atribuindo a ele àquilo que é condicional à sua natureza: a liberdade. Esta, elaborada como condição da racionalidade que é tão somente humana. Por racionalidade entendemos a capacidade que o ser humano tem de organizar o pensamento e a partir disso criar a história, viver temporalmente. Sendo assim, acreditamos que somos livres porque somos capazes de construir, de inventar as condições necessárias e possíveis a nós, para vivermos, criativa e singularmente – o que é bom pra mim, não é necessariamente bom para o outro e vive-versa. Por estas razões não compreendemos que escolhemos afetos, posto que somos seres afetivos no strito sensu, gerados por afetos que se constituem através dos encontros mais ou menos potentes, porém, todos afetos, todos potentes e, portanto, todos encontros.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BARBEITO, Cláudia. A Vivência da Felicidade através da Ética dos Afetos, segundo Espinosa. Rio de Janeiro: Programa de Pós-Graduação em filosofia – UGF, 2000.

BATAILLE, Georges. Teoria da Religião.São Paulo: Ática, 1993.
________________. O Erotismo. São Paulo: Arx, 2004.
BONDER, Nilton. A Alma Imoral. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.

CHAUÍ, Marilena. Espinosa uma filosofia da liberdade. São Paulo: Moderna, 1995.

________________. A Nervura do Real: imanência e liberdade em Espinosa. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
_______________. Convite à filosofia. São Paulo: Ática, 1996.

Deleuze e Guattari. Mil Platô: capitalismo e esquizofrenia.- abertura -1996.

ESPINOSA. Ética. Tradução de Lívio Xavier. Rio de Janeiro. Ed. De Ouro, 1963.

_________. Éthique.Bilingue: latin-français. Presente, traduit et commenté par
Bernard Pautrat. Éditions du Seuil, 1999.

FERREIRA, Maria Luísa. A Dinâmica da Razão na Filosofia de Espinosa. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997.

GOFFMAN, Erving. Relations in Public: Microstudies of the Public Order. New York: Harper Colophon Books, 1972.

HÜME, Leda Miranda. (Org). Etica. UAPÊ:1997.

MAGALHÃES, Rui. Paixões e Singularidades. Angelus Novus editora. Braga.
Portugal, 1999.

MARTINS, André. ‘Nietzsche e Espínosa’, in O que nos faz pensar. nº14. Rio de Janeiro: Departamento de Filosofia da PUC - Rio,2000.

MILLER, Michael Vincent. Terrorismo Íntimo: A deterioração da Vida Erótica; tradução de Dirce de Assis Cavalcanti. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1995.

NEGRI, Antonio. A Anomalia Selvagem: poder e potência em Spinoza. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1993.

NIETZSCHE, F. Assim Falou Zaratustra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.
____________ A Gaia Ciência. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.

_____________ Além do Bem e do Mal. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.


_____________Humano, Demasiado Humano.São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

BIBLIOGRAFIA EM GESTALT-TERAPIA
POLSTER, Erving e Miriam. Gestalt-terapia integrada.
Stevens, John O. e Stevens, Barry, Isto é gestalt.

ZINKER, Joseph. O Processo Criativo em Gestalt-Terapia. São Paulo: Summus, 2007.
_______________. “The phenomenological here and now”. In: Integrative Therapie. Alemanha: FPI Publications, 1975.

BUBER, Martin. Ten rungs: Hasidic sayings. Nova York: Schoken Books, 1962.