REVISITANDO “GESTALT-TERAPIA E FILOSOFIA”, 17 ANOS DEPOIS:
AINDA ESTAMOS PERDIDOS? O QUE PRECISAMOS (RE)ENCONTRAR?

Georges Daniel Janja Bloc Boris

 

INTRODUÇÃO

Ao ser convidado para esta mesa redonda, decidi revisitar uma fala, minha estréia no I Encontro Norte-Nordeste de Gestalt-Terapia, em Recife, no ano de 1990, denominada Gestalt-Terapia e Filosofia: Onde e Como nos Perdemos? Como nos (Re)Encontraremos? Em tal fala de 17 anos atrás, eu apontava uma prática freqüentemente superficial e tecnicista entre os gestalt-terapeutas. Tal prática inconsistente parecia a mim fruto do parco conhecimento da sua fundamentação epistemológico-filosófica e da nossa pouca disponibilidade de criar e de desenvolver uma teorização própria, para além dos últimos textos de Fritz Perls, bastante ilustrativos, mas não necessariamente os mais bem fundamentados. Portanto, eu propunha uma retomada da fundamentação filosófico-epistemológica e teórico-metodológica da gestalt-terapia. Ao final, destacava a responsabilidade daqueles que fazem a gestalt-terapia brasileira e contemporânea pela compreensão crítica das raízes filosófico-epistemológicas e das obras mais consistentes de Perls, Ego, Fome e Agressão: Uma Revisão da Teoria e do Método de Freud e Gestalt-Terapia (não publicadas no Brasil, até à época), buscando criar e desenvolver, teórica e praticamente, as nossas próprias elaborações. Hoje, gostaria de repensar com vocês nossa situação atual.
Minha fala atual parte, como a de 1990, de uma dupla constatação: por um lado, minha crença na gestalt-terapia como uma abordagem psicoterápica viável, que vem se desenvolvendo sistematicamente, formando novos psicoterapeutas e produzindo textos, livros e eventos com cada vez maior número de participantes. Por outro lado, creio que a necessidade de cuidado e de reconhecimento de nossa fundamentação epistemológica e filosófica ainda persiste, embora a realização desta mesa sobre as nossas relações com a filosofia, além de algumas palestras deste e de outros congressos, constituam um dado alvissareiro. Deste modo, não creio que seja por acaso que o reconhecimento da importância da gestalt-terapia no campo das psicoterapias contemporâneas e nas nossas Universidades ainda seja tímido. Neste sentido, junto com duas colegas da Universidade de Fortaleza – Karynne Melo e Luíza Freitas, orgulhosamente formadas por Gercy Campos e por mim – decidimos sugerir uma outra mesa (a acontecer, ainda hoje, às 15 horas, na sala Guaratiba) sobre a produção da gestalt-terapia em nossa Universidade, esperando que seja um incentivo a que outros colegas gestalt-terapeutas se animem a enfrentar o universo acadêmico. Da mesma forma, hoje, aqui, me proponho a uma breve revisão de algumas contribuições filosóficas à fundamentação teórico-metodológica da gestalt-terapia.

 

. A FENOMENOLOGIA

Constitui o método por excelência das abordagens existenciais ou humanistas. Entretanto, creio que ainda poucos gestalt-terapeutas conhecem a fundo as raízes do método fenomenológico. Assim, sinteticamente, discuto alguns dos principais aportes epistemológicos da fenomenologia à gestalt-terapia:

. Brentano (1838-1917). A sua grande importância se deve, em grande parte, às influências que sofreu e às que exerceu. Foi influenciado por Descartes, Leibniz, S. Tomás de Aquino e, sobretudo, Aristóteles. Por sua vez, influenciou a psicologia da "Gestalt", a psicanálise, o estruturalismo e, mais fortemente, a fenomenologia. Foi mestre de Husserl (e, também, de Freud), sendo, na verdade, mais um precursor da fenomenologia do que, propriamente, um fenomenólogo.
A psicologia da época de Brentano constituía uma tentativa de converter-se em ciência experimental: uma psicologia associacionista, que pretendia explicar tudo por associações de idéias e intervir nas demais disciplinas para convertê-las em psicologia. A psicologia proposta por Brentano assumiu um caráter completamente novo. Este ex-sacerdote propôs um empirismo diferente do empirismo inglês, pois a vertente clássica observava vários fatos e abstraía e generalizava as notas comuns: Brentano tomava “um único caso” e buscava o que nele era essencial (aquilo em que consiste, sem o qual não é), obtendo a essência do fenômeno. Isto se manifesta na gestalt-terapia quando nos voltamos e nos atemos ao que aí está, à pessoa que temos à nossa frente, não apenas à sua psicopatologia, a partir de uma generalização de nosso saber teórico-técnico prévio.
O nome de Brentano também está associado à psicologia do ato: para ele, a psicologia deveria estudar os atos ou processos mentais (psíquicos) da pessoa, não os seus conteúdos ou objetos (em geral, físicos). Isto se manifesta na gestalt-terapia na nossa clássica preponderância do como sobre o porquê.
A filosofia do presente nasceu dele, senão exclusivamente, pelo menos numa parte decisiva: os fenômenos ocorrem aqui e agora e o presente é a única experiência possível. O foco no presente é básico na gestalt-terapia e nas abordagens humanistas. Entretanto, nem sempre é bem compreendido, sendo, muitas vezes, usado como se fosse possível trabalhar com um presente pontual e como se fizesse sentido renegar nossa história e nossos projetos de vida. Na verdade, o passado é vivido agora por meio de nossa memória, da saudade, da culpa – esta devastadora da nossa tranqüilidade - e de tudo que constitui nossa experiência anterior, que não pode nem deve ser desconsiderada; o futuro é vivido no presente por meio de uma capacidade humana básica que permite antecipar e planejar nossa ação. Mesmo a ansiedade – um dos sintomas mais comuns na contemporaneidade – tem, originalmente, a função de nos alertar de que algo importante na nossa vida deve ser cuidado. Assim, não trabalhamos exatamente com um presente absoluto, mas com um processo de presentificação através do qual tornamos presente nossas experiências mal resolvidas do passado e/ou nossas expectativas antecipadas em relação ao futuro.

. Husserl (1859-1938). Matemático, Husserl aproximou-se da filosofia por influência de Brentano. Em sua época, Marx, Freud e Nietzsche ainda não tinham a força que viriam a ter. A filosofia se voltava às ciências positivas, enfatizando a objetividade e abandonando a especulação e a intuição. A psicologia tentava ser uma ciência exata, adotando o método das ciências naturais, eliminando a subjetividade e a intuição. Husserl criticou a psicologia da época por adotar tal metodologia sem perceber que seu objeto é diferente. Argumentava que temos acesso indireto à natureza (objeto das ciências naturais), a partir de fatos hipotéticos, que permitem uma reconstrução e, portanto, uma explicação, isto é, a criação de leis e causas. Entretanto, a vida psíquica é um dado imediato, ao qual temos acesso apenas através da sua descrição, permitindo a compreensão do fenômeno ou do seu processo de constituição. A partir disso, propôs a fenomenologia, que reúne os dados da experiência em sua totalidade (fenômeno) e o pensamento racional (logos). Ora, os fenômenos nos são dados pelos nossos órgãos dos sentidos, mas são, também, dotados de sentidos ou significados. Assim, Husserl propôs uma intuição originária, das essências ou dos sentidos, um “retorno às coisas mesmas”, que definiu como “a visão do sentido ideal que atribuímos ao fato materialmente percebido e que nos permite identificá-lo”. Isto se revela na gestalt-terapia através de uma atitude descritiva, não previamente interpretativa, mas aberta ao que chega à consciência, na busca do sentido do fenômeno pelo próprio paciente, através de sua identificação e da assimilação de suas partes alienadas. Husserl propôs, também, o principio da intencionalidade: a consciência é sempre “consciência de alguma coisa”, estando “dirigida para” um objeto, que é sempre “objeto para um sujeito”, isto é, a existência intencional dos objetos na consciência. Neste sentido, não existe a consciência, uma entidade a ser captada – como acreditavam os psicólogos estruturalistas, adeptos da introspecção, mas significa que a awareness é um processo de conscientização do que está presente à consciência, conforme trabalhamos na gestalt-terapia.

. Merleau-Ponty (1908-1961). O filósofo francês teve como tema fundamental a relação entre o homem e o mundo. Analisou as investigações psicológicas das décadas anteriores e buscou eliminar a interpretação causal da relação entre corpo e alma, compreendo-a como uma dualidade dialética de comportamento, expressa em níveis e significados diferentes. Afirmava que a consciência é um eu sempre consagrado ao mundo. Seu conceito central é a noção de corpo ou “carne”, uma totalidade constituidora da inserção da consciência no mundo, dotada de um instrumento para a projeção de um mundo cultural, a linguagem, um sistema particular de vocabulário e sintaxe, revelador do ser ou de nossa ligação com o ser. Percebia o mundo e o homem como sempre ‘abertos’, ‘inacabados’ em seu significado, reenviando sempre para além de suas manifestações determinadas. Assim, consciência e mundo são dotados de ‘ambigüidade’. Propôs critérios para a constituição de uma psicologia fenomenológica, que bem se aplicam à gestalt-terapia, pois deve ser:
- humana, na medida em que investiga o homem, não os animais ou um mundo inferior;
- estrutural, analisando as diversas experiências humanas na integração de diversos níveis, mundos e formas (ou estruturas);
- dialética, já que reconhece a pluridimensionalidade existente no interior da existência, em oposição ao corriqueiro psicologismo, que reduz os sentidos do humano a apenas alguns aspectos;
- simbólica, pois o mundo é caracterizado pela polissemia (dotado de vários significados) e pela encarnação (tornar ‘carne’) dos sentidos. Destacava que nenhum sentido esgota a polissemia do homem;
- existencial, pois não é uma teoria apenas sobre o humano, mas um estudo sobre seu existir concreto (o seu comportamento). Acompanha não apenas as etapas já vividas (o passado), mas apreende atualmente (o presente) o sentido do que está sendo e do seu vir-a-ser (o futuro).
Embora Perls não tenha feito referências à fenomenologia de Merleau-Ponty, destaco que o filósofo francês, como o criador da gestalt-terapia, buscava a essência - o sentido - dos fenômenos que investigava, mas sempre o recolocando na existência humana concreta. Melhor dizendo: preocupava-se com a essência (do) existente. Desta forma, Merleau-Ponty foi um filósofo, um epistemólogo e um pensador existencial, participando ativamente das discussões efervescentes da geração existencialista do pós-guerra e articulando radicalmente as perspectivas que fundamentam tanto o método fenomenológico quanto a visão existencial de homem da gestalt-terapia.

 

. O EXISTENCIALISMO

Este movimento filosófico proporcionou maior concretude ao método fenomenológico, por meio de sua aplicação, na qual se inclui a gestalt-terapia, aos temas fundamentais da existência humana.

. Kierkegaard (1813-1855). Considerado o “pai do existencialismo cristão”, este filósofo dinamarquês, bem antes de Nietzsche e de Freud, já elaborava profundas reflexões sobre o sofrimento psíquico. Desenvolveu suas idéias a partir de sua existência pessoal, rejeitando qualquer sistematização idealizada da realidade e enfatizando a subjetividade e a busca da autenticidade como valores superiores da existência humana.

. Nietzsche (1844-1900). Foi, durante muito tempo, considerado um filósofo “maldito”, pois suas idéias e suas obras foram deturpadas, visando a uma absurda legitimação dos ideais nazistas, mas vem sendo recuperado nos últimos anos como um dos mais revolucionários pensadores da filosofia moderna. Embora seja uma influência ainda pouco reconhecida e explorada na gestalt-terapia, Perls era claramente nietzschiano. O filósofo alemão é o “pai” da vertente existencialista atéia, tendo seu nome ligado às idéias do “Super-Homem” (o homem auto-atualizado), de “vontade de potência” (ou da plenificação e do retomo da vontade de viver) e da compreensão da vida como uma experiência “trágica”, que envolve momentos “dionisíacos” - de Dionísio, deus da música, da embriaguez e da ultrapassagem dos limites - e “apolíneos” - de Apolo, deus da bela forma, da escultura, dos limites individualizantes e da lucidez.

. Buber (1878-1965). Filósofo judeu que desenvolveu a categoria do diálogo como o campo de integração entre vivência e reflexão, considerando-a como o princípio da criação de comunidades humanas. É certamente o filósofo que mais diretamente influenciou as práticas psicoterápicas humanistas, as quais destacam suas considerações sobre uma das atitudes básicas da existência humana - a atitude Eu-Tu - caracterizada pelo envolvimento e dotada de reciprocidade, imediatez, presença e responsabilidade (ou habilidade de resposta, nossa capacidade de responder às situações em que nos envolvemos), plenamente enfatizada pela gestalt-terapia; entretanto, sua polaridade oposta, a atitude Eu-Isso, caracterizada pela separação ou pelo distanciamento, nossa atitude mais comum e necessária para a produção teórico-científica, ainda é freqüentemente desconsiderada nos enfoques humanistas. Neste sentido, a gestalt-terapia, como uma psicoterapia baseada no encontro existencial, deve considerar a importância destes dois movimentos, não apenas no momento da relação psicoterapêutica, mas também no que se refere à sua discussão teórico-técnica: um movimento de aproximação (relação Eu-Tu) e outro de distanciamento (relação Eu-Isso), caracterizando-se como uma vivência da teoria e uma teorização da vivência.

. Heidegger (1889-1976): filósofo que desenvolveu a concepção do homem como “Dasein”, ou “ser-aí”, determinado no tempo e no espaço, situado, singular, concreto, que pergunta pelo sentido do Ser. Suas características são a facticidade (um ser de fato, dotado das coisas do mundo), o “ser-com” (pois convive com outros “Dasein”) e a temporalidade (através da qual realiza a sua essência). Suas categorias básicas são o entendimento (capacidade nem sempre considerada pela atitude freqüentemente irracionalista – que rejeita todo tipo de racionalidade – da gestalt-terapia), em contraponto ao sentimento (comumente enfatizado pelas abordagens humanistas) e a linguagem (originalmente destacada por Fritz, mas pouco explorada por ele e por nós, seus seguidores). Destaco que, para Heidegger, a verdadeira autenticidade significa exatamente a realização dessas categorias existenciais.

. Sartre (1905-1980). O representante mais reconhecido do existencialismo é pouco referido por Perls, mas suas noções de “projeto” (o homem como próprio construtor de sua essência) e de “responsabilidade” (aqui, também, como habilidade de resposta, não como dever ou obrigação) perpassam nossas vidas e os processos psicoterápicos que acompanhamos.

Embora eu esteja longe de ser um filósofo e nem mesmo seja adepto de uma postura meramente contemplativa ou reflexiva sobre a vida, espero ter destacado a importância de reconhecermos a contribuição original da epistemologia fenomenológica e da concepção existencial de homem à prática da gestalt-terapia.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Encerrei minha fala de 1990 afirmando que acreditava que ainda tínhamos um grande trabalho pela frente. Embora reconheça que avançamos bastante, considero que boa parte da tarefa de tantos anos ainda seja necessária. Tal empreitada é responsabilidade (habilidade de resposta!) daqueles que fazem a gestalt-terapia no sentido de retomar criticamente nossas bases filosóficas, desenvolvendo o que Fritz não fez, criando teoricamente a partir de nossas próprias vivências. Apenas assim podemos dar maior consistência teórica à nossa prática e a nossos projetos.
Gostaria de encerrar minha fala atual com um breve alerta, que consta das Investigações Lógicas, do criador da fenomenologia, Edmund Husserl, e que ilustra bem o sentido de nossa tarefa:
os objetivos dos esforços que acabamos de descrever não são nem os últimos, nem os supremos objetivos de uma elucidação fenomenológica do conhecimento em geral. Por mais extensas que sejam as nossas análises, o domínio extraordinariamente frutífero do pensar e do conhecer mediatos permaneceu quase completamente não elaborado; a essência da evidência mediata e de seus correlatos ideais continua sem uma elucidação suficiente. Ainda assim, acreditamos que as nossas pretensões não foram insignificantes, e esperamos ter desnudado os mais básicos e, por sua própria natureza, primeiros fundamentos da crítica do conhecimento.É preciso fazer uso, também na crítica do conhecimento, daquela modéstia que pertence à essência de toda investigação científica. (...) As análises que seguem mostrarão que mesrno um trabalho epistemológico tão modesto terá que superar ainda uma enorme quantidade de dificuldades, ou melhor, terá ainda quase tudo a fazer.