Mesa 1 – "Revisitando nossas bases filosóficas"


O todo criativo e suas partes igualmente criativas:
O Holismo de Smuts revisto a partir de teorias (TL)
Miriam May Philippi


Considero Smuts (1926/1996) um grande integrador de saberes. Ele foi um dos divulgadores do termo holismo no ocidente. Mas, em nenhum momento, Kurt Lewin, von Bertallanfy e Edgar Morin citam Smuts em seus escritos (Robine, 1993). E Morin também foi um grande integrador de saberes que, como Smuts, procurou integrar conhecimentos que vão do átomo ao universo para compreender o humano. Morin procurou um método que buscasse um princípio integrador. Já para Smuts, esse princípio integrador era a Totalidade.
Em 1926, Smuts já colocava que pretendia elaborar um trabalho que não fosse nem de Filosofia, nem de ciência, mas sobre um ponto de contato entre elas. A partir das reflexões de Bergson e de Darwin e do que estava surgindo na Química e na Física de sua época, Smuts nos introduziu nas questões da criatividade e da temporalidade. Para Smuts, não fazia sentido uma ciência que colocasse toda a nossa criatividade no passado e a fizesse a predeterminação do futuro. Segundo ele, uma ciência que faz isso exclui do futuro toda iniciativa, toda novidade e toda criatividade. Também exclui do universo toda a possibilidade de criatividade e evolução. Smuts propõe uma ciência que descreva a evolução criativa, que liberte o presente e o futuro da escravidão do passado e que faça da liberdade uma característica inerente do universo. Para tanto, Smuts busca um fator que foi negligenciado, o holismo, que expressa a tendência sintética do universo, já que não faz sentido uma ciência que dissocie matéria, vida, mente e personalidade.
Uma das características que unem matéria, vida e mente é o fato de serem eminentemente ativas, criativas e funcionarem sobre o princípio da totalidade, desenvolvendo uma ação sintética, ordenadora do universo. A atividade é a essência do universo. A característica fundamental do holismo é que o todo está na parte e a parte está no todo. A síntese do todo e das partes é refletida tão bem na função da parte quanto na do todo. Aqui ficam claras as relações com a teoria do campo, termo já utilizado inclusive pelo próprio Smuts. Assim, o conceito de totalidade transforma completamente o conceito de causalidade, pois quando uma causa atua no todo, o efeito resultante não é meramente um rastro da causa, mas transforma-se em um processo. Para Smuts, o resultado mais importante dessa idéia de todo é mostrar o quanto a natureza e a evolução são criativas. Na totalidade, as necessidades ou determinações externas são transformadas em self-determinações ou liberdade. A criatividade é simplesmente a dedução do conceito de totalidade e caracteriza a ordem dos todos no universo, que vai da origem de uma nova espécie de organismo até os grandes valores, que são criações do todo no nível espiritual. Ou, como coloca Morin, a criatividade é a nossa plurideterminação que nos dá liberdade.
No entanto, o holismo se caracteriza mais por estabilidade dos grandes tipos, a novidade é pequena comparada ao seu conservadorismo essencial. Todos os novos tipos surgem da estabilidade das estruturas preexistentes, basta perceber a questão da hereditariedade. Assim, holismo é mais repressão das variações do que criatividade. Então, vamos perceber o holismo na temporalidade, pois é no tempo que se percebe o sentido da criatividade e da conservação. Portanto, Smuts já deixava claras as questões da preservação e mudança.
Smuts enfatizou que todo o processo de auto-regulação do organismo não deve ser creditado à mente, já que ela é um desenvolvimento recente do holismo. A personalidade emerge na série holística da evolução a partir da matéria, vida e mente, e não pode ser vista como um fenômeno dissociado do corpo. “A personalidade ideal somente surge onde a mente irradia o corpo e o corpo nutre a mente, e os dois são um na suas transformações mútuas” (Smuts, 1926/1996, p.261). Como um órgão de totalidade, a personalidade tem as mesmas características das outras totalidades como criatividade e liberdade. A integração que a Gestalt-Terapia propõe com o corpo está muito ligada a essa tese de Smuts e acreditamos serem compatíveis com as idéias de Morin, Maturana e Varela.
Também devolvendo o homem à natureza, encontramos Merleau-Ponty, Morin, Maturana e Varela. Em suas teorias, a mente está incorporada, a cognição emerge da corporeidade, expressando-se na compreensão da percepção como movimento e não como processamento de informação. O movimento tem a capacidade de organizar o organismo como todo em uma nova unidade corpo-mente. Pela ação do nosso corpo conhecemos o mundo. O processo de compreensão é algo inerente ao ser e, no processo psicoterapêutico em Gestalt-Terapia, procuramos ajudar na restauração dessa percepção da totalidade que permite a compreensão, para que a intencionalidade operativa ou o processo de awareness espontânea seja restabelecido.
Os encontros dos autores estudados com a teoria de Smuts chegam mesmo à teoria das narrativas. Smuts propôs uma nova disciplina que estudaria as biografias das personalidades humanas como todo, buscando uma síntese ao invés de uma análise. Isso porque, para Smuts, a personalidade era fundamentalmente um órgão de auto-realização, auto-restauração, mas ainda muito jovem em relação ao processo de evolução. Segundo ele, o nosso processo de auto-regulação é criativo, mas estamos apenas no início dele. Consideramos, então, que Smuts queria nos alertar para o fato de que só podemos perceber o homem no tempo, de que modo o homem foi organizando, assimilando e metabolizando todo o material recebido e transmutando-o criativamente.
O estudo das narrativas pode ajudar clientes e psicoterapeutas a perceberem o sentido do viver no tempo, já que as escolhas que fazemos só têm sentido no tempo. Não podemos dividir a nossa história em pedaços, ou em aspectos, já que somos uma totalidade. A personalidade, para Smuts, apesar de ser a expressão de uma totalidade, expressa também uma criatividade individual, que não pode ficar de fora. Por isso, consideramos que o holismo de Smuts não reduzia pela totalidade, como nos alerta Morin. Pascal já nos alertava que as partes não podem ser negligenciadas e que, muitas vezes, o todo pode ser menor que a soma das partes. Realmente corremos esse risco quando reduzimos tudo pelo social, externo ou pelo individual, biológico. Acreditamos que, pelo seu pioneirismo, Smuts optou por deixar explícita a questão da totalidade, mas não negligenciou a singularidade.
É a partir de Smuts que o conceito de auto-regulação se faz presente na teoria organísmica de Kurt Goldstein, que tanto marcou a Gestalt-Terapia. Esse conceito também está presente nas teorias de Maturana e Varela, mas com uma ênfase ainda maior na criatividade. Maturana cunhou o termo autopoiese para expressar a capacidade dos organismos criarem a si mesmos, que apesar de estarem em um acoplamento estrutural com o meio são sistemas fechados do ponto de vista informacional. Morin introduziu o termo eco (derivado do termo grego oicós, que significa morada ou espaço habitado) no já conhecido conceito de auto-regulação para deixar claro que a auto-regulação se faz na relação com o meio. Acreditamos que as contribuições de Morin e de Maturana ampliam bastante esse conceito, garantindo que não seja percebido apenas como uma adaptação ao meio, assim como não o exclui desse processo. Integrando todas estas reflexões ao conceito de auto-regulação, talvez seja mais adequado falarmos em auto-eco-poiese.

* 1- Do grego holos, “tudo”¸ de que derivam entre outros, no latim: solidus, inteiro, sólido; salvus, intacto, são e daí salve, saudação, cumprimento, solidare, unido (Ginger & Ginger, 1987/1995).

Referência Bibliográfica:
Husserl, E. (1984). Crisis de las Ciências Europeas y a Fenomenologia Transcendental (Steinberg & Terán, Trad.). México: Folis Ediciones (Originalmente publicado em 1936).
Philippi, M. (2004). Co-construindo Pontes entre a Gestalt-Terapia e as Terapias Sistêmicas Construtivistas Construcionistas Sociais: Subjetividade e Intersubjetividade em Questão. Dissertação de Mestrado –Universidade de Brasília/Instituto de Psicologia.
Robine, Jean-Marie (1993). Le Holism de J. C. Smuts. Retirado em 03/07/99 de http://www.gestalt.org/robine.htm

Smuts, Jan C. (1996). Holism and Evolution, Highland, NY: The Gestalt Journal Press, Inc (Originalmente publicado em 1926).