Maria Cristina Frascaroli e Alexandra Tsallis
O presente mini-curso tem como tema geral o processo psicoterápico
e pretende tratar em particular dos efeitos produzidos pelas situações
de recalcitrância (desobediência, resistência) nesse contexto.
Entendemos que esse tipo de fenômeno em psicoterapia revela-se como um
momento fértil para acompanhar o processo criativo do desenvolvimento
da awareness do paciente.
Segundo Yontef (1998) a psicoterapia deve se dedicar ao desenvolvimento da awareness
do paciente e, nesse sentido, poder acompanhar seu desvelamento através
desses episódios representa uma rica ferramenta para pensar e repensar
as intervenções psicoterapêuticas. Desse modo, desenvolvemos
um trabalho que pretende discutir teórica e vivencialmente essas situações
de recalcitrância (desobediência), estabelecendo seu potencial criativo
no encontro dialógico.
Um ponto de partida para essa reflexão é a própria etimologia
da palavra recalcitrância. Ela vem do latim re calci trare, que significa
dar com os calcanhares, escoicear, resistir com veemência, desobedecer.
A partir disso, é possível vislumbrar o modo como esse conceito
faz emergir uma imensa gama de possibilidades, uma vez que a recalcitrância
se remete à relação, pois não se pode resistir,
desobedecer, senão frente a alguma coisa ou alguém. Portanto,
esse conceito ajuda a localizar as estabilizações feitas em um
determinado contexto (Latour, 2005).
Além de representar uma renuncia a uma lógica de causa e efeito,
já que a partir dele as estabilizações são, ao mesmo
tempo, configuradas (pois a recalcitrância faz frente a elas) e reconfiguradas
(pois ela impõe uma redefinição das relações).
Nesse sentido, esse fenômeno parece incorporar uma nova versão
aos acontecimentos.
Seguindo esse percurso é fundamental lembrar o quanto em Gestalt-terapia
o conflito indivíduo / sociedade é genuíno (Perls, Hefferline,
Goodman, 1997 e Perls, 1973), o que significa entendê-lo em seus constrangimentos,
bem como em sua capacidade de engendrar novos contextos, fabricar novos mundos
(Ribeiro, 1998). Outro ponto que destacaríamos na recalcitrância
é como ela torna possível perceber a singularidade, justamente
pelo fato dela funcionar como uma trava do actante a um certo fluxo ininterrupto
dos acontecimentos, tornando singular aquela situação.
Embora no processo psicoterápico seja comum acompanhar a recalcitrância
entre humanos (Oaklander, 1980), utilizamos a palavra singularidade, ao invés
de subjetividade, pois ela se presta tanto para humanos quanto para não-humanos,
fazendo com a multiplicidade de possíveis tenha mais de um ponto de partida,
mais de uma figura possível. Assim, ela vivifica o momento em que é
possível “fotografar” as reconfigurações do
fenômeno. Em outras palavras, através desses acontecimentos, dessas
trajetórias, a singularidade pode ser vista em seu movimento. Pode-se
dizer, de acordo com isso, que a recalcitrância precisa ser pensada como
um território de acontecimentos, onde as trajetórias dos actantes
fabricam esse vivido.
Tomando como base a relação dialógica, segundo Hycner (1995),
é no encontro que o crescimento assume seu desenrolar e seguindo nessa
trilha seria possível dizer que o próprio confronto, frente a
frente, alavanca esse movimento. Contudo, o método fenomenológico
é aquele que permite, através de sucessivas epochés, voltar
às coisas mesmas, encontrar o mundo em suas verdades provisórias
e justamente por isso relacionais (Forguieri, 1993 e Trotignon, 1965).
Desse modo, a recalcitrância, face à sua imensa potencialidade
reflexiva, bem como à sua capacidade de exigir autenticidade, faz emergir
um caminho em psicoterapia que pode ser explorado. Em outras palavras, ela pode
funcionar como um fenômeno metafórico que convoca a todos para
um encontro cuja atitude permaneça autêntica (Amatuzzi, 1989).
Assim sendo, temos um encontro que vira arte - essa arte como expressão
genuína, vivência última e primeira, única e principalmente
intransferível, reservada ao mistério. A arte como experiência
de estar no mundo, que anseia pelo “como” de cada um viver, onde
a singularidade representa o brilho de simplesmente estar. Considerando que
fomentar a investigação instigada pelo mistério não
cessa, ela gera e regenera. Promove a transformação por excelência.
A vida como processo de criação, onde aquilo que precede é
recriado a cada instante. A essência é a existência!!!
Resta a seguinte pergunta: seria isso possível no interior de uma ciência,
de uma psicologia? É difícil responder sem vivê-lo. De qualquer
modo, a psicologia ou qualquer outra narrativa não precisa mais do que
belas metáforas que ampliem movimentos criativos. Não precisa
mais do que boas histórias que permitam um sono sonhado. Se isso é
possível na psicoterapia? Depende de como a vivamos, do quanto nossa
vida possa estar fielmente sendo sentida por nós. Já que é
essa a vida, cabe então perguntar: e a morte? E aquilo que morre diante
de um fenômeno de desobediência ... seria o fim disso tudo? Não,
pelo contrário, seria o princípio, o esvaziamento que permite
o recontar de uma história com outras e cada vez mais belas metáforas.
Se as narrativas puderem deixar de ser tentativas de supressão do erro
- de melhoria da precisão – poderão experimentar a surpresa
de depararem-se com brechas. Espaços do vivido desse homem, que vive
sua vida - em seu tempo, com seus contemporâneos - recheado de histórias
que ele as faz dele na medida em que pode, usando aquilo de que dispõe,
sem precisar parar de investigar o mistério de estar vivendo o sentido
da busca por felicidade, da verdade por desvelamento.
Referências
Bibliográficas:
AMATUZZI, M. M. (1989). O resgate da fala autêntica. São Paulo:
Papirus.
FORGHIERI, Y. C. (1993). Psicologia Fenomenológica. São Paulo:
Pioneira.
HYCNER, R. (1995). De pessoa a pessoa. São Paulo: Summus Editorial.
LATOUR, B. (2005). Un monde pluriel mais commum. Paris: Editions de l’Aube.
_____________ (2001). A Esperança de Pandora. Bauru: EDUSC.
OAKLANDER, V. (1980). Descobrindo crianças. São Paulo: Summus
Editorial.
PERLS, F. (1988). A abordagem gestáltica e testemunha ocular da terapia.
Rio de Janeiro: Guanabara Koogan.
PERLS, F.; HEFFERLINE, R. e GOODMAN, P. (1997). Gestalt-terapia. São
Paulo: Summus Editorial.
RIBEIRO, W. (1998). Existência e essência. São Paulo: Summus
Editorial.
TROTIGNON, P. (1965). Heidegger. Lisboa: Edições 70.
YONTEF, G. (1998). Processo, diálogo e awareness. São Paulo: Summus
Editorial.