Mesa 2 – Gestalt-terapia: "Interlocuções, aproximações e paralelos"
(Cinthia Dutra, Pedro Augusto De castro Buarque Silva e Luiz Fernando Calaça)


GESTALT E LITERATURA:
ESBOÇOS E PARALELOS, GÊNESE E ATUALIDADE

Durante os mais de trinta anos de Gestalt-Terapia no Brasil observamos uma grande preocupação dos gestalt-terapeutas no sentido de tornar evidente a consistência da abordagem através da exploração e explicitação de suas bases filosóficas e fundamentação teórica, bem como a questão da técnica clínica e ou instrumentais, o que teria repercutido de forma evidente nas produções de mestrado e doutorado nos últimos 30 anos (HOLANDA, A. F. e KARWOWSKI, S. L., 2004). Esses anseios de fundamentação da abordagem vêm da demanda dos gestalt-terapeutas de dar mais legitimidade à GT no campo das práticas psi, buscando tornar mais consistente sua formação profissional (FRAZÃO. L. M. in CIORNAI, S., 1995).
Neste trabalho, no entanto, proponho trilhar um caminho distinto, tentando estabelecer uma articulação que considero ainda pouco explorada nas investigações empreendidas sobre a abordagem. Trata-se de traçar possíveis relações entre a Gestalt-Terapia e a literatura.
Na própria Psicologia a articulação com a literatura ainda é pouco explorada, ou é feita principalmente pela Psicanálise, que tende a trabalhar com aspectos ligados a projeção e sublimação dos desejos do autor, num enfoque que enfatiza aspectos de sua personalidade e/ou possíveis efeitos catárticos sobre o leitor (LEITE, 1962).
Proponho, então, uma leitura indireta, levando em consideração três contextos e momentos histórico-culturais distintos: 1) o pós 1º Guerra Mundial e emergência do movimento expressionista alemão; 2) os EUA das décadas de 60-80, envolvendo o movimento da contracultura, a emergência da Psicologia Humanista e a literatura beat, e 3) o Brasil da década de 90 à atualidade.
A primeira articulação, situada no contexto da Alemanha pós 1ª Guerra Mundial, diz respeito ao impacto do expressionismo sobre a primeira etapa da vida de Perls, geralmente associada à sua participação no teatro de Max Reinhardt (PERLS, 1979), e ao contato com S. Friedlaender, grande influenciador de Perls através de sua filosofia da Indiferença Criativa (PERLS, 1979 e 2002; STEVENSEN, 2004). O que geralmente é pouco considerado é a participação de Friedlaender como parte desse movimento expressionista, sob o pseudônimo de Mynona.
Não pretendo me aprofundar muito nesse recorte, proponho apenas para a conexão que há entre a poesia expressionista em seus fundamentos e uma dimensão vivencial e fenomenológica da poesia, conforme se apresentada de forma implícita no manifesto “Expressionismo na poesia” de Kasimir Edschmid (TELLES, 1997).
A segunda articulação, na qual pretendo me deter mais extensamente, relaciona-se às narrativas e relatos autobiográficos produzidos tanto na Gestalt-Terapia, quanto em representantes da Psicologia Humanista. Dentre essas obras situo “Escarafuchando Fritz: dentro e fora da lata do lixo” (1969), a autobiografia do Fritz Perls, escrita em Esalen, na qual ele narra passagens de sua vida e realiza reflexões sobre a Gestalt-Terapia e “Não Apresse o Rio: ele corre sozinho” (1970) de Barry Stevens, que envolve um relato em primeira pessoa sobre suas experiência no Instituto Gestalt do Canadá em Cowikan, em 1969.
Além dessas duas obras ligadas mais diretamente ao que se poderia chamar de uma “literatura gestaltica”, pontuo também o artigo de J. Lederman, “A cólera e a cadeira de balanço” (FAGAN e SHEPHERD, 1980), onde esta relata na forma de poesia um caso envolvendo a aplicação de técnicas gestalt com crianças, além de “clássicos” de autores humanistas como o “Tornar-se pessoa” (1961) de Carl Rogers, os relatos autobiográficos de Barry Stevens contidos no “De Pessoa para Pessoa” (1967), além do “Vestígios de Espanto” (1985) de John Keith Wood.
O que há em comum entre esses relatos, e que de alguma forma se manifesta em menor escala também em obras teóricas como o “Gestalt Terapia Integrada”, dos Polsters (1973; 2001) e o “Gestalt – uma terapia do contato” de Serge e Anne Ginger (1987; 1995), é a dimensão pessoal e autobiográfica que esses autores utilizam ao trazer a esfera do vivido para uma articulação com o pensamento fenomenológico-existencial. Cada qual com sua especificidade, com seu “estilo” próprio, faz articulações entre fantasia, ficção e autobiografia, numa proposta que transcende o campo da teorização e adentra uma metapsicologia, uma reflexão sobre a vida e a existência, sobre o ser pessoa, o ser psicólogo, num processo de construção e desconstrução de significados.
A partir dessas obras creio ser possível estabelecer também uma relação com aspectos da contracultura (PEREIRA, 1984), contexto de emergência das abordagens humanistas (CIORNAI, 1995; BOAINAIN JR., 1998), e com o movimento literário beat (BUENO e GÓES, 1984). Esta última relação, por analogia, seria possível principalmente na autobiografia do Perls (1979), posto que esta evidencia uma grande aproximação entre o percurso de vida de Perls e a dos poetas beat americanos, pelo registro das viagens ao redor do mundo, uso de drogas, orientalismo e liberdade sexual.
Creio que, em grande medida, essas obras se encontram um pouco negligenciadas nas discussões atuais na abordagem gestáltica, justamente por seu caráter desatrelado de uma proposta formadora de teorização e fundamentação científica da Gestalt ou da Psicologia Humanista. Acredito que este abandono é perigoso, posto que essa “literatura” representa um documento histórico importante para se compreender não só as origens da 3ª Força em Psicologia, como pode conter elementos latentes ainda por serem melhor explorados, principalmente no que tange a relação entre psicologia e literatura.
O terceiro e último ponto que pretendo tratar diz respeito à “literatura gestaltica” que emerge atualmente no Brasil, paralelamente ao número significativo de publicações teóricas. Trata-se das obras “Narciso, a bruxa e outras histórias psi” (1994) e “Amor e ética” (2006) de Paulo Barros, “A arte de restaurar histórias: libertando o diálogo” (1999), de Jean Clark Juliano e o “Ruídos: contato, luz, liberdade: um jeito gestaltico de falar do espaço e do tempo vividos” (2006), de Jorge Ponciano Ribeiro.
Proponho com esse trabalho, pois, abrir uma via de articulação possível entre Gestalt-Terapia e a literatura, buscando compreender vínculos existentes entre a experiência vivida e significada e as construções poéticas e narrativas dos relatos autobiográficos presentes em obras da Psicologia Humanista e Gestalt-Terapia. Acredito que estes registros seriam embriões para um possível uso da literatura enquanto momento de contato e awareness da pessoa consigo mesma e com sua história de vida (POLSTER e POLSTER, 2001), significada e ressignificada no momento da escrita, nas construções e reconstruções do si-mesmo.

BIBLIOGRAFIA:
BARROS, P. (1995). Narciso, a bruxa e outras histórias psi. – São Paulo: Summus.
BARROS, P. (2006). Amor e ética. – São Paulo: Summus.
BOAINAIN JR. E. (1998) Tornar-se transpessoal. – São Paulo: Summus.
BUENO, A., GÓES, F. (1984) O que é geração beat. - São Paulo: Brasiliense.
CIORNAI. S. (org.). (1995) 25 anos: gestalt-terapia, psicodrama e terapias neo-reichianas no Brasil. – São Paulo: Agora.
EDSCHMID, K. (1918). "Expressionismo na poesia." In: TELLES, G. M. (1997) Vanguarda européia e modernismo brasileiro: apresentação dos principais poemas, manifestos, prefácios e conferências vanguardistas, de 1857 a 1972. - Petropolis, RJ: Vozes, 1997.
GINGER, S. e GINGER, A. (1995) Gestalt: uma terapia do contato. – São Paulo: Summus.
HOLANDA, A. F. e KARWOWSKI, S. L. (2004) “Produção acadêmica em Gestalt-Terapia no Brasil: analises de mestrados e doutorados. In: Psicologia Ciência e Profissão, 2004, 24(2), p. 60-71.
JULIANO, J. C. (1999) A arte de restaurar histórias: libertando o diálogo. - São Paulo: Summus.
LEDERMAN, J. “A cólera e a cadeira de balanço”. In: FAGAN, J. e SHEPHERD. I. L. (1980) Gestalt-Terapia: teoria, técnicas e aplicações. – Rio de Janeiro, Zahar Editores.
LEITE, Dante Moreira. (1967) Psicologia e Literatura. - 2. ed. - São Paulo: Companhia Editora Nacional/Editora da Universidade de São Paulo, 1967.
PEREIRA, C. A. M. (1984) O que é Contracultura. - São Paulo: Brasiliense.
PERLS, F. S. (1979) Escarafuchando Fritz: dentro e fora da lata do lixo. - São Paulo: Summus, 1979.
PERLS, F. S. (2002). Ego, fome e agressão: uma revisão da teoria e do método de Freud . - São Paulo: Summus.
POLTER, E., POLSTER, M. (2001) Gestalt-Terapia integrada. - São Paulo: Summus.
RIBEIRO. J. P. (2002) Ruídos: contato, luz, liberdade: um jeito gestaltico de falar do espaço e do tempo vividos. – São Paulo: Summus, 2006.
ROGERS, C. (1976) Tornar-se pessoa. - São Paulo: Martins Fontes.
ROGERS, C. e STEVENS, B. (1976). De pessoa para pessoa: o problema de ser humano, uma nova tendência na psicologia - São Paulo: Thompson Pioneira.
STEVENS, B. (1978). Não apresse o rio: ele corre sozinho. - São Paulo: Summus, 1978.
STEVENSON, H. (2004). Paradox: A Gestalt Theory of Change. Arquivo formato pdf disponível no site:
http://www.clevelandconsultinggroup.com/pdfs/paradoxical_theory_of_change_iii.pdf
WOOD. J. K. Vestígios de espanto: notas de fins de semana de um psicólogo. – São Paulo: Agora, 1985.