MESA REDONDA 07 – PARTE II: REFLEXÕES ACERCA DA ESQUIZOFRENIA NA ABORDAGEM GESTÁLTICA

Autor: Ludmila Vieira


RESUMO

Este artigo é parte do trabalho “Psicopatologia na abordagem gestáltica: reflexões acerca da esquizofrenia”, elaborado para a conclusão do curso de especialização em Gestalt-terapia. O trabalho tem como objetivo compreender os sintomas da esquizofrenia dentro da perspectiva gestáltica, apresentando pontos importantes da teoria e discutindo sobre uma possível conduta terapêutica nesses casos. No artigo será dada ênfase à compreensão diagnóstica e ações terapêuticas na esquizofrenia. Sendo assim, será abordado o ciclo do contato proposto por Jorge Ponciano Ribeiro, dentre outros conceitos, permitindo uma compreensão fenomenológica e pertinente à abordagem gestáltica, respeitando a singularidade da vivência esquizofrênica.


Palavras-chave: Gestalt, Saúde mental, Esquizofrenia, Intervenção, Terapêutica.

 

INTRODUÇÃO

A preocupação com o cuidado em saúde mental vem crescendo em decorrência da ampliação das políticas públicas em relação às ações e serviços de saúde, bem como das mudanças ideológicas frente ao atendimento oferecido às pessoas com transtorno mental. Nesse sentido, a atual política de saúde mental no Brasil preconiza o resgate da cidadania e autonomia da pessoa com sofrimento psíquico. Toda a prática em saúde mental envolve a atuação de uma equipe multidisciplinar bem como a implicação da família, da sociedade e, principalmente, da pessoa que sofre.

Assim, define-se a esquizofrenia como um dos transtornos mentais mais graves que existe, seja por sua sintomatologia, seja pela prevalência mundial (cerca de 1% da população, segundo dados da Organização Mundial da Saúde – OMS). A esquizofrenia se manifesta no final da adolescência ou no início da vida adulta, tanto nos homens quanto nas mulheres, podendo igualmente ocorrer na infância ou meia-idade.

De acordo com o DSM-IV (2003) – manual diagnóstico em psiquiatria publicado pela Associação Americana de Psiquiatria (APA) – a esquizofrenia é definida nas suas características essenciais com presença de sintomas psicóticos, tais como delírios, alucinações, dissociação do pensamento, comportamento desorganizado ou catatônico e afetividade embotada. É um quadro complexo apresentando sinais e sintomas na área do pensamento, percepção e emoções, causando prejuízo nos cuidados pessoais, ocupacionais e nas relações interpessoais e familiares.

Atualmente, o cuidado em saúde mental traz uma nova concepção em torno da compreensão da pessoa com transtorno mental e das suas possibilidades de mudança. Este cuidado considera o indivíduo e o seu sofrimento, e não somente no diagnóstico, possibilitando um olhar integral da situação que compreende, além do indivíduo, a família e o meio social.

A proposta de se discutir as intervenções da abordagem gestáltica em saúde mental surge do possível diálogo entre o que preconiza a atual política de saúde e a teoria da Gestalt, por seus princípios e concepções de homem e de mundo, enfatizando a potencialidade do ser humano mesmo nos casos em que há um grave acometimento psíquico e existencial.

Este trabalho tem como objetivo compreender os sintomas da esquizofrenia dentro da perspectiva gestáltica, apresentando pontos importantes da teoria e discutindo sobre uma possível conduta terapêutica nesses casos. No artigo será dada ênfase à compreensão diagnóstica e ações terapêuticas na esquizofrenia. Será abordado o ciclo do contato proposto por Jorge Ponciano Ribeiro, dentre outros conceitos, permitindo uma compreensão fenomenológica e pertinente à abordagem gestáltica, respeitando a singularidade da vivência esquizofrênica.

INTRODUZINDO O DIAGNÓSTICO NA PERSPECTIVA GESTÁLTICA: CICLO DO CONTATO

O processo do diagnóstico em saúde mental envolve a identificação do padrão funcional de uma pessoa através da escuta, observação dos sintomas e compreensão da sua vivência. Essa compreensão irá nortear uma intervenção terapêutica mais apropriada para o paciente.

Na Gestalt-terapia, o diagnóstico tem como objetivo identificar e explicitar o modo pelo qual o indivíduo se relaciona com o ambiente e de que forma significa a sua própria experiência (TENÓRIO, 2003). O diagnóstico deve ser construído no contato, dentro do ambiente terapêutico.

Souza (et al., 2001) acredita que ao diagnosticar:

(…) é importante considerar de que maneira o cliente mantém o seu processo de awareness, de que forma percorre o ciclo do contato, quais são os mecanismos de interrupção do contato que utiliza e qual o seu suporte disponível, considerando seu funcionamento.

O ciclo do contato corresponde segundo Ribeiro (2006, p.87), a “um modelo (...) que se propõem a explicar didaticamente o jeito como as pessoas fazem contato, produzindo, vivendo, se expressando e bloqueando sua relação com o outro”. Refere-se ao campo no qual a pessoa expressa suas possibilidades dentro da realidade vivida.

O ciclo do contato, por sua vez, é considerado um indicador diagnóstico e de psicoterapia, assim como afirma Ribeiro (1995, p.24 apud PIMENTEL, 2003, p.75), “uma Gestalt, um paradigma ou um modelo para pensar a psicopatologia do sintoma, o psicodiagnóstico e um programa de cura”. O ciclo permite um olhar sobre o funcionamento do indivíduo ao mesmo tempo em que propõe intervenções terapêuticas.

A partir da figura abaixo se pode ter uma visão da forma como o autor41 propõe o ciclo do contato.

41 R ibeiro (2007, p.22).

 


Este ciclo do contato corresponde a um ciclo integrado dos sistemas, níveis e funções que envolvem os fatores de cura e bloqueios do contato. Os três sistemas destacados são elementos básicos da personalidade – motor, cognitivo e sensório-afetivo – e as funções do self. Tal disposição do ciclo permite uma visão diagnóstica rápida ao se identificar os mecanismos do contato nos sistemas correspondentes e nas funções do self.

No centro do ciclo aparece o self como “um centro operacional de controle de energia em forma de contato, de tal modo que o self é o retrato de como a pessoa funciona, em dado campo” (RIBEIRO, 2007, p.19-20). A observação do self permite um olhar sobre a identidade de uma pessoa em contato. Uma desarmonia ou interrupção nessa relação resultaria em um processo psicopatológico.

O ciclo do contato é composto por nove processos denominados fatores de cura: fluidez, sensação, consciência, mobilização, ação, interação, contato final, satisfação, retirada. Cada um desses fatores é visto como um passo à saúde, como forma de contato pleno. O fator de cura é definido por Ribeiro (2007, p.57) como:

(...) um processo por meio do qual a pessoa experiencia, em dado momento, uma sensação de que algo novo, portador de mudança e de bem-estar, penetrou no seu universo cognitivo, e, através de uma consciência emocionada, provocada pela percepção de uma totalidade dinamicamente transformadora, sente-se inclinada, motivada, fortalecida para mudar.

O ciclo do contato, portanto, está relacionado ao processo de cura e mudança através de uma seqüência contínua de figura-fundo, de trocas com o meio e satisfação de necessidades. As necessidades identificadas mobilizam o organismo em busca de uma resolução. O organismo diante da satisfação faz o fechamento do seu processo assimilando toda a experiência. Durante todo o processo estão presentes funções perceptivas, motoras e sensório-afetivas que funcionam de modo integrado na mudança.

Entretanto, durante esse processo pode haver interrupções ou bloqueios que impossibilitem uma resolução satisfatória das necessidades do organismo. De acordo com a teoria da Gestalt-terapia, assim como apontam Antony & Ribeiro (2004, p.130), “os bloqueios do contato são mecanismos psicológicos que exercem funções defensivas e constituem padrões de comportamento e percepção”. Através de tais mecanismos o indivíduo fica impedido de realizar contatos saudáveis a partir do momento que mantém, no presente, situações inacabadas.

É importante observar que os mecanismos de defesa podem ser saudáveis ou patológicos, dependo da forma como o indivíduo se utiliza deles. Ainda segundo os autores citados anteriormente, “esses processos do contato possuem uma função saudável quando empregados flexivelmente, atendendo às condições da situação e às necessidades do indivíduo”. É necessário observar a freqüência com que os mecanismos ocorrem e se estão sendo utilizados indiscriminadamente ou de forma cristalizada.

Observando a esquizofrenia no ciclo do contato, as disfunções mais comuns são as que correspondem à função id do self, sendo elas a deflexão, a fixação e a dessensibilização.

A deflexão, segundo Delisle (1999), é uma estratégia para reduzir a intensidade do contato como, por exemplo, o desvio do olhar, a utilização de termos vagos e a expressão de forma exagerada. Como adaptação, a deflexão permite reduzir a intensidade da experiência que seria insuportável, pois nem sempre uma pessoa quer que o contato seja intenso.

Para Ribeiro (2007, p.63), a fixação refere-se ao processo através do qual uma pessoa se apega excessivamente a pessoas, idéias, coisas e, temendo correr riscos, tende a se manter fixada nas mesmas situações sendo incapaz de explorar novas possibilidades. Ainda segundo o autor, no caso da dessensibilização, a pessoa se sente anestesiada diante do contato, apresenta diminuição sensorial no corpo e dificuldade para se estimular perdendo, conseqüentemente, o interesse por sensações novas.

As disfunções de contato apresentadas acima podem ser consideradas saudáveis em determinadas situações do cotidiano, desde que não interrompam a fluidez do ciclo. São consideradas funções de segurança, sendo um aspecto do self indispensável à saúde. São exemplos de disfunções “saudáveis”: a fuga, o sono, entrar em estado de choque, a regressão, os sonhos etc. Entretanto, quando utilizadas repetidamente tornam-se patológicas, como ocorre na esquizofrenia.

 

A COMPREENSÃO DA ESQUIZOFRENIA NA ABORDAGEM GESTÁLTICA

A maior parte das psicopatologias, incluindo a esquizofrenia, estaria relacionada a um estreitamento da relação do indivíduo consigo mesmo e com seu meio, prejudicando o contato e, conseqüentemente, o seu desenvolvimento saudável.

(…) a psicopatologia é resultado de um ‘precoce diálogo abortado’. Isto significa que, no mais profundo modo de encontrar os outros, essa pessoa não é ‘ouvida’ e sua voz torna-se monológica e tragicamente um ‘movimento interno’ (HYCNER, 1989 apud HOLANDA, 1998, p.41).

De acordo com a filosofia dialógica, a desestruturação psicótica deve-se a uma não-valorização da experiência pessoal pelo outro. Em conseqüência disso a criança “não pode sentir-se confirmada e, portanto, não é capaz de apreciar e valorizar sua própria experiência, tem de rejeitá-la, alienando uma parte de si mesma, que vai tornar-se inconsciente” (HYCNER, 1995 apud TENÓRIO, 2003, p.39). Por exemplo, pais que não foram capazes de entender, considerar e valorizar

a experiência da criança. Esta, então, perde seu referencial deixando de entrar em contato consigo mesma, seus desejos, vontades e sensações, ao ter que atender às expectativas de outras pessoas, resultando em contatos distorcidos e limitados.

Friedman (1985 apud SANTOS, 2005, p.182) também aponta para a ausência de confirmação da experiência pelo outro no histórico de pacientes esquizofrênicos.

Não há uma concordância quanto à causa da esquizofrenia, no entanto, na história familiar de pessoas com esquizofrenia nota-se que não houve espaço para que a criança tomasse como real o que ela percebia e sentia. Geralmente suas concepções foram coagidas a serem substituídas pela doutrinação dos pais, ou seja, suas percepções e sentimentos não foram confirmados como sendo reais, autênticos e nem mesmo possíveis. Não sendo livre para sentir ou agir, a única opção (além de se tornar um só à medida que aceite por completo a imposição dos pais) é o isolamento total, a loucura.

Ainda em relação ao prejuízo no contato, Tenório (2003, p.40) coloca que:

Na psicose há um processo de profunda alienação de si mesmo e do outro, por conta de uma total impossibilidade de se estabelecer um diálogo com o outro (EU-TU). O outro teve que ser alienado por se revelar excessivamente poderoso e nocivo à preservação do eu. Esse eu tornou-se desconhecido em virtude de tantas defesas e negações de si mesmo, na tentativa de minimizar a ameaça externa.

De acordo com a passagem acima, pode-se dizer que na psicose há um comprometimento com a questão relacional, neste caso por uma fuga do contato.

Diante da desconfirmação e da ameaça, o indivíduo tende a se afastar e se isolar da situação que gera sofrimento. “Na situação específica de um esquizofrênico, por exemplo, existe um obstáculo visível: a não-disposição do outro em sair de seu mundo próprio” (HOLANDA, 1998, p.41).

O outro passa a ser visto como agente promotor de angústia e sofrimento uma vez que é fonte de desconfirmação. Isto explica então o papel da presença neste tipo de personalidade. (…) para o esquizofrênico, há um vazio da presença. Ele recorre à ‘segurança’ do seu isolamento na tentativa de não se sentir ameaçado por qualquer presença que possa mais uma vez desintegrar seu self diante nova desconfirmação (PETRELLI, 2004 apud SANTOS, 2005, p.182).

O reconhecimento do próprio self é premissa básica para o fluxo contínuo do ciclo do contato. A desconfirmação do self interrompe o contato do “eu” consigo mesmo e com o mundo, além da impossibilidade de diferenciação entre a própria experiência e a do outro que é imposta como única e verdadeira (fixação)42. Neste caso surge a confluência.

42 Ao se observar o ciclo do contato, a confluência (fator de cura: retirada) surge após o processo de fixação (fator de cura: fluidez) o que nos faz pensar sobre o quanto a “dependência” em relação às escolhas do outro leva a uma indiferenciação e negação de si mesmo.

Segundo Delisle (1999), a confluência acontece quando a fronteira de contato é tão ofuscada que não permite a distinção entre indivíduo e ambiente. A fronteira não é experienciada refletindo na dificuldade para fazer contato. Não há clareza na representação do “eu” em oposição ao “não-eu”. A confluência ocorre quando o indivíduo é incapaz de focar na sua própria experiência e, sem intenção, se funde com outra pessoa.

Na esquizofrenia a confluência surge de uma relação de não-contato com necessidades autênticas já que o indivíduo durante a sua vida criou uma “dependência” diante da desconfirmação e das escolhas do outro. O indivíduo perde a sua espontaneidade e a capacidade de focar na sua própria experiência ficando paralisado e interrompendo o contato.

Segundo Robine (2006, p.106), a confluência é “um apego a uma situação antiga que se tornou obsoleta”. Diante da “segurança” de buscar no outro a satisfação das suas necessidades, o esquizofrênico continua fixado nessa situação. Por não se tratar da sua necessidade, mas sim do outro, o indivíduo vivencia situações interrompidas ou não-satisfeitas, sendo submetido a sucessivas interrupções no fluxo natural entre figura-fundo gerando o sofrimento.

É comum encontrarmos psicopatologias graves em pessoas com tais históricos, principalmente psicopatologias que implicam em uma divisão interna muito profunda, quando a pessoa se vê fragmentada, e cujas partes não entram em contato, ou tal contato é ocasional ou instável, como na esquizofrenia ou outras patologias esquizóides (ZINKER, 1979, p.85 apud RODRIGUES, 2000, p.125).

A indiferenciação entre o “eu” e o “não-eu” torna o indivíduo alienado do meio. Um exemplo disso são as alucinações presentes nos quadros de esquizofrenia. A experiência alucinatória é vivenciada como real e natural, não estando separada do “eu”. Dessa forma, o paciente “(...) perde contato com o mundo em que vivem os indivíduos não-patológicos. Pela falta da capacidade de afastar-se de sua própria experiência, não está potencializado a compartilhá-la” (SANTOS, 2006, p.346).

Além da compreensão da relação baseada no dialógico, outros autores ainda chamam à atenção para o self – alvo da desconfirmação – e suas funções. A psicose – incluindo a esquizofrenia – assim como afirma Goodman (apud GINGER & GINGER, 1995, p.128) corresponde, sobretudo, “a uma perturbação da função id: a sensibilidade e a disponibilidade do sujeito às excitações externas ou internas estão perturbadas: ele não responde claramente ao mundo exterior nem as suas próprias necessidades”, estando desconectado da realidade.

Perls (1969, p.173-5 apud MÜLLER-GRANZOTTO & MÜLLER-GRANZOTTO, 2008, p.4), apresenta algo semelhante sobre a psicose:

(...) O psicótico tem uma camada de morte muito grande, e esta zona morta não consegue ser alimentada pela força vital. Uma coisa que sabemos ao certo é que a energia vital, energia biológica (...), torna-se incontrolável no caso da psicose. (...) o psicótico nem mesmo tenta lidar com as frustrações; ele simplesmente nega as frustrações e se comporta como se elas não existissem.

A psicose, segundo Latner (1973, p.141), “aparece em situações extremas onde há uma falta de equilíbrio das funções do self”. O contato com o campo é severamente reduzido e leva a uma ruptura na coordenação dos modos id e ego gerando o conflito. Ocorre uma fragilidade do modo ego (perda de controle) diante de tanta energia (excitamento) que não é definida de acordo com a sua relevância do momento. A incapacidade para retornar ao funcionamento espontâneo, faz com que o self se torne predominantemente id43.

43 A função id se refere às pulsões internas, às necessidades vitais e, especialmente, sua tradução corporal, como nos atos automáticos de respiração, locomoção, entre outros (GINGER & GINGER, 1995, p.127-128).

Perls (1969a, p.135 apud LATNER, 1973, p.142) confirma tal compreensão ao afirmar que “nas psicoses, a energia presente não pode ser controlada e, ao invés de ser distribuída de forma discriminada, ela vem em excesso”44. Toda energia disponível não consegue ser distribuída de forma equilibrada e funcional.

44 Trecho original: “In psychosis, the energy is unmanageable. Instead of being differentiated and distributed, it comes out in spurts” (PERLS, 1969a, p.135 apud LATNER, 1973, p.142).

Com um contato escasso, a frouxidão das fronteiras do id torna-se exacerbada e podem surgir disfunções do contato, tais como introjeção, projeção, confluência, decorrentes da perturbação de si mesmo e do campo. Latner coloca que essa é uma descrição geral dos aspectos presentes em desordens severas que se caracterizam pela perda de controle do self.

Ainda de acordo com este autor, “(…) o funcionamento com preponderância no modo id em geral são mais extremos e perturbados do que os que persistem no modo ego” (LATNER, 1973, p.143), como o narcisismo, a megalomania e a paranóia. Em geral, quando a função ego é bem desenvolvida e permite a manipulação do contato com o campo o indivíduo passa a ter mais habilidade para moderar as disfunções, fato contrário ao que ocorre com a função id.

Geralmente, o modo ego tende a assumir a dominância não-saudável em busca da ação, procurando pelos excitamentos que a função id não foi capaz de fornecer ou forneceu de forma desarticulada. Entretanto, a ação do ego nesse funcionamento “emergencial” não é suficiente para assegurar a satisfação das necessidades.

Em algumas desordens, como na psicose45, a função id estaria, por alguma razão, ausente, falhada ou desarticulada, como mostra Müller-Granzotto & Müller-Granzotto (2008, p.9-10):

45 A “psicose” é um termo utilizado na psiquiatria e se refere a um estado mental no qual existe uma perda de contato com a realidade. Várias situações podem desencadear uma psicose, como o uso de substâncias psicoativas ou doenças físicas. A esquizofrenia apresenta-se como o principal transtorno psicótico segundo os manuais de classificação diagnóstica em psiquiatria.

(...) a função id (que justamente se caracteriza pela formação e mobilização do fundo de excitamentos) não cumpriria seu papel, razão pela qual a função ego (caracterizada pela ação motora e linguageira) estaria desprovida dos motivos para lidar com o dado na fronteira de contato.

“O sistema self seria, então, acometido de uma espécie de ‘rigidez (fixação)’” (PERLS, HEFFERLINE & GOODMAN, 1951, p.34 apud MÜLLER-GRANZOTTO & MÜLLER-GRANZOTTO, 2008, p.9-10) (grifo do autor), tal como observado nos comportamentos por vezes descritos pela psiquiatria. Um exemplo disso poderia ser o descuido com a higiene pessoal que pacientes com o quadro de esquizofrenia costumam apresentar. Já que as necessidades não são identificadas, o seu próprio corpo ou “dado”, como colocam as autoras Müller-Granzotto, neste caso não seria percebido, passando a ser descuidado e até negado.

A persistência modo id pode “aumentar nossa energia e atividades bizarras – ou talvez simplesmente parar-nos, catatônicos” (LATNER, 1973, p.145). Nessa passagem Latner resume o funcionamento do organismo no modo id quando o self está prejudicado. Como visto acima, o excitamento, ou vem em excesso, não se identificando as figuras que precisam ser fechadas, ou não ocorre, permanecendo diluído no fundo do self.

Dessa forma, o self permanece fechado para o fluxo de diferenciação com o campo estando unificado às experiências provindas do ambiente. O indivíduo se torna inseparável das coisas que participa e toda sua vivência está integrada ao meio. Nesse movimento confluente o resultado é a perda da realidade onde o indivíduo não consegue se distinguir do meio e nem perceber o que está realmente acontecendo consigo mesmo.

Ao se observar o ciclo do contato proposto por Ribeiro (2007) é possível perceber de que forma o self funciona dentro da função id e como a esquizofrenia é vivenciada no campo.

Com base nos mecanismos de interrupção do contato correspondentes ao self na função id – deflexão, dessensibilização e fixação – pode-se fazer uma rápida referência aos comportamentos observados na esquizofrenia para uma compreensão didática.

A deflexão pode ser observada nos casos em que há falta de contato com o outro no momento em que o paciente vivencia o contato com as suas vozes (alucinações auditivas). A dessensibilização está presente nos casos em que o paciente ignora as sensações dolorosas. A fixação pode ter relação com o pensamento concreto, levando ao “pé da letra” tudo que lhe é dito.

De modo integrado às interrupções do contato, as funções sensoriais e afetivas encontram-se comprometidas resultando na dificuldade apontada por Goodman: necessidades não identificadas e contatos interrompidos. Essas funções presentes no ciclo do contato correspondem às descrições obtidas nos manuais de classificação diagnóstica em psiquiatria quanto à referência do comprometimento sensorial e afetivo na esquizofrenia.

As alucinações observadas nos quadros psicóticos se referem a um erro no registro sensorial, ou seja, uma percepção sensorial que ocorre na ausência do estímulo do órgão sensorial correspondente. Outro sintoma fundamental no diagnóstico é o comprometimento afetivo que é manifestado através da diminuição na habilidade de expressar-se emocionalmente, inabilidade de experimentar prazer, perda de interesse pela interação social, dentre outros.

Diante do que foi abordado acerca da perturbação presente nas relações de contato de pacientes esquizofrênicos, pode-se dizer que os mesmos não conseguem manter espontaneamente o contato consigo mesmo e com o mundo a sua volta de forma auto-reguladora.

Segundo Vicentini (2007), o paciente psiquiátrico “não consegue perceber sua morbidez e/ou suas necessidades pela incapacidade de entrar em contato consigo mesmo, quer seja por mecanismos de defesa ou até mesmo por déficit intelectual”. Entretanto, essa dificuldade pode ser minimizada através de intervenções que auxiliem na configuração de um novo funcionamento.

 

CONDUTA E INTERVENÇÕES TERAPÊUTICAS NA ESQUIZOFRENIA

No funcionamento saudável e equilibrado, o indivíduo passa a identificar suas necessidades e, ao mesmo tempo, se diferenciar do ambiente. Ele consegue responder satisfatoriamente as suas necessidades, fechando processos, se transformando e se abrindo a novas possibilidades em busca do crescimento e desenvolvimento saudável, mesmo que dentro dos seus limites. Esse é o resultado esperado no tratamento de pacientes esquizofrênicos.

(…) o esquizofrênico vive a angústia da iminente desintegração do self. Relacionar-se com alguém é o mesmo que ser destruído ou destruir o outro. Isso justifica o seu isolamento. Dessa maneira, a forma pela qual o indivíduo esquizofrênico é abordado é fundamental na possibilidade de interação com o outro (LAING, 1982 apud SANTOS, 2005, p.181).

Assim como colocado acima sobre a compreensão da abordagem gestáltica acerca da esquizofrenia, a confirmação e a presença tornam-se essenciais no processo terapêutico. “(…) confirmação se refere à validação da experiência do outro. Não o ato de aceitar ou concordar, mas compreender e autenticar a experiência do outro como sendo possível, válida e real” (SANTOS, 2005, p.181).

A relação terapêutica terá por objetivo a tentativa de resgate das relações de confiança com estes pacientes, por menores que elas possam ser. Para isto, o enfoque do trabalho visará sempre o que o indivíduo traz no momento presente: o que sente, o que experimenta, o que pensa, sua postura corporal e sua respiração. O terapeuta também precisa estar presente nos momentos em que a awareness estiver prejudicada, como nos casos das alucinações e delírios.
Santos (2005) expõe sua prática com pacientes esquizofrênicos apontando para a possibilidade de se estabelecer vínculo nesses casos. “Vínculos talvez mais frágeis que, se levada em consideração a condição do ser esquizofrênico, é uma grande conquista na história do tratamento” (SANTOS, 2005, p.182) (grifo da autora). Ainda segundo a autora, as possibilidades de “cura” e a construção do vínculo refletem o sucesso da terapia.

Será um encontro diferenciado (...) tendo como fundo que a cura não é uma ausência de sintomas e sim uma melhor forma de administrar a sintomatologia, seja consigo mesmo, seja com a sociedade. Em outras palavras, um maior controle, uma maior responsabilidade sobre a sua vida, a sua saúde, enfim, sobre si mesmo (SANTOS, 2005, p.184).

No estabelecimento do diálogo é importante observar também as fronteiras de contato desse paciente. Vicentini (2007) mostra que pacientes psicóticos apresentam “uma fronteira de contato muito rígida porque suas vivências internas são tão intensas que estes pacientes podem interpretar o contato como uma ameaça a sua integridade física”. Isso significa que o terapeuta deve levar em consideração a dificuldade que o paciente tem em perceber seu senso de integridade e os limites da sua fronteira que o separam do mundo.

Por esse motivo, na relação terapêutica, como afirma Vicentini (2007), é importante perceber a fronteira de contato estabelecida entre paciente e terapeuta. Alguns pacientes esquizofrênicos se esquivam do contato enquanto outros tendem a invadir o espaço do outro com atitudes inadequadas. Ainda segundo a autora, a conduta deve ser diferenciada em relação à fronteira do contato identificada: ampliação da fronteira para os que apresentam um contato limitado – respeitando os limites de cada um, não indo muito além da fronteira –, e estreitamento para os invasivos, trabalhando com dados da realidade e limites.

Com isto o trabalho da Gestalt-terapia será voltado para uma ampliação da consciência do indivíduo sobre seu próprio funcionamento, observando os sintomas existentes, minimizando o sofrimento diante do encontro com o outro.

Na esquizofrenia é relevante um trabalho quanto à tomada de consciência de si mesmo focalizada na excitação presente no contato. Inicialmente podem existir dificuldades quanto à identificação, para este paciente, do que se passa no seu interior, entretanto o estímulo pode ser dado pelo terapeuta. Utilizar técnicas para a tomada de consciência pode “criar a possibilidade de que o indivíduo sinta a atenção que o terapeuta dedica a ele e incitar, progressivamente, uma focalização na própria atenção” (ROBINE, 2006, p.107).

O trabalho com as alucinações presentes na esquizofrenia seria um exemplo de focalização em si mesmo. Segundo Santos (2006, p.344), “é necessário que o alucinante presentifique visualmente o alucinado, ainda que seja algo irreal aos olhos dos outros, para que ele possa experienciar a si próprio como ser existente”. Mesmo que essa existência seja restritiva, o contato poderá ser trabalho no processo terapêutico.

Apesar de todas as possibilidades de conduta terapêutica para pacientes esquizofrênicos, é preciso atentar para a questão dos limites do outro e das dificuldades de se estabelecer contato no momento. A relação que este tipo de paciente estabelece com o mundo está perturbada, não permitindo uma total abertura para o diálogo.

Isso pode ser visto numa passagem de Buber (1965b, p.175 apud HYCNER, 1997, p.49) quando o mesmo diz: “Posso conversar com um esquizofrênico na medida em que está disposto a incluir-me no mundo que lhe é próprio... Mas no momento em que ele se fecha nesse mundo, não posso entrar”. Entretanto, o terapeuta não enxergará sua tentativa de contato como algo frustrado a partir do momento em que estiver disposto a aceitar a existência do outro na sua singularidade.


CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em relação à proposta deste trabalho, foi possível elaborar uma compreensão da sintomatologia da esquizofrenia de acordo com a abordagem gestáltica. No que se refere à conduta terapêutica, é importante destacar que o resultado esperado no tratamento de pacientes esquizofrênicos deverá levar em consideração as especificidades desse paciente, seus limites, seu contexto e sua realidade. Assim, o terapeuta não vislumbrará somente a possibilidade de cura, mas, antes de tudo, a possibilidade desse indivíduo se organizar dentro da sua sintomatologia, tornando-se responsável por si mesmo.

Não se pretendeu esgotar aqui o assunto, mas creio ter tocado em alguns pontos principais da abordagem. Ressalto aqui que o enfoque principal da Gestalt-terapia é a própria relação do indivíduo consigo mesmo e com o seu meio. Devido a estas particularidades, a abordagem gestáltica pode ser utilizada em busca de um desenvolvimento saudável e pessoal de qualquer indivíduo e, cada vez mais, dos que são acometidos por transtornos mentais graves.


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