WORKSHOP 17: ADMIRÁVEL MUNDO NOVO: RETROFLEXÃO DA AGRESSIVIDADE E ALIENAÇÃO DO CORPO

 

Autora: Eliane de Oliveira Farah


“O modo como vivemos nossos corpos é a história do nosso processo.” Keleman, 1996, p.26


Depois de milhares de anos tentando dominar o meio ambiente, o homem se volta para o próprio corpo, buscando como um deus do Olimpo, arrogante e impiedoso, determinar que sua vontade se faça realidade.
Ironicamente, enquanto o homem busca transformar as máquinas à sua imagem, transforma a si mesmo ao modelo de uma máquina, alterando peças que melhorem sua função ou prolonguem sua vida útil.

Há uma explosão de tecnologia a serviço dessa transformação. Inúmeras técnicas são utilizadas como, por exemplo, a cirurgia plástica em geral, lipoescultura, próteses de silicone, botóx, implantes dentários, implantes de cabelos e tantos outros além de recursos menos invasivos como as lentes de contato, unhas postiças, interlaces e até os condicionamentos físicos.
A questão levantada aqui, não tem por finalidade uma recusa às técnicas estéticas, uma vez que elas têm, em muito, contribuído para uma melhor qualidade de vida. O que se questiona é a fronteira entre o cuidado com o corpo e a sua negação, a diferença entre atender necessidades que preservam a qualidade de vida e atender as necessidades neuróticas introjetadas da sociedade.

“Um indivíduo também pode tentar fazer contratos de confluência com a sociedade. (...) E por isso, como sua confluência é uma barganha iniciada para assegurar pagamento em retribuição ao desempenho, ele deve ser bem-sucedido, ou estimado, ou famoso, ou livre de doença, ou livre de dificuldades pessoais.” Polster, 2001 p.107

É comum ouvirmos dizer que nossa época é a do culto ao corpo. O culto ao corpo perfeito, a um corpo ideal que deve ser copiado a qualquer custo, como uma cama de Procusto, cuja obsessão homicida era deitar suas vítimas numa cama de modo que teriam seus pés amputados ou as pernas esticadas para que nela coubessem de forma exata.
O problema existe à medida que a busca de concretizar um corpo idealizado tem como custo a alienação do próprio corpo que coincide com a redução da consciência sobre as funções do self.

A pessoa esculpe o corpo e não vive os sentimentos autênticos, muda a estrutura, mas conserva o processo neurótico.
“(...) E na nossa cultura, em vez de viver para si próprio, ele logo se volta contra si mesmo. Em vez de usar suas habilidades para conseguir o que quer do meio em que vive, ele se tortura e se dilacera com seus desejos, ordens e “deverias” opressores.” Tobin in Stevens (org.), 1977, p.180 e181

De acordo com a concepção organísmica, fundamento básico da GT, podemos entender que uma existência feliz pressupõe que uma pessoa seja capaz de promover ajustamentos criativos que produzam uma sensação de estabilidade, um sentimento de congruência entre seus pensamentos, sentimentos, sensações e ações. Em outras palavras podemos dizer que o bem-viver depende da arte de fazer contatos no campo organismo/ambiente.

O contato em GT pressupõe congruência entre nossas necessidades e desejos, “função id” do self, nossas representações e experiências de crescimento, “função personalidade”, e as escolhas e rejeições no campo organismo/ambiente, “função ego” do self. Isso quer dizer que o bem-estar de uma pessoa implica em que ela reconheça suas sensações e sentimentos e desse modo se conscientize de suas necessidades, mobilize energia e se volte para o meio em busca dessa satisfação, promovendo ações que atendam tal necessidade.

Todavia, não raras vezes, a pessoa retroflete para si própria, a energia que deveria ser investida no meio, e com isso se aliena de suas próprias necessidades se voltando contra o próprio self.

Perls, Hefferline e Goodman, 1951, descrevem a neurose como uma autoconquista, isto é, a retroflexão da agressão que deveria ser dirigida ao ambiente para o próprio self.
A retroflexão busca evitar a destruição e o conflito inerentes ao ato de contatar, transformando o self em objeto de dominação.

Segundo eles, ainda, a renúncia ao conflito envolve renunciar ao self autêntico, implica em abrir mão da satisfação de uma necessidade do organismo, o que gera hostilidade.
A renuncia ocorre quando um dos aspectos conflitantes do indivíduo é tido como indigno pelas introjetos de aspectos da personalidade de outro. Aceitar esse aspecto então significa correr o risco da desaprovação. Assim, ao invés de se identificar com um novo self, assimilando os fatores em oposição, a pessoa introjeta uma personalidade alheia, identificando-se com ela, com suas atitudes agressivas e repressivas e desse modo o aspecto autêntico do self é agredido e alienado.
“É quando e porque as funções de ego são perdidas ou suspensas que esses mecanismos de fronteira passam a garantir as funções regularmente devidas ao ego, eventualmente assumindo a aparência dessas.” Robine, 2006, p.70

No caso das pessoas que se submetem aos chamados tratamentos de beleza vemos que muitas pouco se preocupam em buscar informações sobre a competência ou licenciamento de profissionais, sobre o risco da ingestão de drogas ou das técnicas estéticas a que se submetem. A beleza vale qualquer risco ou sacrifício porque só assim se é amado ou valorizado.
Há uma permanente insatisfação com a imagem pessoal, apesar dos esforços desmedidos para sua preservação, indicando a falta de consciência sobre a existência de conflitos de interesses em seu próprio processo.

Se, por exemplo, uma criança acredita que não é amada porque não é bonita, provavelmente buscará a beleza pelo resto de sua vida, identificando-se desse modo com a expectativa do outro sobre ela e dirigindo para si mesma a agressão que deveria se dirigir para aquele que rejeitou sua forma autêntica.
A mídia da ciência da estética se especializou em fazer com que as pessoas acreditem que todos os nossos males se resolvem através da beleza.

Assim, o medo e a raiva presentes em nossas situações inacabadas são reprimidos dando lugar a uma busca obsessiva pela beleza, pelo poder, pelo afeto.
A repressão do sentimento não é uma solução, é apenas uma trégua; há uma situação inacabada que continua aguardando solução, há um vazio, que tanto pode ser uma renúncia ao conflito, quanto um vazio fértil, quando uma atitude de imparcialidade e desprendimento criativos permitem uma solução criativa, que inclui a assimilação dos aspectos conflitantes no desenvolvimento de um novo self.

Na mesma obra os autores nomeiam como paz positiva e paz da conquista as diferentes conseqüências do contato organismo/ambiente.
A paz positiva ocorre tanto quando há solução criativa para o conflito, isto é, acontece a ruptura de hábitos, destruição, assimilação e uma nova configuração quanto na derrota esmagadora à medida que todos os recursos foram utilizados, a raiva pode ser expressa e o luto experienciado, possibilitando a aceitação da frustração do desejo.
Dito de outra forma, a pessoa se auto-regula ao tomar consciência de suas necessidades autênticas e assim experimentando um novo senso de self ou ao aceitar a frustração pelo não atendimento da necessidade.

Não há uma sensação de conquista, pois nenhuma parte foi dominada.
A paz da conquista não é verdadeiramente uma paz, uma vez que é mantida a custa da alienação de uma parte do self que deve estar sempre sendo submetida.
O sofrimento emocional que acompanha o conflito é o meio de impedir o isolamento do problema. O sofrimento põe foco no problema para que ao ser examinado promova crescimento do self no campo existente.
Todavia a solução não é enfraquecer o conflito e sim fortalecer o self e a awareness de si próprio e isso significava tomar consciência de suas sensações corporais e dos sentimentos que dão significado a essas.
“Na minha opinião a única coisa em que você pode basear sua existência além da esperança, além do pensar; é no seu organismo: seus olhos, seus ouvidos, seu funcionamento corporal, suas emoções. Até que você desperte e comece a usar seu organismo, você terá que ficar e encarar seu desespero e impotência.” Tobin in Stevens (org.), 1977, p.196

O objetivo da vivência é o de oferecer a oportunidade de resgatar a consciência das sensações e sentimentos autênticos através da concentração nos movimentos do corpo.
O trabalho consistirá na experimentação de diversas formas de expressão corporal de modo que as pessoas percebam a diferença, em termos da congruência organísmica, entre o movimento motivado pelo desejo de outro e a autenticidade do movimento que respeita o próprio ritmo.


REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS

KELEMAN, STANLEY. O corpo diz sua mente. São Paulo, Editora Summus, 1996.

PERLS, F. HEFFERLINE, R. GOODMAN, P. Gestalt-Terapia. São Paulo, Editora Summus, 1977.

POLSTER, M., POLSTER, E. Gestalt-Terapia integrada. São Paulo, Editora Summus, 2001.

ROBINE, JEAN-MARIE O self desdobrado: perspectiva de campo em Gestalt-terapia. São Paulo, Ed. Summus, 2006.

TOBIN, STEPHEN A. Totalidade e auto-sustentação. In PERLS, F. E OUTROS; STEVENS, J. O. org. Isto é gestalt. São Paulo, Editora Summus, 1993