MESA REDONDA 13 – PARTE II: PAUL GOODMAN E OS OUTROS CAMINHOS DA GESTALT

Autor: Luiz Fernando Calaça de Sá Júnior


Neste trabalho trato da importância dada à obra de Paul Goodman dentro do contexto da Gestalt Terapia. Ocupando uma posição geralmente associada apenas como um marco histórico – sua contribuição como co-autor do Gestalt Therapy (1951) -, Paul Goodman tem suas obras antecedentes e posteriores pouco conhecidas e discutidas dentro da literatura gestaltica brasileira. A partir de um olhar para a importância “histórica” do todo da obra de Paul Goodman, sinalizo para os diversos caminhos possíveis de interlocução desta com a Gestalt Terapia, para além das formulações sobre a Teoria do Self, tema de sua obra mais trabalhado até o momento. Paul Goodman, ao longo de mais cerca de 40 anos de produção artística e intelectual transitou por vários campos do conhecimento, que vai desde a crítica literária, passado pelo planejamento urbano, pela psicologia e psicanálise, até a crítica social, política e pedagógica, finalizando sua obra retomando reflexões sobre a linguagem e a literatura. Tais campos de conhecimento percorridos por Goodman, de forma transdisciplinar, podem ser compreendidos como situados nas “fronteiras de contato” da Gestalt Terapia, apontando para possíveis caminhos de ampliação, amplificação e atualização da abordagem gestáltica.


Palavras-chave: Paul Goodman, Gestalt Terapia, história, crítica biográfica.

INTRODUCÃO

Nesse trabalho, pretendo dar visibilidade ao lugar ocupado pela obra de Paul Goodman, dentro da literatura gestáltica, até então pouco conhecida e explorada, principalmente no contexto de desenvolvimento da abordagem gestáltica no Brasil. Pretendo sinalizar para outros “caminhos” empreendidos por Goodman ao longo de sua trajetória como intelectual da contemporaneidade, admitindo que sua contribuição para a Gestalt Terapia extrapola ou amplia os limites das formulações sobre a Teoria do Self, tema de sua obra que é mais trabalhado até o momento.

Inicialmente, traçarei um panorâmica da vida e obra do autor, pontuando marcos importantes de sua obra, tende em vista a forte relação entre os momentos de sua vida e o desenvolvimento de seu pensamento, não me atendo, no entanto, a dados da vida intima do autor – embora considere que tenham sua importância para a compreensão do percursos da sua obra como um todo e sobre seus desdobramentos. Posteriormente, apontarei para os caminhos já percorridos pelos críticos da obra de Paul Goodman e por teóricos de outras áreas, apontando para caminhos ainda pouco trabalhados.

 

I. A OBRA DE PAUL GOODMAN

Natural da cidade de Nova York, filho de família de comerciantes judeus, Paul Goodman graduou-se em Letras pelo The City College of New York, em 1932, e completou seu PhD pela Universidade de Chicago entre 1939 e 1940, com a dissertação “The Formal analysis of Poems”, que posteriormente seria publicada sob o título The Structure of Literature (1954).

Após finalizar seus estudos, dedicou-se na década de 30 à docência, em escolas tidas como liberais, sendo expulso mais de uma vez dessas instituições, acusado de seduzir seus alunos – e por defender o seu direito de fazê-lo. Sua experiência como professor, posteriormente, influenciaria seu olhar sobre o sistema educacional americano e sobre a juventude, temas ao qual se dedica principalmente na década de 60.

Antes de inserir-se no movimento de criação da Gestalt Terapia, no final da década de 40, Paul Goodman já havia trilhado um longo caminho no campo da literatura, como poeta, novelista e crítico literário, já tendo publicado quase uma dezena de livros36, porém sem grande notoriedade ou aceitação da crítica, pelo seu estilo vanguardista e por sua vinculação política ao anarquismo, adotando uma postura pacifista, contrária ao movimento armamentista dos EUA, no período da Guerra Fria.

36 N. A.: Dentre as obras dessa fase podemos citar: The Grand Piano; or, The Almanac of Alienation. (San Francisco: Colt Press, 1942) [volume um do The Empire City (1959)], The State of Nature. (New York: Vanguard Press, 1946) [volume dois do The Empire City (1959)], The Copernican Revolution. (Saugatuck, Conn.: 5 X 8 Press, 1946), The Break-Up of Our Camp and Other Stories. (Norfolk, Conn.: New Directions, 1949) e The Dead of Spring. (Glen Gardner, N.J.: Libertarian Press, 1950) [volume três do The Empire City (1959)]

Goodman também havia publicado, em 1947, o livro sobre planejamento urbano intitulado Communitas, em co-autoria com seu irmão Percival Goodman. Em função da sua habilidade na escrita, e da capacidade de articular e desenvolver idéias em co-autoria, por indicação de um amigo, Goodman foi convidado pelo Fritz Perls, a realizar um trabalho pago, de editoração dos seus manuscritos, do que seria o livro marco de formação de um nova abordagem psicoterapêutica.

Por sua profunda erudição e conhecimento em filosofia – fenomenologia, existencialismo, pragmatismo e taoísmo -, psicologia e psicanálise – tendo escrito textos críticos sobre Freud e Reich nos anos 40 -, Goodman acabou sendo o principal responsável pela fundamentação teórica da nova abordagem, redigindo quase que integralmente a segunda parte do Gestalt Therapy, intitulada “Novelty, excitement and growth”.

Paul Goodman, após essa participação em co-autoria com o Fritz Perls, engajou-se no grupo criador do Instituto de Gestalt Terapia de New York, proferindo seminários e atuando como terapeuta por um período de cerca de 10 anos. Na década de 60, impossibilitado de continuar suas atividades como psicoterapeuta, Paul Goodman passou a se dedicar principalmente à produção de obras de crítica social e política e sobre educação, ministrando palestras e cursos em universidades.

Sua fama e notoriedade acadêmica e como intelectual se dá somente nesse período, com a publicação do livro Growing up absurd: problems of youth in the organized system (1960), obra em que aborda principalmente o tema da educação e da juventude – retomando sua experiência como professor na década de 30, e seu contato com jovens de rua da cidade de NY. Nesta obra, também feita sob encomenda, devendo discorrer sobre delinqüência juvenil, ele acaba por desenvolver uma análise crítica ao sistema político-educacional norte-americano, refletindo sobre a condição do jovem formado compulsoriamente em um modelo educacional focado em conteúdos curriculares e sistemas disciplinares, com poucas possibilidades de ocupação e sem uma formação como cidadãos para viver em comunidade.

A partir dessa obra, Goodman passa a configurar-se como um dos principais “gurus” do movimento de contracultura, atuando junto ao movimento jovem, no Movimento Libertário da Nova Esquerda. Escreve ensaios de caráter pacifista contra a Guerra Fria, adotando uma postura de crítica ao movimento armamentista e à Guerra do Vietnã, além de refletir sobre conflitos sociais envolvendo grupos minortários, como negros e homossexuais.

Em muitos de seus escritos literários, abordou direta ou indiretamente a questão da homossexualidade, tema emergente de sua própria vivência bissexual – o que o coloca dentro do quadro de referência dos escritores e intelectuais que “saíram do armário” e colocaram a questão da identidade gay – ou queer – em foco, sendo precursor do Movimento de Liberação Sexual, que se desenvolveu na década de 70, embora ele mesmo tivesse críticas sobre a postura adotada pelos militantes 37 gays.

37 C. f. CODY, J. (s/d) American Literature: Gay Male, 1900-1969. In: GLBTQ (Na Encyclopedia of gay, lesbian, bisexual, transgendet & queer culture. Disponivel na web em: http://www.glbtq.com/literature/am_lit2_gay_1900_1969.html

Olhando para as fases que compõem a trajetória da Goodman, primeiro como escritor e crítico literário, depois como terapeuta e, por fim, como crítico social, político e educacional, é possível intuir que sua participação no movimento da Gestalt Terapia, se deu como um divisor de águas em sua construção como um intelectual da contemporaneidade.

Ocorrendo num período de imenso descontentamento e descrença com a própria carreira como artista e “homem das letras” – modo como costumava se qualificar -, a inserção de Goodman na Gestalt Terapia se deu como desdobramento de um longo período de “auto-análise”, que se deu manifestou tanto no caráter projetivo de sua obra literária, de ficção e ensaística, produzida na década de 40 – fortemente influenciada por suas incursões na psicanálise -, quanto pela auto-aplicação das técnicas de vegetoterapia aprendidas nos seis meses de terapia iniciado com Lowen, numa combinação entre práticas corporais e associações livres, passando pelo período de elaboração na terapia individual com a Laura Perls, e continuando com os diários pessoas escritos entre 1955 e 1960.

O momento em que se volta para a crítica social e pedagogia é decorrente da profunda reflexão e elaboração de sua carreira e de sua trajetória de vida. Essa nova fase não se trata de um momento absolutamente novo, porém de um posicionar-se diante dos fenômenos psicológicos, sociais e pedagógicos, de forma mais engajada, não alienado.

Incorporando pressupostos da abordagem gestáltica, Goodman olha para os fenômenos sociais e políticos a partir de um referencial terapêutico, de uma “socio-terapia”, podendo essa fase de sua obra ser compreendida como um desdobramento e uma amplificação dos pressupostos da Gestalt Terapia, já ensaiados no Gestalt Therapy, nas teorizações sobre o self como contato, sobre a constituição dinâmica da personalidade como se dando nas interações organismo-meio.
No final de sua vida, nos fins de década de 60 e início de 70, após a morte do filho num acidente de alpinismo e de vários parceiros como o Paul Weizs e o próprio Fritz Perls, prevendo a aproximação de sua própria morte, Goodman retoma pontos de reflexão de sua carreira, a partir de um tom de confissão autobiográfica, justificando seus posicionamentos – às vezes por demais polêmicos -ao longo sua trajetória como “homem das letras”, como crítico político e social, como bissexual. Esses escritos são os ensaios “Memoirs of an Ancient Activist” (posteriormente publicado como “The politics of being queer”), de 1969, e os reunidos na obra póstuma Little Prayers and Finite experience (1972), reeditada sob o título Crazy hope and finite experience (1994).

Sua ultima obra publicada em vida, Speaking and language (1971), retoma seu momento como crítico literário, trazendo reflexões sobre a linguagem e a literatura, desenvolvendo pontos importantes enunciados no capítulo 7 do Gestalt Therapy, o “Verbalizing and Poetry” e nos workshops ministrados no Instituto de Gestalt Terapia de New York, na década de 50, sobre o título “The Pathology of Speech and Writing”. Nessa obra ele tece críticas a linguistas contemporâneos e ao modo positivista de fazer ciência e compreender a linguagem, propondo um olhar sobre a experiência poética e o dinamismo da linguagem enquanto criação.


II. PAUL GOODMAN E OS “OUTROS CAMINHOS” DA GESTALT

Utilizo esse breve – e incompleto – panorama, da obra de Paul Goodman, apenas como argumento que sinaliza uma justificativa do porquê se estudar mais a fundo a sua obra, compreendendo-a em sua totalidade. Ao longo de uma carreira de cerca de 40 anos, com uma média de publicação de uma obra/ano, Goodman deixou um legado extenso e diversificado, discorrendo sobre diversos temas, contemporâneos a ele e ainda hoje atuais, percorrendo um caminho intelectual singular, adotando uma postura transdisciplinar – tão propaganda atualmente nos meios acadêmicos, porém tão pouco na prática – que expande a Gestalt-Terapia para além das fronteiras da Psicologia, e, em especial, do contexto clínico, mantendo porém uma constante interlocução com ela, articulando saberes diversos, da psicanálise, filosofia existencialista e pragmatista, crítica social, educacional e política e da literatura.

A passagem de Goodman pela Gestalt-Terapia, dentro do desenvolvimento da abordagem gestaltica no Brasil, e na maioria das obras traduzidas sobre a Gestalt-Terapia, é muitas vezes reduzida à mera condição de marco histórico, pela sua contribuição na autoria do Gestalt Therapy. É citando como um seu principal formulador e sistematizador teórico, porém pouco se tem discutindo ou aprofundando as reais implicações de sua obra, não se vislumbrando os possíveis desdobramentos dela derivados, para o desenvolvimento da abordagem gestáltica para além do enquadre clínico. Diante dessa restrição atual sobre o olhar para o todo de sua obra, faz-se necessário abrir o campo para novas perspectivas que se encontram latentes, ainda a ser melhor exploradas e desenvolvidas.

Creio que o conhecimento mais a fundo da obra do Paul Goodman serviria como uma fonte teórica importante para se compreender fenômenos políticos, sociais, pedagógicos e estéticos que, diante de uma escassa formulação teórica dentro das produções da literatura gestaltica, senão na própria obra desse autor, se faria pela busca de fontes externas nem sempre compatíveis com o referencial gestáltico.

Recentemente, Walter Ribeiro (2007) trouxe em seu artigo sobre a história da Gestalt Terapia, a importância de rever essa História -com letra maiúscula -, concebendo-a como o “fundo do qual emergem as noções que temos sobre a nossa identidade e que, portanto, quanto mais elucidada, mais clareza teremos do que somos e do que pretendemos”. Nesse artigo ele traz a importância do resgate da contribuição dos pioneiros da abordagem gestáltica, dando um destaque especial a alguns membros do Grupo dos Sete – Fritz e Laura Perls, Paul Goodman, Paul Weizs e Isadore From.

Sobre Paul Goodman, Ribeiro retoma considerações da própria Laura Perls, que o aponta como um dos principais sistematizadores das primeiras teorizações da Gestalt Terapia, ao afirmar que “a influência de Paul Goodman era muito importante e penso que sem ele não haveria absolutamente uma teoria coerente de Gestalt Terapia” e ao descrevê-lo como um homem do Renascimento, um dos raros feitos na América. Aqui as pessoas usualmente não têm a educação e base para conhecimento de línguas, e filosofia, e modos diferentes de pensamento, e arte, e antropologia, e música. Paul possuía tudo isso em funcionamento integrado.38 (s/p na versão eletrônica)

38 RIBEIRO, W. F. da R. (2007). Gestalt-terapia no Brasil: recontando a nossa história. Revista da Abordagem gestaltica, vol. 13, n. 2, Goiânia. Disponivel na World Wide Web: <http://pepsic.bvs-psi.org.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1809-S18672007000200010&lng=es&nrm=iso>. ISSN 1809-6867.

Robine (2005), em seu artigo que discute o paradigma pós-moderno da Gestalt-Terapia, em muito desenvolvido a partir das contribuições do Paul Goodman, discorre sobre a ignorância quase generalizada que se tem sobre a importância desse autor, ao recordar-se ele mesmo de sua própria formação como gestalt¬terapeuta:

No início dos anos 80, após minha formação e um tempo de prática em Gestalt-Terapia – em um primeiro momento de modo “perlsiano” (do período de Esalen) e depois modificada pela contribuição do Instituto de Cleveland (em particular dos Polsters), -eu tive a oportunidade de trabalhar por vários anos com Isadore From, um membro do grupo fundador da Gestalt-Terapia. Este repensar doloroso e radical levou-me a dar as costas firmemente a certas práticas, certas noções teóricas e certos preceitos éticos, em prol de outro enfoque, que eu já então percebia como sendo mais exigente (e eu ainda estava longe de medir todas as conseqüências). Tratava-se do enfoque de Goodman e Isadore From. Aliás, era difícil para mim distinguir a contribuição de From daquela de Goodman, pois ao longo de minhas duas formações anteriores em gestalt, nunca havia ouvido falar em nenhum dos dois. (...) Do mesmo modo, tenho a impressão agora, depois de 15-17 anos, de ainda não ter feito o tour completo pelo modelo proposto por Goodman. (...) Ao mesmo tempo, eu estou longe de considerar que o modelo trazido por Goodman seja perfeito!

Eu quero apenas dizer que novos caminhos foram abertos e que nos cabe identifica-los e explorá-los.39 (p. 103)

39 ROBINE, J-M. (2005) A Gestalt-Terapia terá a ousadia de desenvolver seu paradigma pós-moderno? In: Estudos e Pesquisas em Psicologia, RJ: UERJ, Ano 5, n. 1, 1º semestre, 2005, p. 103.

Dos “novos caminhos” referidos por Robine, abertos pela contribuição de Paul Goodman, tem sido enfatizado principalmente as contribuições dele no que tange às construções sobre a Teoria do Self, baseada na compreensão de campo e de contato, na articulação organismo-meio, numa perspectiva interacionista do desenvolvimento humano. Vários autores (Ribeiro, 1997, Robine, 2006, Muller-Granzotto, 2007) têm se preocupado em desenvolver e refinar melhor esses conceitos, aprofundando as leituras do Gestalt-Therapy e articulando com outras concepções contemporâneas. Robine, em especial, tem trabalhado na crítica e resgate desses conceitos, apontando as contradições entre as “bases modernistas” da Gestalt terapia com sua compreensão estrutural de self, herdeira das idéias Freudianas e Reicheanas, a partir da noção de “auto-suporte” de Perls, e o “paradigma pós-moderno” que advém da noção de self enquanto contato, pela ênfase dada por Goodman na compreensão de “suporte ambiental”40.

40 Op. Cit. p. 108.

Sobre esse ponto teórico, específico e atual nas discussões e teorizações da Gestalt Terapia, não pretendo me aprofundar, no presente trabalho, apenas me referindo a ele como sendo o que considero o caminho mais “canônico” de compreensão da obra do Paul Goodman e desenvolvido dentro do campo da abordagem gestáltica.

Ao visar o todo da obra de Paul Goodman, desde a fase literária, até o engajamento na crítica social e educacional, é possível perceber os vários campos abertos por ele e desenvolvidos de forma paralela e, às vezes, em interlocuções ou abordando temas diversos, transversalmente. Abaixo ilustro num diagrama, as obras situadas temporalmente, e a transversalidade temática, sendo possível entrever no mínimo nove eixos temáticos – ou nove possíveis “trilhas” abertas pela obra de Goodman.

Diagrama provisório de “caminhos” ou “trilhas” da produção de Paul Goodman, ao longo das 4 décadas de produção intelectual, e no período póstumo, de resgate da obra. Obras levantadas a partir do site da Wikipédia e organizadas por temas a partir das referências de Stoehr (1994).
Cada um desses “eixos” ou “trilhas” se interconectam ao longo de toda a obra de Goodman, sendo possível imaginá-la talvez sob a forma de uma mandala, ou de uma esfera constituída por interconectados, pontos cuja conexão pode se organizar como planos temáticos, para fins de articulação, como planos de trabalho.

Diagrama representando os eixos temáticos contidos no todo da obra de Paul Goodman.


Esses vários “eixos temáticos” ou “trilhas” -ainda pouco visados da obra de Paul Goodman, poderiam – e deveriam – ser melhor explorados. Abaixo, tento agrupar alguns possíveis planos de trabalho, articulando algumas dessas áreas e apontando para suas principais obras de referência:

1) o caminho literário-estético-filosófico, referente a sua visão estética e literária, correspondente ao período em que se dedicou à crítica literária e teoria da literatura. Vai desde as primeiras reflexões formalistas sobre a poesia, do período do doutoramento na Universidade de Chicago, passando por ensaios psicanalíticos da década de 40, por escritos sobre a arte de vanguarda e o teatro, durante a década de 50 – quando do contato com o Living Theatre -, e retomada nos fins das décadas de 60 e 70, quando dos últimos escritos referentes a sua reflexão existencial e às discussões sobre linguagem e literatura. Desse período se situam as obras: Art and Social Nature (1946), Kafka's Prayer (1947, 1976), as passagens sobre o artista contidos no Gestalt Therapy (1951), o The Structure of Literature (1954), Utopian Essays and Practical Proposals (1962), Five Years (1966) e Speaking and language: defence of poetry (1971), além de alguns artigos compilados nas obras pósumas Nature Heals: Psychological Essays (1977) e Creator Spirit Come! The literary essays of Paul Goodman (1977, 1979).

2) o caminho psicológico-psicanalítica-gestáltico, que envolve o período das décadas de 40 e 50, que vai do período antecede à incursão pela Gestalt-Terapia, através dos ensaios sobre a psicanálise freudiana e sobre a obra de Reich, e toda a década de 50, presentes na leitura psicanalítica na obra de crítica literária como o Kafka’s Prayer (1944); no Gestalt Therapy (1951), em fragmentos sobre a psicologia presentes no Five Years (1966) e nos ensaios reunidos na obra Nature Heals: Psychological Essays (1977). O período compreendido de crítica social a partir da publicação do Growing up Absurd (1960) também pode ser incluído, no que tange às reflexões sobre as relações de campo organismo-meio, e sobre psicologia social ou socioterapia.

3) o caminho da crítica social e política, referente a escritos pacifistas da década de 40, o The May Pamphet (1945) e aos artigos de Goodman em revistas como , e principalmente às obras produzida nas décadas de 60 e início de 70, que caracteriza-se pela sua visão anarquista, à critica ao “sistema”, organização social e a política do Pós-Guerra e às propostas utópicas e comunitárias, o movimento pacifista contra a Guerra do Vietnã, que serviram como pano de fundo para o desenvolvimento do movimento de Contracultura, presente em obras como: Growing up absurd: problems of youth in the organized system (1960), Utopian Essays and Practical Proposals (1962), Drawing the Line (1962), The Society I Live In Is Mine (1962), Seeds of Liberation (1964), People or Personnel (1965), The Moral Ambiguity of America [(1966); publicado como Like a Conquered Province: The Moral Ambiguity of America, 1967)], New Reformation: Notes of a Neolithic Conservative (1970) e as obras póstumas Little Prayers and Finite Experience (1972), e retomado nas obras póstumas Crazy hope and finite experience: final essays of Paul Goodman (1979), The Writings of Paul Goodman (1976), Drawing the Line: Political Essays (1977) Decentralizing Power: Paul Goodman’s Social Criticism (1994) e Format and Anxiety: Paul Goodman Critiques the Media (1995).

4) o caminho pedagógico, da década de 60, referente às obras em que critica o modelo de educação compulsória, e propõe uma educação vivencial e comunitária, inspiração de Dewey, voltada para o desenvolvimento integral do humano, diretamente relacionado ao eixo de crítica social e política, contidos nas obras: Growing up absurd: problems of youth in the organized system (1961), Compulsory Miseducation (1964) e People or personnel and Like a conquered province (1968).

5) o caminho da análise autobiográfica, que envolve as décadas de 40 a 70, e atravessa os 4 eixos anteriores, em que Goodman sintetiza essas diversas dimensões de sua obra articulando à sua própria vida, num movimento de auto-análise. Presente no livro de memórias Five Year (1966), e em ensaios e poemas contidos nas obras póstumas Little Prayers and Finite Experience (1972) Nature Heals: Psychological Essays (1977) e Creator Spirit Come! The literary essays of Paul Goodman (1977, 1979), pode ser percebido também em obras literárias de Goodman, principalmente nos textos que problematizam o tema da alienação – The Empire City (1959), sobre a homossexualidade Parents' Day(1951), , Our Visit to Niagara (1960), Making do (1963) e em poemas, como o North Percy (1968), que trata da morte de seu filho Mathew.

O olhar para a dimensão autobiográfica da obra de Paul Goodman nos favorece a compreensão dos desdobramentos de seu pensamento intelectual e as formulações sobre alguns temas ligados às sua própria existência. As elaborações, por exemplo, sobre a Psicologia do autor, sobre o processo criativo e o ajustamento criativo e sobre a sexualidade em muito sobre interferência das vivencias de Goodman, trazendo exemplos de sua própria vida e de seu movimento de auto-conhecimento.

Esses diversos pontos temáticos da obra de Goodman, constituem caminhos situados nas “fronteiras de contato” da Gestalt-Terapia, que em muito podem favorecer a um processo de ampliação da abordagem gestaltica para outros campos além do enfoque clínico, ao menos no que tange às possibilidades de articulação a partir da contribuição de Goodman para a Gestalt terapia.


III. ALGUNS CAMINHOS JÁ PERCORRIDOS

Fazendo uma revisão da fortuna crítica sobre Paul Goodman, a partir de fontes acessíveis em artigos da internet e obras impressas que fazem referência ao pensamento do Paul Goodman, foi possível evidenciar uma grande incidência de referencias sobre ele no campo de sociologia, da política e da pedagogia, principalmente em discussões referentes ao movimento anarquista, à sua contribuição na Contracultura da década de 60-70 (Roszak,1972), e ao movimento de desescolarização, esta última em articulações principalmente com o pensamento de Ivan Illitch, respectivamente. Esses últimos, são artigos datados, principalmente das décadas de 60 e 70 (Thompson , 1967; Vaughan , 1974; Swartz, 1979), havendo referencias mais atuais, em revisões que incluem o autor na história do desenvolvimento da pedagogia contemporânea (Friedenberg, 1994,1999; Spring, 2006).

Sobre o pensamento político de Goodman, a obra de Bernard Vincent (1976) e a coletânea organizada por Parisi (1986), talvez sejam as referências mais consistentes de fortuna crítica, embora hajam artigos de diversos outros autores, que abordam a importância de Paul Goodman como intelectual anarquista e crítico político e social do pós-guerra.

Há referência à importância de Paul Goodman também no que ficou denominado como ecopsicologia (Knapp, s/ data), a partir dos seus escritos sobre planejamento urbano, em parceria com seu irmão Percival Goodman e nas articulações do Gestalt Therapy e de obras posteriores sobre a relação do organismo-meio ambiente. Tal articulação indica um caminho de possível de articulação da Gestalt Terapia com o campo emergente da Psicologia ambiental.

Entre as publicações sobre a contribuição de Goodman para a Psicologia, em especial para a Gestalt-Terapia, encontrei apenas dois artigos, um mais antigo, de Winter (1962, 2007), que sistematiza os principais pontos teóricos trazidos por Goodman para a da Gestalt Terapia, e, mais recentemente, o de Ayward (1999), que trata da questão do campo e dos ajustamentos neuróticos, numa perspectiva que busca amplificar e expandir as discussões clínicas da GT, refletindo sobre as implicações dos distúrbios de fronteira no campo clínico, social e político.

Ayward (1999) aponta para uma compreensão que possibilite “uma expansão da consciência para a dinâmica das fronteiras, incluindo os impactos sociopolíticos e ambientais que influenciam e sustentam nossa condição humana”, considerando que o “ponto social e político da Gestalt Terapia, mascarado na forma de uma psicoterapia, serviria de base teórica para o combate da desumanização”. Adentrar e aprofundar essas discussões no campo de uma sociologia ou de uma psicologia social, na Gestalt Terapia, me parece algo ainda a ser trilhado, uma lacuna que teria a compreensão da obra de crítica social e política de Paul Goodman como caminho que inevitável.

Sobre a contribuição de Paul Goodman no que tange ao campo da literatura, no entanto, quase nada se tem publicado, com exceção do artigo de Morton (1993), sobre a obra The Empire City apontando para sua dimensão pós-moderna e pós-narrativa desta obra.

Temos também como principal referencia de fortuna crítica os textos de Taylor Stoehr, editor e principal comentador da obra de Paul Goodman. Taylor descreve em seu livro Here, Next, Now (1994) detalhes minunciosos da história do autor, desde aspectos de sua vida pessoal, sua formação acadêmica e carreira literária, passando pelos momentos de imersão na psicanálise, sua inclusão no movimento da Gestalt Terapia e o posterior engajamento como crítico social e teórico da educação, ocupando o lugar de porta-voz da Contracultura. Esta obra e outros escritos de Taylor, nas introduções das coletâneas reunidas após a morte de Goodman, são as fontes mais detalhadas sobre a biografia de Goodman e sua produção literária, descrevendo as principais fases do autor e suas transições, as características das obras de cada uma dessas fases, e os principais caminhos para adentrar o pensamento de Goodman, tanto no campo literário, quando da crítica social e política.

Na literatura gestaltica brasileira, apenas Alvim (2007), mais recentemente, no, trouxe em foco, a dimensão literária de sua obra, apontando como uma contribuição de Goodman para o “fundo estético” da Gestalt Terapia. Em seu artigo, no entanto, ela não adentra diretamente os textos do Paul Goodman, recorrendo a aspectos da biografia do autor a partir de referências de comentadores.


IV. APONTANDO OS CAMINHOS QUE AINDA PODEM – E PRECISAM – SER PERCORRIDOS

Debruçando-me sobre a obra de Paul Goodman, neste primeiro contato, torna-se claro para mim o imenso campo de possibilidades de articulação e expansão que a obra desse autor nos traz para ampliarmos as fronteiras de contato da abordagem gestáltica. Na condição de um intelectual erudito, como Laura Perls mesmo dizia, “um dos raros feitos na América”, Goodman dialogou com vários campos do conhecimento, integrando numa gestalt plena e coerente, vida e obra. Seu conhecimento literário, filosófico, psicológico-psicanalítico e político, trazidos antes, durante e após a sua participação do movimento da Gestalt Terapia, servem para compreendermos melhor os fundamentando e as bases do pensamento gestáltico, tal como concebido originalmente, e, principalmente, nos aponta para nossa própria identidade enquanto gestalt-terapeutas. Quem somos, de onde viemos e para onde podemos ir.

Suas obras posteriores dialogam intimamente com o pensamento gestaltico e o amplifica, ao voltar-se para aspectos da sociedade, da política, da educação, da juventude, da sexualidade e do processo de criação na arte, na literatura, no teatro e na vida. Elas nos servem como norte para os novos caminhos possíveis que podemos percorrer, em nossas atuações práticas, em nossas investigações científicas e em nossas reflexões existenciais.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nesse artigo pretendi apontar para os caminhos da obra de Paul Goodman que podem ser percorridos e para as articulações com temas que, sendo de interesse dos gestalt-terapeutas, podem recorrê-la como referência. Esse caminho eu me mesmo me proponho a percorrer, fazendo um convite dirigido a todos a esse diálogo. Aponto também, neste último instante, à dificuldade de acesso a essa extensa obra e à necessidade de sua tradução pela comunidade gestáltica, para que possamos usufruir melhor dessas referências, abrindo novas possibilidade de articulação.


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