MESA REDONDA 12 – PARTE II: PESQUISA FENOMENOLÓGICA: COMPREENDENDO O TEMPO VIVIDO POR ADOLESCENTES DO GÊNERO FEMININO COM EXPERIÊNCIAS DE VIVER NAS RUAS E EM ABRIGOS

Autor: Virginia Suassuna

 

RESUMO

A diversidade de modos possíveis das adolescentes construírem suas espacialidades e temporalidades, vivendo nas ruas e em abrigos, tem sido focalizada sob diversas óticas nos campos da saúde, educação, sociologia, entre outras áreas. Recorrendo a estudos e pesquisas que investigam essa temática focamos a interrogação que revela a intencionalidade em compreender o modo como as adolescentes que se encontram em abrigos vivenciam o tempo. Nesse sentido, o presente trabalho se propõe a compreender o tempo vivido por essas pessoas, com experiências de viver na rua e em abrigos, na tentativa de possibilitar novos modos de atuação dos profissionais de saúde e áreas afins. Os pressupostos filosóficos da investigação fenomenológica -modalidade do fenômeno situado ¬fundamentam a investigação. Como a experiência é sempre vivida por um sujeito, situado espaço-temporalmente no horizonte da historicidade do seu real vivido, meninas que estavam experienciando o habitar o abrigo por, no mínimo, quatro meses anteriormente ao início da coleta de dado, participaram da investigação. Por meio de entrevistas semi-estruturadas e atividades de colagem, buscamos por um material que nos permitisse compreender as experiências relacionadas ao tempo vivido pelas participantes. Dos resultados submetidos à análise ideográfica, seguida da elaboração de uma matriz nomotética, emergiram duas grandes categorias abertas: ‘modos de habitar’ e ‘modos de se perceber sendo’. Estas revelaram que, diante da exigência originária do ser-ai e da presença em buscar sua realização nos diversos modos de ser-com, as meninas habitam a rua como uma alternativa ao habitar a casa e, finalmente, o abrigo com a esperança de realizarem seus projetos existenciais. Nesse sentido, sinalizam para o abrigo não como um espaço físico, mas como um espaço vivido, onde educadores e educandos estão sendo-uns-com-os-outros. As grandes categorias desvelam a vivência no presente tanto do passado, por intermédio das recordações, lamentos e pesares, assim como do tempo futuro, por meio de ações vislumbrando satisfazer desejos, na esperança da reconstrução da decadência, possibilitando¸ assim, ações éticas baseadas na redimensão da própria existência e no arrependimento. Esta investigação possibilitou perceber, também, que o tempo vivido no abrigo se constitui em uma oportunidade para a atuação de equipe multi e transdisciplinar envolvendo educadores, psicopedagogos, assistentes sociais, psicólogos, enfermeiros, terapeutas ocupacionais, médicos, entre outros. Possibilitou ainda evidenciar a necessidade de uma reconstrução das políticas públicas de atenção às adolescentes que venham a contemplá-las em suas dimensões existenciais.

 

Palavras Chave: Tempo, Percepção, Adolescente, Gestalt – terapia, Existencialismo, Abrigo, Menores de rua


Frente às questões pertinentes à temporalidade retrospectiva e prospectiva, focando a interrogação que revela minha intencionalidade em compreender o modo como as adolescentes que se encontram em abrigos, vivenciam o tempo, formulo a proposta sob minhas perspectivas, visando contemplar os paradigmas da academia:

O tema foi focado no âmbito da região de inquérito da Psicologia, Sociologia e Filosofia. A meta foi apresentar trabalhos que envolvessem adolescentes vivendo em situações de rua e de abrigo, destacando os seus modos de ser; de que forma o pelas adolescentes é compreendido e abordado pela literatura estudada; como têm sido explicitados os modos de viver na rua e no abrigo; tempo, temporalidade e história.

A proposta de investigar, especificamente, as adolescentes relaciona-se ao fato de possuírem singularidades, as quais já foram mencionadas, que fundamentaram a gênese de minha inquietação. Nesse sentido, a situação destas adolescentes apresentou-se a mim como fenômeno, pedindo por um des-velamento. Ao mesmo tempo estava interessada em verificar no doutorado como o gestalt¬terapeuta poderia ser instigado a participar em atividades sociais saindo as quatro paredes de seu consultório.

Assim, para compreender tal fenômeno, optei pela metodologia de investigação fenomenológica, conduzida segundo os pressupostos filosóficos que fundamentam essa modalidade de pesquisa qualitativa. Foram analisadas as convergências, à luz da interrogação, construindo articulações entre autores estudados, as falas dos sujeitos em direção à explicitação do compreendido sobre a questão formulada, sob minhas perspectivas, qual seja, ‘como flui o tempo vivido pelas adolescentes com experiência de viver na rua e em abrigos’.

Para tanto, busquei fundamentos na Psicologia, Sociologia e Filosofia, que sustentassem entendimentos sobre a temporalidade vivida pelos sujeitos pesquisados. Porém, fui à coisa-mesma, às adolescentes que habitam a rua e abrigos para compreender como vivem sua historicidade.

Na psicologia focalizei entre outros, Knobel (1981), que na sua ótica, enfatiza que, tanto frente ao temporal como ao espacial, os pensamentos do adolescente adquirem características particulares. O adolescente vive o tempo em um processo denominado por esse autor de ‘deslocalização temporal’, ou seja, o que é urgente, geralmente é adiado e o que pode ser postergado, é antecipado. Como exemplo, o adolescente acredita ter tempo para estudar, embora o exame seja no dia seguinte; sente-se incompreendido por não ter suas necessidades ‘imediatas’ atendidas pela mãe diante do desejo de ter o vestido para o próximo baile. O passado e o futuro são unidos, então, em um presente voraz e é apenas durante a adolescência que essas dimensões temporais vão sendo discriminadas.

A discriminação temporal de – passado/presente/futuro – surge dos lutos típicos da adolescência – do corpo infantil, do papel e da identidade, dos pais da infância desenvolvendo o que ele denomina de tempo conceitual ou tempo cronológico (KNOBEL, 1981). Surge também dos aspectos vivenciais, relacionados às necessidades corporais ou rítmicas, ou seja, baseado nos atos de comer, defecar, brincar, dormir, estudar, dentre outros. Trata-se do tempo vivencial, experimental ou ainda do tempo rítmico.

Investigar sobre o modo pelo qual se dá esse habitar, na perspectiva de adolescentes, traz consigo a questão da temporalidade vivida. Não se trata de questionar ‘o que é isto, o tempo?’ mas, focar o modo de viver existencialmente na temporalidade e na historicidade do real vivido. Isso significa que não tenho, como tema de investigação, o tempo objetivo, nem o tempo em si, mas modos de viver-se temporalmente, construindo espacialidades e temporalidades.

Nessa perspectiva, busco compreender o tempo concebido e tratado objetivamente, passível de ser entendido em uma seqüência linear, deslocando-me para uma concepção de tempo vivido, envolvendo presente, passado, futuro, em uma totalidade dinâmica. Entretanto, mesmo com esses esclarecimentos, a interrogação motivadora desta investigação permanece buscando modos de espacialização e de temporalização vividos pelas meninas adolescentes que habitam a rua e abrigos.

Santo Agostinho (1987), afirma que não há como negar a existência de três tempos: o pretérito, o presente e o futuro que, em qualquer parte que estiverem, só podem existir no presente. Se fossem pretéritas, já lá não estão e, se futuras, ainda lá não estão. Enquanto pretéritas se fazem existir no presente pela memória que narra não os próprios acontecimentos, mas as palavras concebidas pelas imagens que passaram pelos sentidos. Enquanto futuras, se fazem existir no presente pela premeditação, pelos prognósticos preconcebidos por meio das coisas presentes que já existem e são observadas. Portanto, para Santo Agostinho (1987), torna-se mais apropriado afirmar a existência do: presente das coisas passadas, presente das presentes, presente das futuras [...] lembrança presente das coisas passadas, visão presente das coisas presentes e esperança presente das coisas futuras (p. 222).

Considerado o pai do movimento fenomenológico contemporâneo (HUSSERL, 1994), também se preocupou com os modos de se viver o tempo. A idéia de vincular ao presente a modificação do passado, assim como a idéia de tal modificação como algo contínuo, expostas por Brentano, são conservadas por Husserl, em sua própria descrição da temporalidade. Husserl (1994) afirma que a consciência de uma temporalidade que aparece como a que surge ao se ouvir uma melodia, não seria possível apenas com a consciência de um presente.

Esse mesmo filósofo tentou distinguir entre um tempo percebido e outro sentido, a partir de sua afirmação:

se denominarmos sentido um dado fenomenológico que, através da apreensão, nos torna conscientes de algo objetivo como dado de carne e osso (Leibhaft), a que chamamos então objetivamente percebido, assim temos nós que distinguir também entre um tempo “sentido” e um “tempo percebido”. O último é o tempo objetivo. Contudo, o primeiro, não é ele próprio tempo objetivo (ou posição no tempo objetivo), mas antes o dado fenomenológico através de cuja apercepção empírica se constitui a referência ao tempo objetivo (HUSSERL, 1994, p. 40).

Portanto, para Husserl (1994) o tempo sentido não é aquele percebido objetivamente, mas um dado fenomenológico que a ele se refere. O tempo objetivo pertence à conexão da objetividade da experiência, na qual coisas e acontecimentos, corpos e propriedades físicas, psiques e seus estados psíquicos, têm suas posições determinadas pelo cronômetro; os dados temporais sentidos não são apenas sentidos, mas investidos de caracteres de apreensões a estes relacionados. É pelas vivências temporais (Zeitauffassungen) que o temporal, no sentido objetivo, aparece. Ao se ouvir uma melodia, temos a consciência de um processo sonoro que, sem dúvida, nos mostra uma sucessão, apreensões do tempo que se fundem. Assim, captar um conteúdo tal como ele é vivido não significa captá-lo em um sentido objetivo. Esse filósofo alerta, então, para a duração e sucessão de sensações que sofrem modificações, tal como afirmava. Durante todo o fluxo de consciência, o mesmo som está consciente como duradouro, como agora duradouro, fruto da retenção. O ‘depois’ diz respeito a um tempo ainda na retenção. Husserl prossegue: “o som agora se muda em som-que-foi e a consciência impressional converte-se, em corrente permanente, numa consciência retencional sempre nova”. (HUSSERL, 1994, p. 62).

Para Husserl, a consciência primária do tempo constitui-se na apreensão do momento com suas fases de retenção e protensão. O fragmento decorrido de uma melodia, por exemplo, é fruto da recordação (retenção), mas é também fruto da expectativa antividente (vorblickenden Erwartung). Husserl (1994) salienta:

Por conseguinte, ouço de cada vez apenas a fase atual do som e a objetividade do som total duradouro constitui-se num ato contínuo que é, numa parte recordação, noutra parte pequeníssima, pontual, percepção e, numa outra parte ainda, expectativa (p. 56-57).

Portanto, retoma a psicologia descritiva de seu mestre, Brentano, e avança no sentido de uma psicologia fenomenológica mais originária, dirigida a uma análise fenomenológica da consciência primária do tempo, tal como é percebida nas suas fases de retensão e protensão. Um tempo do mundo da experiência, ou seja, um tempo imanente do curso da consciência.

Minkowski (1965) por seu turno, encontra, em Bergson, reflexões a respeito da aplicação imprópria de noções como quantidade, extensão e espaço à concepção do tempo psíquico, deformando o tempo-qualidade, vivido pelo eu, em tempo-quantidade, representado pelo espaço. A partir dessas observações, esse autor visualiza um horizonte para direcionar suas reflexões que se estendem, de forma original, para um campo de pesquisa envolvendo manifestações psicopatológicas relacionadas às vivências do tempo na experiência dos doentes mentais, principalmente em sua obra; Il tempo vissuto (1965).

No existir cotidiano, independentemente do tempo do relógio, pode-se vivenciar o tempo com ‘velocidades’, intensidades e ‘extensibilidades’, que se diferenciam face às situações e sentimentos que delas decorrem. Instantes vivenciados em sintonia passam rapidamente; os caracterizados pelo tédio decorrem devagar; horas podem ser vivenciadas como minutos e, inversamente, minutos como horas; o passado pode estender-se até o futuro, ou este, até o presente (FORGHIERI, 1993).

Para Minkowski (1965), o presente é um ato de muita complexidade, é um estado da mente, englobando um grupo de fenômenos, incluindo o agora. O ‘devenir’, com suas leis naturais de duração, sucessão e continuidade em relação ao eu, produz o presente que mantém em si mesmo o agora, embora a ele não se restrinja.

Bicudo (2003) também enfatiza que, embora de imediato, o ‘agora’ e o ‘presente’ pareçam semelhantes, são diferentes fenômenos temporais. O agora é pontual, sem duração, enquanto o presente, sendo mais flexível, se expande.

Nesse sentido, prossegue a autora, pode-se ficar no presente, mas não no agora.

Em relação ao modo de viver o passado, esse autor apresenta três categorias – a recordação, o remorso e o pesar – elementos capazes de abrir novamente o caminho para o futuro, se ressignificados.

Para este teórico, o modo de viver o tempo é fundamentalmente orientado para o futuro em razão do fenômeno do ‘élan vital’, que contém, de forma primitiva, a noção de direção do tempo. Mesmo que se reviva o passado, sob forma de memórias, ou se viva no passado, essa é uma questão de reviver ou de viver em. O futuro é vivido de maneira mais direta e imediata, pois a atenção do eu é primariamente direcionada para ele, visando perspectiva ampla e majestosa diante do eu.

Ainda de acordo com esse teórico, o modo de viver o futuro encontra-se relacionado aos seis fenômenos ou categorias do ‘élan vital’ do eu, que permitem viver intencionalmente o tempo: a ‘atividade’ e a ‘espera’, o ‘desejo’ e a ‘esperança’, a ‘prece’ e a ‘ação ética’.

Em estudos de Petrelli (1999) e em Costa e Medeiros (2008), observa-se a tentativa de elaborar uma reflexão teórica sobre cada constitutivo das categorias do tempo vivido, na perspectiva de Minkowski (1965), em uma dimensão mais operacional, por meio de intervenções nos elementos constitutivos do futuro – ‘atividade’ e ‘espera’, ‘desejo’ e ‘esperança’, ‘ação ética’ e a ‘prece’ – proporcionando, ao indivíduo, possibilidades de resgate de sua função de protagonista da própria vida.

Neste percurso, o pensar a respeito da manifestação do tempo no discurso de alguns filósofos encontra-se também em Martin Heidegger, contemporâneo de Minkowski.

Para este filósofo, o cuidado ou a solicitude são orientados para duas categorias temporais. Uma, denominada Einspringende Fürsorge, que, em alemão, significa cuidar do outro, colocando-o no colo, mimando-o, dominando-o, manipulando-o, mesmo que sutilmente, fazendo e assumindo o encargo, que é dele, de cuidar de si mesmo. Outra, denominada Vorspringende-efreieden, cuja tradução é pular em frente ao outro, antecipar-se a ele (ihm vorausspringt), libertando-o diante de suas possibilidades-para-ser. Um modo de cuidar no qual o outro não é protegido, mas convidado a voltar para si mesmo, autenticamente, como pela primeira vez, facilitando-lhe assumir seus próprios caminhos e o encontro consigo mesmo.

Conforme afirma Bicudo (2003), “existimos sempre nesse horizonte histórico, e o que é historicamente primário é o nosso presente”. (p. 80). Presente que engloba um grupo de fenômenos, incluindo o agora e as leis naturais, de duração, sucessão e continuidade.

A presença é, então, sempre lançada ao mundo. Nunca, como afirma Bicudo (2003), sem espaço e tempo, sem contexto histórico. Sempre com os outros e com todas as realizações que já foram presentes. Presença que, para Heidegger (2002):

é sempre o seu passado e não apenas no sentido do passado que sempre arrasta ‘atrás’ de si e, desse modo, possui, como propriedades simplesmente dadas, as experiências passadas que ás vezes agem e influem sobre a presença. Não. A presença ‘é’ o seu passado no modo de seu ser, o que significa, a grosso modo, que elas sempre ‘acontece a partir de seu futuro ( p. 48)

Assim, meu interesse direcionou-se para o acontecer da presença para adolescentes com experiência de habitar o espaço rua e abrigos que, em sua essência, contém também a dimensão da temporalidade, na busca por compreender a historicidade desses sujeitos.

A opção metodológica foi a fenomenológica. Em m defesa de uma ciência descritiva das experiências vividas, de uma ciência não exata, a qual já possui seu modelo na matemática, Edmund Husserl, considerado o pai da fenomenologia contemporânea, busca, por volta dos anos de 1990, pela essência nos diferentes modos do fenômeno mostrar-se, posicionando-se de maneira distinta do psicologismo e naturalismo, conforme afirma Dartigues (1994).

A perspectiva fenomenológica não se dirige aos fatos, entendidos aqui como “ocorrências, realidades objetivas, relações entre objetos e dados empíricos, já disponíveis e apreensíveis pela experiência, observáveis e mensuráveis, no que se distinguem de fenômeno”, mas volta-se aos fenômenos (GARNICA, 1999, p. 113).

Nessa perspectiva, conforme afirmam Martins e Bicudo (1983), “a fenomenologia procura abordar o fenômeno, aquilo que se manifesta a si mesmo, de modo que não o parcializa ou o explica a partir de conceitos prévios, de crenças ou de afirmações sobre o mesmo, enfim, de um referencial teórico” (p. 10).

Ao focar intencionalmente uma pergunta, indagação ou interrogação, o fenômeno se mostra àquele que o interroga. Dessa maneira, não há, segundo o pensar fenomenológico, separação entre sujeito e objeto. Consciência e objeto não são compreendidos como dois polos absolutos e separados; todos os atos humanos são intencionais. A intencionalidade é uma característica fundamental da consciência. Afirmar que toda consciência é ‘consciência de alguma coisa’, significa que a consciência só é consciência se estiver dirigida a algo, (sentido de intentio), correlacionado à consciência que o vivencia. Há aqui um jogo ‘percepção e percebido’ (BICUDO, 2000).

Neste sentido, consciência e fenômeno se entrelaçam em uma correlação de co-originalidade. Esse modo de ver justifica a preocupação central do método fenomenológico em relação à descrição da experiência vivida, expondo a perspectiva sob a qual o fenômeno é percebido.

A análise dos dados baseou-se no proposto por Martins e Bicudo (1989) sobre o ‘Método da Análise Qualitativa do Fenômeno Situado’.Neste percurso, procurei permanecer atenta no que se refere à busca de pluralidades e singularidades das vivências que iam sendo reveladas nos discursos dos sujeitos.A análise dos dados obtidos das descrições me levou à análise ideográfica referente às descrições de cada sujeito, seguida da elaboração de uma matriz nomotética, visando uma compreensão geral das estruturas psicológicas individuais, e indicando, finalmente, os grandes invariantes, também denominados ‘categorias abertas’, conforme sugerem Bicudo (2000) e Martins e Bicudo (1989). A análise ideográfica “refere-se ao emprego de ideogramas, ou seja, de representações de idéias, por meio de símbolos. Efetivamente, trata-se da análise da ideologia que permeia as descrições ingênuas do sujeito” (MARTINS E BICUDO, 1989, p. 100). Por sua vez, a finalidade de se chegar à análise nomotética é a estrutura geral psicológica. Esse empreendimento envolve uma compreensão de diversos casos individuais, como exemplos particulares, em algo mais geral. A estrutura psicológica geral é aquela resultante da compreensão das convergências e das divergências que se mostram nos casos individuais. (MARTINS E BICUDO, 1989, p. 106).

Diante de tais relatos, evidenciou-se, nessa investigação, um outro modo de contribuir para melhor atuação de profissionais da área de saúde, pois, é nesse recomeçar, que alguns deles, como os psicólogos, encontram um terreno fecundo para iniciar novos projetos de atuação. Enquanto gestalt terapeuta e respaldada nos trabalhos de Alvim (2007) e Costa (2008), os quais apresentam a preocupação dessa abordagem com os âmbitos sociais e políticos, polis, entendido aqui como tudo relativo ao social e ao comunitário, corroboro com a proposta de engajamento para ações mais abrangentes, não restritas ao espaço de um consultório psicológico.

Vislumbrei possibilidade de desenvolver atividades profissionalizantes deve assegurar um caráter realmente educativo, baseado na esperança depositada nessa instituição pelas adolescentes no que se refere à construção de seu futuro. Além disso, deve contribuir para o planejamento de ações inter e multidisciplinares, articuladas com a área da saúde, no sentido de prevenir o uso de drogas, garantir acesso à informações sobre sexualidade, desenvolver orientações vocacionais e acreditar na profissionalização dos adolescentes. Tais iniciativas podem colaborar para que eles ressignifiquem o passado, formulem projetos futuros, aprendam a lidar com o tempo da espera e elaborem ações inerentes às grandes tarefas do processo de adolescer. Assim, poderão refletir sobre a própria identidade, a sexualidade, o grupo de amigos, os valores, a experiência e a experimentação de novos papéis, os quais são, para Fierro (1995), aspectos fundamentais das vivências nessa fase da vida.

Nesse sentido, é necessário desvelar, para os educadores, o valor que sintetiza sua tarefa, destacando a relevância de sua obra no horizonte existencial dos moradores de abrigos. As adolescentes, embora não acreditem nas possibilidades de mudanças nas relações com a coordenação, apontam alternativas para o convívio diário. Para elas, muitos conflitos, decorrentes dessas relações, poderiam ser evitados. Entretanto, optam por permanecerem caladas no sentido de evitar brigas e, assim, desistem do diálogo.

É nesse momento que a presença intermediadora de profissionais da saúde, em particular, daqueles, com uma visão humanista existencial. Como afirma Costa (2002), a intersubjetividade, entendida como a capacidade de compreender e tratar o ser humano na sua totalidade existencial, precisa ser desenvolvida na relação educador-educando. Nessa perspectiva, essa autora sinaliza para a possibilidade de, a partir de uma proposta pedagógica fundamentada na Gestalt-pedagogia, estabelecer conexões com as propostas específicas das instituições, relacionando-as aos aspectos psicológicos que envolvem o sentir e as ações. Essa prática engloba conceitos pedagógicos, orientados segundo as idéias teóricas e práticas da Gestaltpsicologia e da Gestalt-terapia. Fundamenta-se, ainda, segundo Burow e Scherrp (1985), nos conceitos da Psicologia Humanista, cujas raízes históricas e espirituais remetem ao Humanismo, à Filosofia Existencial e à Fenomenologia.

Os dados confirmam a necessidade dessa intervenção na medida em que as adolescentes expressam que a convivência com seus pares, com experiências semelhantes, como por exemplo, a maternidade, favorece o relacionamento. Além disso, a presença de filhos desperta, em algumas delas, o desejo de vivenciarem o papel maternal. Sobre isso, destacam que esses aspectos as atraiam e as mantinham vinculadas à instituição.

Na categoria denominada nesse estudo de temporalidade, abrem-se novos horizontes de compreensão ao olhar para meu trabalho como gestalt-terapeuta e professora. Assim, enfatizo a necessidade de trabalhar, com os adolescentes, seus desejos, explorando sonhos, fantasias e imaginações, sempre considerando as especificidades da idade, singularidades da cultura e contexto social de cada um, conforme lembra Petrelli (1999). Resgatar a compreensão da sexualidade, da importância das escolhas relacionadas às amizades masculinas e femininas e a relação com a maternidade são aspectos fundamentais para a vivência da temporalidade. Deste modo, percebo-me capaz de contribuir para além da categoria do futuro imediato, incluindo as dimensões das ações éticas e da prece, resultados da máxima restrospecção no tempo passado e da máxima prospecção no tempo futuro, conforme salienta Petrelli (1999).

Em todas as etapas vividas, elaborar projetos alicerça-se na percepção da própria existência e de que forma o passado, o presente e o futuro se fazem presentes no aqui-e-agora. Esses objetivos nortearam essa pesquisa, possibilitando a análise compreensiva das falas. Agregar o vivido, o percebido e o desejado, principalmente no que se refere à possibilidade de vir a ter uma vida profissional, parece sinalizar para a forma como as adolescentes dessa investigação vivem o tempo. Conectá-los é uma das formas de superar grande parte da problemática do processo de desenvolvimento da adolescência.

Como afirma Costa (2004), contrapondo-se, portanto, à temporalidade mecanicista, cronológica, (kronos), concepção que existe desde os primórdios dos tempos, faz-se necessário configurar a atuação de profissionais em uma perspectiva na qual a temporalidade interna, a do tempo vivido (kairós), seja contemplada O passado, presente e futuro encontram-se integrados no aqui-e-agora. O ser humano é capaz de vivenciar – agora – seu passado e projetar – agora – seu futuro. Somos uma totalidade temporal e, nesse sentido, o profissional de saúde necessita direcionar seu olhar para as retensões e protenções, manifestadas na experiência do sujeito, no aqui-e-agora de sua experiência imediata. Muitas dificuldades relacionais surgem face à imobilização do tempo, o qual, impedido de consumar em seu élan vital, rende-se ao irreversível kronos, perdendo a noção de duração, sucessão e continuidade. Ainda segundo essa autora, o tempo presente pode ser considerado, então, como um convite vindo do futuro para ganharmos os domínios do tempo passado.

Entretanto, é, nas relações que se estabelecem entre educador-educando e profissionais de saúde-adolescentes, que as experiências passadas e futuras se fazem presentes. Todas as situações que não foram resolvidas no passado atuam aqui-e-agora, convertendo-se em direção a uma resignificação pelas habilidades das pessoas envolvidas. No entanto, a habilidade do profissional em reconhecer a atuação do passado no presente depende de uma investigação a respeito de como está se relacionando com o outro, no papel que se dispõe a assumir. O dar-se conta de como o seu próprio passado atua nas relações estabelecidas com as adolescentes sinaliza para um imenso campo de atuação do gestalt-terapeuta. Assim, é necessário que desenvolva consciência de suas sensações, sentimentos, pensamentos e atitudes, em cada encontro mantido. Para Costa (2004), não é o passado que determina o presente, nem esse o futuro, mas é o sentido da trajetória do ser que modifica a significação do passado e do presente.

É preciso, ainda, segundo Costa (2003), que os profissionais, de um modo geral, aprendam a conciliar a generalidade dos conceitos teóricos à singularidade de cada pessoa. Aprender a testemunhar e a identificar os rasgos existenciais da trajetória humana, abrindo possibilidades de costurá-los com sentido. Em uma perspectiva fenomenológica, descrever o que se mostra por si mesmo, permitindo que as vivências apareçam à luz do sentido próprio de cada vida. Evitar pré-conceitos diagnósticos e definições prematuras que comprometam o desvelamento do fenômeno, elementos fundamentais da postura fenomenológica do profissional de saúde, na sua relação com o paciente.

A vida somente pode ser compreendida olhando-se para trás. Mas, só pode ser vivida olhando para frente, como salienta Petrelli (1999).

 

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