MESA REDONDA
12 – PARTE I: ASPECTOS SAUDÁVEIS E NÃO
SAUDÁVEIS DO AJUSTAMENTO EGOTISTA NA INFÂNCIA E NA ADOLESCÊNCIA:
PERSPECTIVAS
ATUAIS
Autor: Cinthia Dutra Struchiner
INTRODUÇÃO
A experiência de um encontro genuíno pressupõe um tipo de contato pleno que se caracteriza pelo interesse e pela disponibilidade entre as pessoas envolvidas. No entanto, todos nós, muito provavelmente, já vivemos a experiência de um encontro com alguém que parece falar apenas para se ouvir, uma pessoa que faz várias perguntas, sem estar interessada realmente nas respostas; e, quando parece estar ouvindo, descobrimos um pouco mais tarde que estava apenas preparando a sua próxima fala. É como se a presença do interlocutor fosse detalhe quase dispensável à sua performance. Existe aqui uma perturbação no contato: uma rigidez na fronteira, que diminui significativamente as possibilidades de troca com o meio. Essa pessoa na verdade, não está interessada na troca, não está interessada em receber coisa alguma; apenas em mostrar aquilo que ela sabe, pensa ou sente.
Essa pessoa está realizando o que em Gestalt-Terapia se chama de “ajustamento egotista”. Nosso objetivo neste trabalho é trazer uma reflexão sobre este mecanismo de evitação de contato, o mais negligenciado pela literatura gestáltica: o ajustamento egotista.
Para compreendermos o conceito gestáltico de “ajustamento”, precisamos primeiro entender a noção de campo organismo/meio, da qual a Gestalt-Terapia se apropriou a partir da Teoria Organísmica e da Teoria de Campo.
O termo “organismo”, em Gestalt-Terapia, refere-se não apenas ao organismo biológico, mas à pessoa como um todo, em seus aspectos psicológicos, sociais, biológicos etc. O organismo é uma totalidade, uma só unidade, que tende naturalmente para o equilíbrio, onde o que ocorre em qualquer uma das partes afeta inexoravelmente o todo. Além disso, esse organismo não pode ser concebido isoladamente, mas sempre como mergulhado em um contexto: ele é sempre parte de um campo organismo/ambiente. Não faz sentido falar de um corpo que respira sem falar do ar, ou falar do caminhar sem falar do chão e da lei da gravidade etc. Pois bem, se o organismo sempre tende à organização, nos importa saber de que forma isso se dá: como organizamos a nossa experiência.
O organismo sobrevive e se desenvolve a partir da interação com o ambiente na fronteira de contato, através da discriminação entre o que é saudável e nutritivo (e, portanto, assimilável), por um lado; e aquilo que é prejudicial, tóxico ou perigoso (e, portanto, rejeitado), por outro lado. Nesse processo de auto-regulação e interação com o mundo, vamos construindo diferentes formas de nos relacionarmos com o meio em busca da satisfação de nossas necessidades. São estas formas de estar no mundo que denominamos de “ajustamentos criativos” (criativos porque envolvem sempre, necessariamente, uma transformação do ambiente e, reciprocamente, uma transformação do organismo), e estes podem se apresentar de maneiras mais ou menos saudáveis.
No funcionamento saudável, os ajustamentos criativos se constituem em favor da expressão e satisfação das necessidades do organismo, mantendo, simultaneamente, uma relação de respeito com o ambiente (tanto social quanto físico). Quando, ao contrário, para satisfazer uma determinada necessidade, o indivíduo precisa sacrificar sua relação com o meio – ou o oposto: para manter a relação com o outro, a pessoa suprime a expressão de suas necessidades – então estamos diante ajustamentos criativos não saudáveis.
É comum precisarmos, em determinados momentos, lançar mão de mecanismos para diminuir a intensidade ou mesmo evitar a realização de um contato pleno e genuíno. Essa pode ser uma saída saudável numa situação em que não é permitida a livre expressão de necessidades, como por exemplo locais de trabalho ou o ambiente escolar (à criança não é permitido expressar livremente a sua raiva gritando com a professora, e pode ser necessário, nesse caso, utilizar-se de artifícios para evitar o contato). Portanto, os mecanismos de evitação de contato não são sempre sinal de um ajustamento criativo não saudável ou disfuncional. Pelo contrário: podemos dizer que todos os mecanismos de evitação de contato são estados temporários adequados do processo de formação e destruição de figuras, na fronteira de contato. Apenas quando perdem seu caráter temporário e sua função espontânea, cristalizando-se como estruturas rígidas, é que podemos falar deles como mecanismos disfuncionais.
Perls, Hefferline e Goodman (1951) identificaram 5 mecanismos de evitação de contato: confluência, introjeção, projeção, retroflexão e egotismo (outros autores desenvolveram mais tarde novos conceitos, como os de deflexão e proflexão).
Se o contato sempre ocorre na fronteira organismo/ambiente, é naturalmente na fronteira também que se observam os mecanismos de evitação. Entretanto, cabe uma distinção: enquanto a introjeção, a projeção e a retroflexão são processos que se desenrolam no palco da fronteira de contato, o egotismo e a confluência se distinguem das outras formas de evitação de contato por se referirem ao “estado” da fronteira.
Vejamos o que isso significa. Em um processo saudável de crescimento e desenvolvimento do organismo no meio, é preciso que a fronteira de contato se mantenha suficientemente permeável, de modo que permita trocas, porém firme o bastante para exercer o seu papel, qual seja, o de limitar o organismo, contê-lo e protegê-lo, ao mesmo tempo em que contata o ambiente (ver Perls, Hefferline e Goodman, 1997, p.43). No caso da confluência, a fronteira é tão tênue que a pessoa se “mistura” ao ambiente, como se a fronteira ficasse tão porosa quanto uma peneira; enquanto no caso do egotismo, ao contrário, a fronteira de contato se enrijece, assemelhando-se mais a uma barreira, onde a troca entre o organismo e o meio fica bastante limitada.
Apesar de o contato organismo/meio ser um processo único na busca da satisfação de uma necessidade emergente, Perls, Hefferline e Goodman (1951/1997) propõem uma divisão didática da seqüência de “fundos/figuras”, o que ficou conhecido como as etapas do ciclo do contato: pré-contato, contato (ou contatando), contato final e pós-contato (ver p.208-209), e podem ser resumidamente descritas assim:
. No pré-contato: surge o apetite – uma necessidade é identificada.
. No contato (ou contatando): o excitamento do apetite torna-se o fundo e algum “objeto” ou conjunto de possibilidades é a figura. Há a escolha e a rejeição de possibilidades, a agressão ao aproximar-se de obstáculos e a superação destes, a orientação e manipulação deliberadas (identificações e alienações do Ego).
. No contato final: a decisão já foi tomada. É o momento de se comprometer e usufruir da escolha.
. No pós-contato: “há uma interação fluida entre organismo/ambiente, que não é uma figura/fundo” (Perls, Hefferline e Goodman, 1951/1997, p.209). Há uma espécie de indiferenciação, quando ocorre a assimilação do novo, a qual favorece o crescimento. Este processo pode ser interrompido a qualquer momento, em qualquer etapa, devido a algum perigo ou a alguma frustração inevitável, fazendo com que o excitamento espontâneo fique sufocado. O resultado disso é a ansiedade. Dependendo da etapa específica em que se dá essa interrupção, aprendemos um hábito neurótico específico -um mecanismo de evitação de contato. Para o nosso objetivo aqui nesse estudo, importa especificamente o tipo de interrupção que ocorre na etapa do contato final.
Segundo Perls, Hefferline e Goodman, “(...) durante o contato final e íntimo, “a deliberação, o sentido de ‘Eu’, desaparece espontaneamente no envolvimento, e então as fronteiras não têm importância, porque contatamos não uma fronteira, mas o contatado, o tocado, o conhecido, o desfrutado, o realizado” (ob. cit., 1997, p.249).
A “entrega” característica da etapa do contato final é magistralmente descrita pelos autores: “Tentemos analisar a absorção do contato final como sentimento (embora tenhamos que nos desculpar por nossa pobreza de linguagem). Ao analisarmos a seqüência do processo de contato, mencionamos a seqüência de motivações (...). Está claro que no processo de ajustamento criativo deve haver tais impulsos ou motivações, que põem em relação [1] a percepção do organismo de si próprio como um ‘eu’ e [2] a novidade ambiental percebida como um ‘Isso’, um objeto a elaborar. Durante a absorção espontânea do contato final, entretanto, não há necessidade de tal motivação, pois não há outras possibilidades; não podemos escolher de outra forma. O sentimento de absorção é ‘esquecido-do-self’ (esquece-se dele); dedica-se completamente a seu objeto; e já que esse objeto preenche o campo inteiro – qualquer outra coisa é experienciada com relação ao interesse do objeto –, o objeto torna-se um ‘Tu’, é aquilo a que nos dirigimos. O ‘Eu’ afunda-se inteiramente em seu sentimento de atenção: falamos de ser ‘todo ouvidos’, ‘todo olhos’; e qualquer ‘Isso’ possível torna-se simplesmente um interesse do ‘Tu’. Empreguemos a palavra ‘interesse’ para esse tipo de sentimento sem self. Comparados com os apetites e as emoções, os interesses têm determinada qualidade estática ou final, pois não são motivações. No lado mais brilhante, a compaixão, o amor, a alegria, a serenidade, a apreciação estética, o insight, etc., são tais estados, em lugar de serem operações de sentimento. (...) De maneira mais soturna, o desespero, o luto etc. são interesses, e podemos agora compreender como estes são terríveis, pois se não há nem Ego nem Tu, o sentimento é como o de um abismo (Perls, Hefferline e Goodman, 1997, p.222).
O AJUSTAMENTO EGOTISTA
Na etapa do contato final, há um relaxamento, um momento de retirada, de renúncia ao controle e à vigilância. Mas pode ocorrer aqui uma interrupção, um impedimento de se abandonar totalmente à experiência. Trata-se de uma parada natural, “uma redução da espontaneidade” em favor de uma “introspecção e circunspecção deliberadas adicionais para se assegurar de que as possibilidades do fundo estão realmente exauridas – não há ameaça de perigo ou surpresa – antes de se comprometer” (Perls, Hefferline e Goodman, 1951/1997, p. 257). Perls, Hefferline e Goodman denominam esse tipo de interrupção de “egotismo”, por se tratar de uma preocupação última com as próprias fronteiras, em vez de com aquilo que é contatado.
Tomemos um exemplo. Imagine que eu quero muito comprar um carro. Dedico grande parte do meu tempo e energia a pesquisar preços, escolher o modelo, a cor, a ponderar se é melhor comprar um carro zero quilômetro ou usado, de que forma eu quero ou posso pagá-lo etc. E imagine que finalmente eu chego a uma escolha. É natural que neste momento, antes do contato final, antes de me comprometer, relaxar e usufruir a minha escolha, eu dê uma parada e me volte para mim mesma (awareness reflexiva) e me pergunte mais uma (última) vez se realmente esta é a melhor escolha. Nesse caso, o egotismo é um momento necessário de preocupação com as próprias fronteiras antes de se comprometer com a assimilação e o crescimento. Segundo Perls, Hefferline e Goodman (1951/1997, p.257), “o egotismo normal é hesitante, cético, arredio, obtuso, mas se compromete” (grifo nosso). Ou seja, para que o contato final ocorra, a espontaneidade deve poder suceder à deliberação: é preciso se permitir relaxar o controle, se soltar e ter a coragem de se comprometer.
Retomando o exemplo da compra do carro, imagine então que eu, no momento da “parada” (quando me questiono se a escolha que fiz de comprar um carro, e de comprar este carro e não outro, é a mais satisfatória para mim), me enredo nas minhas próprias racionalizações e não avanço. Perco a capacidade de abrir mão do controle sobre a experiência e de me comprometer com a decisão de comprar – ou de não comprar – o carro. Quando há uma fixação nesse processo, nesse comportamento controlado e deliberado, pode-se falar de egotismo como um mecanismo neurótico. Perde-se a fluidez necessária ao contato saudável, passando a existir uma espécie de “confluência com a awareness deliberada” (Perls, Hefferline e Goodman, 1951/1997, p.257).
O egotismo é, sem dúvida, dos mecanismos de evitação de contato o menos explorado na literatura gestáltica. Robine (2006, p.131) sugere que este conceito, introduzido por Goodman, não tenha sido bem aceito pelos gestalt-terapeutas, sem, no entanto, se alongar sobre os possíveis motivos para tal rejeição. A minha opinião pessoal é a de que isto pode se dever a uma opção por não enfrentar o aparente paradoxo que envolve o termo "egotismo", pois se os mecanismos neuróticos de evitação de contato se referem sempre a perda das funções de ego, como explicar o "excesso" da função ego no caso deste ajustamento específico? Além disso, o encontro com o cliente predominantemente egotista pode suscitar no terapeuta, conforme veremos adiante, sensações especialmente desconfortáveis, o que talvez contribua, em maior ou menor grau, para o pouco interesse teórico sobre o tema.
No verbete
“Egotismo” do “Dicionário de Gestalt-Terapia (Gestaltês)”,
a autora afirma que Robine (2006) “aponta para um paradoxo quando Goodman
refere-se ao egotismo como perdas das funções do ego e, no entanto,
define-o como um ‘excesso’ de ego” (D’Acry, 2007, p.
81). Nossa compreensão, entretanto, é a de que Robine apenas alerta
para o fato de que o conceito de egotismo “pode parecer um pouco paradoxal”
[grifo nosso] (Robine, 2006, p.131), levantando a questão sobre se, afinal,
trata-se de “excesso ou perda das funções de ego”
(id.). O autor continua logo adiante, mostrando que o paradoxo é apenas
aparente, ao explicar que o que acontece no egotismo é que “o controle
não é controlado”. Diz ele: “Excesso de ego envolvido
nessa fase do self, certamente, mas sem que o ego possa optar por terminar seu
controle. O controle está fora de controle. Excesso e perda da função
ego” (Robine, 2006, p. 131-2). Portanto, a diferença no caso do
egotismo, em comparação com os outros ajustamentos neuróticos,
é que a perda das funções do ego (especificamente: o controle)
se dá não em relação à sua atuação
no ambiente, mas sim em relação a si mesmo (e isso acontece porque,
na verdade, essa função de controle não está sendo
exercida pela função ego do self, mas pela inibição
reprimida)18.
18 Ver o Capítulo 7 – Ajustamentos Neuróticos, em especial os subítens “Teoria da inibição reprimida: figura e fundo da neurose” e “A neurose como perda das funções de ego (para a fisiologia secundária)”, do livro Fenomenologia e Gestalt-Terapia (Granzotto e Granzotto, 2007).
O AJUSTAMENTO EGOTISTA NA INFÂNCIA E NA ADOLESCÊNCIA -ASPECTOS SAUDÁVEIS
Perls, Hefferline e Goodman (1951/1997) nos informam que, não obstante a possibilidade de se fixar como um mecanismo neurótico, o egotismo é saudável e mesmo “indispensável em todo processo de complexidade elaborada e de maturação prolongada” (p.257). Para compreender tal afirmação, basta pensarmos no próprio desenvolvimento infantil. Por volta dos 2-3 anos de idade, a criança passa por um período de individuação em seu desenvolvimento, que pode ser visto como um egotismo primário, com um exagero das características de onipotência e auto-referência. Esta é uma etapa fundamental para o reconhecimento do EU separado do OUTRO. É neste período que se criam as bases para a aquisição do auto-suporte, da autoconfiança e do sentimento de auto-estima. A mesma criança que, em um momento está totalmente absorvida no contato, na satisfação de uma necessidade, num outro momento está totalmente fechada à troca com o meio (“é meu!”, “eu que faço“, “você não sabe” etc.). E isso é saudável. Há fluidez e não fixação.
De forma
semelhante, é importante também para o adolescente discriminar
suas próprias necessidades e deliberar em favor de satisfazê-las,
podendo estar mais centrado em si mesmo e escolher de forma consciente o que
quer e o que não quer absorver em suas trocas com o meio, inclusive em
sua relação com a família e com seus pares.
Durante a adolescência, ocorre um gradual afastamento do núcleo familiar e a inserção no mundo adulto. É consenso geral que nesse período o indivíduo vive novamente um excesso de onipotência e auto-referência. Paralelamente, o desempenho de papéis sociais começa a ganhar muita importância e, à medida que os vínculos sociais vão se estabelecendo, um conjunto de características vai sendo valorizado – muito especialmente, as características avaliadas como necessárias para ser aceito pelo grupo, sendo, portanto, fundamental que o adolescente não perca a capacidade de discriminar entre o que lhe é nutritivo e o que lhe é prejudicial. Neste cenário, mais uma vez o egotismo se configura como um mecanismo muito importante para o fortalecimento do auto-suporte, para que o adolescente consiga “bancar” as escolhas que julgar serem as melhores para si, ainda que sejam diferentes das do grupo. Portanto, o egotismo pode ser uma etapa necessária e até desejável ao longo do desenvolvimento humano.
O AJUSTAMENTO EGOTISTA -ASPECTOS NÃO-SAUDÁVEIS
Mas se o ajustamento egotista se cristaliza e vira um padrão de funcionamento rígido, é como se alguém se alimentasse de um único tipo de comida: por mais saudável que possa parecer, não é possível que seja a mais adequada a todas as situações, e certamente essa “dieta” vai acarretar algum problema nutricional. É nesses casos que o ajustamento criativo, inicialmente proveitoso para o organismo, torna-se algo não-saudável e disfuncional.
Segundo
Robine (2006), o problema desse controle é quando ele não é
controlado (ver p.131). A pessoa se isola do ambiente para tentar se proteger
das surpresas, do incontrolável, em uma palavra: dos riscos. O ambiente
deixa de ser uma fonte de nutrição e trocas possíveis e
passa a ser algo a ser dominado: o foco do egotista não é mais
contatar para crescer, mas conhecer para controlar. A pessoa se coloca numa
posição do tipo: “nada que venha do ambiente me serve”,
e vive constantemente isolada: não existe mais um Tu com o qual se encontrar,
e suas relações se estabelecem na base do “Eu-Isso”,
descrito por Martin Buber. Como o processo do self é obstruído,
o contato não finaliza e não se obtém a satisfação
no meio, mas em si mesmo. A satisfação parcial possível
do estilo egotista, portanto, está na vaidade, na autonomia e na auto-suficiência.
O CLIENTE PREDOMINANTEMENTE EGOTISTA
É saudável também, em determinada fase do processo terapêutico, que o cliente desacostumado a discriminar suas próprias necessidades e deliberar em favor de satisfazê-las, possa estar mais centrado em si mesmo e escolher de forma mais consciente o que quer e o que não quer absorver em suas trocas com o meio, inclusive em sua relação com o terapeuta. Portanto, o egotismo pode ser uma etapa necessária e até desejável no processo terapêutico, uma etapa de fortalecimento do auto-suporte, em direção a um hetero-suporte saudável.
Entretanto, quando um cliente que se ajusta de forma predominantemente egotista chega à clínica, encontramos alguém que se perde em abstrações infindáveis, explicações e argumentos muito bem construídos que abarcam todos os assuntos, num controle “perfeito” de tudo (Granzotto e Granzotto, 2004). O cliente está fixado no “falar sobre”, construindo um mundo inteiro fictício (racionalizado) que substitui o contato verdadeiro (vivo). Assim, o cliente de estilo egotista não traz para o consultório experiências, traz “problemas” – já equacionados – uma vez que não “vive” sua vida: “pensa” sobre ela. Esta postura poderia nos levar a questionar para que, afinal, ele precisa de nós, terapeutas. E para que ele busca a psicoterapia?
Granzotto e Granzotto (2007) nos ensinam que, quando chegam à clínica, os nossos clientes neuróticos (ou -como têm preferido os autores -aqueles que fazem ajustamentos evitativos) dirigem ao terapeuta uma espécie de apelo (de forma mais ou menos explícita). E esse apelo pode ser identificado a partir daquilo que é suscitado em nós como reação ao ajustamento evitativo presente na situação (ver: Granzotto e Granzotto, 2007, p 317). O cliente que se ajusta de forma predominantemente egotista nos tenta transformar em “fãs” ou “ admiradores” em quem encontrem confirmação das múltiplas formas de controle das suas vidas, de modo a continuarem adiando a realização do contato final.
O que nos permite escapar dessa implicação é a nossa forma gestáltica de olhar o campo. Uma vez que não vemos o indivíduo como um problema a ser resolvido, não assumimos uma postura assimétrica de quem detém o conhecimento de métodos ou técnicas que solucionariam suas questões. A onipotência do terapeuta na relação com esse cliente poderia estabelecer um modelo de competição que acabaria por reforçar o isolamento dele, ou, por outro lado, nos faria assumir, no final do “embate”, o papel que ele reserva para todas as pessoas em sua vida: o de mero coadjuvante (ou “fã”), que na verdade não tem nada de “útil” para lhe oferecer. Mas o nosso olhar gestáltico sobre o cliente nos permite estabelecer a relação sobre outros pilares: sabemos que o nosso objetivo não é resolver problemas, mas sim buscar a possibilidade de ajudá-lo a experienciar “como” ele vive a sua vida – e não “por que” o faz desta ou daquela maneira – e quais são as conseqüências disso para ele. E sabemos também que, ainda que o cliente nos requisite a assumir determinados papéis no desempenho de seus ajustamentos evitativos, nossa função terapêutica é frustrar essa tentativa de interrupção.
O papel da psicoterapia é ajudar o cliente a reestabelecer o fluxo do processo de contato, a elasticidade da formação figura/fundo. Para isso, o fundamental é ajudar o cliente a endereçar a si próprio questões como: “Onde eu começo a me impedir?”, “O que estou tentando evitar”, “Como tento evitar?”.
CASO CLÍNICO
Letícia, uma adolescente de 15 anos, costuma trazer suas questões para terapia da seguinte maneira: “O meu problema com relação ao fulano não tem jeito. Olha só: eu tenho duas opções: se eu fizer isso (...) ele vai dizer isso (...) e aí eu vou ficar chateada. Se eu fizer aquilo (...), ele vai se sentir assim (...) e não vai mais querer falar comigo. Conclusão: não tem jeito!”. Qualquer “sugestão” que as pessoas ao seu redor costumam lhe oferecer é sempre recebida com argumentos do tipo: “não, eu já pensei nisso, e sei que não daria certo porque (... blá, blá, blá...)”, ou: “não, você está dizendo isso porque não conhece ele como eu conheço” e outras tantas formas possíveis de mostrar que nada que venha do outro pode ser de qualquer utilidade para ela. É fácil perceber o que acontece nas suas relações. Algo característico da fronteira de contato desaparece: justamente o intercâmbio organismo/meio, que faz com que o contato se processe. O olhar do outro, a voz do outro, a opinião do outro são bloqueados; o foco permanece apenas sobre as suas próprias ações, pensamentos e sentimentos, de forma que ela se fixa na posição de sustentar suas “razões” acima que qualquer coisa.
Essa cliente tem uma história de isolamento e desconfiança em relação aos outros desde a infância. Ainda criança, ela chega ao consultório com a queixa (dos pais) de que ela não consegue se relacionar com as outras crianças na escola porque tem muito ciúme das suas coisas, não empresta nada para minguém, não aceita as opiniões dos outros e é muito “fechada”. Esse termo se referia, conforme eu verifiquei com os pais, ao fato de ela não ter amigos (o que pode ser entendido como isolamento), e a uma timidez excessiva, que fazia com que muitas pessoas jamais a tivessem visto sorrindo.
Ela era uma menina bem gordinha e, como é comum acontecer nessa idade, era discriminada por isso. A família, em vez de ajudá-la a desenvolver recursos para enfrentar a situação, enfatizava as qualidades dela, minimizando a importância da aceitação do grupo (“não liga, deixa pra lá, finge que não ouve, você tem outras qualidades”... coisas desse tipo). Ela foi abrindo mão de encontrar a satisfação e realizar o contato final com o ambiente e se voltando cada vez mais para si mesma. Ela era uma menina bem gordinha, meio “emburrada”, incapaz de dar “bom dia”, ou mesmo um leve sorriso ao cruzar com alguém (conhecido ou desconhecido) pela rua. Quando a mãe dizia que ela podia parecer mal-educada, ela sempre respondia que não tinha que sorrir para agradar ninguém e que os outros que a aceitassem como ela era. Ao longo de quase dois anos de terapia, conseguimos construir uma relação de muitas trocas significativas, e ela chegou a flexibilizar alguns de seus padrões de relacionamento com os colegas, embora dissesse que não se importava muito com o isolamento.
Quando havia alguma discordância com algum amigo, ela freqüentemente “descartava” a pessoa: “Quem não me aceita como eu sou não serve para ser meu amigo”. Nessa época, sua grande satisfação vinha através da sua competência intelectual, sempre destacada na turma.
Aos 11 anos, Letícia abandonou a terapia. Embora os pais tenham alegado dificuldades financeiras, estava claro que ela tinha atingido um grau de equilíbrio que lhe era satisfatório naquele momento. Aos 14 anos ela retorna, com uma configuração diferente: a chegada da adolescência havia trazido novas necessidades e a competência intelectual já não lhe dava mais satisfação suficiente. Se antes ela não se importava com a precariedade das suas relações de amizade, agora ela se importava – e muito – com a rejeição dos meninos. Determinada, ela perdeu mais de 10 quilos e passou a ser também, além de a mais inteligente, a menina mais bonita da turma. Ainda não era suficiente. Ela começou exercitar seu poder de sedução, estabelecendo uma espécie de comportamento recursivo: se interessa por um menino, se aproxima dele sempre através de uma conversa interessante e envolvente, em pouco tempo o menino já faz declarações de amor, ela “fica” com ele, e poucos dias depois, já totalmente desinteressada (e o menino totalmente apaixonado), ela já começa a articular seus contatos para atrair o próximo “alvo”. Sua energia, então, se divide entre conquistar esse novo alvo e manter a legião de fãs que, fiéis, continuam suplicando sua atenção. O tom utilizado aqui nessa descrição pode parecer um tanto jocoso, mas ela mesma usa expressões do tipo: “colocar o fulano na prateleira”, “mantê-lo por perto” etc., além de ter toda uma explicação já preparada sobre o quanto isso tudo é, em grande parte, uma “compensação” pelo fato de ela ter sido gorda e por esse motivo ter ficado “encalhada por tanto tempo”.
Letícia tem uma auto-imagem tão grandiosa (reforçada por essas experiências de conquista sempre bem-sucedidas), que de fato não lhe importa muito quem é esse outro no encontro. Ela não se permite, na realidade, se encontrar com ninguém, apenas com ela mesma e sua infindável necessidade de ser admirada, sem se permitir, no entanto, amar e ser amada de fato por outra pessoa. Ela não se compromete. O contato final não se realiza.
Em um de nossos encontros, Letícia me brindou com uma metáfora bastante elucidativa do funcionamento egotista. Falávamos sobre as suas possibilidades de iniciar um namoro com determinado colega de escola, e enquanto ela tentava imaginar o que ela deveria fazer e/ou dizer para garantir que tal garoto iria propor namoro, eu buscava intervir questionando a capacidade que ela julgava ter de prever e controlar os desejos e movimentos das outras pessoas. Foi nesse momento que travamos este diálogo:
L: -Seria tão bom se a vida fosse assim como um jogo de xadrez, né?
T: -Não sei... Como seria?
L: -No xadrez, as peças só podem fazer determinados movimentos, não é? Então... Ele seria o rei e eu a rainha. O rei só pode andar uma casinha de cada vez, mas a rainha pode andar quantas quiser. E se a rainha cerca o rei, ela ganha.
T: -Sim, mas aí o jogo acaba.
L: -Não faz mal. Eu ganhei.
T: -Você quer se relacionar ou competir com ele?
L: -Hummm.... (pausa). Não, não seria uma competição entre mim e ele. Você lembra o que eu disse? Não seria eu contra ele no xadrez. Ele seria só uma das peças. Na verdade, seria eu contra mim mesma. Se fosse uma competição, se ele fosse o outro jogador, eu correria o risco de perder... Mas assim não: na pior das hipóteses, se eu perder, quem ganhou fui eu!
É possível que o caminho seja ajudá-la a se dar conta do que está tentando evitar e do que, de fato, está perdendo. Ao tentar evitar o contato, a entrega do encontro e o risco de um possível abandono, impede o desenvolvimento espontâneo das suas relações. Obtém uma satisfação apenas parcial na vaidade e no poder. Mas perde toda a riqueza e a vivacidade da experiência do contato final.
A respeito
do egotismo, Robine (2006) acrescenta que :
“Ele será manifesto e de grande amplitude nos indivíduos
que apresentam perturbações
narcisistas de sua experiência. Ansiosos diante do soltar-se, ansiosos
diante da perda do controle,
ansiosos ao se abrirem para o outro, ansiosos diante de uma possível
aniquilação no Nós do encontro, ou ansiosos diante de um
possível abandono posterior, tais indivíduos se isolam do ambiente
e o reduzem a conhecimentos que possam ampliar seu controle e seu poder”
(p.132).
Segundo Spangenberg (2006), “considerar nossa maravilhosa fragilidade – portal para nossa humanidade – como uma deficiência ou uma falta, é um dos introjetos fundamentais nesses pacientes”. E ele segue fazendo uma descrição da atuação dos outros mecanismos de evitação de contato no estilo egotista:
“Apesar de parecerem não utilizar a retroflexão, pois sempre culminam suas ações dirigindo sua energia para o meio – ou para dizer de forma mais apropriada – ao objetivo que traçaram, retrofletem suas mais íntimas necessidades para não se sentirem expostos em sua vulnerabilidade. Não são confluentes mais do que como uma concessão momentânea na busca de suas metas. Projetam suas fragilidades nos outros com a mesma atitude impiedosa com a qual se relacionam – nessa área – consigo mesmos. O egotista sente como uma ameaça terrível mostrar seu ‘lado incompetente’ e cada vez se apóia mais em suas habilidades, centrando seu mundo de relações na competência e na luta pelo poder. (...) Alguns (...), aferrados até o final às suas ‘razões’, se despedem da vida sem jamais terem-se deixado tocar pela ternura e pelo amor” (p.65).
No caso de Letícia, a retroflexão básica parece ser a da necessidade de receber amor: é mais seguro voltar essa necessidade para si mesma, desenvolvendo uma postura narcisista, do que arriscar dirigi-la ao outro19 .
19
De fato, Robine considera que o egotismo seja um tipo específico de retroflexão,
pois corresponde a uma das definições oferecidas por Perls, Hefferline
e Goodman para a mesma: “Qualquer ato de autocontrole deliberado durante
um envolvimento difícil é uma retroflexão” (1951,
apud Robine, 2006, p.132).
Na relação terapêutica com o cliente de estilo egotista, experimentamos uma dificuldade de perceber claramente qual o nosso lugar e corremos o risco de julgá¬los egoístas20 e “‘atuar’ na sessão o que certamente fora dela as pessoas que convivem com ele devem fazer: expulsá-lo de suas vidas” (Spangenberg, 2006, p. 80). Ou, pelo contrário, o terapeuta pode se sentir intimidado e acabar projetando sobre o cliente suas próprias necessidades de aprovação, caindo na armadilha dos círculos de racionalização do cliente, que terminam sempre no mesmo lugar: ele tem razão. Conforme Spangenberg, “em ambos os casos a terapia fica inutilizada” (Spangenberg, 2006, p. 80). Compartilho da opinião desse autor de que as barreiras construídas pela pessoa predominantemente egotista, a soberba e arrogância com que lidam com os outros, produzem tanto rechaço social que fica difícil perceber a fragilidade e o medo da exposição que escondem. Se estivermos atentos a isso, e se mantivermos o foco no “como” o cliente constrói seus vínculos, e nas conseqüências que isso traz para ele, teremos chance de ajudá-lo. Se ele permitir.
20
Cabe aqui uma breve distinção entre “egoísmo”
e “egotismo”. Egoísmo é um atributo, um juízo
(negativo) a respeito da conduta de alguém. Egotismo é uma forma
de ajustamento criativo que, conforme já vimos, pode ser mais ou menos
saudável.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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ROBINE, J-M. (2006). O Self Desdobrado: perspectiva de campo em Gestalt-terapia. São Paulo: Summus.
SPANGENBERG,
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