MINI-CURSO 13: A CLÍNICA DO SOFRIMENTO ÉTICO POLÍTICO COMO UMA PROPOSTA DE INTERVENÇÃO PARA A CLÍNICA AMPLIADA NA ATENÇÃO BÁSICA DO SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE – SUS

 

Autor: Ângela Maria Silva Hoepfner


RESUMO

Após sofrer duramente com o regime da ditadura militar, o Brasil nos anos 80 passou a viver transformações que trouxeram grandes implicações sociais. O debate político na área da saúde nesta época foi favorecido e culminou, através da atuação dos sanitaristas, na Constituição Federal em 1988, com um capítulo inteiro dedicado à saúde, o que promoveu mudanças objetivas do sistema com a implantação do Sistema Único de Saúde – SUS. Baseado nos estudos realizados em Gestalt Terapia pelo casal Muller-Grazotto (2007) no Instituto com o mesmo nome (Florianópolis-SC) o presente trabalho tem por objetivo apresentar a clínica2 do sofrimento ético-político, compreendido como um ajustamento criativo do self frente à ausência de dados: as intersubjetividades dos sujeitos são permeadas por vivências caracterizadas como de privação, ou seja, àquelas em que eventos de exclusão social/econômica e/ou situações de luto impossibilitam o livre fluir do self, comprometendo o desenvolvimento da função personalidade. No trabalho como psicóloga na saúde mental na Atenção Básica do SUS, no município de Joinville-SC, há muito se tem constatado estas características em muitas das pessoas que são encaminhadas para o atendimento em saúde mental o que motivou a criação do Projeto de Intervenção denominado Oficina de Cidadania e Inclusão Social – “CINS”, desenvolvido desde 2006. Sendo assim têm-se como propósito, no âmbito do trabalho, contribuir na construção de conhecimento da Gestalt Terapia nesta realidade social.


2 - As clínicas em Gestalt Terapia são compreendidas como formas de intervenções específicas de acordo com cada modalidade de ajustamento do self tais como: ajustamento de busca nas psicoses, de evitação nas neuroses e de privação nos sofrimentos ético¬políticos.

 

Palavras-chaves: Gestalt Terapia – clínica – sofrimento ético-político – saúde mental – PNH – SUS.

 

1. INTRODUÇÃO

Desde 1976 que vêm sendo discutidas, internacionalmente, teorias que sustentem a ação e práticas eficazes de intervenção sobre os determinantes de saúde, compreendidos hoje como dependentes dos fatores biológicos, mas estreitamente relacionados com fatores ambientais (físicos, econômicos e sociais), comportamentais e aqueles próprios das políticas públicas de saúde. Neste processo, em 1986 realizou-se no Canadá a I Conferência Internacional sobre Promoção de Saúde, onde foram estabelecidas as bases conceituais da promoçãode saúde, definidas num documento que passou a ser chamado de Carta de Otawa gerando uma série de conferências mundiais sobre o tema.

Segundo este documento a saúde é o maior recurso para o desenvolvimento social, econômico e pessoal de uma nação, assim como importante dimensão da qualidade de vida, sendo que fatores políticos, econômicos, sociais, culturais, ambientais, comportamentais e biológicos podem tanto favorecer como prejudicar a saúde.

São apontados pela Carta requisitos e perspectivas tais como: ação coordenada entre todos os setores da sociedade, recursos habitacionais, educação, renda, alimentação, eco-sistema estável, justiça e equidade social. Na promoção da saúde preconiza a defesa da causa da saúde, capacitação individual e social para a saúde, mediação entre os diversos setores envolvidos, elaboração e implementação de políticas saudáveis, criação de ambientes favoráveis à saúde, reforço da ação comunitária, desenvolvimento de habilidades pessoais, reorientação dos sistemas e serviços de saúde. A gestão social integrada com as ações intersetoriais deve considerar como prioridade absoluta a inserção destas prioridades, como base para a implementação das ações e promoção da saúde.

No Brasil durante os anos 80 a crise política-econômica internacional e nacional favoreceu o debate político na área da saúde culminando, através da atuação dos sanitaristas, na Constituição Federal em 1988, com um capítulo inteiro dedicado à saúde, o que promoveu mudanças objetivas do sistema. O artigo 4º da Lei Federal 8.080 define o Sistema Único de Saúde – SUS como o conjunto de ações e serviços de saúde prestados à população por órgãos e instituições públicas das três esferas de governo, baseado na promoção, proteção e recuperação da saúde. Na década de 90 teve início o processo de mudança do sistema de saúde brasileiro, com o desafio da descentralização político administrativo ao mesmo tempo em que apontar: a desigualdade social, as características do federalismo, o modelo médico-assistencial privatista, o fortalecimento das idéias neo-liberais, a ausência de mecanismos cooperativos, conflitos nos campos de definição de responsabilidades e estabelecimento de relações entre gestores como atores fundamentais no campo da saúde.

Assim, o Sistema Único de Saúde – SUS, estabeleceu as bases para um novo modelo de gestão da saúde publica no país, tendo como principio fundamental a municilpalização dos serviços, rumo oposto à centralização imposta pelo antigo Instituto Nacional de Assistência Medica e Previdencia Social – INAMPS (modelo gestado nos tempos da ditadura militar, esgotado na passagem dos anos 70 para os 80). A descentralização é a primeira grande meta colocada pelo SUS, visando aproximar os serviços de saúde da população. Os aparelhos de saúde pública, que antes eram controlados pelo Governo Federal, passam a ser, gradativamente, municipalizados, financiados através das verbas advindas do repasse dos impostos federais, acompanhadas por dispositivos democráticos de controle. Tem como principio a tarefa dos municípios assumirem a gestão da saúde pública, através da habilitação junto ao SUS, em dois níveis de acordo com a sua realidade. Mas a questão não se resume apenas em assumir simplesmente a gestão, trata-se de mudar o modelo, isto é, mudar a relação dos prestadores de serviço com a população investindo em promoção de saúde, em prevenção e nas ações de atenção básica à saúde, não sendo mais possível continuar no modelo de saúde curativo e hospitalocêntrico.

Nos anos 90 as Normas Operacionais Básicas passam a representar instrumentos fundamentais para a concretização da diretriz de descentralização estabelecida na constituição e na legislação do SUS, tratando dos aspectos de divisão de responsabilidades entre gestores, critérios de transferências de recursos federais para estados e municípios, e organização dos sistema de saúde. Dentre as normas estabelecidas está o Controle Social realizado através dos Conselhos Municipais de Saúde e das Conferências Municipais de Saúde. Os Conselhos existem nos diversos níveis da gestão pública – federal, estadual e municipal -, são paritários e têm poder deliberativo; sua composição compreende metade por usuários da saúde pública, eleitos pela população e metade por representantes governamentais, prestadores de serviços e trabalhadores da saúde. É um sistema que tenta garantir transparência e participação pública na gestão da saúde.

Se podemos, por um lado, apontar avanços na descentralização e na regionalização da atenção e da gestão da saúde, com ampliação dos níveis de universalidade, eqüidade, integralidade e controle social, por outro, a fragmentação e a verticalização dos processos de trabalho esgarçam as relações entre os diferentes profissionais da saúde e entre estes e os usuários; o trabalho em equipe, assim como o preparo para lidar com as dimensões sociais e subjetivas presentes nas práticas de atenção, fica fragilizado. (Ministério da Saúde, 2004)

A partir disto, surgem inúmeros debates sobre os modelos de gestão e de atenção, aliados aos modelos de formação dos profissionais de saúde e aos modos com que o controle social é exercido. Têm como propósito garantir o direito constitucional à saúde para todos, com profissionais comprometidos com a ética da saúde e com a defesa da vida. Surge então em meados de 2003 a Política Nacional de Humanização – PNH, sendo que intencionalmente, não há uma portaria que a institui. Por um lado é uma “política” no sentido de i) ser uma orientação para as práticas de atenção e gestão do/no SUS e ii) dar diretrizes, respeitando as diversidades e especificidades de cada local; por outro é “humanização” porque i) se propõem a valorizar os diferentes sujeitos que se inserem no processo de produção de saúde, ii) porque aposta na autonomia, potência e saberes destes diferentes sujeitos para a transformação da realidade e iii) porque propõem a inclusão de todos nos processos de mudança. Assim, o sentido de humanização refere-se i) ao estabelecimento de grupalidades, de vínculos solidários e aposta no trabalho coletivo e na formação em redes; ii) à mudança dos modelos de atenção e de gestão; iii) à aposta na relação existente entre a transformação das práticas e a transformação das relações estabelecidas entre sujeitos e grupos (mudança de atitudes/subjetividades).

Desta forma, a Política Nacional de Humanização -PNH é caracterizada como uma estratégia de fortalecimento do Sistema Público de Saúde, criada pelo Ministério da Saúde com o propósito de ser uma oferta de mudança, com potência de transformar o SUS e de aproximá-lo, enquanto prática social, a suas exigências discursivas. A Humanização deve ser vista então como uma das dimensões fundamentais do SUS, não podendo ser entendida como um “programa” a mais a ser aplicado aos diversos serviços de saúde, mas como uma política que opere transversalmente em toda a rede SUS.

A humanização da assistência abre, assim, questões fundamentais que podem orientar a construção das políticas em saúde. Humanizar é, então, ofertar atendimento de qualidade articulando os avanços tecnológicos com acolhimento, com melhoria dos ambientes de cuidado e das condições de trabalho dos profissionais. (Ministério da Saúde, 2004).

O método utilizado pela PNH no seu processo de transformação das práticas nos processos de produção de saúde, dos diferentes agentes implicados é o da “Tríplice Inclusão”: trabalhadores, gestores e usuários são atravessados pelos analisadores sociais, isto é os fenômenos. Neste processo há uma versão social e uma versão subjetiva: a primeira refere-se à inclusão de coletivos a partir dos movimentos sociais (Movimento da Reforma Psiquiátrica) enquanto a segunda relaciona-se aos movimentos que alteram a sensibilidade, a percepção, os afetos (a compreensão e incorporação, nas práticas profissionais da saúde, das diferenças culturais, religiosas, étnicas, de gênero, de geratividade/idade e de classe social dos usuários em uma determinada comunidade).

A valorização dos fenômenos têm como propósito a desestabilização dos modelos tradicionais de atenção e de gestão (tensionamentos/ desconfortos produzidos a partir da inclusão de sujeitos e coletivos –os analisadores sociais nos processos de trabalho). Realizam a análise coletiva dos acontecimentos, fatos e fenômenos e podem fornecer subsídios para uma melhor compreensão dos limites de um determinado modelo de atenção à saúde.

É uma estratégia de interferência no processo de produção de saúde, levando-se em conta que sujeitos sociais, quando mobilizados, são capazes de transformar realidades transformando-se a si próprios nesse mesmo processo. Trata-se, então, de investir na produção de um novo tipo de interação entre os sujeitos que constituem os sistemas de saúde e deles usufruem, acolhendo tais atores e fomentando seu protagonismo.

A PNH se orienta por diretrizes que apontam para jeitos de colocar os princípios em ação e possui dispositivos que são pautados em conceitos-experiência – são postos a funcionar nas práticas de produção de saúde, envolvendo coletivos e visando promover mudanças nos modelos de atenção e de gestão para reafirmar os princípios do SUS. Estes são um conjunto de forças que acionam mudanças nas relações de poder, saber e subjetivação e neste sentido para o presente estudo a diretriz da Clínica Ampliada é o nosso foco, assim como o dispositivo do Projeto Terapêutico Singular e Projeto de Saúde Coletiva.

O Ministério da Saúde, através da Política Nacional de Humanização da Gestão e da Atenção – PNH, tem tentado garantir e efetivar o SUS através da mudança dos modos de fazer, dos modelos de atenção e gestão da saúde, com a valorização dos diferentes sujeitos -usuários, trabalhadores e gestores -implicados neste processo através dos analisadores sociais. Sendo assim compreende a clínica como uma atividade comum a todos os profissionais da saúde e a proposta da Clínica Ampliada surge na contramão das práticas tradicionalmente de redução dos sujeitos, com recortes diagnósticos ou burocráticos. Tem como proposta ser um instrumento para que os trabalhadores e gestores de saúde possam enxergar e atuar na clínica para além dos pedaços fragmentados, ao mesmo tempo reconhecendo e utilizando seu potencial de saberes relacionando-se com os sujeitos enquanto protagonistas do seu projeto terapêutico.

A clínica ampliada é um compromisso ético e radical com o sujeito doente, visto de modo singular em suas diferenças. Cabe então aos profissionais da saúde, inclusive o psicólogo, trabalhar em equipe para lidar com a complexidade dos Sujeitos e a multiplicidade de fatores envolvidos no processo do adoecer.

Uma das formas de adoecer, dentre as mais variadas, é o adoecer psíquico e para a Gestalt Terapia o sofrimento ético-político é um deles. No trabalho como psicóloga na saúde mental na Atenção Básica do Sistema Único de Saúde – SUS tem-se constatado que as pessoas encaminhadas para o atendimento psicológico apresentam além dos ajustamentos neuróticos e psicóticos, características de sofrimento ético-político. Este ajustamento exige uma forma de intervenção específica que a partir de agora passamos a apresentar.


2. A CLÍNICA DO SOFRIMENTO ÉTICO-POLÍTICO NA GESTALT TERAPIA
Na obra Gestalt-terapia (1997) ao contextualizar os diversos distúrbios do self, PERLS, HEFFERLINE e GOODMANN3 descrevem a perda das funções do Ego na neurose, dizendo que a neurose encontra-se a meio caminho entre o distúrbio do self espontâneo, que é a aflição, e o distúrbio da função de id, que é a psicose [...] aquele que se dá espontaneamente poderá não realizar o contato final; a figura está dilacerada em meio à frustração, raiva, exaustão. Nesse caso ele está aflito em lugar de estar feliz. A inanição é o dano sofrido por seu corpo. Sua disposição é amarga e ele se volta contra o mundo; mas não se volta ainda contra si próprio nem tem muita percepção de si próprio, a não ser de que está sofrendo, até que fique desesperado. A terapia para ele deve ser aprender mais técnicas práticas, e deve haver também uma mudança nas relações sociais de modo que seus esforços frutifiquem, e, enquanto isso, um pouco de reflexão. Isto é o cultivo da Personalidade. (PERLS, HEFFERLINE E GOODMANN, 1997, p.235)

3 - Representados no decorrer do texto como PHG.

Esta passagem mostra como os autores pensam o comprometimento da função personalidade, denominado de sofrimento ético-político pelo casal MULLER¬GRANZOTTO4 (2007), conforme segue

4 - Representados no decorrer do texto como MG.

Os fundadores da GT acreditam que temos aquelas formas de ajustamentos de nossa historicidade em que uma limitação do meio – que assim se furta à livre ação do self – impede que este possa encontrar dados, na mediação dos quais consiga oferecer, ao fundo de excitamentos históricos, um horizonte de futuro que os faça valer como realidade objetiva, valor ou identidade social. Apesar de dispor de um fundo de excitamentos (função id), a falta de dados impede o sistema self de agir, de desempenhar a função de ego. Conseqüentemente, o sistema não pode crescer, não pode agregar ao seu fundo histórico um mundo humano, social – que é o mundo das formas objetivas com as quais o self pode se identificar (função personalidade). A função personalidade portanto, não se desenvolve e o processo de self sofre em decorrência de não poder assumir uma identidade objetiva. Perls, Hefferline e Goodmann chamam essa patologia de “misery”(que propomos traduzir como sofrimento ético-político). (MULLER-GRANZOTTO, 2007, p. 244)

Para compreender melhor o distúrbio do self espontâneo é necessário rever a noção de contato e de self, conceitos básicos da Gestalt-terapia, a partir do que PHG (1997, pp. 41-43) afirmam: a noção de contato está estreitamente relacionada com a experiência e toda função humana é uma interação num campo organismo/ambiente, portanto é tanto físico como social; toda e qualquer vivência só é possível na fronteira entre o organismo e seu ambiente, sendo que a experiência é função dessa fronteira, e psicologicamente o que é real são as configurações inteiras desse funcional, com a obtenção de algum significado e a conclusão de alguma ação. Chamam de “self” o sistema de contatos em qualquer momento e como tal é flexivelmente variado: varia com as necessidades dominantes do organismo e os estímulos presentes no ambiente; é um sistema de respostas que diminui durante o sono, quando há menos necessidade de reagir; é a fronteira-de-contato em funcionamento e sua atividade é formar figuras e fundos; é a função de contatar os agoras vividos no campo no processo organismo/meio. Portanto, é o organismo-como-um-todo em contato com o ambiente de forma consciente, manipulando e sentindo. (PHG, 1997,p. 180).

MG (2007, p.213), sinalizam que o self não é uma entidade e suas funções não são partes isoladas ou etapas observáveis cronologicamente. São apenas três pontos de vista diferentes que se pode ter de uma mesma experiência, que é o sistema self em funcionamento. Isto quer dizer que em cada experiência vivida na qual há um fluxo de awarenes5, as três funções estão presentes concomitantemente. A compreensão de uma ou de outra é apenas uma escolha teórica para descrever a experiência, isto é enquanto aspectos do self num ato simples espontâneo, o Id, o Ego e a Personalidade são etapas principais de ajustamento criativo: o Id é o fundo determinado que se dissolve em suas possibilidades, incluindo as excitações orgânicas e as situações passadas inacabadas que se tornam conscientes, o ambiente percebido de maneira vaga e os sentimentos incipientes que conectam o organismo e o ambiente. O Ego é a identificação progressiva com as possibilidades e a alienação destas, a limitação e a intensificação do contato em andamento, incluindo o comportamento motor, a agressão, a orientação e a manipulação. A Personalidade é a figura criada na qual o self se transforma e assimila ao organismo, unindo-a com os resultados de um crescimento anterior. Obviamente, tudo isso é somente o próprio processo figura/fundo. Num certo sentido, o self nada mais é do que uma função da fisiologia; em outro sentido, não faz em absoluto parte do organismo, mas é uma função do campo, é a maneira como o campo inclui o organismo. (PHG, 1997, p. 206).


5 - Termo utilizado pela Gestalt Terapia para designar “o que se dá no contato, com base em um sentir, na forma de um excitamento, em proveito de um fluxo de unidades de sentido”. (MG, 2007, p. 182)

Em outras palavras, o self é tanto uma função da fisiologia como uma função do campo, num processo figura/fundo. Portanto, além de ser um processo temporal, entendido como a temporalidade fenomenológica de nossa vivência do tempo, é um sistema de contatos, que por sua vez só acontecem na fronteira entre o organismo e o meio. Para melhor compreender o que se quer dizer, a figura 1 apresenta a infra¬estrutura temporal inerente às dinâmicas de contato no diagrama de MG (2007, P. 232), baseado em Husserl (1893), denominado “Dinâmica Temporal do Self”.


DINÂMICA TEMPORAL DO SELF


Figura 1 – Apresentação do diagrama baseado em Husserl (1893), denominado de “Dinâmica Temporal do Self” de MULLER-GRANZOTTO (2007)


Afirmam os autores que o diagrama auxilia na compreensão porque permite:

• Visualizar o modo como nossa história vivida (e representada) participa do nosso “aqui¬agora”;
• Compreender o sentido de “campo” que caracteriza nosso “aqui-agora”;
• Elucidar o caráter sempre “inédito” (e nesse sentido, criativo) dos ajustamentos que estabelecemos (a partir de nosso fundo temporal e frente ao mundo e ao outro) no campo;
• Esclarecer a razão pela qual o “aqui-agora” é não somente um encontro com o mundo e com o outro, mas a experimentação de nossa unidade histórica, experimentação essa que é o que justifica a escolha que Perls, Hefferline e Goodman fizeram pelo nome self. (MG, 2007, p. 232)


Desta forma, construíram uma representação sistemática da dinâmica específica do fluxo que caracteriza o sistema self:
• O pré-contato corresponde à espontaneidade de nossas vivência históricas;
• O contatando é o excitamento espontâneo que atravessa as possibilidades de contato em proveito da configuração de uma unidade presuntiva de mim mesmo;
• O contato final é a efetivação dessa unidade. É a própria formação de uma Gestalt;
• O pós-contato é a retenção intencional das experiências de contato. Ele corresponde à destruição e assimilação do já vivido. (MG, 2007, p. 233)


Explicam os autores que O “próprio fluxo” do contato é ambíguo, eminentemente ambíguo, porquanto sempre envolve pelo menos “dois eventos de fronteira”: um primeiro evento, onde um fluxo se abre (pré¬contato e contatando); e um segundo, onde o fluxo se fecha (contato final). Mas não apenas isso: tão logo o excitamento advindo do primeiro evento se transcende para o segundo, retrospectivamente, o primeiro evento é “destruído”, é assimilado (pós-contato) como fundo para o novo fluxo que está se abrindo junto ao segundo evento. O que significa dizer que o fluxo de contato envolve sempre duas orientações temporais: uma orientação prospectiva (formação e destruição de uma Gestalt na passagem do evento um para o evento dois) e uma orientação retrospectiva (assimilação do evento um como fundo para a formação de uma nova Gestalt). Na primeira orientação, temos o crescimento, de que falava Goldstein. Na segunda, a conservação. (MG, 2007, pp. 234)

Quando fazemos qualquer afirmação do tipo “eu gosto de música” esta designa ao mesmo tempo uma personalidade na objetivação/expressão de um gosto e o uso do pronome “eu”; a função de ego na ação de dizer do que gosto e a função id na necessidade ou excitamento em relação à música que vai muito além da formulação do que gosto.

A Personalidade na GT é compreendida como o sistema de atitudes adotadas nas relações interpessoais; é a admissão do que somos que serve de fundamento pelo qual poderíamos explicar nosso comportamento, se nos pedissem uma explicação; ela é falada o que significa que é o que responde a uma indagação ou a uma auto-indagação. A autoconsciência da Personalidade responde à sua qualidade autônoma e responsável e a pessoa se auto-conhece inteiramente no desempenho de um papel definido na situação concreta.

Ela é responsável e pode se responsabilizar num sentido em que o self criativo não consegue. Porque a responsabilidade é o preenchimento de um contrato; faz-se um contrato de acordo com o que se é, e a responsabilidade é a consistência adicional de comportamento nesse âmbito. Contudo a criatividade pura não pode entrar num contrato dessa maneira; sua consistência passa a existir à medida que se desenvolve. Dessa forma, a Personalidade é a estrutura responsável do self. (PHG, 1997, p. 188).

O sofrimento ético-político é o distúrbio do self espontâneo, é a impossibilidade da função personalidade operar. Devido à impossibilidade do surgimento de novos dados em função das limitações do meio, o self, mesmo podendo contar com um fundo de excitamentos históricos, não tem com o que se nutrir e sofrendo de privação fica impossibilitado de seu livre fluir. Com a ausência de dados do meio não há horizonte de possibilidades que se “arme” para dar movimento e provocar uma ação à função do ego. O sistema self, então, não tendo acesso ao novo com o que possa se identificar fica impedido de desenvolver uma personalidade verbal. A ausência de dados no meio, compreendidas como vivências de privação impedem que os excitamentos do pré-contato (a função id) se efetivem no contato final que é quando poderia se dar a concretização da experiência. Não encontrando condições de representação das próprias vivências de contato a função ego não consegue objetivar identidades. Portanto se é a função personalidade quem tem a tarefa de preservação do organismo e de promoção de seu crescimento, o self sendo privado disto, poderá sofrer com outras formas de adoecimento que por sua vez, conforme MG (2008) “faz da ausência de dados um pedido de socorro”.

Na prática clínica, no dia a dia de trabalho, como aponta MG (2007), “nos deparamos com consulentes, sobretudo usuários da rede pública ou dos serviços substitutivos de saúde, os quais, não obstante tentarem apelar por nossa intervenção, estes se comportam como se não soubessem fazê-lo, como se lhes faltassem àqueles expedientes socialmente sancionados” (p. 314). No trabalho na Atenção Básica do Sistema Único de Saúde o que se tem experienciado é o atendimento a um público eminentemente feminino que em sua grande maioria são encaminhadas com diagnóstico de “depressão”. Inicialmente as queixas apresentadas são de “desânimo”, “vontade de não fazer nada”, “tristeza”, “dores no corpo”, “vontade de sumir”, “dificuldade de dormir”, “dores de cabeça crônicas”, “confusão mental”, “esquecimento” “irritabilidade” “agonia” “aflição” e tantos outros que compõem o diagnóstico tradicional de depressão. Na realidade, com o passar do tempo, à medida que a confiança vai se estabelecendo no trabalho terapêutico, o que é possível de constatar é que se inserem nas características do quadro de privação do meio, seja social, econômica ou situações de luto. O que tem sido mais comum são quadros de exclusão social de gênero, isto é, mulheres com história de assédio moral, violência doméstica e abuso sexual.

MG (2008) afirma que no sofrimento ético-político os danos sofridos são no corpo que é a realidade concreta e assim o self faz da ausência de dados um pedido de socorro. Dessa forma, ao mesmo tempo em que aliena seu poder de deliberação em favor do meio, dá ao meio o status objetivo de alteridade. Por outras palavras: o pedido de socorro faz do meio um semelhante.

Portanto a dificuldade destas mulheres expressarem o que querem deve-se a impossibilidade da função personalidade operar. Com vivências de privação, isto é, com a ausência de dados não há horizonte de possibilidades e o sistema self não tendo acesso ao novo para se identificar não desenvolve uma personalidade verbal.

Isto posto pode-se agora tecer algumas considerações sobre clínica do sofrimento ético-político para a Gestalt Terapia. De acordo com o que diz MG (2007, p. 280) a Gestalt Terapia possui uma ética que difere da que comumente conhecemos no uso cotidiano, isto é, enquanto aquela se relaciona com o termo grego éthos o qual designa nossa adesão deliberada a uma regra ou padrão de comportamento social, a ética proposta se relaciona com o termo grego êthos, empregado pela cultura helênica em seus primórdios para significar “morada, abrigo, refúgio”, lugar onde somos “autênticos e despidos” de defesas, onde estamos protegidos, abrigados, e podemos receber o “outro”. Nesta perspectiva a clínica da GT difere do sentido marcadamente assistencial inerente ao uso médico do termo originário do adjetivo grego klinikós – segundo o qual alguém administraria seu saber para reabilitar alguém incapacitado de cuidar de si. A clínica para a GT está mais relacionada ao sentido ético que os seguidores de Epicuro deram à expressão grega clinamen, entendida como a capacidade que cada homem tem para introduzir, a qualquer momento, um desvio no curso de sua vida que permita desencadear a criação de uma nova ordem. MG (2007, p. 280)

Na clínica do sofrimento ético-político o trabalho é no sentido de promover redes sociais de apoio que possibilitem a concretização de experiências, pois os excitamentos só podem se realizar no contato final em uma realidade social concreta. Para tal o trabalho em grupo com equipe de profissionais das diversas áreas afins é o mais indicado, o que também é proposto pela Política Nacional de Humanização do Sistema Único de Saúde – SUS, através da Clínica Ampliada e da proposta de um Projeto Terapêutico Singular.

Assim, desde 2006 vem sendo desenvolvido um projeto de intervenção em saúde mental, em uma unidade da Atenção Básica do Sistema Único de Saúde – SUS, no município de Joinville caracterizado como uma oficina de artesanato denominada de Oficina de Cidadania e Inclusão Social – “CINS”. Teve início como um projeto de extensão universitária com a participação de diversos profissionais como psicólogo, farmacêutico, médico e terapeuta ocupacional, assim como alunos dos cursos de graduação de Psicologia, Medicina e Farmácia. Atualmente é coordenado por uma psicóloga e uma terapeuta ocupacional da unidade de saúde. As atividades são organizadas em encontros de uma vez por semana com duas horas e meia de duração, sendo que os objetos confeccionados são comercializados em eventos na comunidade com o objetivo de oferecer a possibilidade de apropriação e apoderamento dos sujeitos sobre suas próprias vidas, com o resgate da cidadania plena. Importante sinalizar que os instrutores das atividades são, ou os próprios membros do grupo, que a partir de suas habilidades pessoais, se oferecem para tal, ou pessoas da comunidade que se propõem de forma voluntária e são escolhidas através de votação. Foi possível constatar, a aderência à proposta da oficina através da freqüência de 96% durante os três anos em que acontece, assim como através dos depoimentos coletadas a partir de uma mesma pergunta feita em dois momentos distintos: em dezembro de 2007 (Depoimentos A) e em maio de 2009 (Depoimentos B) como segue abaixo.

”O que tem representado Oficina “CINS” em sua vida?”

• Respostas A

-“A segunda-feira parece que é melhor... a gente distrai a mente...ficar em casa é chato”. -“Tudo depende do meu estado de ânimo...aqui eu me sinto uma pessoa normal..quando estou lá fora é chuva...é temporal...quando estou aqui é dia de sol”. -“É bom a gente fazer este trabalho...se não tem força de vontade não vale a pena vir aqui...está sendo bom demais porque está me ajudando bastante...antes eu estava com depressão e agora está tudo bem”. -“Pra mim está sendo muito bom porque eu era uma pessoa bem tímida e isto me ajudou bastante...a gente está se entrosando...a minha família já sentiu a diferença...já converso mais agora”. -“Eu sempre trabalhei na minha vida e agora estou “encostada”...pra mim ficava difícil...agora estou fazendo alguma coisa...é bom vir aqui...além de ter mais espaço não faço tantos erros na minha vida...eu me sinto bem...eu sinto que estou fazendo alguma coisa...eu sinto que estou fazendo um trabalho”.

 

• Respostas B

-“Para mim é como um lazer”.
-“É amizade”.
-“É gratificante”.
-“A Oficina CINS tem sido algo novo que eu não conhecia...me sinto grata.
-Através dela tenho aprendido muitas coisas...me sinto grata pelas pessoas do grupo e
pelas pessoas responsáveis”.
-“Eu adoro...arrumei muitas colegas boas”.
-“É muito bom, eu gosto de vir porque é bom trabalhar entre amigos”.
-“É algo que me dá coragem para enfrentar os problemas...me sinto muito mais corajosa
para viver”.
-“Eu amo este grupo...aqui eu me sinto útil...aqui a gente não se sente excluída”.

 

Através dos depoimentos é possível constatar o quanto a presença do outro como um semelhante é relevante. São expressos os próprios sentimentos o que denota a importância que dão ao grupo como redes significativas de pessoas para a formação de vínculo. Suas vidas tem se organizado a partir do que compartilham entre si nos encontros, o que permite afirmar que a atividade social compartilhada pode ser um bom recurso para a objetivação de identidades e cultivo da Personalidade. Assim, a função personalidade se realizando, representando as próprias vivências de contato, a função ego poderá encontrar representações para objetivar a identidade e, assim se concretizar o crescimento do organismo. Resgatando o que foi dito anteriormente, a Política Nacional de Humanização do SUS tem como proposta o estabelecimento de grupalidades e de vínculos solidários. Ela aposta no trabalho coletivo, na formação em redes, na relação existente entre a transformação das práticas e na transformação das relações estabelecidas entre sujeitos e grupos (mudança de atitudes/subjetividades). Por sua vez a Clínica Ampliada e o Projeto Terapêutico Singular apostam na autonomia, potência e saberes dos diferentes sujeitos para a transformação da realidade porque propõem a inclusão de todos nos processos de mudança.

A Gestalt Terapia tem como ética o sentido “morada, abrigo, refúgio”, lugar onde somos “autênticos e despidos” de defesas, onde estamos protegidos, abrigados, e podemos receber o “outro” enquanto a clínica é entendida como a capacidade que cada homem tem para introduzir, a qualquer momento, um desvio no curso de sua vida que permita desencadear a criação de uma nova ordem.

Desta forma pode-se afirmar que tanto ética como a clínica adotada pela Clínica Ampliada do SUS e pela Gestalt Terapia convergem entre si no sentido de ver o Sujeito como um semelhante a ser acolhido e ao mesmo um ser capaz de se criar.

3. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Brasil, Ministério da Saúde. Promoção da Saúde: Carta de Ottawa, Declaração de Adelaide, Declaração de Sundsvall, Declaração de Bogotá. Brasília, Ministério da saúde. 1996.

Brasil. Ministério da Saúde. Norma Operacional Básica do Sistema Único de Saúde/NOB-SUS 01/96. Brasil, Minisitério da Saúde, 1997.

Brasil. Ministério da Saúde. Gestão municipal de saúde: leis, normas e portarias atuais. Rio de Janeiro: Ministério da Saúde; 2001.

Brasil. Ministério da Saúde. VER-SUS/Brasil: caderno de textos. Brasília: Editora do Ministério da Saúde; 2004.

Brasil. Ministério da Saúde. HumanizaSUS: Política Nacional de Humanização: a humanização como eixo norteador das práticas de atenção e gestão em todas as instâncias do SUS / Ministério da Saúde, Secretaria-Executiva, Núcleo Técnico da Política Nacional de Humanização. – Brasília: Ministério da Saúde, 2004.

MULLER-GRANZOTTO, Marcos José e Rosane Lorena. Fenomenologia e Gestalt Terapia. São Paulo: Editora Summus, 2007.

__________. A Clínica do Sofrimento Ético-político. Texto apresentado aos alunos, durante as aulas do Curso de Especialização em Gestalt Terapia do Instituto Muller-Granzotto. Florianópolis, 2008.

PERLS, Frederick Salomon. (1947). Ego, Fome e Agressão. São Paulo: Editora Summus, 2002.


__________, HEFFERLINE, Ralph, GOODMAN, Paul. (1951). Gestalt Therapy. Excitement and Growth in the Human Personality. New York: Bantam Book, 1977.

__________. (1951). Gestalt-terapia. São Paulo: Editora Summus, 1997.