MINI-CURSO 12: GESTALT-TERAPIA & ABORDAGEM GESTÁLTICA: Revendo Conceitos e Crenças
Autora: Teresinha Mello da Silveira
Eixo Temático: Práticas da Gestalt-terapia e seus caminhos
RESUMO
Esta exposição apresenta o paradoxo encontrado no interior da teoria e prática da Corrente Gestáltica ao utilizar-se de perspectivas psicopatológicas, nosológicas e nosográficas. No curso do trabalho discute-se a influência do modelo médico no Paradigma Gestáltico. Desenvolve-se os fundamentos que sustentam o paradigma coerentes com a visão de mundo, a visão de homem, voltados para uma prática que valoriza o encontro, a experiência de contato, o processo de awareness. Ao final problematiza-se o uso das expressões Gestalt-terapia e Abordagem Gestáltica, analisando suas implicações, afirmando a preferência pela última expressão que não se filia a qualquer forma científica psicopatologizante, mas, que se efetua em nome do crescimento, do desenvolvimento, da criatividade e da autonomia.
Palavras-chave: Gestalt-Terapia, Abordagem Gestáltica, Psicopatologia, Criatividade, Crescimento
INTRODUÇÃO
Consideramos por demais oportuno o IX Congresso e XII Encontro de Nacional Gestalt-Terapia, que reúne um número considerável de membros da comunidade gestáltica, para que possamos debater com os companheiros, através de uma mesa redonda, o tema que ora nos aflige e que nos leva a traçar algumas linhas referentes ao assunto.
A construção deste trabalho surge da nossa inquietação, como autores, com os rumos tomados pela Gestalt enquanto vertente teórica tão articulada com a prática. As inúmeras conversas e a ânsia de dialogar com nossos pares conduziram-nos a reflexões que explanaremos a seguir.
Desejamos problematizar a respeito da posição da Gestalt no contemporâneo. O que se mantém constante em sua visão? O paradigma gestáltico tem algo em comum com os outros modelos? Qual é o objeto de trabalho, os meios de trabalho e o objeto final da teoria gestáltica? Existem diferenças substanciais entre a Gestalt-Terapia e a Abordagem Gestáltica?
Esta apresentação, por um lado, pretende discutir o ponto de vista gestáltico, suas singularidades e as possíveis ligações com outras perspectivas teóricas¬práticas. Por outro lado, problematizar-se-ão as possíveis contradições que o Paradigma Gestáltico encontra no interior das suas práticas e da sua teoria.
PSICOTERAPIA SAÚDE E DOENÇA
Temos constatado da prática profissional dos gestaltistas o hábito de psicopatologizar as experiências sensíveis. Em função disso, estas – as psicopatologias – tornam-se o objeto de trabalho das terapias. O olhar em geral é colocado sobre aquilo que é o negativo da experiência do outro. Valoriza-se o negativo, sendo necessário uma demanda de atendimento. É preciso um problema a ser ‘curado’, ‘resolvido’, ‘fechado’, ‘concluído’. O outro, suas experiências, sua vida, seus desejos, tornam-se a matéria prima que sofre a ação especializada do terapeuta. Sem dúvida este modo de ver as experiências valoriza a sua negatividade, olhar que tem o seu parentesco com os supostos biomédicos. Nesta direção, Fagan e Shepherd (1977, p.11) explicam que:
Historicamente, as teorias de personalidade concentram-se nos aspectos negativos da personalidade. Em parte, isso foi devido ao uso do modelo médico que rotulou os problemas vivenciais como mórbidos ou patológicos – como doenças. Mas a medicina nunca esteve interessada na saúde, que é considerada tão somente a ausência de doença. Um dos muitos ônus decorrentes do uso da analogia médica é que focalizamos, principalmente, aquilo que não deveríamos ver.
Daí decorre que diferentes olhares recaem sobre as causas da experiência de uma mesma pessoa criando-se um pré-conceito. O paradigma psicopatológico presente nas intervenções terapêuticas garante assim o lugar daquele que é responsável pela intervenção de ‘cura’ e daquele que se ‘compreende historicamente’ como doente.
A visão de si, como doente, é uma produção cultural. Uma criança não nasce dizendo que tem um transtorno ou déficit de atenção e hiperatividade. Um homem que acredita ser um esquizofrênico não nasceu dizendo ser isso. Todos aprenderam a ter uma visão de si como doentes.
Para os loucos e demenciados de hoje, como séculos atrás era (...), não há lugar para enunciarem seus nomes a não ser em relação aos saberes que os designam. O fato de serem olhados apenas por suas características bizarras faz com que os pacientes respondam a esse olhar sendo cada vez mais bizarros. Eles mostram o que esperam deles. Assim são confirmados e excluídos. Absorvemos a patologia e excluímos seu portador (SILVEIRA, 2007a, p. 59)
Nossa abordagem psicoterapêutica nos ensina que temos que olhar a experiência do outro como singular, compreendendo-as como experiências construídas nas relações, deixando de tentar ordenar, reduzir e fragmentar aquilo que é da ordem da experiência humana. Creio que vale a pena refletir sobre este outro modo de ver.
A perspectiva fenomenológica-existencial produz uma visão de mundo que valoriza a experiência existencial. No decorrer desta exposição, faremos os devidos destaques a esta concepção, ligando-a à teoria e prática gestáltica.
Nosso dispositivo epistêmico é o compreensivo. Este se utiliza dos processos racionais, intuitivos, empáticos e semânticos. Através da razão, poder compreender o que se sente. Compreender sentindo a experiência do outro, será compreender empatizando. Compreender os signos que uma outra pessoa é capaz de expressar é abrir-se a uma conexão que ultrapassa aos meus signos – assim tentamos compreender os sinais, movimentos, desejos de uma pessoa compreendida, por exemplo, como ‘autista’.
A perspectiva gestáltica vem se esposar à episteme fenomenológica-existencial, proporcionando uma visão de mundo, uma visão de homem, uma visão de vida particular, única, criativa e responsável.
O PARADIGMA GESTÁLTICO
O homem é a um só tempo um ser da natureza e da cultura. Como ser de cultura o homem irá sofrer a invenção de olhares, historicamente artificializados para ordenar a vida social.
O Paradigma Gestáltico vem se apresentar, como mais uma invenção que utiliza inúmeras teorias, visões de mundo e de homem. Ao contrário de ser uma teoria movida pelos dispositivos explicativos e interpretativos, o paradigma gestáltico vem compreender o real da experiência sensível humana, a partir do que é vivido. A compreensão da experiência deverá ser construída por cada pessoa.
Nesta esfera, “o sentido só faz sentido quando é sentido” (PEIXOTO, 2009). Cada um será a medida da sua própria experiência. Protágoras de Abdera definiu a produção de sentido com a sua máxima: o homem é a medida de todas as coisas (DUMONT, 2004). Protágoras, ao invés de produzir uma visão antropocêntrica de mundo, vem indicar a direção para que cada um de nós encontre a medida da sua própria experiência, encontrando, por sua vez, o sentido de tudo que lhe afeta e se relaciona. Cada um precisará encontrar a medida dos seus desejos, idéias, apetites, interesses. Decorre daí que a visão de mundo que a Gestalt apresenta vem contribuir para uma experiência filosófica, dinâmica e estética do encontro, como veremos adiante.
A FORÇA DO ENCONTRO
Estas atitudes nascidas do Eu, que sempre ao dizer Eu, diz também o outro como Tu ou como Isso, refletem não só o dizer do homem, mas antes seu olhar e o modo como vai ao encontro do outro. Encontro como lugar de reciprocidade, constituidor do homem à maneira de sujeito, aberto à visitação do Ser (CAVANELLAS, 1998, p. 20).
Inspirada em Buber (1977), Cavanellas nos mostra o que é o encontro. O encontro se efetua numa fronteira de contato. O contato se faz entre diferenças. O paradigma gestáltico vem colocar o acento sobre a experiência de contato, contato esse que no dizer de Ribeiro (2006, p. 93) “inclui a experiência consciente do aqui-agora, envolve uma sensação clara de estar em, de estar com, de estar para e cria algo diferente do sujeito ou objeto (pessoa ou coisa) com a qual está em relação.” Assim, seres humanos e sociedade constroem-se mutuamente nas relações, e, portanto, o que somos e fazemos tem sentidos em nossos contextos existenciais, tenhamos ou não nos apercebido de nossa história e de nossos motivos” (RIBEIRO, 1998, p. 32). Desta forma, somos efeitos dos nossos encontros.
Observamos as contribuições de diversos autores do Paradigma Gestáltico, enfatizando o processo de transformação e criação de subjetividades na experiência de contato.
(...) o contato é algo dinâmico, ativo, e dependerá sempre de um acordo entre as partes envolvidas. Ademais observa-se que o contato é seletivo: ele escolhe o que deve ser assimilado. Percebe-se ainda que o que é assimilado é algo novo para o organismo. O ato de contatar envolve sempre a percepção clara da situação. O contato se faz na diferença. Trata-se da negociação de duas partes diferentes que se fundem para posteriormente se transformar. (...) O contato sempre ocorre num limite denominado fronteira de contato. A fronteira une e separa tornando-se mais ou menos permeável, e, dessa forma, favorece, dificulta ou impede o contato (SILVEIRA, 2007b, p.59).
No contato ocorre um encontro, ou é no encontro que ocorre o contato? Vemos acima que o contato é um conceito que se refere ao encontro no presente. Só em ato que o contato se faz encontro! Será pela força do toque, pelas percussões entre as experiências que o encontro germina em vida! O toque tem o poder de desenhar universos (BRENNAND, 2001). O encontro é filho das possibilidades de contatar.
A vivência do presente, ativada pela capacidade de contatar, abre o caminho para o crescimento. Poder selecionar os ‘alimentos’ que nutrem, descartando, por sua vez, os nocivos. Desprender-se daquilo que não lhe nutre mais poderá ser a vivência criativa para uma posição de crescimento e expansão.
A experiência de contatar é paradoxal pelas variações do campo. Numa mesma experiência as nossas fronteiras expandem e contraem, dependendo da variação dinâmica dos nossos desejos e dos desejos do outro, das nossas intenções e das intenções do outro.
O paradoxo do espírito humano é que não sou completamente eu mesmo, até que seja reconhecido em minha singularidade pelo outro – e esse outro precisa do meu reconhecimento a fim de se tornar completamente a pessoa única que ela é. Somos inextricavelmente entrelaçados.(HYCNER, 1997, p. 15 )”
Se somos inextricavelmente entrelaçados somos um tecido que se tece junto. Falarmos em ‘tecer junto’ conduz-nos à reflexão sobre o caráter visionário de Kurt Goldstein (2000) com sua concepção holística. Compreendemos que a visão de totalidade da Teoria Organísmica ao referir-se ao organismo em interação com o ambiente vem sustentar de forma coerente a prática terapêutica que destaca conceitos como encontro e contato. Podemos pensar o encontro como um organismo dinâmico e em constante processo de organização. A auto-regulação organísmica como um movimento para buscar a satisfação das necessidades. O organismo se atualizando em contato permanente com o meio, isto é, a plasticidade organísmica. Tal plasticidade aponta, então, para o homem criador, livre, capaz de transformar a si e ao meio que o cerca. Defendemos que esta é a visão e a meta do fazer gestáltico. Decorre deste pensar o ajustamento criativo.
AJUSTAMENTO CRIATIVO
Em poucas linhas podemos definir o ajustamento criativo como o processo de fazer contato com o meio ambiente através de uma fronteira (PERLS, HEFERLINE e GOODMAN, 1997), Quando o ajustamento é saudável favorece o desabrochar da individualidade e o florescer dos relacionamentos.
Ciornai (1995) explica que este é um dos conceitos chaves em Gestalt-terapia, pois, não implica em “ajustamento” mas em “ajustamento criativo”. A autora quer dizer com isso que existe nesse processo a participação ativa do indivíduo. Não se trata de adaptação a algo que já existe e sim de transformar o ambiente e enquanto este se transforma, o indivíduo também se transforma e é transformado.
Como uma planta que cresce assimilando do solo e do ar nutrientes que lhe ajudarão a crescer, ao mesmo tempo em que cria e desenvolve mecanismos para se proteger de elementos que possam ameaçar sua existência, filtrando poluentes, desenvolvendo raízes fortes, fechando-se ao contato com elementos potencialmente agressivos, criando formas inusitadas para receber o sol ou proteger-se das intempéries. (p.73)
O TERAPEUTA E O ENCONTRO
É impossível o terapeuta trabalhar com criatividade e criativamente – e essa é a nossa proposta -sem ter uma posição ativa no encontro. O encontro envolve troca. É neste movimento de abertura mútua, que o encontro acontece. Desta forma, há de se pensar a posição do terapeuta como aquele que se arrisca, que se envolve, que também se mistura. O terapeuta que entra no atendimento com tudo que ele é.
Hycner (1995), Hycner e Jacobs (1997), Yontef (1998), apoiados em Martin Buber (1977), sendo este último tantas vezes citado por eles, propõem que na relação, o terapeuta demonstre presença – a manifestação aberta da pessoalidade do terapeuta; inclusão – ver-se numa relação a dois de forma empática e respeitosa; confirmação – reconhecimento do ser da pessoa que é atendida e comunicação genuína – expressar-se aberta e coerente com a situação de cada momento.
O terapeuta indica quando a pessoa se aprisiona num dado contexto, sofrendo, sem conseguir muito se movimentar criativamente. Nessa hora, a relação, o propiciar da experiência de contato no presente, é uma das possibilidades para que ele use seus recursos de maneira mais inovadora. O terapeuta, então, observa o que está acontecendo, acompanha, dá suporte, propõe um experimento que mobilize a energia utilizando-a para a novidade, para o desenvolvimento de quem está com ele. Algo de novo poderá emergir, produzindo novas configurações nos seus modos de sentir, pensar e agir.
AWARENESS E ENCONTRO
Sentir, perceber, movimentar-se energeticamente formando novas Gestalten e estar consciente de todo este processo -eis o que é awareness. A awareness é o processo de conscientização no presente. É a condição inicial para que seja possível hierarquizar as necessidades. É um processo natural de vida. O processo terapêutico também é vida. O processo refere-se ao movimento para que a pessoa possa aprender a avaliar suas possibilidades de expansão, de crescimento, de evitações e retrações no ato do encontro.
Para que a pessoa possa satisfazer suas necessidades, precisará estar ‘consciente de’. Nesse sentido, a awareness se dá no presente. O terapeuta facilita e acompanha a pessoa no seu processo de awareness. É desta forma que ele identifica onde ela faz contato, onde ela cria, recria, evita, se expande. “A awareness é uma forma de experienciar; é o processo de estar em contato vigilante com o evento mais importante do campo indivíduo/ambiente, com total apoio sensório, motor, emocional, cognitivo e energético.” (YONTEF, 1998, p. 215).
Inúmeros autores se dedicaram ao estudo da awareness (GINGER & GINGER, 1995; YONTEF,1998, CASARIN, 2007), contudo encontramos em Paulo Barros, citado por Arruda e Fernandes (2007, p. 34), a definição mais poética.
Awareness, esta palavra estrangeira, que talvez devêssemos traduzir como contato com o mistério, talvez nada mais seja que uma relação adequada com os limites. Awareness, a relação adequada com a forma. A forma. A deusa forma de todos os artistas. A paixão, a veneração, a finalidade última, a dedicação exclusiva de toda criação. O segredo de toda realização. A relação entre forma e conteúdo. A finalização, a adequação, a identidade entre forma e conteúdo. A finalização, o fechamento de toda Gestalt.
Ao invés de utilizar a episteme interpretativa, a Gestalt valoriza o processo de descoberta, de busca da iluminação para a compreensão de si. Pretendemos que a pessoa se compreenda. Para tanto os experimentos gestálticos em uma relação de confiança apresentam-se como ferramentas úteis na busca de ser.
Como vimos discutindo até aqui se pode compreender que awareness, contato e a experiência no presente estão absolutamente entrelaçadas. Não existe awareness sem contato (PERLS, HEFERLINE E GOODMAN, 1997). O contato eficiente depende de uma boa awareness e o experimento que conduz a um bom contato dependem de a pessoa estar aware. O encontro de que fala a Gestalt envolve duas pessoas que vivem este entrelaçamento experiencial.
GESTALT-TERAPIA OU ABORDAGEM GESTÁLTICA?
Terapia
ou Desenvolvimento de Potenciais?
Assim nos fala o mais importante representante da Gestalt, Fritz Perls: “Agora
considero a neurose não uma doença, mas um dos vários sintomas
da estagnação do crescimento (desenvolvimento)” (PERLS,
1981, p. 11)
Entendendo sintoma como sinal, expressão, forma, Perls esforça-se para tirar o peso estigmatizador da doença a qual é objeto do saber médico. Nós também rechaçamos o modelo médico utilizado fora da medicina e pretendemos nos posicionar radicalizando nossa concepção do que seja a corrente gestáltica cujo foco é o homem em relação.
Por tudo o que viemos desenvolvendo até o presente momento é válido questionar o termo ‘Gestalt-Terapia’ como tal, porque, como nos explica Stevens & Stevens na introdução do livro “Isto é Gestalt” (1977, p. 14) “Gestalt-terapia, é antes uma prática pessoal, uma forma de vida, do que uma “terapia” profissional ou uma “cura”. É algo que se faz com outros e não para outros.”
Colocamos entre parênteses o termo Gestalt-Terapia, considerando que o termo ‘terapia’ indica a noção de tratamento. Mesmo considerando todos os esforços de inúmeros teóricos para definir o conceito de ‘terapia’, compreendendo-o como um encontro para ‘acompanhar’, para ‘ajudar’, dentre outras possibilidades, vemos que estes arranjos semânticos favorecem a reedição de uma perspectiva de doença. Vemos, então, que a utilização de categorias como neurose, psicose, transtornos disso e daquilo, ainda podem ser encontrados em toda a literatura de Gestalt-Terapia. Ademais, utilizando-se de outras noções como saúde-doença, sintomas, distúrbios etc., vemos que a episteme científica psicopatológica se apresenta cotidianamente nos encontros ‘gestálticos’.
Acreditamos que existe uma contradição no termo Gestalt-Terapia que ‘fere’, os supostos teóricos e filosóficos da abordagem. A este respeito, ‘Abordagem Gestáltica’ é o título do último livro escrito por Perls, e onde constatamos que ele, muito preocupado com os rumos da Gestalt, nos ensina que: “A ênfase global (...) mudou da idéia de terapia para um conceito gestáltico de crescimento (desenvolvimento)”. (PERLS, 1981, p. 11).
Em acordo com as propostas de Perls, optamos pela expressão ‘Abordagem Gestáltica’, acreditando que ela é coerente com a prática, teoria e suas aplicações. Pensamos, como já dissemos, que o objeto de trabalho da Abordagem Gestáltica é o homem em sua totalidade, sem reduções, sem rótulos, classificações. Não foi por acaso que em outro trabalho nosso sinalizamos:
(...) gostaria de enfatizar a relevância da visão de homem potencialmente criador; a compreensão do homem em processo, constantemente se fazendo a partir das interações com o meio; a idéia de totalidade que leva às últimas conseqüências, que serve de estrutura para toda a concepção holística, concepção esta que toma dimensões paradigmáticas nos dias de hoje. (SILVEIRA,1996, p. 52)
Não trabalhamos com sintomas, doenças, e sim com manifestações no presente deste homem total, criador. Valemo-nos de uma concepção de homem no mundo, de homem total, interagindo no ambiente, isto é uma visão holística ou ecológica. Uma ecovisão.
Desta maneira, o Paradigma Gestáltico se expressa como uma forma de vida. É uma abordagem que se dirige à compreensão das composições dos nossos encontros e, por sua vez, abrindo novas possibilidades de experimentação com a complexa aventura que é o viver.
Os nossos instrumentos de trabalho, no encontro, são o diálogo e a experimentação que possa favorecer a awareness. Se acreditamos num homem potencialmente capaz, o nosso trabalho será propiciar o seu crescimento. Aqui, também, optamos pela noção de crescimento, ao invés de ‘cura’. O crescimento inclui criatividade, ter a habilidade de discriminar e perceber o que se destaca no campo figura-fundo a cada instante.
Por sua vez, a impossibilidade de se realizar na existência criativamente produz manifestações que são consideradas como distúrbios, transtornos ou ‘doenças’. Perls (1977, p. 62) afirmará a este respeito:
Assim, o que tentamos fazer na terapia é, passo a passo, reassumir as partes rejeitadas da personalidade, até que a pessoa se torne suficientemente forte para facilitar seu próprio crescimento, para aprender a entender onde estão os furos, e quais os sintomas dos furos. E os sintomas dos furos são sempre indicados por uma palavra: evitar.
Perls, ainda, utiliza a noção de sintoma para designar aquilo que se manifesta numa dada experiência de evitação. Está habituado ainda a falar sobre as experiências de estagnação do crescimento, utilizando-se de categorias tradicionalmente ligadas à uma perspectiva patologizante. Perls conseguiu ver outra maneira de lidar com os fenômenos não criativos da existência. No entanto, não se libertou dos conceitos reducionistas de neurose, sintoma etc.
No livro “Abordagem Gestáltica e Testemunha Ocular da Terapia”, Perls (1981) utilizou inúmeras outras expressões como tentativas de superar a perspectiva da psicopatologia. Utilizou as expressões necessidade de manipular, distorções de caráter, redução do potencial humano, a perda da habilidade de responder como tentativas semânticas de produção de outros signos, relacionando-os muito mais ao funcionamento, à dinâmica do processo, do que propriamente referindo-se aos sintomas, como uma doença.
Seguindo o pensamento de Perls, somos movidos a pensar o que habitualmente foi compreendido como sintomas, ser compreendido como expressões (PEIXOTO, 2009). A cada instante, a cada encontro expressamos. Expressamos sorrisos após sermos tocados por alguma outra coisa. Nossos desejos e apetites são expressões. Manifestam-se na relação com alguma outra coisa, mesmo que seja na nossa imaginação. Desta forma, não lidamos mais com sintomas e, sim, com expressões. Nosso trabalho será o de acompanhar a pessoa, naquilo que ela é capaz de expressar. Lembremos que Gestalt é forma -expressar de maneira singular, é forma.
Acreditamos que estas manifestações são particulares e nascidas das interrupções, evitações e paralisações no processo de contato com o mundo. Consideramos que uma pessoa é uma singularidade, ou seja, ela expressa sua existência de maneira singular a cada encontro. Seus tons afetivos, ideativos, imaginários, bioquímicos, energéticos e outras dimensões componíveis mudam de tom dependendo da força que lhe toca num determinado campo. Sua existência modula em outras tonalidades a cada novo encontro, seja para a expansão da existência ou para a sua retração e evitação. Desta forma, estamos lidando com expressões tonais da existência, ao invés de as considerarmos como sintomas de uma patologia, de uma morbidade. Lidamos com uma existência que se expressa singularmente e, em ato, a cada momento em que é tocado por forças, por sua vez, singulares. Nunca sentiremos de uma mesma maneira um mesmo encontro. Este produzirá sempre novas essências: novas expressões da nossa existência.
Considerando esta perspectiva ética acreditamos que a Abordagem Gestáltica é, por sua vez, uma abordagem para a vida. É uma perspectiva que produz estilos de vida, valorizando a singularidade de cada pessoa. O encontro em Gestalt pode se desfiliar da perspectiva reducionista psicopatológica para, por seu turno, se afirmar como uma intervenção que trabalha em nome do crescimento, do desenvolvimento de singulares existências.
A Abordagem Gestáltica é uma intervenção plástica e libertadora, apresenta limites claros e diferentes das intervenções psiquiátricas -embora possamos dialogar com psiquiatras -e de outras abordagens terapêuticas cujo foco é a doença, o sintoma, demandas negativas. Desta forma, vemos que é mais confortável para muitos especialistas se basearem em teorias que visam certezas, verdades e caminhos prontos. A Abordagem Gestáltica segue outras direções. A teoria da Gestalt é aberta, podendo ser desenvolvida como uma obra de arte aberta ao mundo. Não precisamos mais trabalhar com as categorias mórbidas da psicopatologia, mas, sim, com a pessoa que se apresenta diante de nós. Com seus recursos, suas paralisações, seus desejos, frustrações, seu passado, seu futuro, que se apresentam, agindo, no presente a vogar.
Ao invés de reduzirmos as expressões ‘demasiadamente humanas’ em unidades abstratas mórbidas, poderemos fenomenologicamente descrever as possibilidades de contato em ato. O que ele faz? Como ele faz? Como ele se interrompe? Como ele evita o contato? Como ele se paralisa? Onde, com quem? Estas são algumas indicações para o trabalho de abrir passagens, deslocando a energia que estava represada em outras possibilidades de experimentação com o mundo. Poder descrever uma experiência, sem reduções, podendo empatizar com esta experiência, aproximando-se dela, será colocar a energia no processo de produção que faz emergir as expressões de cada um, inclusive as nossas expressões: nossos afetos, idéias, imagens, desejos que nascem na composição com a pessoa que está conosco.
A TÍTULO DE CONCLUSÃO
Insista-se, pois, na importância de examinar meticulosamente os pressupostos da abordagem, a fim de que se torne evidente a sua consistência e coerência. Não se trata aqui de jogo de poder, mas de reconhecimento de que há riscos de uma corrente que tem um enorme respeito pelas diferenças e peculiaridades individuais, num mundo massificador e impessoal, tornar-se uma falácia (SILVEIRA, 1997, p.25)
Vemos que a Abordagem Gestáltica se destina a quem deseja ter um espírito de vida livre! Precisamos verificar se, onde estivermos, estamos dispostos a arriscar, a desprender o olhar dos hábitos, das certezas, das garantias. Se nós estamos dispostos a enveredar na aventura do encontro, experimentá-lo de pessoa para pessoa.
A Gestalt não será praticada por quem deseja se apoiar num olhar da psiquiatria e da psicopatologia, reduzindo as possibilidades de enxergar mais adiante, de criar novas paisagens existenciais. É uma abordagem que, de direito e de fato, veio ao mundo para produzir liberdade. Viver com criatividade, viver em liberdade em estado de arte. Concebendo a vida como uma obra de arte: em nome do crescimento, da autonomia e, por sua vez, combatendo toda e qualquer forma de centripetismo teórico e conceitual!
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ARRUDA, Neuza e FERNANDES, Myrian Bove. In: D’ACRI, Gladys; LIMA, Patricia e ORGLER, Sheila (orgs) Dicionário de Gestalt-Terapia – Gestaltês. São Paulo: Summus, 2007.
BRENNAND, Rita. Objetos da Terra. Vitória (ES): Flor & Cultura, 2001.
BUBER, Martin. Eu e Tu. São Paulo: Cortez & Moraes, 1977.
CASARIN, Décio. Contato. Rio de Janeiro, Revinter, 2007.
CAVANELLAS, Luciana B. A Gestalt Terapia no Envio da Modernidade – Teoria e Técnica na Confrontação da Dor. Dissertação de Mestrado. UERJ, Depto. de Filosofia, 1998.
CIORNAI, S. (1995). Relação entre Criatividade e Saúde na Gestalt-Terapia. Revista do I Encontro Goiano de Gestalt-terapia. 1995, 1:72-75. Goiânia, Instituto de Treinamento e Pesquisa em Gestalt-terapia de Goiânia.
DUMONT, Jean-Paul. Les présocratiques. France: Éditions Gallimard, 2004.
FAGAN, Joen & SHEPHARD, Irma L. Gestalt-terapia, Teoria Técnicas e Aplicações. Rio de Janeiro: Zahar,1980.
GINGER, Serge & GINGER, Anne. Gestalt: uma terapia de contato. São Paulo: Summus,1995
GOLDSTEIN, Kurt. The Organism: a holistic approach to biology derived from pathological data in man. Nova York: Zone Books, 2000.
HYCNER, Richard. De Pessoa a Pessoa: psicoterapia dialógica. São Paulo: Summus, 1995.
HYCNER, Richard e JACOBS, Lynne. Relação e Cura em Gestalt-terapia. São Paulo: Summus, 1997.
PEIXOTO, Paulo. Do Esquadrinhamento dos Corpos ás Invenções Instituintes nos Ambulatórios de Saúde Mental: três invenções da heterogênese. Tese de mestrado apresentada à Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal Fluminense, 2007.
_______________. Heterogênese, Saúde Mental e Transintervenções: composições coletivas de vida. Macaé (RJ): Editora Atelier de Subjetividade, 2009, no prelo.
PERLS, Frederick S. Gestalt-terapia Explicada. São Paulo: Summus, 1977.
________________. Abordagem Gestáltica e Testemunha Ocular da Terapia. Rio de Janeiro: Zahar, 1981.
_______________; HEFERLINE, Ralf e GOODMAN, Paul. Gestalt-Terapia. São Paulo: Summus, 1997.
RAUTER, Critina & PEIXOTO, Paulo. Psiquiatria, Saúde Mental e Bio-Poder: Vida, Controle e Modulação no Contemporâneo. Maringá (PR): Revista Psicologia em Estudo: 2009, no prelo.
RIBEIRO, Walter. Existência e Essência. São Paulo: Summus, 1998.
RIBEIRO, Jorge Ponciano. Vade-Mécum de Gestalt-terapia: conceitos básicos. São Paulo: Summus, 2006.
SILVEIRA, Teresinha Mello. A Gestalt-terapia em circunstâncias contemporâneas. In: Presença: Revista Vita de Psicoterapia, Rio de Janeiro, Vita Clínica de Psicoterapia,ano 2, 1996
_______________________ . A Gestalt no contexto da psicoterapia: teoria e metodologia aplicadas a um caso clínico. In: Presença: Revista Vita de Psicoterapia, Rio de Janeiro,Vita Clínica de Psicoterapia, ano 3, 1997.
______________________. Por Que Eu? A doença e a escolha do cuidador familiar. Rio de Janeiro, Arquimedes Edições, 2007a.
_____________________ . In: D’ACRI, Gladys LIMA, Patrícia e ORGLER, Sheila (orgs) Dicionário de Gestalt-Terapia – Gestaltês. São Paulo: Summus, 2007b.
STEVENS, John & STEVENS, Barry. In: STEVENS, John (org). Isto é Gestalt. São Paulo: Summus, 1977.
YONTEF,
Gary M. Processo, Diálogo e Awareness. São Paulo: Summus, 1998.