MESA REDONDA 11 – PARTE II: A INFIDELIDADE CONJUGAL E SEUS MITOS: UMA LEITURA GESTÁLTICA

 

Autor: Mariana Moura Magalhães

 

RESUMO

O trabalho apresentado será baseado na monografia apresentada como requisito parcial para a conclusão do curso de Especialização em Psicologia Clínica. O objetivo desse trabalho é gerar uma reflexão sobre a infidelidade conjugal e analisar mitos que dentro deste contexto podem ser utilizados como forma de resistência para encarar a realidade dos fatos. O enfoque estará nos casos em que mulher vivencia a dor da traição observando comportamentos que a pesquisadora percebeu como recorrentes. Durante a apresentação, a atenção estará fortemente voltada para os conceitos de teoria de campo, mecanismos de defesa, disfunção do contato e contato. O trabalho será exposto da seguinte maneira: em primeiro lugar farei um breve levantamento histórico da relação conjugal desde nossos antepassados até os dias atuais, observando o papel da mulher em suas relações conjugais, a maneira pela qual elas eram tratadas e o processo de monogamia; em seguida, falarei sobre o processo de infidelidade baseados num perfil romântico de monogamia verificando as reações das mulheres quando descobrem que foram traídas por seus cônjuges. O comportamento apresentado por essas mulheres serão apresentados sob uma ótica gestáltica, fazendo uma relação com os mecanismos neuróticos e possibilitando uma discussão com os participantes.


Palavras-chave: Gestalt-terapia. Infidelidade conjugal. Mulher. Mitos. Monogamia.


INTRODUÇÃO

O trabalho aqui descrito foi baseado num trabalho monográfico apresentada como requisito parcial para a conclusão do curso de Especialização em Psicologia Clínica no Rio de Janeiro.

 

OBJETIVO

O tema da “infidelidade conjugal e seus mitos” aguçou minha curiosidade na medida em que apresentava grande incidência no consultório, mostrando o quanto a infidelidade muitas vezes se presentifica nas relações, associada a uma dificuldade do sujeito em lidar com a situação, construindo uma realidade distorcida para assimilarem o fato.

Ao falarmos em infidelidade podemos pensar numa série de significados e conceitos diferentes, é importante esclarecer que o termo aqui utilizado será descrito para o estabelecimento de uma nova relação amorosa quando já existe um compromisso estabelecido com outra pessoa.

Quanto a estas realidades distorcidas, que aqui chamarei de mitos13, elas foram objeto de investigação, uma vez que eram utilizadas como um mecanismo de defesa para aqueles que apresentavam dificuldades em contatar a infidelidade e aceitar seus verdadeiros desfechos.

13 O sentido da palavra mito será usada para designar crenças fictícias.

O material que será exposto será baseado na mulher que sofre a traição e que apresenta um comportamento deflexivo, não contatando a experiência em si, e construindo respostas distorcidas, mas, ainda assim mais assimiláveis.

O objetivo deste trabalho é apresentar alguns exemplos da relação entre mecanismos neuróticos e a construção de mitos, criados como justificativas que viabilizem processar o sofrimento causado pela infidelidade. A apresentação desses exemplos tem por finalidade gerar uma reflexão do gestalt-terapeuta quanta à importância de estar atento aos processos de fuga para saber diferenciá-los como uma boa forma de evitar o perigo ou uma maneira cristalizada de atuar, impossibilitando crescimento e autoconhecimento, que são fundamentais para sobrevivência e construção de uma vida saudável.

 

METODOLOGIA

Os procedimentos metodológicos utilizados para esta elaboração foram de três tipos, procedimentos estes realizados para o desenvolvimento da monografia já referida. O primeiro e mais consistente, foi um levantamento de natureza exploratória, através da análise de dados secundários, isto é, o uso de informações já existentes, como livros, artigos e pesquisas, que foram estudadas com o intuito de recolher informações e conhecimentos prévios a respeito do assunto aqui tratado e da hipótese que visava investigar.

Outra forma de investigação foi o de conversas informais com mulheres que já havia experienciado a infidelidade. Dessa forma, as idéias que seriam exploradas na monografia foram levadas a um grupo reduzido de indivíduos pertencentes ao universo pesquisado e assim, as informações obtidas como, sentimentos, motivações, conceitos e idéias, foram exploradas, resultando em dados explicativos sobre o assunto pesquisado. Em terceiro lugar, trabalhei com a observação direta da experiência com clientes no consultório, sendo esta refletida e empregada no desenvolvimento desse estudo. Com base em tais procedimentos, vale ressaltar que o material exposto na apresentação trata da cultura ocidental, assim como a fundamentação teórica utilizada: Engels (1974), Feldman (2005), Hefferline (1997), Jablonski (1998), Perls (1988; 1997) Polster, E. & Polster, M (1979), Ribeiro (1997), Rodrigues (2000), Yontef (1998) e Zampieri (2004), entre outros.

Para dar início ao caminho que será percorrido nesta exposição é interessante conhecer alguns pontos históricos, fundamentais para o desenvolvimento deste material, como o surgimento da monogamia, o papel exercido pela mulher na sociedade, o modo como ela era tratada, de que maneira era estabelecida a relação conjugal e as mudanças ocorridas nas últimas décadas.

FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

Para dar início ao caminho que será percorrido nesta exposição é interessante conhecer alguns pontos históricos, fundamentais para o desenvolvimento deste material, como o surgimento da monogamia, o papel exercido pela mulher na sociedade, o modo como ela era tratada, de que maneira era estabelecida a relação conjugal e as mudanças ocorridas nas últimas décadas.

Na Antiguidade, mais exatamente após a origem da propriedade privada, momento pelo qual o homem toma consciência de sua participação na reprodução da prole, surge o patriarcado. Essa estrutura foi instaurada pelo homem e instituiu a política de monogamia através da qual ficaria assegurado o conhecimento de seus herdeiros, já que a sexualidade feminina passa a ser controlada (ENGELS, 1974). Isso porque, até então, o sexo praticado tanto pelos homens como pelas mulheres, não exigia uma exclusividade conjugal. Dessa forma, apenas a mulher reconhecia sua prole, embora não houvesse conhecimento do pai biológico.

[...] a família monogâmica foi necessária ao processo de acumulação privada de bens. Através da união monogâmica, a função paterna passou a determinar a organização familiar e a continuidade da propriedade privada na mesma linhagem. Assim, de acordo com a explicação materialista o surgimento do casamento monogâmico não foi fruto do amor ou de um sentimento natural, mas sim de uma construção social que surgiu a partir da necessidade de estabelecer a certeza da paternidade com a finalidade de concentrar a propriedade e a riqueza nas mãos do homem. Esta concentração só seria bem sucedida se houvesse o controle da sexualidade feminina (ENGELS apud MENDÉZ, s.d.).

No entanto, a monogamia era um artifício que parecia se aplicado somente às mulheres. Ao homem era permitido viver a poligamia e, mesmo com a entrada em cena da Igreja Católica, que aboliu essa prática e determinou que a condenação do adultério passaria a recair sobre o homem e a mulher, o resultado de tal infração era bem mais ameno a eles que a elas. O adultério era tratado como crime capital, mas só era visto dessa maneira quando cometido pela esposa (ZAMPIERI, 2004). Além disso, ficou estabelecido que o sexo visaria apenas a procriação, caso contrário, seus praticantes seriam castigados e condenados, mas ainda assim, as maiores consequências recaiam sobre as mulheres. A sexualidade feminina era controlada, negada e condenada e a função da mulher era apenas a procriação, sendo os casamentos determinados pelos pais que vendiam suas filhas e obtinham um dote.

A força do patriarcalismo perdurou por muitos anos e não se limitava apenas a restrição da sexualidade feminina, como reprimia a mulher em todas as estâncias, não sendo esta detentora de direito algum. Apenas nas últimas décadas do século XIX, algumas pequenas conquistas ficaram marcadas, como a abertura do ensino superior, embora a desaprovação social das universitárias fosse muito grande.

O grande marco nas transformações dos papeis femininos só acontece no final de 60 e início dos anos 70 do século XX. Com a Revolução Industrial e as duas grandes guerras, os valores morais, éticos, políticos e individuais sofreram mudanças, como a mão de obra feminina que se fez necessária para suplementar o salário dos maridos. As idéias feministas começaram a ganhar espaço. A luta era por igualdade social entre homens e mulheres no que diz respeito à participação na vida pública e nas decisões políticas. No entanto, estas transformações como o direito ao voto (1932) e a legislação trabalhista de proteção ao trabalho feminino, consolidado com as leis do trabalho (1932 e 1943), eram carregadas de desigualdades. Apenas com o surgimento da pílula anticoncepcional, com a qual a mulher poderia controlar sua contracepção, os padrões sexuais vigentes passaram por uma reformulação. Foi a partir desse momento que as mulheres passam a lutar por uma igualdade social, defendendo o controle de suas vidas e de sua sexualidade.

Desde então, muitas foram as transformações ocorridas. Hoje falamos de mulheres independentes socioeconomicamente e que gozam de sua liberdade sexual. Neste contexto, percebemos mudanças na constituição dos casais estando o casamento situado numa conjuntura afetivo/sentimental. A exclusividade sexual, isto é, a manutenção da monogamia, passa a ser uma escolha e não uma imposição política ou religiosa. No entanto, mesmo com a quebra de alguns paradigmas e inserida num outro contexto, a infidelidade conjugal continua em voga.

Atualmente, a não manutenção da fidelidade conjugal fala de uma quebra de lealdade e de confiança. Mas, se nos baseamos hoje no amor romântico através do qual temos a possibilidade de escolher nossos pares, o que pode gerar esta quebra?

Sem dúvida, nossa construção social histórica, tão repressora com relação à mulher, deixa resquício em nossa cultura nos dias atuais. Isso pode ser facilmente percebido em nosso processo educacional que é tão diferenciado entre os gêneros. Os meninos recebem mais liberdade e possuem direitos diferentes das meninas como chegar mais tarde ou levar uma namorada pra dormir em casa. Quando se relacionam com muitas meninas são considerados “garanhões” e normalmente invejados. A amostra de sua virilidade é bem vinda e reconhecida. As meninas são tratadas com mais submissão e não possuem a mesma liberdade. Ao se relacionarem com muitos, são consideradas “galinhas”, promíscuas. Se falarem de seus desejos podem ser vistas como oferecidas, “fáceis”, vulgares. Os homens são educados para serem durões, competitivos, fortes, provedores. As meninas devem ser frágeis, doces, delicadas. A criança do sexo feminino tem o quarto rosa, brinca de casinha, trata as bonecas como suas filhas. Os meninos jogam bola, fazem esportes que envolvem luta, brincam com armas e espadas.

É certo que na luta das mulheres pela igualdade com os homens, inclusive no que no que diz respeito a uma liberdade sexual, muito desses estereótipos estão se transformando, o que pode gerar mudanças de paradigmas até mesmo na educação. Por outro lado, Zampieri (2004) traz que as diferenças entre os gêneros, facilitam com que um busque no outro aquilo que lhe falta, sendo cada um a metade de um casal.

Essa idéia de busca e consequentemente de completude vão ao encontro das idéias do amor romântico, paradigma este que nos traz liberdade para escolher um companheiro que supra nossas necessidades afetivas, ou seja, na interação com o meio, o sujeito realiza um processo de auto-regulação através da satisfação de suas necessidades. Porém, o amor romântico possui critérios e regras indispensáveis para o sucesso do casal e a monogamia, ainda hoje, é fundamental para seu estabelecimento, sendo a infidelidade conjugal devastadora para uma relação.

O que muitas vezes acontece, estando ou não envolvidas pela dor, é que o homem que trai é visto pela mulher como responsável único pelo sofrimento gerado pela infidelidade14. O que ocorre é que a mulher deixa de relacionar-se com a experiência ficando impossibilitada de fazer contato com esta. No entanto, grande parte dos casos de infidelidade é consequência de uma relação desgastada e mal zelada, o que implica o casal e não apenas aquele que trai.

14 Vale ressaltar novamente que o trabalho apresentado fará uma referencia às mulheres que vivenciam a traição de seus cônjuges. No entanto, é importante considerar que não estarei falando de regras de comportamento, muito menos que todas as mulheres reagem da mesma forma num sentido linear de causa e efeito. O material apresentado fala de uma possibilidade, que para a apresentadora ficou muito presente, considerando sempre os diferentes contextos, e as peculiaridades do campo.

Embora não possamos determinar as causas geradoras da infidelidade, é essencial ao gestalt-terapeuta observar o comportamento do casal buscando compreender seu funcionamento e a atenção que é dada à relação.

A falta de comunicação, por exemplo, em qualquer tipo de relação pode criar problemas. Quando falamos de uma relação conjugal é fundamental que o casal cuide dessa área, já que os problemas só podem ser resolvidos se falados e ouvidos. Se um dos pares apresenta uma queixa que precisa ser compartilhada com o outro é importante que eles conversem e tentem, juntos, buscar uma maneira para solucionar aquela questão.

Podemos citar como exemplos problemas com o sexo, mulheres que dão mais atenção ao trabalho ou aos filhos, deixando de lado sua relação marital, dificuldade de relacionamento entre o marido e a família da esposa quando estes estão mais próximos ou vivem na mesma casa.

Outra razão que chama a atenção é o caso das necessidades insatisfeitas. É pouco provável que homens e mulheres que vivem uma relação se satisfaçam em todos os sentidos. Sem dúvida é essencial para o sucesso de um casal, entender que o outro pode nos adicionar, mas não nos completar. No entanto, algumas dessas necessidades insatisfeitas podem ser resolvidas com o diálogo. Outras podem favorecer a infidelidade conjugal.

O abandono ou a distância sexual por parte da mulher, senão a mais marcante, certamente é a causa mais comentada entre os homens. Não há como estabelecer uma quantidade ideal de sexo entre um casal para que a relação seja satisfatória, mas, o sexo é indiscutivelmente muito importante numa relação conjugal. Sua falta pode facilitar com que o homem procure outras mulheres que satisfaçam esse desejo. Não menos importante que o sexo, a atenção, admiração, aceitação e afeto são características básicas para manter um casamento saudável e satisfatório entre os cônjuges.

É certo que em alguns casos não são as dificuldades da relação que determinam um processo de traição. Sentimentos pessoais, como a necessidade de auto-afirmação, por exemplo, são fatores facilmente observáveis. A necessidade de afirmar algo para si mesmo pode acabar trazendo danos para a relação.

No entanto, mesmo que o casal apresente uma relação insatisfatória em algum setor, o que poderia facilmente resultar em uma separação, abrindo portas para a procura de uma pessoa que satisfaça as necessidades afetivas, é bastante comum que a união seja mantida e o que é faltante seja buscado numa relação extraconjugal, sendo está permanente ou ocasional. Além disso, em muitos casos o casal permanece unido por diferentes razões como filhos, manutenção de bens, medo de ficar sozinha, medo de não ser mais desejada, por trazer vantagens profissionais, melhoria da vida social, etc.

O fato é que a infidelidade conjugal é uma ameaça aos casais. No entanto, a traição não é sinônimo de uma relação ruim, fadada ao fracasso e com problemas insolúveis, visto que ela pode acarretar a restauração de algumas relações, revitalização de um casamento monótono ou a constatação de um amor que já tinha virado dúvida. Ainda assim, a descoberta de uma traição ou o rompimento amoroso não é fácil e pode trazer sentimentos quase que insuportáveis.

Um movimento natural do indivíduo é o fechamento de figuras, podendo ele, inclusive, compensar visualmente os vazios de um contorno. De acordo com os conceitos da gestalt-terapia, quando não há esse fechamento, seja pela interrupção do processo de formação da figura ou de sua destruição, a gestalt que não foi completa, torna-se uma situação inacabada. Segundo os Polsters, a não formação de uma gestalt é incômoda para o sujeito.

O que chamou a atenção para o desenvolvimento desse trabalho foi o fato de muitas mulheres, ao desvelarem a infidelidade de seus cônjuges, se agarrarem em explicações inadequadas, criadas por elas mesmas, que justifiquem a traição. A busca por uma explicação pode ser entendida como uma forma de fechar essa gestalt já que a “percepção visual vai além daquilo que pode ser visto” (POLSTER, E. & POLSTER, M., 1979, p. 45). No entanto, a escolha por essas explicações infundadas, ou mitos, geralmente mostram a dificuldade da mulher em contatar a relação, perceber seu papel e sua participação na mesma. Reconhecer a própria responsabilidade quando o outro a trai significa perceber sua participação nos motivos que levaram com que o outro a traísse.

De acordo com os conceitos da gestalt-terapia, quando tratamos do comportamento humano, do self, nosso pensamento não pode ser linear no qual uma causa resulta num efeito. Nosso olhar se baseia na teoria de campo, isto é, entendemos que cada indivíduo vive um contexto e seus comportamentos são atravessados por uma série de variáveis como a cultura, educação, personalidade, eventos inter e intrapsíquicos, eventos sociais, herança genética, etc., da mesma forma que seu comportamento também interfere no meio, numa relação de reciprocidade. Assim, todo indivíduo é singular e detentor de peculiaridades. Porém, quando falamos de infidelidade conjugal, é extremamente comum que a dor se presentifique em quase todos os casos.

Esse sentimento gerado pela traição pode ser tão dilacerante que muitas pessoas escolhem protelar ou até mesmo não fazer contato com ela. Observo no consultório que muitas mulheres se apropriam de justificativas inadequadas como forma de evitar esse sofrimento.

Cada pessoa tem a escolha entre viver ou não a verdade presente em sua vida. Cada uma, no seu próprio ritmo, desenvolve a prontidão para encará-la e existe o momento exato para que cada uma atinja essa prontidão. Considerando-se sua estrutura emocional e a dor que pode resultar do confronto com a realidade, sabe-se que algumas pessoas jamais estarão prontas para conhecer as verdades de sua vida (FELDMAN, 2005, p. 51).

Precisamos olhar com maior cuidado para esta questão. Segundo Perls (1988), a gestalt-terapia, todo indivíduo passa por um processo chamado auto-regulação organísmica, isto é, processo pelo qual mantemos nosso equilíbrio. Para isso, é fundamental satisfazer nossas necessidades. O contato é uma necessidade psicológica de todo indivíduo. Através dele, nós assimilamos o que é nutritivo e rejeitamos o que é nocivo para nós. Como resultado, teremos sempre a mudança (SILVEIRA, 2007).

O contato é o sangue vital do crescimento, o meio de modificação da pessoa e das experiências que ela tem do mundo. A mudança é um produto inescapável de contato porque a apropriação da novidade assimilável ou a rejeição da inassimilável levará inevitavelmente à mudança (POLSTER, E.; POLSTER, M., 1979, p.102)

De acordo com Silveira (2007, p. 59) “o ato de contatar envolve sempre a percepção clara da situação”, o que pode, em muitos casos, gerar grande sofrimento. A mulher traída pode apresentar dificuldades em ter essa clareza. Além disso, o processo de mudança, que é implícito no contato, pode trazer mais angústia e tristeza que a descoberta da traição já causou. “Algumas awareness15 são dolorosas demais para serem suportadas; algumas ações são difíceis demais para serem realizadas” (ZINKER, 2001, p. 138).

15 “Na Gestalt-terapia, a awareness é concebida como “estar em contato”, e a ausência de awareness, como “estar fora de contato”” (YONTEF, 1998, p.33).

Segundo Perls (1988), evitar o contato através da fuga da realidade pode ser uma forma saudável de evitar certos tormentos. Para ele, a fuga não precisa ser encarada como algo negativo. Pelo contrário, ela pode ser vista como uma boa forma de enfrentar o perigo. Até porque, todo contato é ajustamento criativo o que significa que cada indivíduo, no seu processo de contato, escolhe uma boa forma de ajustar seu equilíbrio psicológico.

Contato e fuga são nossos meios de satisfazer nossas necessidades, no entanto, “se o contato é superprolongado, torna-se sem efeito e doloroso; se a fuga é muito demorada, interfere no processo de vida” (PERLS, 1988, p. 37).

O processo de fuga (ou resistência) é uma maneira criativa de lidar com determinadas situações, se mais tarde, tendo mais suporte, o indivíduo buscar novas formas de enfrentar a problemática não contatada. No entanto, quando a pessoa fica cristalizada, interrompendo seu crescimento, é bem provável que esta interrupção traga novas interrupções e, com isso, gere resultados desagradáveis. Ao processo pelo o qual o indivíduo se torna incapaz de alterar suas técnicas de interação com o meio, impossibilitando o contato, Perls deu o nome de “mecanismos neuróticos” 16.

16 Os mecanismos neuróticos também podem ser chamados de mecanismo de defesa ou mecanismo de resistência.

Observe como exemplo desses mecanismos, a negação da mulher diante da infidelidade de seu parceiro. Vamos supor que uma mulher fique sabendo que seu marido foi visto jantando com “outra”. Não podendo suportar a dor de uma possível traição, apesar talvez de muitas evidências, a pessoa traída nega essa verdade. Estamos falando de um caso de deflexão. Segundo Jorge Ponciano Ribeiro, pessoas que apresentam sintomas de deflexão agem da seguinte forma:

As pessoas se comportam como se nada estivesse acontecendo. Mantêm, com naturalidade, comportamentos autodestrutivos. Não deixam os verdadeiros sentimentos aflorarem. A organização fica com medo de olhar para dentro de si mesma, se reconhecer e não saber o que fazer com aquilo (RIBEIRO, 1997, p. 85).

A deflexão “é uma manobra para se desviar de um contato direto com uma outra pessoa” (POLSTER, E; POLSTER, M, 1979, p. 93). Aqui, o calor é retirado do contato. É dada pouca ou nenhuma atenção ao que a outra pessoa diz. Em se tratando de uma negação, a mulher traída poderia buscar explicações que justificassem aquele encontro.

Os mecanismos de defesa são processos criativos que podem ajudar o indivíduo a se orientar na busca de auto-regulação. Porém, eles podem deixar de exercer essa função saudável. Isso porque, quando cristalizados, dificultam o contato. Nesse trabalho, o foco está em citá-los como formas cristalizadas de interagir com o meio. Dessa forma, falaremos sobre as disfunções de contato17.

Olhando então às justificativas inadequadas que muitas mulheres se apropriam para não fazer contato, evitando dessa forma o sofrimento, observo que esse sentimento pode não estar apenas relacionado com o processo de infidelidade do companheiro, mas também com a incapacidade da mulher traída assumir sua responsabilidade nesse mesmo processo, até porque, às vezes é mais fácil responsabilizar o outro pela traição e fechar os olhos para nossa participação.

A seleção de justificativas distorcidas como formas para entender a traição do cônjuge, funciona como um mecanismo de defesa; como uma forma de evitar o contato.

Vejamos alguns mitos recorrentes associados a mecanismos neuróticos e possíveis razões para seu surgimento.

17 Todo contato ocorre na fronteira entre o “eu” e o “não-eu”, isto é, entre eu e o que está fora de mim, seja o meio, outra pessoa, um objeto, etc. Estas fronteiras são particulares para cada pessoa, pois diferem pela maneira pela qual cada um contata com o meio. Segundo Erving e Miriam Polster, nessa fronteira, o contato é obtido através de funções ou evitado pela sua corrupção. (POLSTER, E; POLSTER, M., 1979). Se esse contato é bloqueado, nos referimos à disfunção do contato.

Embora estes exemplos mostrem uma maneira de escapar de uma realidade que pode estar carregada de sofrimento, no processo psicoterapêutico, o terapeuta não deve ter por objetivo desconstruir as resistências apresentadas pela sua cliente, muito menos dirigir a terapia para que a mulher traída possa dar-se conta de que ela pode estar se apropriando de razões inadequadas para justificar o processo de traição. O terapeuta pode tentar facilitar com que a cliente olhe para as suas resistências, entenda suas funções e então possa dentro do seu processo de awareness escolher, ela mesma, manter ou desconstruir suas resistências.

Em vez de procurar remover a resistência, é melhor colocá-la em foco, assumindo a posição de que, na melhor das hipóteses, uma pessoa cresce através da resistência e, na pior, a resistência é uma parte de sua identidade. Rotular de meramente resistente o comportamento original é uma coisa enganosa. Remover a resistência para retornar à pureza pré-existente é um sonho inútil, porque a pessoa que tem resistido é uma nova pessoa e não existe um caminho de retomo. Cada passo no desenvolvimento da resistência se torna parte de uma nova formação da natureza do indivíduo. Ele não se torna a pessoa anterior, acrescida de uma resistência que pode ser removida, tão logo ele se torne forte o bastante para removê-la. Ele é uma pessoa totalmente nova (POLSTER, E; POLSTER, M., 1979, p. 63).

Ao associarmos os mitos apresentados aos mecanismos de defesa da Gestalt-terapia não pretendemos fazer uma atribuição de causa e efeito, muito menos criar rótulos interpretativos daquilo que os clientes nos trazem. Mesmo porque, a Gestalt tem um olhar fenomenológico do cliente, isto é, ela “estuda o ‘campo’ conforme ele é experienciado por uma pessoa num dado momento” (YONTEF, 1998, p. 159). Assim, conhecer como funciona a awareness do cliente, estando ela favorável ou não a satisfação de suas necessidades traz para o terapeuta um conhecimento da capacidade da pessoa para o auto-suporte e para realizar seus contatos (YONTEF, 1998). São ferramentas que poderão ser utilizadas no processo, visando com que o cliente possa vir a se auto-governar. É importante frisar que o objetivo da terapia não é apenas trabalhar as demandas dos clientes, mas instrumentalizá-los para que eles sejam capazes de conduzirem suas vidas na direção da boa forma quando estiverem diante de novos obstáculos. Para que a pessoa seja capaz de manter uma auto-regulação organísmica ela precisa estar aware.

Percebemos então, que conhecendo os comportamentos de nosso cliente e os mecanismos utilizados pelos mesmos para estar fora de contato, teremos maior facilidade na condução do processo terapêutico.

 

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