MINI-CURSO 11: COMO TE ENCONTRO? REFLEXÕES SOBRE AS RELAÇÕES CONTEMPORÂNEAS A PARTIR DA ÉTICA RELACIONAL E DA PERSPECTIVA DIALÓGICA


Autora: Priscila Pires Alves

 

RESUMO

O mini-curso traz como proposta, levantar questões acerca das relações na contemporaneidade, tomando como ponto de partida a revolução informacional que torna os complexos teleinfocomputotrônicos meios indispensáveis as trocas entre pessoas na atualidade. A produção da cybercultura e seus reflexos na produção da realidade virtual, levam a necessidade de se redefinir o próprio conceito de encontro, tal como proposto na abordagem gestáltica. Ao consideramos o conceito da ética relacional de Emmanuel Lévinas e do encontro dialógico “EU-TU, EU-ISSO” de Martin Buber, problematizamos os efeitos da realidade digital na construção das relações interpessoais contemporâneas a partir das reflexões oriundas do trabalho com grupo de jovens na abordagem gestáltica. Tratamos no primeiro tópico da sociedade da informação e os reflexos desta arquitetura social nas relações interpessoais que se encontram notadamente marcadas pela virtualidade. No segundo tópico, discutimos o status dessas relações a partir das perspectivas de Lévinas e Buber e suas implicações no trabalho com a gestalt-terapia. No terceiro tópico abordamos os limites e impasses para o trabalho do gestalt-terapeuta diante desse contexto atual, com situações apresentadas na clínica com grupos de jovens. Por fim, concluímos o trabalho apresentando uma reflexão sobre a ética relacional na contemporaneidade e os desafios da abordagem gestáltica e dos gestalt-terapeutas em favorecer estabelecimento de relações funcionais e dialógicas na atualidade.

INTRODUÇÃO

Ao contextualizarmos a realidade contemporânea, identificamos como marco significante, mudanças nos modos de produção material simbólica da sociedade, engendrados notadamente pela revolução na tecnologia da informação gerando uma nova arquitetura no tecido social e, por consequência impactando o comportamento das pessoas e da sociedade.

Fenômeno contemporâneo, o advento da Information Technology penetra as dobras sociais influenciando cada vez mais as formas de relacionamento entre os sujeitos, produzindo assim configurações da subjetividade arregimentadas pela pela lógica digital. A criação de um novo espaço de valores e representações dependentes dos recursos tecnológicos respaldam a disseminação de uma cultura digitalizada, a cybercultura, que estabelece por conseguinte, uma nova configuração das relações do homem com o seu contexto.

A introdução dos complexos “teleinfocomputotrônicos” como acessórios inseparáveis da condição do ser-no-mundo têm produzido uma realidade onde a virtualidade ganha espaço e novos modos de comunicação e linguagem constituem um vasto campo a ser explorado e compreendido. Assim, o propósito de nosso mini¬curso é o de problematizar os efeitos da realidade digital na construção das relações interpessoais contemporâneas a partir das reflexões oriundas do trabalho com grupo na abordagem gestáltica com base nos conceitos apresentados por Lévinas sobre a ética das relações humanas e a perspectiva dialógica de Martin Buber ao confrontar as dimensões relacionais “Eu-Tu” e “Eu-Isso”.

Tratamos no primeiro tópico da sociedade da informação e os reflexos desta arquitetura social nas relações interpessoais que se encontram notadamente marcadas pela virtualidade. No segundo tópico, discutimos o status dessas relações a partir das perspectivas de Lévinas e Buber e suas implicações no trabalho com a gestalt-terapia. Por fim, no tópico “Como te encontro?” concluímos o trabalho apresentando uma reflexão sobre a ética relacional na contemporaneidade e os desafios da abordagem gestáltica e dos gestalt-terapeutas em favorecer estabelecimento de relações funcionais e dialógicas na atualidade.

 

1. A SOCIEDADE DA INFORMAÇÃO E A REALIDADE VIRTUAL

As transformações tecnológicas são o vetor cada vez mais decisivo nos rearranjos do contexto social, uma vez que as inovações tecnológicas alteram as estruturas econômicas, sociais, políticas e culturais da existência humana. Encontramos um fluxo intermitente de mudanças cujo escopo se traduz pelos valores produzidos e que denominaremos “sociedade da informação”. Aqui, a lógica da informação representa os sistemas interativos de comunicação e informação onde novas relações sociais são elaboradas por intermédio do desenvolvimento de uma cultura tecnológica.

Na esfera da produção da circulação e do consumo de bens simbólicos, a oferta cultural de insumos teleinfocomputotrônicos irrompe como objeto de desejo na relações entre mídias e receptores demarcando modos de organização das relações e trocas interpessoais absolutamente idiossincráticos, e produzindo alterações nos padrões de comportamento das pessoas, cada vez mais concentradas na objetivação dos processos e relações, estabelecendo com o mundo um modo de relação calcado no que Buber (2004), classificou de “EU-ISSO”.

A introdução do computador como elemento de mediação nas relações inter¬humanas funda um novo espaço de interação e troca, bem como configura um novo status para realidade: a virtualidade. É o espaço virtual, o campo que inaugura a possibilidade de novas trocas e relações inter-humanas redefinindo os elementos figurais que referendam a constituição da identidade.

A realidade digital assentada no vetor eletrônico-informático, insere as pessoas em um ambiente em que a possibilidade de contato através da tela do computador ganha contexto. Assim, com o suporte material do computador, as relações se fundam e se confirmam através dos “espaços textuais públicos” com afirma Chartier (2002), onde os fóruns de discussão, salas de bate papo, blogs, e programas de trocas de mensagens que permitem bate-papos em tempo real, com uma linguagem simplificada e rápida, tornam-se os principais ambientes para o estabelecimento das trocas entre as pessoas e das relações inter-pessoais.

A concentração de uma vida high tec, coloca os complexos teleinfocomputotrônicos como elementos intercessores da vida das pessoas na atualidade, pois através dos jogos interativos, da internet, sites de relacionamento, orkut entre outros, fundam se redes de relações e assimilam-se os valores vigentes na sociedade.

Nesse contexto, as relações amorosas se fundam e se recriam, produzindo efeitos nos arranjos familiares e nos modos de como se dão os encontros entre pessoas. A experiência de novas relações, novos contatos, assimilação de novos valores, constituem-se como elementos fundamentais para o entendimento do fenômeno amoroso na realidade contemporânea. O espaço para os encontros, reencontros e trocas situam-se cada vez mais na dimensão virtual, assim, como se estabelecem as redes de relação numa realidade predominantemente marcada pelos insumos tecnológicos mediadores das trocas humanas? Como lidar com um espaço cujos verbos :”inserir e deletar” constituem-se novos ícones para caracterizar as relações? O que representa a liquidez e a solidez nesse contexto?

A internet hoje, tornou-se um acessório indispensável criando espaços de interlocução e interconexão entre pessoas que se comunicam, trocam informações em um mundo sem barreiras e sem fronteiras. Nesse espaço, as pessoas encontram uma motivação para realizar suas experimentações no mundo através de uma realidade que se apresenta configurada por novos signos e conceitos referentes ao tempo, espaço e ao próprio movimento, pois as trocas que passa a estabelecer com o mundo estão dimensionadas pela tela e pela rede.

Na fala de um adolescente, identificamos claramente seus conflitos identitários mas ao mesmo tempo uma grande dificuldade de abrir suas possibilidades de contato numa dimensão que não seja a da tela. Como podemos verificar na fala de um jovem:

-“Eu atualmente estou namorando no fake do orkut. Mas no off não estou namorando. A grande vantagem é que não tem problema se meu namorado tem outra namorada no seu modo off, porque estamos no fake o que dá para realizar legal a relação. (...) Por que eu gosto do fake? Ah! Fala sério! Posso ser o que quiser.”

É interessante observar o quanto a realidade digital cria possibilidades e códigos de experimentação que dão a segurança para que a pessoa experiencie formas de ser que não se coadunam com o seu real que seria o funcionamento no modo off. Atentemos para o seguinte fato: off em inglês significa desligado e fake significa falso, algo que não é verdadeiro.

No modo fake não há o confronto autêntico pois o que se cria é um personagem com características que não revelam os meus limites e possibilidades, oculta-se o que está no off que representaria a dimensão do autêntico self que se manifesta nas fronteiras de contato nas relações com seus limites e possibilidades. Assim, o que se questiona é o fato da experiência de tornar-se, estar atravessada por falsos selves onde o jovem acaba vivendo a experiência de uma realidade paralela e encapsuladora, alienante do si mesmo.

O fake representa um modo do jovem estabelecer seus contatos sem os confrontos dialéticos dos encontros eu-mundo. Caracteriza-se por uma cristalização em um ISSO, de acordo com a perspectiva de Buber, que desterritorializa o indivíduo.

O modo off nesse contexto, caracteriza-se por um afastamento do eu em suas dimensões paradoxais e polarizantes, que constituem a possibilidade da tomada do si mesmo de uma forma integradora com preconizada pela abordagem gestáltica.

O modo pelo qual a introdução da Sociedade da Informação domina nossas vidas, geram repercussões em diferentes esferas do viver humano e no caso dos adolescentes é importante se observar se a mediação telemática não produziria subjetividades encapsuladas, virtuais, ou dito de outro modo, fakes que afastariam do contato autêntico o eu do si-mesmo, fato este crucial em se tratando da passagem que caracteriza a adolescência.

Criar e reinventar os modos de relacionamento são características inerentes as habilidades criadoras do homem, consistem em dispositivos que facultam seu ajustamento criador ao mundo. No entanto, no momento em que este modo de relação passa a ser o denominador dos processos de tornar-se do jovem, é fundamental que nos perguntemos sobre como essa realidade virtual invade nossas vidas e nos desapropria de nós mesmos, se não estabelecermos também aí nossas fronteiras de contato.

Bauman (2005), nos fala da liquidez das relações na contemporaneidade, da evanescência com que os laços se constituem e se dissolvem impedindo que as referências sólidas e necessárias para a construção de nossa identidade se estabeleçam. Na virtualidade os espaços são rarefeitos e como tal, o que se constrói nesse campo também se torna volátil.

Nesse campo, o apelo por fazer escolhas que possam num espaço muito curto de tempo serem trocadas por outras, orientam as decisões de inserir ou deletar as pessoas em suas vidas a partir dos critérios de satisfação ou insatisfação decorrentes desse modo de se relacionar. Não dividir o mesmo espaço, estabelecer os momentos de convívio que preservem a sensação de liberdade, evitar o tédio e os conflitos da vida em comum podem se tornar opções que se configuram como uma saída que promete uma relação com um nível de comprometimento mais fácil de ser rompido. É como procurar um abrigo sem vontade de ocupá-lo por inteiro. A concentração no movimento da busca perde o foco do objeto desejado. Insatisfeitos, mas persistentes, busca-se encontrar os modos de relacionamento e inserção no mundo ideal, abrindo novos campos de interação via redes telemáticas.

Daí a popularidade dos pontos de encontros virtuais, muitos são mais visitados que locais físicos e concretos, onde o tête à tête, o olho no olho é o início de um possível encontro. Crescem as redes de interatividade mundiais onde a intimidade pode sempre escapar do risco de um comprometimento, porque nada impede o desligar-se.

Para desconectar-se basta pressionar uma tecla; sem constrangimentos, sem lamúrias, e sem prejuízos. Num mundo instantâneo, é preciso estar sempre pronto para outra. Não há tempo para o adiamento, para postergar a satisfação do desejo, nem para o seu amadurecimento. É mais prudente uma sucessão de encontros excitantes com momentos doces e leves que não sejam contaminados pela paixão, fidelidade, compromisso, caminhos que aprisionam e ameaçam a prontidão de estar sempre disponível para novas aventuras. Bauman (2005), mostra que estamos todos mais propensos às relações descartáveis.

A tecnologia da comunicação proporciona uma quantidade inesgotável de troca de mensagens entre os cidadãos ávidos por relacionar-se. Mas nem sempre os intercâmbios eletrônicos funcionam como um prólogo para conversas mais substanciais, quando os interlocutores estiverem frente a frente. Os habitantes circulando pelas conexões líquidas da contemporaneidade são tagarelas a distância, mas, assim que entram em casa, fecham-se em seus quartos e ligam a televisão.

Bauman (2005), explica que hoje “a proximidade não exige mais a contigüidade física; e a contigüidade física não determina mais a proximidade”. Mas ele reconhece que “seria tolo e irresponsável culpar as engenhocas eletrônicas pelo lento, mas constante recuo da proximidade contínua, pessoal, direta, face a face, multifacetada e multiuso”.

As relações humanas dispõem hoje de mecanismos tecnológicos e de um consenso capaz de torná-las mais frouxas, menos restritivas. É preciso se ligar, mas é imprescindível cortar a dependência, deve-se amar, porém sem muitas expectativas, pois elas podem rapidamente transformar um bom namoro num sufoco, numa prisão. Um relacionamento intenso pode deixar a vida um inferno, contudo, nunca houve tanta procura em relacionar-se.

Nos defrontamos hoje com pessoas que movimentam-se em várias direções, entram e saem de relações, experimentam e vivenciam situações intensas e furtivas com a esperança mantida às custas de um esforço considerável, tentando acreditar que o próximo passo será o melhor. A conclusão não pode ser outra: “a solidão por trás da porta fechada de um quarto com um telefone celular à mão pode parecer uma condição menos arriscada.” (BAUMAN, 2005 p. 35).

É fundamental que possamos pensar nos dispositivos de integração dessas dimensões que compõem a existência humana contemporânea sem perder de vista o foco ao qual nos propomos na abordagem gestáltica: favorecer que cada vez mais o indivíduo ao ampliar sua consciência sobre o si mesmo, possa fazer escolhas congruentes e consistentes para sua existência.

Talvez estejamos nos deparando, mais do que nunca, com a necessidade de realizar ajustamentos criativos e funcionais a essa realidade que se nos apresenta na contemporaneidade, sem negar a experiência que o modo fake produz mas também valorizando a necessidade de turn on do modo off.

 

2. A ÉTICA RELACIONAL E A PERSPECTIVA DIALÓGICA: CONFIGURAÇÕES DA CONTEMPORANEIDADE

De acordo com Lévinas (2004), na vizinhança do ser, no entre nós, há muito mais do que um simples inserir e deletar, pois a relação intersubjetiva implica sinceridade, amor, responsabilidade, atributos que configuram a natureza das relações éticas.

Buber (2004), afirma a necessidade de apreendermos e afirmamos o outro na sua totalidade, condição indispensável para os encontros EU-TU.

Para a abordagem gestáltica, não é possível pensar o homem apenas como uma individualidade, mas como resultado de algo que é perene em sua existência: a relação. Todos partimos de uma relação e nos desenvolvemos como “seres-no-mundo”, em relação.

Ao afirmar a necessidade de apreensão da totalidade do ser, tanto em Buber quanto em Lévinas, encontramos a idéia da importância do outro como possibilidade de nosso desvelamento, uma vez que o que apreendemos em uma relação são as partes inseridas em uma totalidade. A totalidade em si é uma meta a ser alcançada, porque não encontramos de fato uma pessoa desenvolvida nas suas diversas dimensões, isto é, em sua totalidade. O desafio de “estar com” propõe e nos convida a pensar no sentido que há na existência de cada um e a partir daí o desafio de convivermos com a alteridade, de desenvolvermos o amor e respeito ao outro pelo que suas dimensões como ser revelam, e não pelo que nele desejamos encontrar.

Assim, a vida dialógica é um fim para que a condição do homem se revele, como nos aponta Lévinas: O homem é o único ser que não posso encontrar sem lhe exprimir esse encontro mesmo. O encontro distingue-se do conhecimento precisamente por isso. Há em toda atitude referente ao humano uma saudação – até quando há recusa de saudar. A percepção não se projeta aqui em direção ao horizonte – campo de minha liberdade, de meu poder, de minha propriedade – para apreender, sobre este fundo familiar, o indivíduo. Ela se reporta ao indivíduo puro, ao ente como tal. E isto significa precisamente, se se quiser exprimi-lo em termos de “compreensão”, que minha compreensão do ente como tal já é a expressão que lhe ofereço desta compreensão. (LÉVINAS, 2004, p. 28).

A relação com o outro se dá pelo encontro, pela participação que possuímos no processo de “estar com”. O sentido se manifesta no ato do encontro. Para Buber é no EU-TU que o ser se desvela como ente. Em Lévinas, identificamos na significação ética do outro, na abertura do ser a possibilidade de seu entendimento e apreensão como vivência e não como compreensão.

A compreensão é resultado da razão que conceitualiza, nomeia, descreve e reduz. O encontro, a relação com o ente (LÉVINAS, 2004), se manifesta na invocação do outro que se oferece a uma relação a partir do fenômeno de “estar com”.

Assim, como pensar o encontro a partir da mediação dos sistemas teleinfocomputotrônicos? O espaço virtual é uma categoria que faz emergir novas formas de se pensar o encontro e as relações humanas.

Na medida em que as pessoas se conhecem e passam a se relacionar e manter um padrão de trocas no espaço cyber a experiência de “estar com” ganha um novo status. A relação entre o eu e o outro é mediada por um sistema cujo campo virtual produz um estatuto ontológico intermediário para o que está em face no entre nós.

O problema da relação entre o eu e ou outro na sociedade contemporânea, onde nos relacionamos de forma predominante através das redes de contato, dos sites de relacionamento, onde se descobrem amores, amigos e onde inclusive se concretizam atos de um para o outro, resume-se, portanto em descrever como espaço virtual, como um campo de onde se destaca a dialética figura-fundo, se apresenta como um ordenador da realidade do homem contemporâneo.

Como um campo onde se revelam os selves e as relações se concretizam, de que maneira podemos pensar o contato e a dialogia nessa nova ordem? Importa-nos como Gestalt-terapeutas não perder o foco de que nosso trabalho consiste em valorar o “estar com” e os encontros relacionais autênticos independentemente do campo em que se circunscrevem.

No entanto, é fundamental pensarmos em como esses processos se dão, uma vez que as relações virtuais trazem em si novas dimensões de tempo/espaço, e novos conceitos sobre o estado das relações. Os verbos: inserir, deletar, acessar, tornam-se ícones que norteiam as relações virtuais contemporâneas.

O próprio conceito de movimento com a portabilidade, traduz claramente a necessidade imanente de convivermos com os insumos telemáticos que possamos nos sentir entronizados com o meio.

No campo das relações virtuais, há espaço para a afetividade, encontros e desencontros, contudo, a rapidez e fugacidade com que se apresentam e se representam, os atributos relacionais (encontro, presença, contato, olhar, percepção, sensação, etc) se discretizam.

 

COMO TE ENCONTRO?

Nossa experiência no trabalho com grupo de jovens com idades variando de 11 a 18 anos tem atestado o quanto as ferramentas telemáticas, tem sido um meio de contato privilegiado por jovens e adultos na atualidade. Tal ocorrência tem refletido significativamente inclusive em outros contextos como a própria produção da linguagem, pois como o “teclar” é o recurso que faculta a troca de palavras e não mais a fala oral, “inserir, “deletar”, “conectar”, tornam-se verbos que se atualizam no campo relacional. O contexto em que o apego e o estabelecimento de vínculos se dão, estão permeados pelos elementos midiáticos mediadores.

Durante oito meses trabalhamos com um grupo de adolescentes com o tema “Relacionamentos hoje”. O grupo constituiu-se de jovens com idades variando de 12 a 18 anos de ambos os sexos que se encontrava regularmente uma vez por semana para discutir os temas referentes aos relacionamentos. O grupo contou com um facilitador gestalt-terapeuta. O contrato do grupo foi o de discutir e trocar informações sobre as relações na atualidade, com o objetivo de refletir como estamos estabelecendo contato com nosso mundo. A proposta inicial foi a de trabalhar com os jovens a produção de um sentido ético para as relações eu-mundo a partir da compreensão do mundo em que nos encontramos e a conseqüente reflexão de nossas possibilidades, limites e responsabilidades de “ser-no-mundo”

Na medida em que o grupo foi se estabelecendo, identificou-se que todos os adolescentes possuíam uma rede de relações via internet que apresentaram-se como elementos fundamentais para que se discutissem as questões por ele trazidas, uma vez que como desdobramento dos trabalhos realizados, os jovens trocavam com seus “amigos virtuais” o resultado das reflexões realizadas nos encontros presenciais do grupo de tal forma que após dois meses, o grupo inteiro passou a participar de um blog denominado “ser-no-mundo”, criado por um deles.

O grupo que inicialmente começou com dez jovens multiplicou-se, pois esses dez traziam os comentários e as discussões propostas por outros jovens que ao final do trabalho computavam ao todo cem pois as discussões transcenderam os encontros presencias e passaram a ganhar espaço na virtualidade onde pessoas vem e vão, muitas sem deixar o registro de sua passagem ou comentário.

Lidar com esse fenômeno foi o primeiro desafio encontrado, pois como privilegiar um espaço de encontro sem o tete-a-tete, tão importante para nós gestalt¬terapeutas, como forma de capturar e vivenciar o fenômeno do encontro? Ao ser desafiada pelo grupo a entrar no blog e participar das discussões deparei-me com um primeiro impasse, como poderia trocar, fazer comentários ou tecer considerações sobre um tema que estava lançado e mecanicamente respondido pelos depoimentos? Como falar, sem saber para quem se estava falando?

Ao trazer essas inquietações para o grupo, foi-se destilando essa angústia inicial ao compreender que embora o espaço relacional fosse ampliado para um sem número de outros jovens, com as discussões propostas que eram levadas para o blog, na medida em que os encontros presenciais aconteciam, era clara a demanda do encontro semanal como um lugar para se solidificar o que se desdobrava ao longo da semana no espaço virtual.

Interessante notar a possibilidade de empoderamento do jovem para trabalhar com a angústia apresentada por algum amigo virtual em algum comentário sobre um tema específico postado. No processo em curso, observamos que as possibilidades de encontro e entronização no espaço virtual, não eliminam a necessidade do encontro e troca no espaço “tête-a-tête”.

Sendo virtual ou presencial, a possibilidade de encontro, uma vez manifesta abre o ser para o estabelecimento de uma relação da qual pode se constituir um Eu¬Isso ou Eu-Tu, dependendo exclusivamente da disponibilidade, abertura e o entendimento da pessoa sobre o que significa o contato.

O que se apresenta como uma questão crucial e fundamental nesse momento é: Como as pessoas querem se encontrar?

A facilidade do inserir e deletar pessoas na realidade virtual não convoca, como aponta Lévinas (2004), ao encontro relacional autêntico. Na fluidez, o que se estabelece não é a solidez, mas a liquidez. Contudo, há que se considerar que a sociedade está sempre mudando. O homem está sempre mudando. E as questões com que nos defrontamos continuamente quando lidamos com a produção dos sentidos do ser e estar-no-mundo estão atravessadas pelo que é vivido no cotidiano da existência.

A constituição do ciberespaço como uma estrutura infoeletrônica de comunicação, modula as relações sociais a uma estrutura de comunicação interativa virtual e pontua mudanças significativas nos processos relacionais. Com a redução, e em alguns casos, abolição do espaço geográfico e a interatividade prévia com os mediadores maquínicos, o computador torna-se uma tecnologia de acesso a esse novo universo no qual se efetivam as trocas inter-humanas. Os softwares, as imagens virtuais, a otimização da tele-existência do eu como espectros multimediáticos conforme apontado por Trivinho (1999), pressupõem um deslocamento social e cultural do território ordinário para o infoterritório, ou seja, para a materialidade do ciberespaço.
A existência de uma estrutura midiática para a concretização das trocas humanas, no trabalho, nas relações e no cotidiano das interações face-a-face fazem emergir uma série de paradoxos. Nessa cartografia paradoxal, há que se destacar as evidências e ressonâncias desse movimento nos encontros. O processo interpessoal de trocas e comunicação, apresenta imbricações que fazem com que emissor e receptor se dissolvam no jogo “dialético” de produção de mensagens e significados e se constituam nesse campo relacional. Tal condição também se dá no espaço virtual, contudo com um indivíduo difuso, cuja dimensão a ser revelada se manifesta conforme seu ideal.

O conceito de indivíduo teleintegrante ciberespecial pressupõe a digitalização da experiência de estar-no-mundo, Tal denominação sugere um traço em que a experiência da troca não se estabelece por uma relação dialética e diádica, mas por um movimento em que o usuário da rede, precisa buscar compulsoriamente as evidências de sua existência nas trocas em blogs, diários virtuais e em conformidade com os modelos pré-existentes.

Tomar posse da existência, encontrar-se com um Eu-Tu é possível nessa dimensão? Wallerstein (1998), ao refletir sobre o contexto da sociedade contemporânea aponta para o risco da dissolução das singularidades no espaço simbólico de produção das subjetividades tecnológicas. Sua proposta consiste em resgatarmos o que denominou de “utopística”, que consiste em uma avaliação profunda das alternativas históricas que possuímos para repensar e transformar o mundo em que vivemos. Nesse conceito, o exercício de nosso juízo para analisar os possíveis sistemas alternativos históricos que forneçam condições à criatividade humana e reabilitem uma sociedade reflexiva e crítica, torna-se fundamental. Sua proposta, diferentemente de se perseguir uma utopia, é a de se buscar não um futuro perfeito e sim o rosto de um futuro cujas melhoras sejam verossímeis e histórica e concretamente possíveis. Nesse sentido, mais do que nunca a abordagem gestáltica apresenta-se como uma visão e proposta de atuação que pode contribuir de forma significativa para reabilitar o contato, em todas as dimensões em que ele pode se manifestar, de modo que o indivíduo possa assimilar-se a si e ao mundo numa efetiva relação de troca e movimento e não estagnação.

É importante ressaltar que tal proposta não pode prescindir de pensar a realidade tecnológica com a sua potencialidade (positiva) de poderoso instrumento de transformação social, mas que também deve ser capaz de refletir a respeito da sedimentação dos encontros ISSO que tem provocado na relação homem-mundo. Assim, faz-se necessário colocar em discussão não só os efeitos das inovações da tecnociência, mas também como as opções tecnológicas são feitas.

A partir dessas premissas, poder-se-ia advogar uma sociedade marcada por crescentes avanços tecnológicos, mas sem odiosos traços tecnocráticos. Reivindicar uma sociedade onde também houvesse crescentes avanços na filosofia e nas humanidades e onde todas as camadas sociais, em todos os países do mundo, tivessem chances simétricas, asseguradas por processos democráticos, de âmbito tanto nacional quanto global, de participar da geração, processamento, transmissão e apropriação dos avanços científicos e tecnológicos, com possibilidades de efetivas trocas e de salutares “encontros”. Com os encontros inter-humanos, inter-grupais, inter-sociais, inter-nacionais, inter... de fato nos encontramos.

 

BIBLIOGRAFIA

BAUMAN, Zygmund. Amor líquido. Petrópolis: Vozes, 2005.

BUBER, Martin. Do diálogo e do dialógico. São Paulo: Perspectiva, 1982.

_____________. EU-TU. São Paulo: Cortez e Moraes, 2004.

CHARTIER, Roger. Formas e sentido. Cultura escrita: entre distinção e apropriação. Mercado das Letras: Campinas, 2003.

LÉVINAS, Emmanuel. Entre nós. Petrópolis: Vozes, 2004.

WALLESRSTEIN, I. Utopística ou as decisões históricas do século vinte e um. Petrópolis: Vozes, 1998