Autora: Maria Teresa Albuquerque de Souza
RESUMO
Este trabalho
apresenta elementos que, aplicando-se a teoria da Gestalt-terapia e utilizando
a fenomenologia como método investigativo, demonstra que a abordagem
gestáltica tem uma base consistente para o tratamento de pacientes com
Transtorno de Personalidade Histriônica.
Palavras-chave: Transtorno Histriônico. Gestalt-terapia.
INTRODUÇÃO
Na Gestalt-terapia, encontra-se pouca ou quase nenhuma literatura de relato de casos em quadros graves de patologia. Neste artigo, será focalizado um exemplo de caso clínico de psicóticos que procurou a clínica. Trata-se do transtorno de personalidade histriônica.
No caso do paciente histriônico, percebe-se a sua experiência de vida muito ligada ao passado, deixando emergir, na própria experiência presente, uma produção de símbolos que são afirmativas válidas e se estendem além dos limites da interação terapêutica. Esses pacientes, especificamente, têm comportamentos já vividos que se estigmatizaram ao longo do tempo. Os símbolos são tratados na relação terapeuta-cliente, com o intuito de ajudá-lo a re-significá-los. A qualidade simbólica de um acontecimento projeta-o para frente por causa de um poder capaz de levar avante o novo significado criado pelo indivíduo. A partir do momento em que a pessoa assume o novo significado, ela assume também seu lugar no contexto de sua vida e não permanece restrita e encapsulada apenas nas interações que ocorrem na cena terapêutica. Há uma mudança no paciente, e ao desvencilhar-se dos antigos símbolos, ele compreende o que quer para si mesmo e para onde deseja seguir.
Esse processo acontece na Gestalt-terapia, sem que se perca o foco com o terapeuta, facilitando o contato e visando a awareness (tomada de consciência), pois o processo citado só ocorre na fase posterior à awareness.
O trabalho com os pacientes com transtorno de personalidade histriônica faz que o terapeuta seja o seu próprio instrumento de trabalho, como de fato ocorre na Gestalt-terapia. “O terapeuta também, como o artista, age a partir de seus próprios sentimentos, como o artista usando seu próprio estado psicológico como um instrumento da terapia”, afirmam Polster e Polster (2001, p.35). O terapeuta une-se ao paciente, que já está em contato com ele, atento ao que está acontecendo entre ambos, daí a importância da experiência de vida do profissional. Esse tipo de paciente é alguém que precisa de muito suporte e de um bom vínculo, além de uma absoluta confiança no seu terapeuta, não que os outros deles não precisem, pois, em Gestalt-terapia, o suporte é fundamental. Trata-se de um paciente muito carente de atenção, carinho e presença, e sem eles, a terapia não progride.
A Gestalt-terapia é tida como uma síntese coerente de várias correntes filosóficas, metodológicas e terapêuticas, formando uma verdadeira filosofia existencial, uma forma particular de conceber as relações do ser vivo com o mundo. Gestalt é um termo alemão, sem tradução para a língua portuguesa e significa boa forma, fechamento. Cada ser humano tem a sua boa forma de inserir-se no mundo, no seu contexto social e familiar. Alguns apresentam dificuldades para lidar com esse contexto, que muitas vezes lhe é imposto sem que haja uma reação adequada a tal modelo, o que acarreta o adoecimento desse ser. A Gestalt-terapia usa a fenomenologia como método, com o objetivo de favorecer um bom contato, visando a awareness.
O paciente com transtorno histriônico chega ao consultório muito desconectado, algumas vezes com atitudes muito infantis, um pouco ou bastante perdido em sua temporalidade. Ele apresenta uma idade mental divergente da cronológica. As técnicas utilizadas surgem do contexto da relação; por exemplo, esse tipo de paciente vive muito as experiências do passado, e é importante que a todo instante os terapeutas presentifiquem a fala e as novas possibilidades que surgem. Paul Goodman (1997), compreende os fenômenos psicóticos como distúrbios das funções do id. Tais distúrbios manifestam-se no portador por ele não ter conhecimento do que lhe acontece. As crises aparecem como um meio de chamar a atenção do outro, porém, nessa fase, o paciente ainda não tem conhecimento disso. Trata-se de uma doença intencional e involuntária ao mesmo tempo, criando-se então um grande paradoxo. Há um planejamento inconsciente, mas o paciente não consegue se livrar dos sintomas voluntariamente. Existe uma relutância do paciente em reconhecer a sua participação no processo de adoecimento. As causas sempre são buscadas no ambiente em que vive, portanto, as funções de contato são de extrema importância para iniciar o trabalho psicoterápico.
Sabe-se que o contato favorece a awareness, e ele se inicia com a solicitação ao paciente de ele experimentar a sua forma de verbalizar, e também a forma como se vê, portanto, o trabalho é de puro contato. No entanto, as formas de contato não são possíveis durante as crises dissociativas, conversivas ou de qualquer outra natureza que o paciente manifeste. Antes é preciso que os pacientes sejam medicados pelo psiquiatra e só assim pode ocorrer o trabalho do psicólogo, pois quando estão em crise, eles perdem a noção de tudo. São geralmente, encaminhados ao psicoterapeuta por um psiquiatra ou neurologista. Como se trata de um paciente que tem como uma das características a superficialidade, o trabalho a ser realizado pode ser um pouco mais demorado. O contato é o meio pelo qual o paciente vai descobrir quem ele é, do que gosta, tomar posse de suas escolhas e conseqüentemente, ser mais responsável por elas também.
De acordo com a Gestalt-terapia, o quadro do paciente é percebido do ponto de vista psiquiátrico clínico. O profissional trabalha com esse diagnóstico apenas como critério. Apesar de a patologia ser a mesma, possuir algumas características comuns, ela se manifesta de diferentes formas em cada paciente, ou seja, na abordagem terapêutica defende-se a singularidade do ser, até mesmo nos momentos em que se encontram adoecidos. Trabalhar no aqui-e agora é de extrema utilidade em Gestalt-terapia, pois os sintomas são validados como experiência genuína do outro. A Gestalt-terapia, com sua base existencial, oferece meios para o trabalho com o histriônico, por ser uma abordagem que tem um foco na singularidade do ser humano, nas suas novas possibilidades, escolhas e responsabilidade por elas. O enfoque clínico busca similaridades entre os psicóticos, e o enfoque existencial amplia até as diferenças e singularidades.
O transtorno histriônico é caracterizado por um padrão global de excessiva emotividade e comportamentos, pois o indivíduo deseja ser o centro das atenções, e cada um possui sua forma de manifestação singular. Como este artigo é um relato de um dentre outros casos atendidos em consultório, e após sua autorização, buscar-se-á mostrar como a Gestalt-terapia viabilizou a melhora dessa paciente, que autorizou a publicação de seu caso e, será denominada paciente Clara para evitar qualquer tipo de constrangimento para ela.
DESENVOLVIMENTO
Segundo o Manual de Diagnóstico e Estatístico de Doenças
Mentais (DSM IV, 2002), esse transtorno está classificado sob o número
301.50 e, de acordo o documento, o comportamento de pessoas com esse transtorno
são, de maneira inadequada, sexualmente provocante ou sedutores. Esse
comportamento é dirigido não apenas às pessoas pelas quais
os indivíduos demonstram interesses sexuais ou românticos, mas
ocorre em uma ampla variedade de relacionamentos sociais, ocupacionais e profissionais,
além do que seria adequado para o contexto social. A expressão
emocional pode ser superficial e apresentar rápidas mudanças.
Esses indivíduos usam a sua aparência física para chamar
atenção. Eles empenham-se excessivamente em impressionar os outros
com sua aparência e despendem tempo, energia e dinheiro excessivos para
impressionar e se vestir bem. Eles podem “caçar elogios”
pela sua aparência e se aborrecer com facilidade e em demasia por algum
comentário crítico acerca de como estão ou por uma fotografia
na qual, em sua opinião, não saíram bem.
Os histriônicos
são muito sugestionáveis, o que, no início da terapia,
confere maior liberdade para o gestalt-terapeuta trabalhar. Geralmente tentam
representar um papel de vítima ou de um membro da nobreza. Notou-se na
paciente uma tentativa de manipular a família, para a obtenção
de um ganho secundário. Ela apresentou a tendência a entediar-se
com a rotina diária. É impulsiva, quer tudo para imediatamente,
como se não tivesse aprendido a esperar por nada.
Ressalta-se que o transtorno histriônico tem uma intima relação,
no contexto familiar, com a excessiva proteção. A queixa mais
comum da paciente é que não se sente à vontade para fazer
escolhas, para errar, em suma, não consegue se perceber como pessoa normal,
o que acontece, segundo seu relato, desde a infância. Quando questionada
acerca do que é se sentir uma pessoa normal, ela disse que não
sente ter uma vida como a de suas amigas, na qual poderia ser ela mesma.
Não foi detectado risco ou tentativa de suicídio, embora esse
tema sempre fosse uma moeda de troca entre a paciente, que busca ser o centro
das atenções, e a família.
A paciente Clara é do sexo feminino e tem 22 anos. Ela chegou ao consultório indicada por um neurologista. Já havia sido tratada por vários psicólogos, mas não conseguia se entender com nenhum. Estava no ápice da crise, apresentando um quadro conversivo manifestado por convulsões que podiam ocorrer até oito vezes no mesmo dia. Os pais foram alertados que sem um acompanhamento psiquiátrico ficaria difícil trabalhar com ela. Sua primeira fala no consultório foi que ali estava contra a sua vontade e que havia duas coisas que ela odiava: psicólogo e psiquiatra. Com a ajuda dos pais, ela fora a vários psiquiatras e não conseguiu ficar com nenhum. A terapeuta ponderou que ela não poderia ficar sem esse recurso. A paciente lembrou-se de um antigo psiquiatra, e resolveu dar “mais uma chance” a ele.
Iniciou-se
então o trabalho com a paciente, o neurologista, o psiquiatra e a terapeuta.
No início, ela chegava ao consultório sempre amparada pelos pais,
com passos pesados e arrastados, tinha uma fala extremamente infantilizada e,
claro, havia se tornado o centro das atenções da família.
Foi hospitalizada algumas vezes, socorrida em casa pela UTI Vida (Pronto Socorro
Ambulante), e na sua última hospitalização, após
sofrer convulsões na faculdade onde estuda, deu entrada na unidade de
terapia intensiva (UTI) de um hospital. Ficou 48 horas em observação,
foram feitos todos os exames possíveis e não foi detectado absolutamente
nada.
Depois disso, é que realmente começou o trabalho da terapeuta.
Foi feita a investigação fenomenológica, buscando alguma
característica ou ponto de apoio para ser utilizado como facilitador
de contato, mas nada foi encontrado. Ela não sabia o que queria, de que
gostava e muito menos quem ela era. Decidiu-se então fazer para ela uma
leitura do que estava diante dos olhos da terapeuta por meio de diálogos,
como o que se segue:
T _ Me
chama muita atenção a sua voz, sua postura e esse seu jeito de
menininha quando você fala. Você percebe isso?
P – Não. Esse sempre foi o meu jeito mesmo. Sei lá. Acho
que ser assim é uma característica minha. Por isso fiquei tão
irritada quando um dos psiquiatras que eu fui me chamou de garota mimada, chata,
ridícula e que era para a ambulância me levar para o hospício
porque, se eu não mudasse, é lá que eu iria acabar.
T – E o que você acha? Tem alguma dessas características
que você reconhece como sua?
P – Acho que mimada, eu sou um pouco... [assume voz de criança]
T – E o que é ser mimada?
P – É saber que os meus pais fazem as minhas vontades, estão
sempre querendo me agradar, e isso inclui o meu namorado também, apesar
dele ser muito autoritário
comigo.
T – Autoritário como?
P – Assim, ele me cobra muito, quer que as coisas sejam do jeito e na
hora que ele quer. Às vezes em que passei mal, foi pela pressão
que ele tem em cima de mim.
T – Que tipo de pressão? Fale mais sobre isso.
P – Por exemplo, ele diz que a minha mãe me domina muito, que eu
só faço o que
ela quer que a minha amizade com a minha mãe é exagerada. Que
ele nunca viu uma coisa assim. E que eu não tenho opinião própria.
T – Você está me dizendo sobre o que ele acha? E o que você
acha?
P – Olha, eu acho que eu moro com os meus pais, que eles me sustentam
e que eu devo satisfação para eles sim.
T – Eu entendo você me dizer que deve satisfação,
isso é uma realidade, mas você se sente dominada por eles como
seu namorado diz?
P –
[Torna-se pensativa]. Não. Eu só não quero que o meu namorado,
que eu gosto muito fique me pressionando desta forma.
T – Pressionando? Ele te pressiona também?
P – Muito. Por exemplo, ele sabe que eu tomo os medicamentos controlados
do neurologista e os do psiquiatra, e ele me liga quando estou começando
a dormir, então eu digo que não quero falar, mas não adianta,
ele fica horas falando, falando e eu me sinto muito mal, com raiva e muitas
vezes tenho as crises.
T – Quando você diz que se sente mal, você está se
referindo exatamente a quê?
P – Me sinto pressionada, obrigada, forçada a ficar ali escutando
tanto absurdo.
T – E quem permite que isso aconteça?
P – [Longo silêncio]. Sou eu mesma. Mas você não conhece
a figura, ele não sabe o que quer dizer não.
T – E você? Sabe o que quer dizer não?
P – Não sei...
T – E quanto aos seus pais fazerem todas as suas vontades?
P – Ah, eu acho bom, só que tem hora que enche o saco.
T – Enche o saco como?
P – Eles me sufocam, ficam muito em cima de mim. A minha mãe principalmente,
não sai do meu quarto.
Como chegara
o fim da sessão, a terapeuta indicou-lhe a tarefa de pensar o que era
dizer e saber o significado do não na vida dela. O contato com a família
permitiu começar a ampliar a visão do comportamento dos pais,
especialmente o da mãe em relação à filha. Surpreendentemente
percebeu-se que a mãe era invasiva e superprotetora. Ela queria saber
de toda a intimidade da filha, e até mesmo observava sua roupa íntima
para saber da vida sexual dela. A mãe foi colocada em terapia individual.
No decorrer do processo psicoterápico, percebeu-se que o tema central
dessa jovem era a pressão. Ela estava pedindo socorro, mas, como sua
idade mental nessa época não ultrapassava os cinco anos, ela não
sabia como se defender. Então usava o corpo para chamar atenção,
culminando em conversão manifestada por convulsões. De comum acordo
com o psiquiatra e o neurologista, diagnosticou-se o transtorno de personalidade
histriônico.
Considera-se que, a partir de então, se iniciou o trabalho. Pois bem, o que fazer e, sobretudo, como fazer para trabalhar com essa paciente? Uma vez que em Gestalt-terapia se abordam os fenômenos, adotou-se uma atitude mais firme com Clara, evidenciada também no tom de voz. Notou-se que o vínculo havia se formado, quando ela passou a não falar como uma criança e a conversar com voz e atitude coerentes com a sua idade, apesar de ainda chegar ao consultório quase que carregada pelo pai e pela mãe. Durante as sessões, entretanto, ela não se apresentava assim. Ela se queixava que as pessoas não a ouviam, não davam importância ao que ela falava, que ela tinha a sensação de não ser ouvida. Foi feita a leitura do que estava surgindo naquele momento:
T –
Você já se deu conta que você vem no corredor carregada,
que quem cuida dos seus horários é sua mãe e não
você? Onde você está nessa hora?
P – Onde eu sempre estive.
T – E onde é que você sempre esteve?
P – Como assim?
T – Qual é o lugar que você ocupa na sua casa? Quem toma
as iniciativas a seu respeito, quem é o cuidador? P – Em casa é
minha mãe. E quando estou com o meu namorado, é ele.
T – E tendo 22 anos, uma moça que é universitária,
isso faz sentido para você?
P – É assim que tem sido.
T – E a forma que “tem sido” está bem para você?
P – (Pensativa). Não. Eu gostaria muito de resolver e intrometer
nas minhas coisas.
T – E o que está te impedindo?
P – Eu não sei... [fala com voz infantilizada novamente].
T – Quero que você comece a fazer contato com você mesmo,
com as suas necessidades,
P – Como eu faço isso? [Sua voz torna-se normal].
T – O que acontece com você, que depois que você entra aqui
no consultório, você conversa comigo de mulher para mulher e quando
eu abro a porta e você se depara com seus pais você volta a ser
criança, inclusive na fala. Quando você se levanta para ir embora
eu não lhe dou o braço, nem falo com você como se fala com
uma criança. Aliás, eu não atendo criança [risos].
P – Eu não faço isso porque eu quero. [Surgem lágrimas
nos seus olhos].
T – Eu sei disso e acredito em você. Mas, eu gostaria que até
amanhã você pudesse pensar nisso. Porque quem se senta na minha
frente é uma mulher. [Ela começa a chorar].
P – Eu não havia percebido isso. Mas vou prestar atenção.
Quanto aos meus pais
me carregarem, é por causa dos remédios... Fico muito tonta.
A terapeuta
silenciou-se e se despediu dela sem oferecer nenhuma ajuda. Como ela entrou,
saiu. Os pais estavam agendados para o dia seguinte, pela manhã. A terapeuta
afirmava que toda e qualquer escolha teria que partir dela, e, para que isso
ocorresse, era preciso que ela começasse a pensar quais eram as suas
reais necessidades.
Foi pontuado o apoio que os pais lhe davam quando ela caminhava, e a mãe
logo respondeu que se não a ajudassem, ela poderia cair, como havia ocorrido
no banheiro, o que fez surgir um galo em sua testa. Então, a terapeuta
propôs que os pais experimentassem andar ao lado dela, mas sem apoiá-la.
Foi um exercício muito válido, pois sem que ela o percebesse,
eles passaram a deixá-la andar sozinha e, depois disso, ela não
mais teve apoio para andar, o que também proporcionou segurança
aos pais que estavam muito sofridos e desesperançados. A terapeuta dava-lhes
uma injeção de ânimo, dizendo-lhes que mesmo que a filha
tivesse chegado ao fundo do poço, para o ser humano sempre havia novas
possibilidades. Esse era o quadro da paciente Clara. Totalmente dependente,
mas percebia-se que, nas manifestações da doença, havia
indícios de saúde e que o trabalho a ser realizado era o de possibilitar
que a saúde pudesse emergir.
Ela continuou
tendo crises convulsivas, mas estava assídua nas sessões e muito
presente na relação com a terapeuta, que tinha consciência
de que a paciente se sentia perdida, totalmente desconectada com a vida, com
necessidades, e que a fé em si mesma não existia.
Como as convulsões não haviam cessado e nem era de se esperar
que parassem de repente, os pais chegaram à próxima sessão
deles muito desesperados. Queriam ouvir da terapeuta por que ela estava daquele
jeito, pois, por mais que pensassem juntos, não conseguiam compreender
a situação. Estabeleceu-se o seguinte diálogo:
T –
Olha, eu compreendo essa aflição de vocês e acho que como
pais vocês não poderiam estar diferentes. Vou tentar explicar da
forma mais clara possível. Pai – É isso que nós queremos...
T – Vocês estão vendo o canto dessa parede?
Pai – Sim.
T – Imagine a sua filha acuada, imatura, portanto sem saber como reagir,
e sofrendo pressão do pai, da mãe e do namorado. Como ela não
sabe como reagir, ela converte a pressão jogando no corpo. Quem grita
é o corpo. Se ela fosse um fantasma, ela até teria como ultrapassar
a parede, onde ela se encontra acuada, mas ela não é. Essa é
a forma como ela pede socorro. E temos uma coisa a favor dela, que essas convulsões
são psicossomáticas e não causam nenhum dano ao seu sistema
neurológico. [A informação fora transmitida pelo neurologista,
que estava em contato direto com a terapeuta].
Mãe – Meu Deus! Já rodei muitos psicólogos como eu
já lhe disse. E nunca ninguém pode fazer uma leitura tão
esclarecedora como essa. Eu sei que é exatamente isso que está
acontecendo com a minha filha. Nós também precisaremos de sua
ajuda.
T – Eu sei disso, por isso vocês estão inseridos no processo
dela. E fico muito feliz de poder conseguir explicar a vocês o que tenho
observado nela. Mas vou pedir uma colaboração de vocês,
que talvez não seja nada fácil, principalmente para a mãe.
Pai – Pode pedir o que a senhora quiser, que se for para o bem de nossa
filha, iremos fazer.
Mãe – O que seria?
T – Já que temos conhecimento que essas convulsões não
causam nenhum dano maior a ela, eu gostaria que vocês não valorizassem
muito, nem chamasse a UTI Vida. Vamos tentar com que esse quadro a frustre como
centro das atenções. Fiquem por perto e digam coisas como: “Ah
minha filha, isso logo passa. Amanhã é outro dia. Sabemos que
você vai melhorar”.
Mãe – Mas, você não sabe como ela fica. É horrível!
T – Eu sei, sim. A convulsão é um dos quadros mais feios
e entendo perfeitamente a sua aflição. Isso que acontece com ela
não é consciente, e a partir do momento que não for valorizado,
e com o trabalho dela aqui na terapia, vocês verão que pode funcionar.
Pai – Nós faremos isso.
Mãe – Eu não sei não... acho que é pedir muito
para uma mãe.
T – Mas vocês podem experimentar?
Pai – Claro que podemos.
E assim foi feito. A mãe telefonava a cada convulsão que a menina
tinha, e a terapeuta procurava acalmá-la, mantendo-a no telefone, pois
era a única forma de fazer essa mãe ficar distante da menina.
O trabalho com a paciente Clara continuou, até que um dia, no final da
sessão, a mãe pediu para entrar na sala e fez um pedido:
Mãe
– A senhora poderia ligar para o neurologista, porque ele nem me atende
mais, para dizer que o medicamento dela não está fazendo efeito.
T – Infelizmente eu não posso fazer isso. É totalmente antiético
eu interferir no procedimento dele. Mas sua filha pode fazer isso e agora. [A
terapeuta pega o telefone]. Você concorda em ligar para ele?
P – É, na verdade ele não está me ajudando a dormir
e tenho tido muita diarréia.
T – Tá certo. Então como quem tem tido os sintomas é
você e nem a sua mãe nem eu temos sentido isso, você liga
para ele daqui agora, antes que ele saia da clinica, mas eu quero te pedir uma
coisa.
P – O que é?
T – Que você fale com ele sem choramingar e que converse com ele,
da mesma forma que você fala comigo. Seja você mesma, voz firme,
determinada, como você tem sido aqui comigo.
E assim
ela o fez. Os pais ficaram impressionados e depois deram os parabéns
a ela. O pai emocionou-se e contou que nunca tinha visto a sua filha agir assim.
Então a terapeuta explicou que assumir quem se é realmente é
uma questão de exercício. O que se quer, a escolha que se faz,
na vida é que será percebido pelos outros. A imagem que se passa
para os outros é de exclusiva responsabilidade de cada um. Aquele dia
foi um divisor de águas, pois tanto os pais como a própria paciente
foram adquirindo maior confiança e, conseqüentemente, alimentando
a esperança de que ela poderia ser diferente.
Daí em diante, a paciente começou a ser mais colaboradora, e a
cada dia, era mais lúcida na terapia. Trabalhou-se a tentativa de facilitar
o contato e, aos poucos, ela foi acordando para a vida, apesar de ter perdido
dois semestres na faculdade. Nessa época, a figura na terapia foi a mãe.
Ela expressava muita raiva pela intromissão da mãe em sua vida.
A mãe é que falava com os médicos, a mãe dava conselhos
ao namorado sobre intimidades, a mãe literalmente a dominava. Por várias
sessões a paciente explorou esse tema. Até que um dia, ocorreu
o seguinte diálogo:
P –
Eu não agüento mais a minha mãe. Estou cansada dela. Não
posso nem vê-la...
T – O que está acontecendo? Do que exatamente você está
falando?
P – Você acredita que o meu namorado estava dormindo lá em
casa, e como a bonita tirou a chave da porta do meu quarto, a minha mãe
entra, com um monte de desculpas. E entra sem bater na porta. Ela é muito
entrona.
T – O que você acha que a faz entrona na sua vida?
P – Sei lá, acho que ela é uma louca.
T – Olhe, na sessão passada, você me disse que a chamou para
dormir com você, para lhe fazer companhia, e que em algumas freqüentes
vezes você sempre a requisita, não foi isso que você me contou?
P – Foi. Mas uma coisa é quando eu chamo, e outra é ela
achar que pode ir entrando quando bem entender.
T –
Veja bem, se você quer preservar certa distância da sua mãe,
o que a leva a pensar que ela deva se manter longe, se é você mesma
quem a requisita? O que você acha que poderia fazer para conseguir demarcar
esse espaço entre você e ela?
P – Como assim?
T – Se você quer mais privacidade e pede com que ela esteja no seu
quarto, como, você poderia fazê-la entender que não a quer
em cima de você?
Nesse período a paciente não conseguiu responder e disse que, quando necessário, ela chamava mesmo a mãe, porém ela é quem deveria se tocar. Observa-se a falta de contato com o como ela faz, e a incoerência em relação ao que ela quer.
Essa paciente está em terapia há dois anos e meio. Atualmente, ela aprendeu a fazer escolhas, mas ainda reluta em assumir algumas atitudes mais amadurecidas. A sua insegurança no tocante à vida, ao namoro e à amizade, foi radicalmente alterada. Ela terminou o namoro, por escolha própria, reconhece mais as suas necessidades, e as amizades voltaram a fazer parte de sua vida. No inicio de agosto de 2007, ela demonstrou querer recuperar o tempo e sair de perto da família por uns quatro meses. Vai fazer um intercâmbio no exterior, para desespero de sua mãe. Tem atualmente uma vida agitada, como toda moça de sua idade. A terapeuta aposta nessa experiência vindoura, por saber que irá possibilitar crescimento e maturidade para sua vida. Como ela era muito sufocada pela mãe, a iniciativa de querer afastar-se dela soou como cura para a co-dependência existente anteriormente.
Assim que
ela viajar, o trabalho com a mãe será retomado, com o objetivo
de buscar sua autonomia, de ela possuir vida própria e não viver,
literalmente, a vida da filha. Não será fácil para nenhuma
das duas, mas o trabalho que foi feito com essa jovem pode ter sido eficaz para
superar os obstáculos mais preparada para enfrentar o mundo exterior.
A terapia possibilitou seu ajustamento criativo e, se vendo só para resolver
os problemas de uma vida em cultura diferente, ela talvez possa fechar com chave
de ouro essa batalha.
CONCLUSÃO
Depois deste trabalho feito com Clara, conclui-se que a Gestalt-terapia, a partir do contato, awareness e presentificação da fala e da postura da paciente, tem uma base consistente que foi fator determinante para o êxito do tratamento. Ressalta-se que esse relato de caso não tem a intenção de generalizar a cura de psicóticos, portanto, são necessários mais estudos e pesquisas nessa abordagem para verificar se haverá o mesmo resultado positivo no tratamento de pacientes de igual transtorno.
Foi comprovada também a hipótese apresentada na introdução sobre essa patologia paradoxal, que é simultaneamente consciente e inconsciente. Ao fazer contato com a sua situação na vida, ao se ouvir, ela pode perceber que sua única saída seria a mudança de hábitos e a vontade que foi surgindo a cada dia em que o contato se fazia presente e, consequentemente houve a mudança existencial. Ela se situou no se tempo e na sua idade. E voltou a ter vontade e poder de escolha, que é a condição única para qualquer ser humano.
Houve muita
dificuldade na escrita desse relato de caso, pois infelizmente na Gestalt-terapia,
existe uma grande carência de leitura em temas mais variados. E depois
dessa ousadia, foi dado o primeiro passo para que outras pessoas possam expor
suas experiências e com isso enriquecer a nossa literatura.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ASSOCIAÇÃO PSIQUIÁTRICA AMERICANA. Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais: DSM -IV. 4ª edição. Porto Alegre: Artmed, 2000.
Perls F., Hefferline R., Goodman P. Gestalt-Terapia. São Paulo: Editora Summus, 1997. 270 p.
Polster,E.
& M. Gestalt-terapia Integrada. São Paulo: Editora Summus, 2001.
328 p.