MESA REDONDA
08 – PARTE I: PROPONDO UMA VISÃO GESTÁLTICA
SOBRE O AUTISMO
Autor: Sandro Quintana Gonçalves
Eixo Temático: Práticas da Gestalt-terapia na atualidade e os
seus caminhos
RESUMO
Este artigo visa apresentar uma nova visão do autismo, articulando aspectos teóricos da gestalt-terapia com relatos e depoimentos de autistas e pessoas ligadas ao autismo. Analisaremos a existência do ajustamento criativo na pessoa autista, a concepção desta pessoa dentro da teoria do ciclo do contato, buscando compreender os recursos necessários ao terapeuta para atender suas necessidades singulares.
Palavras Chave: Autismo, gestalt-terapia, pessoa autista.
ABSTRACT
This article aims at to present a new vision of the autism, articulating theoretical aspects of the gestalt-therapy with reports and testimonies of autists and people connected to the autism. We will analyze the existence of the creative adjustment in the autistic person, the conception of this person inside of the theory of the cycle of the contact, searching to understand the resources necessary to the therapist to take care of their singular necessities.
Keywords: Autism, gestalt-therapy, autistic person.
INTRODUÇÃO
Desde sua descoberta por Kanner e Asperger, nos meados dos anos quarenta, o autismo tem se apresentado como um mistério para a psicologia, a psiquiatria e a educação.
Os primeiros estudos apontaram que a causa do transtorno estava na incapacidade dos pais, particularmente da mãe, de transmitir amor à criança e criar um ambiente seguro para a expressão de seus sentimentos, gerando um bloqueio na mesma em sua capacidade afetiva, surge assim o termo “mães-geladeira” (Bettelheim, 1967, in Coll, 1995).
Pesquisas mais atuais, apontam para uma disfunção dos recém descobertos neurônios-espelho (Oberman e outros, 2006), neurônios pré-motores que se ativam quando observamos uma ação ou quando percebemos a intenção de uma ação observada.
No presente artigo, tenho o objetivo de trazer uma visão diferente do autismo, através da gestalt-terapia, segundo a qual, nos importa muito menos o “por que”, ou seja, a causa do autismo, e muito mais o “como”, a forma como o ser da pessoa autista se configura para lidar com suas limitações e dificuldades, através de seus próprios ajustamentos criativos, dentro do campo do possível.
PARTE E TODO, FIGURA E FUNDO
Para começarmos a falar da pessoa autista a partir da gestalt-terapia, temos que primeiramente eliminar a separação entre pessoa e autista. É comum ao conversar com profissionais que atendem pessoas autistas ouvir a frase “cada autista é único”, mas a veracidade desta afirmativa reside no fato de que cada autista é uma pessoa, e cada pessoa é única.
Para tratarmos uma pessoa autista, temos que nos desprender da figura, o comportamento autístico, que muitas vezes é identificado como o próprio autismo, e ir ao fundo, o que mais esta pessoa é, além de autista?
“Autismo, embora possa ser visto como uma condição médica, e patologizado como uma síndrome, também deve ser encarado como um modo de ser completo, uma forma de identidade profundamente diferente.” – Oliver Sacks (1995) Tratar uma pessoa autista não é o mesmo que curá-la do autismo, até porque falar em uma cura do autismo é no mínimo controverso. O que buscamos “curar”? O comportamento autístico? As dificuldades sociais e de aprendizagem que estas pessoas sofrem? Ou a nossa própria incapacidade de lidar com o diferente? Além disso, o autismo é uma condição pervasiva da pessoa que o possui, ou seja, faz parte de quem ele é. Chamo a atenção para este ponto, porque ainda existe o pensamento de que ao se curar os comportamentos autísticos, curaremos o autismo.
“Eu
entendo que o desejo de eliminar todos os comportamentos autísticos derivam
provavelmente de uma falta de compreensão destes comportamentos, combinada
com o desejo de que as pessoas tenham uma vida feliz. O que não ocorre
a algumas pessoas, é que essas duas coisas necessariamente não
se excluem.” – Kris Brink, portador da síndrome de Asperger,
fevereiro/2001. Este conceito possivelmente deriva de nossa projeção
do que seja uma vida
feliz, e também daquilo que temos insituído como “saúde”
e “doença”.
UMA VISÃO GESTÁLTICA DO DESENVOLVIMENTO
A gestalt-terapia não possui uma teoria do desenvolvimento formalizada ou divida em fases como ocorre com as teorias de Freud, Piaget ou Erikson, que deram grande importância ao desenvolvimento do ser humano na infância. Para a gestalt¬terapia, o ser humano está em constante desenvolvimento ao longo de toda a sua vida.
Luciana Aguiar (2005), coloca que “... concebemos o desenvolvimento como um processo de inter-ação homem/mundo. A relação estabelecida com o mundo não se caracteriza pela passividade, mas pela possibilidade – guardada as devidas proporções determinadas pelos recursos do indivíduo por um lado, e pelas possibilidades do meio, por outro lado – de ação e transformação do meio com a finalidade de ajustar-se da melhor forma possível às circunstâncias”.
Esta inter-ação ocorre através do conceito chamado auto-regulação organísmica, que entende os organismos em constante busca de equilíbrio homeostático, a partir da emergência de nossas necessidades, que por sua vez emergem no contato com o mundo. Estas necessidades não se resumem apenas as necessidades fisiológicas, mas também abarcam necessidades psicológicas e sociais, organizadas por uma hierarquia que depende do contexto interacional do indivíduo.. Sob este paradigma, a sede ou a fome, são necessidades tão importantes quanto ler um livro, o desejo de ser abraçado, expressar um pensamento ou sentimento, ou a necessidade de realizar um determinado movimento auto-estimulador.
Aguiar continua: “O processo de auto-regulação organísmica objetiva então alcançar o melhor acordo possível entre organismo e meio a cada momento, ao qual denominamos de “ajustamento criativo”... ele é “criativo”, pois implica na ação do indivíduo no mundo a fim de torná-lo o mais assimilável possível, ficando com aquilo que o nutre e recusando e/ou transformando aquilo que não lhe serve.”
Temple Grandin (1992), uma mulher autista de 59 anos, fala de sua infância: “Minha mãe e meus professores ficavam imaginando porque eu gritava tanto. Os gritos eram a única maneira que eu tinha para me comunicar. Às vezes eu pensava logicamente comigo mesma, “eu vou gritar agora porque eu quero falar para alguém que não quero fazer determinada coisa”.
O comportamento descrito por Temple é uma mostra de um ajustamento criativo de uma criança autista. Ela tenta recuperar o equilíbrio perturbado pela necessidade de expressar seu desagrado em fazer determinada coisa através dos recursos que dispõe para tanto.
Grandin diz que “Durante meus anos escolares primários, a minha fala não era completamente normal (...) Cantar, porém, era bem fácil.” O que refere à outro ajustamento criativo relatado pelas mães de alguns autistas com quem tive contato, que é o uso de músicas para tentar se comunicar. A música “Água Mineral” do grupo Timbalada é relatada por estas mães como uma unanimidade entre seus filhos para indicar que estão com sede.
Ser capaz de reconhecer, acolher, respeitar e estimular os ajustamentos criativos da pessoa autista é um ponto fundamental do atendimento dos mesmos. Para isso, é preciso desenvolver a awareness.
Awareness é um conceito em gestalt-terapia de difícil tradução, mas aqui opto por me utilizar da de “tornar-se presente”, ou seja, entrar em contato com seu próprio organismo, suas necessidades, o ambiente ao seu redor, seu contexto no aqui e agora.
O AUTISMO COMO UM PADRÃO DE CONTATO
“Nem todo contato é saudável, nem toda defesa é patológica.” – Fritz Perls, 1977
Jorge Ponciano Ribeiro, em seu livro “O Ciclo do Contato” (1997), propõem uma forma de diagnóstico em gestalt-terapia, onde a patologia se formaria quando há um padrão de contato, ou seja, os recursos criativos utilizados no passado em um determinado contexto continuam sendo utilizados hoje, quando o contexto mudou e esta elaboração criativa não mais é necessária ou benéfica.
O Ciclo do Contato, descrito por Ponciano, pode ser resumido da seguinte forma:
Alguma coisa nos tira de nosso estado de inércia, e precisamos de Fluidez para nos movermos. A partir do momento que nos colocamos em um movimento interno, buscamos a Sensação para nos situarmos. Quando sentimos, entramos em contato com nós mesmos, e a partir daí tomamos Consciência. Com a tomada de consciência, fazemos toda uma Mobilização para entrarmos em Ação. Mas agir, é agir no mundo, agir em relação, e por isso nossa ação se torna Interação. Quando nossa interação é plena alcançamos um Contato Final que nos traz Satisfação. Satisfeitos, podemos realizar uma Retirada até um novo contato.
Quando este ciclo é interrompido, surgem os chamados “mecanismos de defesa ou de sobrevivência”, descritos por autores como Perls, Zinker, os Polsters e Crocker, e organizados por Ponciano, que são exatamente os bloqueios no ciclo do contato descritos anteriormente.
Dentre os padrões descritos nesta obra, quero destacar um em particular que considero pertinente de ser aplicado no caso do autismo: “Fixação (“Parei de existir”): Processo pelo qual me apego excessivamente às pessoas, idéias ou coisas e, temendo surpresas diante do novo e da realidade, sinto-me incapaz de explorar situações que flutuam rapidamente, permanecendo fixado em coisas e emoções, sem verificar as vantagens de tal situação.”(pp. 45)
A descrição de Ponciano sobre a Fixação encaixa perfeitamente nas colocações de Kris Brink (2001): “Nós precisamos continuamente nos assegurarmos que certas partes de nós de fato existem. Pode ajudar se movermos o corpo muitas vezes. Às vezes, alguns dos meus comportamentos auto-agressivos têm essa causa, embora eu esteja sempre procurando subtituí-los. Pode ser difícil, mas tente imaginar o medo que se origina da sensação de que nada separa você do caos do mundo.”
Onde Ponciano fala de um temor diante do novo, e de lidar com as surpresas da vida, o desconhecido, Brink nos pede que imaginemos o medo de se estar desprotegido diante do caos do mundo. O mundo é um lugar caótico e imprevisível para o autista, acompanhar as transformações deste mundo às vezes é até doloroso para eles, por isso, eles se utilizam de fixações como um ponto seguro aonde se firmar em meio ao turbilhão do mundo.
Alguns possuem fixações por números, como o personagem de Dustin Hoffman no filme Rain Man, outros possuem fixações por insetos, fantasias, dinossauros, ou seu próprio corpo e seus sentidos, dentre outras.
Ponciano coloca que o fator de cura para a fixação é a fluidez, que ele descreve como “Processo pelo qual me movimento, localizo-me no tempo e no espaço, deixo posições antigas, renovo-me, sinto-me mais solto e espontâneo e com vontade de criar e recriar a minha própria vida”. Pode parecer, a primeira vista que para obtermos a fluidez temos que necessariamente eliminar toda e qualquer fixação. Entretanto, podemos tentar um caminho diferente, baseado no conceito anteriormente exposto do ajustamento criativo para gerar uma fluidez dentro da própria fixação.
Grandin fala de suas próprias fixações, e de como elas poderiam ter sido utilizadas para estimulá-la na infância: “Mesmo que a minha atração por propagandas eleitorais tenha se iniciado por razões sensoriais, eu acabei me interessando por eleições. Meus professores deviam ter tirado proveito disso para me estimular e me fazer interessada em Estudos Sociais. Calcular os pontos das eleições poderia me ajudar em Matemática. A minha leitura poderia ser motivada através da leitura das propagandas e das pessoas que estavam concorrendo aos cargos políticos. Se uma criança se interessa muito por aspiradores de pó, então use o livreto de instruções do aspirador como livro texto para essa criança.”
Pode parecer que se seguíssemos as indicações de Grandin descritas acima, estaríamos estimulando uma parte do problema ao invés de “curá-lo”, mas como já foi colocado, não se trata de buscar uma cura para o autismo, mas de buscar novas gestalts para a pessoa autista através de um ajustamento criativo.
O AJUSTAMENTO CRIATIVO DO TERAPEUTA
Anteriormente, neste mesmo artigo, citei a importância do acolhimento e estímulo aos ajustamentos criativos da pessoa autista, no entanto, no atendimento de pessoas portadoras de síndrome do espectro autista, é preciso que o ajustamento criativo do próprio terapeuta também seja trabalhado.
É preciso que enquanto terapeutas, entremos constantemente em contato com a pessoa diante de nós, buscando perceber suas dificuldades e principalmente, suas forças. Este pensamento, que poderia ser utilizado em qualquer atendimento realizado por um gestalt-terapeuta, precisa ser reforçado ao lidarmos com autistas. Pessoas autistas, por conta de suas próprias alterações sensoriais e de linguagem são incrivelmente imprevisíveis. E um terapeuta que não se encontre aware e fluído, não estará em contato, numa verdadeira relação Eu-Tu.
Temple Grandin construiu aos 19 anos uma máquina de compressão que ela imaginava desde os cinco anos de idade. Com esta máquina, ela conseguia ter a sensação de um abraço, mas onde ela poderia controlar a força do mesmo para que este contato não se tornasse nocivo para ela. Ela descobriu que esta máquina tinha nela um efeito relaxante e reduzia a sua sensibilidade exacerbada ao tato, o que lhe permitia entrar em contato mais facilmente com pessoas e animais, inclusive lhe desenvolvendo a empatia.
Com todos estes benefícios causados pela máquina, Temple descreve que “Enquanto o psicólogo queria eliminar a minha máquina de compressão, o meu professor encorajou-me a ler jornais científicos para que eu pudesse entender porque a máquina tem um efeito relaxante.” E continua “Se o psicólogo tivesse tido sucesso em tirar de mim a minha máquina compressora, talvez agora eu estivesse sentada em algum canto apodrecendo em frente a uma TV em vez de estar escrevendo...”
Este exemplo ilustra bem o que tenho desenvolvido desde o princípio deste artigo. Não só devemos estimular a awareness da pessoa diante de nós, mas nossa própria awareness precisa ser ampliada para que não nos prendamos ao comportamento autistíco e nem tentemos “curar” aquela pessoa. Lembrando que em gestalt-terapia, “a pessoa é a maior conhecedora de si mesma”, pois ela sabe quais são as suas próprias necessidades e dificuldades. Devemos também estar atentos as nossas próprias necessidades e dificuldades na relação terapêutica.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A partir de uma visão holística e organísmica, o objetivo deste artigo foi o de trazer um novo enfoque sobre o autismo, não mais como uma doença ou transtorno, mas como uma forma diferenciada de ser.
Apesar do nome do artigo ser “O Atendimento ao Portador de Síndrome do Espectro Autista: Uma Visão Gestáltica”, estou aware de que o mesmo se concentrou muito mais em uma correlação teórica e muito pouco em uma prática. Isso se deve ao fato de meu contexto enquanto estudante. Gostaria de revisar este artigo daqui a alguns anos, já munido de experiência clínica e de maior contato com o universo autista.
O autismo
ainda é um território desconhecido, cheio de mistérios.
Espero que este artigo tenha dado novos ventos para aqueles que desejam singrar
por estes mares ainda não mapeados.
BIBLIOGRAFIA
AGUIAR, L. (2005) Gestalt-terapia com crianças: teoria e prática. Campinas: Editora Livro Pleno.
BRINK, K. (2001) Eliminar o comportamento autístico não cura o autismo. Disponível na internet em http://www.maoamigaong.trix.net/eliminarcomport.htm: consulta efetuada em 2008.
COLL, C.(org.) (1995) Desenvolvimento psicológico e educação 3v. Porto Alegre: Artes Médicas.
GRANDIN, T. (1992) AnInside View of Autism. New York: Plenum Press. Disponível na internet em http://www.painet.com.br/rocha/temple.htm: Consulta efetuada em 2008.
OBERMAN, L. M. & RAMACHANDRAN, V. S. (2006) Neurônios-espelho: Espelhos quebrados. Scientific American Brasil 5(55): 52-59.
PERLS, F. S. (1977) Gestalt-terapia explicada, São Paulo: Summus.
PONCIANO RIBEIRO, J. (1997) O ciclo do contato: temas básicos na abordagem gestáltica. São Paulo: Summus.
SACKS,
O. (1995) Um antropólogo em Marte: sete histórias paradoxais.
São Paulo: Companhia das Letras.