MINI-CURSO 05: A INTERDIÇÃO DO PRAZER: UMA ABORDAGEM GESTÁLTICA DAS DISFUNÇÕES SEXUAIS FEMININAS


Autora: Carla Machado Alegria

 

EIXO TEMÁTICO: Práticas da Gestalt-terapia na atualidade e seus caminhos

 

RESUMO

A proposta do minicurso visa a compartilhar reflexões e experiências terapêuticas relativas ao acompanhamento de mulheres que apresentam disfunções sexuais. A base referencial foi a Gestalt-terapia.

Para desenvolver esta abordagem buscou-se ressaltar a compreensão da pessoa em sua totalidade, considerando a história da sexualidade na família, os acontecimentos importantes que contribuíram para moldar sua sexualidade, a interferência de possíveis condicionamentos restritivos, sua experiência atual e as configurações afetivas.

Conferiu-se especial destaque às matrizes afetivas e físicas nas quais estão gravadas nossa história de contatos e sua irrefutável influência na dinâmica relacional, afetiva e sexual.

Abordou-se a sexualidade e seus transtornos para além de uma função que precisa ser reabilitada. Manteve-se, em consonância com esta abordagem, uma atitude frente ao sintoma, respeitando-o como parte de um processo de auto-regulação organísmica.

Afinados com esta noção, dispôs-se da utilização das técnicas clássicas da terapia sexual como um dos recursos para a ampliação de awareness e intensificação do contato.

A referência aqui é a do ciclo de contato e ao seu correlato no ciclo de resposta sexual. Como extensão desta reflexão, mencionou-se o fluxo de funcionamento da fronteira-de-contato e sua expressão nos distúrbios de comportamento sexual.

Por fim, foi descrito o processo terapêutico sublinhando a sua importância no trabalho com sonhos, resistência e relação terapêutica, principalmente na forma como estes revelam as gestalten ocultas referentes a sentimentos de amor, ódio, culpa e vergonha intrincados nos contatos com as figuras afetivas primárias.

 

PALAVRAS-CHAVE: Disfunção sexual. Fronteira-de-contato. Matrizes afetivas. Nascimento do erótico.


OBJETIVO

Considera-se como objetivo central deste minicurso o despertar de reflexões sobre a importância de se desenvolver um olhar e uma escuta sensíveis à presença de situações inacabadas na história emocional da cliente com disfunção sexual, em especial aquelas relativas a sentimentos que ficam gravados na memória corporal, quando da vivência com seus cuidadores, e que revelam-se mais tarde em distúrbios de contato nas relações afetivas e sexuais.

Acredita-se na relevância deste tema, uma vez que fica certificado que a concentração única no uso de recursos técnicos físicos, deixando os conflitos afetivos subjacentes fora da awareness, promove pouca ou nenhuma condição para o crescimento da cliente. Ao contrário, corre-se o risco de acentuar suas resistências e desesperanças.

 

METODOLOGIA

Exposição teórica e recortes de relatos de casos abordados em situações terapêuticas específicas, tais como incongruências no discurso da cliente, sonhos, resistências e distorções de contato na relação terapêutica.

 

INTRODUÇÃO

As reflexões tecidas ao longo desta apresentação foram sendo construídas a partir de acompanhamentos realizados com mulheres que apresentam disfunções sexuais em ambulatório de sexualidade feminina da rede pública e no consultório. Durante o trabalho terapêutico foi percebida a angústia das clientes por almejarem desesperadamente a “cura” para os sintomas, especialmente vaginismo e dispareunia.

A terapia sexual tradicional está centrada no funcionamento normal de respostas sexuais e constitui-se, basicamente, da aplicação de técnicas focadas no corpo, visando à remissão do sintoma.

A proposta terapêutica que será descrita sugere uma abordagem que vai além da tradicional. Considera o processo de crescimento da pessoa como um todo. Inclui a importância da resistência, a representação simbólica do sintoma e, ao mesmo tempo, articula as técnicas específicas largamente utilizadas, que trazem a esperança de dirimir o sofrimento.

 

COMPREENDENDO AS DISFUNÇÕES SEXUAIS

Conceitos referentes à sexualidade utilizados na discriminação e compreensão dos sintomas a partir das queixas da cliente:
As disfunções sexuais femininas são definidas como desordem psicossomática e caracterizadas segundo Kaplan (1983) em três fases: -Desejo: Nesta fase há a motivação (emoção, sentimentos) que provocam a vontade de procurar a atividade sexual. -Excitação: Nesta fase há a estimulação sexual com uma resposta fisiológica de lubrificação. -Orgasmo: É o ápice da fase de excitação com correspondente resposta psicológica e fisiológica.

O diagnóstico descreve alterações em uma ou mais fases do ciclo de resposta sexual, que ocorram de forma persistente e recorrente e que impliquem em mudanças no padrão esperado de interesse e resposta sexual, comprometendo emocionalmente o indivíduo. Segundo o DSM – III Manual Diagnóstico de Transtornos Mentais (1989) as disfunções sexuais são descritas como:

-Transtorno de desejo sexual hipoativo:
a) Deficiência (ou ausência) persistente ou recorrente de fantasias ou desejo de ter atividade sexual;

 

-Transtorno de aversão sexual:
a) Extrema aversão ou esquiva persistente ou recorrente de todo (ou quase todo) contato sexual genital com um parceiro sexual;


-Transtorno de excitação sexual feminina:
a) Fracasso persistente ou recorrente para adquirir ou manter uma resposta de excitação sexual de lubrificação e turgescência até a consumação da atividade sexual;


-Transtorno do orgasmo feminino:
a) Atraso ou ausência persistente ou recorrente de orgasmo após uma fase normal de excitação sexual;

-Dispareunia (não devido a uma condição médica geral) a) Dor genital recorrente ou persistente associada com o intercurso sexual em homem ou mulher;

-Vaginismo (não devido a uma condição médica geral)
a) Espasmo involuntário, recorrente ou persistente da musculatura do terço inferior da vagina, que interfere no intercurso sexual; Outro importante parâmetro para diagnóstico, tratamento e prognóstico é a distinção entre os tipos de disfunções que podem ser primárias – presentes desde o início das atividades sexuais –; secundárias – adquiridas –; situacionais ou ocasionais – presentes em determinadas situações.

Embora as disfunções aconteçam em fases distintas é importante ressaltar que elas podem coexistir.

 

CICLO DE CONTATO E CICLO DE RESPOSTA SEXUAL

Convém assinalar a estreita correlação entre o ciclo de resposta sexual e o conceito de ciclo de contato da Gestalt-terapia definido por Zinker (2007) como: sensação, awareness, mobilização de energia, ação e contato.

As fases de desejo e excitação dependem de uma evolução no ciclo de contato partindo da sensação à mobilização de energia. A fase final do ciclo de resposta sexual definida como orgasmo, compreende ação e o contato.

As interrupções nas etapas do ciclo de contato do comportamento sexual desencadeiam as disfunções sexuais. Podemos inferir que: a interrupção entre sensação e awareness / mobilização de energia, envolvem a dificuldade de ter desejo e excitação, muitas vezes confundidos entre si.

-A interrupção entre mobilização de energia e ação conduz a um bloqueio no desenvolvimento da excitação.
-A interrupção entre ação e contato, desencadeia um comprometimento na capacidade orgástica.

 

ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE A TERAPIA
As clientes com disfunções sexuais são encaminhadas à terapia, em grande parte, por ginecologistas. Freqüentemente, as referidas não apresentam clareza e nitidez na percepção e descrição dos sintomas, especialmente quando estes se manifestam como dificuldade de excitação, de desejo e de orgasmo.

A primeira tarefa da terapia consiste em, além do indispensável acolhimento sem o qual o vínculo não se torna possível, ajudar a cliente a discriminar o que sente, fator que também nos ajudará na compreensão de sua dinâmica pessoal.

Convém mencionar que por vezes as dificuldades são desfeitas por efeito de simples orientação e esclarecimentos, como por exemplo, a importância da manipulação de determinadas áreas do corpo na obtenção do prazer.

Embora considere-se como pano de fundo todas as disfunções sexuais, adotou-se uma leitura das queixas sexuais que as situam em uma outra dimensão, relacionando-as ao ser total.

A definição de disfunção sexual parece supor uma concepção do sexo reduzida à capacidade de obter respostas sexuais “normais”. Acreditamos que, orientando-nos por essa noção, corremos o risco de estreitarmos nosso foco para os genitais, sua fisiologia e a busca da resposta sexual como um fim em si.

Assumimos como eixo de orientação da terapia a noção de erotismo desenvolvida por Perel (2007) como busca deliberada de prazer.

O erotismo assim concebido é indiferente às exigências de resultado. O simples prazer torna-se o objetivo. O sexo passa então a ser considerado como expressão de vitalidade erótica, sentimento de ligação, alegria e renovação.

A abordagem gestáltica no tratamento das disfunções sexuais se diferencia do modelo de terapia sexual tradicional na medida em que não está focada no funcionamento normal da resposta sexual nem dirigida para um resultado específico.

As abordagens mais focadas no sintoma podem apresentar resultados satisfatórios quando na história de vida da pessoa, os conflitos importantes ocorreram numa fase tardia do desenvolvimento.

Contudo, nos casos em que os conflitos marcantes situaram-se na infância, especialmente em seu início, é indispensável uma abordagem que leve em conta os aspectos profundos refletidos na dinâmica relacional.

Assimilamos, em nossa prática, como princípio fundamental, a concepção de cura da Gestalt-terapia descrita por Perls (1951) e descrita por Yontef (1998). Segundo estes autores a cura não é um produto acabado, mas o desenvolvimento da capacidade da própria pessoa de construir a awareness necessária para a resolução dos seus problemas.

Observou-se alguns fatores que dificultam uma boa evolução na terapia tais como: baixa motivação, comprometimento maior na estrutura da personalidade e a ausência de um parceiro fixo na vida da mulher.

A nossa compreensão da cliente envolve um olhar além do conflito sexual. Considera-se como fios de um mesmo tecido: a história da sexualidade na família, acontecimentos importantes que contribuíram para moldar a sexualidade (masturbação, iniciação sexual, história de abuso), a interferência de possíveis condicionamentos restritivos (religião, mitos culturais), a experiência atual e suas configurações afetivas.

 

MATRIZES PSICOLÓGICAS E FÍSICAS DAS RELAÇÔES ÍNTIMAS

Este trabalho teve como enfoque especial as configurações afetivas e suas interferências na dinâmica relacional vivenciada na fronteira de contato dos relacionamentos afetivos do cotidiano da cliente. Contextualizou-se as matrizes psicológicas e físicas das relações íntimas, no início da vida da criança na interação com seus cuidadores (especialmente com a mãe). Estas interações acontecem num contexto essencialmente físico. Segundo Perel (2007) a criança se encontra em uma fase pré-cognitiva na qual não existe uma estrutura formada de pensamento e linguagem e toda comunicação se processa através do corpo.

Ao se refletir sobre o padrão de interação típica desta etapa da maturação, pode-se dizer que a criança está em interação confluente com a mãe. A sua capacidade de diferenciação se apresenta ainda incipiente. Gradualmente, ao experimentar momentos de retração e separação, a criança vai construindo contornos próprios. Em um processo de desenvolvimento saudável o indivíduo maduro estabelecerá contato numa fronteira em que um senso de separação é mantido, havendo ao mesmo tempo, flexibilidade para o contato quando a situação pedir. (Perls, Hefferline e Goodmam,1997)

A mãe que satisfaz e, portanto, valida as necessidades e expressões do bebê, permite-lhe a expansão do seu verdadeiro self. A mãe inábil em sentir e satisfazer as necessidades do mesmo dificulta sua expansão. Neste caso, o bebê passa a desenvolver respostas validadas pela mãe, iniciando a formação do que Winnicott (1983) conceitua como falso self.

A forma como o bebê é cuidado significa o quanto de sua expressão e necessidade mais verdadeira é aceita e validada pelos seus cuidadores. De outro modo, quando o bebê não é acolhido em suas necessidades, os cuidadores comunicam, através da sua forma de relacionar-se com o bebê, o que deve ser por ele escondido, por não ser legitimado. Os aspectos do verdadeiro eu são então encobertos por uma espessa camada de vergonha, que compromete todo o senso de valor pessoal que o bebê construirá ao longo de seu desenvolvimento.

Referindo-se à vergonha, Yontef ressalta:
“Ela é baseada nas vontades e experiências interpessoais mais precoces da criança e do bebê. Como o processo de vergonha freqüentemente começa antes de a awareness tornar-se verbal, os sentimentos de vergonha freqüentemente não estão na awareness verbal, ou apenas estão de forma difusa.” Yontef (1998, p. 369)

Por volta de um ano de vida, os desenvolvimentos cognitivo e motor, que se refletem na aquisição da linguagem e na capacidade da criança de dar os primeiros passos, proporcionam ao bebê condições de ampliar a experiência de mundo, que estava antes reservada aos limites da órbita da mãe. Nesta etapa, a criança expande suas fronteiras, estendendo o seu campo de relações para outros espaços físicos e psicológicos, nele incluindo outras pessoas significativas. Esse passo na construção da autonomia deve ser permitido e estimulado pela mãe. Segundo Bowlby (2006) a criança precisa sentir que ela pode estender seu mundo de relações, estando ancorada numa base de ligação segura. Ele também sustenta a importância de os pais reconhecerem as necessidades que a criança tem de uma base segura para explorar o ambiente. Este autor define o comportamento de ligação como:

“Qualquer forma de comportamento que resulta em que uma pessoa alcance ou mantenha a proximidade com algum outro indivíduo diferenciado e preferido e/ou mais sábio....” (Bowlby; 2006, p.171)

Fernandes; Nogueira; Lazaros; Cardoso Zinker e Ajzemberg (2000, p. 19), em seus estudos sobre a teoria do vínculo, propõem uma leitura da relação mãe -bebê na qual sugerem que “....os comportamentos de apego e separação são polaridades em um mesmo campo”.
Concluem ainda que:
”...a qualidade destas relações de apego são as matrizes afetivas que propiciarão mais tarde que as pessoas estabeleçam relações claras, diferenciem a figura do fundo, percebam o indivíduo em seu contexto, enfim, criem condições para estabelecerem processos de auto regulação.” (idem, p. 20)

Os sentimentos de amor e ódio, presentes em toda interação humana, atravessam o comportamento de ligação e separação.

Quando a criança não encontra a resposta adequada dos pais para suas necessidades de amor e cuidado, a frustração decorrente mobiliza fortes sentimentos de raiva.

Nas relações nas quais há falta de condições pessoais dos pais para absorverem os sentimentos hostis da criança, a relação de punição e culpa impingida pelos mesmos fará emergir medo, vergonha e ansiedade. O medo é gerado pela sensação de desamparo eminente, que a criança costuma imaginar nestas situações, a ansiedade, pela incerteza quanto à disponibilidade dos pais e a vergonha transforma-se, ao longo do tempo, em sentimento de inadequação pessoal.

A maneira como cada um de nós (considerando as condições do campo e os recursos que dispomos) pode ajustar criativamente os sentimentos de amor x ódio, apego x perda, de forma a permitir a awareness e uma possível integração dos mesmos, estará presente em nossa habilidade para mantermos relações afetivas.

Essa noção está ressaltada por Bowlby (2006) na seguinte afirmação:
“O ponto fundamental da minha tese é que existe uma forte relação causal entre as experiências de um indivíduo com seus pais e sua capacidade posterior para estabelecer vínculo afetivo e que certas variações comuns dessa capacidade, manifestando-se em problemas conjugais e em dificuldades com os filhos, assim como nos sintomas neuróticos e distúrbios de personalidade, podem ser atribuídos a certas variações comuns no modo como os pais desempenham seus papéis”. (Bowlby 2006, p. 178)

Concluímos, a partir destas exposições teóricas, que a nossa história emocional, aquela que foi escrita na relação com nossos cuidadores, e todos os sentimentos nela envolvidos – amor, raiva, medo, vergonha, etc. – estão gravados no nosso banco de memória corporal. As marcas desses prazeres e dores são impressas no nosso jeito pessoal de nos vincularmos no amor adulto.


O NASCIMENTO DO ERÓTICO

A noção dos teóricos da gestalt-terapia e dos autores supracitados que sustentam a influência relevante das relações primárias no nosso desenvolvimento emocional é compartilhada e ampliada por Orbach (1999), em sua reflexão sobre o erotismo.

Esta autora defende a tese de que o erótico é uma capacidade coletiva inerente à espécie humana e que é construído e aprendido no contexto relacional. Em suas palavras: “Criamos uma sexualidade juntos, mediante a fusão, a desidentificação ou uma forma de vínculo separado”. (Orbach; 1999, p. 209).

O erótico como forma de expressão potencial, vai sendo talhado nas nossas relações através do que sentimos em nossa experiência física de contato.

Outro fator importante a ser considerado é o atravessamento dos valores culturais na modelagem da sexualidade. Não considerá-los significa ferir o axioma básico da Gestalt-terapia e dos novos paradigmas da ciência que, de forma irrefutável, atestam a condição de todos os fenômenos, em todos os momentos e lugares, estarem em algum nível, interligadas.

Cumpre lembrar que o desenvolvimento do erotismo autêntico nas mulheres fica comprometido pela influência da cultura na construção da identidade feminina.

As mensagens recebidas e assimiladas no contexto cultural ficam arraigadas em nosso corpo. O que não se pode lembrar, o corpo lembra e expressa. Então, sabemos organismicamente, até que ponto suportamos a intimidade sexual sem que seja vivenciada a angústia de nos perdermos ou sermos engolidos. Em que extensão podemos permitir ou proibir a experiência de prazer, considerando o grau de liberdade e o sentimento pessoal de merecimento implicados nesse ato. E ainda, se há a possibilidade de nos permitir mergulhar nas próprias sensações eróticas e ao mesmo tempo ser efetuada a vinculação íntima com o outro, nos auto-regulando frente ao desafio de se associar desejo a amor.

Através da formulação destes princípios em termos gestálticos, buscou-se o apoio nos conceitos de contato e fronteiras de contato, tão bem explorados pelos teóricos desta abordagem e foi construída a proposta, para efeito de compreensão do funcionamento do indivíduo no que tange à sua sexualidade, mediante as seguintes reflexões:

O que sexualmente se assimila ou se rejeita no contato íntimo com o outro tem estreita relação com o quanto se sente amado, protegido e estimulado na busca da autonomia; em que medida a vivacidade e espontaneidade foi acolhida ou reprimida e ainda, de que maneira foram aceitas ou repudiadas as primeiras sensações eróticas.

A modulação da experiência de fronteira quanto à flexibilidade ou rigidez e a expansão e retração, que delimitam as possibilidades de nossa intimidade erótica, compõem um repertório de comportamentos sexuais que variam entre livre fluxo da completude do ciclo de resposta sexual e expressões de dificuldades ou disfunções sexuais.

 

FRONTEIRAS DE CONTATO E SEU FUNCIONAMENTO NO COMPORTAMENTO SEXUAL FEMININO

-Diminuição do desejo sexual: Pessoas com dificuldade de sentir desejo apresentam uma alienação em relação a sua sexualidade. A possibilidade de experimentar qualquer indício de desejo revela-se de forma ameaçadora, o que provoca retraimento da fronteira através de um comportamento de evitação do contato com fantasias, lembranças ou sensações que promovam uma aproximação do erotismo.

-Falta de excitação sexual: Nesses casos percebemos que o processo de retraimento e rigidez da fronteira acontece com a proximidade física do outro. As pessoas evitam o contato físico por anteciparem a angústia gerada pelo toque.

-Anorgasmia: As mulheres com dificuldade de atingir o orgasmo movem-se em direção ao outro, estendem-se para contactar o outro, mas retraem-se antes que possam sentir a ansiedade daquilo que experimentam como sensação de se perder no outro.

-Dispareunia: Observamos em mulheres que apresentam dispareunia uma dificuldade de conterem a mobilidade excessivamente elástica de suas fronteiras.

Abrem-se às experiências físicas e afetivas para as quais não estão emocionalmente organizadas, desenvolvendo a dispareunia como recurso auto-regulador -Vaginismo: Percebemos que as mulheres com vaginismo carregam histórias com forte carga emocional de invasão. Quando estão interagindo sexualmente retraem-se na tentativa de frear o sentimento de invasão. Esse processo culmina na contração involuntária da vagina, impedindo o coito.

 

PROCESSO TERAPÊUTICO COM PESSOAS COM DISFUNÇÕES SEXUAIS

Normalmente clientes com disfunções sexuais não procuram terapia por demanda espontânea. São encaminhadas pelo ginecologista. Ao relatarem sua queixa mostram-se carregadas de perplexidade, não conseguem produzir nenhuma leitura própria na tentativa de compreensão do seu sofrimento.

Estas mulheres geralmente sentem-se traídas pelo próprio corpo, vitimizadas pelo sintoma. Apenas nos casos em que a experiência de abuso sexual está presente, há a atribuição inevitável desta ocorrência como causa e explicação para as disfunções.

Embora, o abuso sexual seja um elemento relevante na contextualização da dor emocional da cliente, não é um fator que, isolado, possa carregar todo sentido de uma história sobre a qual o sintoma foi construído.

A dificuldade de reflexão que a cliente apresenta não se restringe às primeiras entrevistas; estende-se no decorrer da terapia, na forma de carência na capacidade de elaboração dos conteúdos.

O terapeuta precisa ser mais ativo para instigar a produção de novos conteúdos através de formas alternativas de expressão.

Foram descritas algumas vicissitudes da engrenagem do processo terapêutico. Cabe agora salientar os processos emocionais predominantes nas mulheres sob as condições citadas e os recursos utilizados no manejo dos sentimentos correspondentes, a fim de que sejam integrados através de awareness e assimilados à personalidade da cliente.

Observou-se a presença de sentimentos tais como: raiva reprimida, culpa, inveja, vergonha e exclusão. Através do processo terapêutico no qual a pessoa é acolhida em uma relação de aceitação e respeito pela sua dor emocional, gestalten inacabadas vão se deslocando do fundo e apresentando-se com uma configuração possível de ser em algum nível contactada emocionalmente.

O terapeuta habilidoso sublinha as manifestações das gestalten que se apresentam através de vários sinais: expressão corporal do cliente, paradoxos no discurso e simbolismo dos sonhos.
É através do trabalho de focalização e ampliação do fenômeno em destaque que reside a possibilidade da situação inacabada emergir e ser vivenciada e compreendida, adquirindo a clareza e nitidez que favorecerão a revelação de conflitos encobertos.

Na abordagem cuidadosa dos fenômenos que surgem, o que se busca é que a natureza do conflito (o que acontece e como acontece) possa se tornar explícito para o cliente e cada vez mais contactado emocionalmente.

Ao se manter aware, conscientes da experiência presente, com nossa escuta e percepção acuradas na captação da expressão de incongruências e paradoxos, pode-se ajudar a cliente com disfunção sexual a trazer à luz padrões rígidos de relações pessoais que encobrem conflitos, especialmente os relativos ao vínculo com a figura materna.

O trabalho com sonhos, revelador de polaridades e situações inacabadas, possibilita adentrar com a cliente no mundo de representações simbólicas. Ajuda a pessoa a revisitar de forma segura sua dor emocional e os padrões de relacionamento gestados ao longo de sua história. A linguagem simbólica do sonho funciona como uma alavanca em momentos de pouca evolução na terapia, já que esta (especialmente nos casos de disfunções sexuais) é atravessada por várias fases, sendo algumas de desânimo, quando a cliente não consegue entender a função de seus sintomas e se desgasta na procura de explicações.

Outra questão relevante que contribui no processo evolutivo da terapia é a atenção focada na dinâmica da relação terapeuta-cliente. Nesta dinâmica estão presentes as dores emocionais da pessoa em terapia, que podem ser reveladas através de resistências, desesperança e mal estar. É importante considerar que o terapeuta está sujeito a experimentar sentimentos que podem ser uma ressonância aos sentimentos da cliente. Ele deve ter cuidado com esta questão para evitar que a mobilização de seus sentimentos pela vivência do cliente interfira de modo negativo no processo terapêutico. O terapeuta deve estar atento, ainda, ao reflexo do que está sendo recriado entre ele e o cliente como reedição de suas experiências passadas.

No entanto, sabe-se que os sofrimentos mais profundos não podem ser cuidados e transformados em momentos únicos na terapia. As gestalten mais ocultas revelam-se aos poucos em vários momentos do processo terapêutico. À medida que cada aspecto de uma situação inacabada encontra seu sentido, outros se apresentam, buscando novos encaixes, até que todos os elementos estejam organizados em um arranjo no qual seja possível a clareza e fechamento de cada gestalt, naquele momento da terapia e da vida pessoal da cliente.

A máxima das terapias existencial-humanistas aponta para a afirmação de que todos os nossos sofrimentos emocionais foram construídos em uma relação. A “cura”, portanto, se processa na relação terapêutica, desse modo, torna-se relevante que o terapeuta estenda suas antenas para captar qualquer ruído que aponte para alguma distorção na sintonia da relação.

É no trabalho focado na relação que encontramos meios fecundos para explorar a dificuldade do cliente e facilitar que ele atinja uma compreensão para além da cognitiva, que inclua os aspectos emocionais, entre outros.

A essa altura poderá ser lançada a questão: o processo terapêutico com pessoas com disfunção sexual acontece da mesma forma que em outros casos? É como acredita-se que deve ser. Com o foco desviado do sexo e com atenção redobrada à desesperança, à resistência e à relação terapeuta cliente.

O foco no sexo deve acontecer apenas para estimular o prazer, independente das disfunções sexuais.

Para que o corpo não fique à margem do contato sugerimos tarefas, afim de que ele possa ser reconhecido, tocado e sentido.

EMPREGO DE TÉCNICAS

O propósito deste trabalho com tarefas de casa e técnicas aplicadas no setting terapêutico se apóia no princípio da Gestalt-terapia segundo o qual a fronteira de contato é incessantemente mutável, consequentemente, os contornos do campo no qual a experiência em curso acontece é potencialmente renovável a cada instante. Será propiciado à cliente a oportunidade de reconfigurar os limites e possibilidades daquilo que pode ser experienciado no nível corporal e contactado emocionalmente.

A cada tarefa vivenciada, o contato consigo mesma, física e concretamente, vai gradualmente sendo intensificado, permitindo consequentemente um reconhecimento ou descoberta de sensações corporais que estavam à margem de sua experiência.

A sugestão de tarefas é graduada considerando o nível de awareness e os limites de contato que indicam o suporte que a cliente dispõe nesse momento para, sozinha (em casa) enfrentar uma carga emocional que possa ser gerada pelo exercício.

O que a pessoa vai ou não conseguir com a tarefa proposta é menos importante. O valor reside na possibilidade vislumbrada dela obter algum proveito em estar mais próxima de si mesma.

O manejo e a modulação dos recursos são administrados de acordo com a maneira que uma determinada disfunção se apresenta, levando-se em conta a pessoa como um todo.

As idéias discorridas acima sustentam a nossa postura terapêutica quanto à remoção do foco nos resultados. Se nos concentramos em resultados, as dificuldades de realização das tarefas serão sentidas como fracasso. Essa visão estreita acaba por alimentar a desesperança. Portanto, a nossa intenção é que o objetivo seja o que é possível de ser experimentado hoje pela cliente. Aquilo que ainda não é possível experimentar é deixado para um outro momento, quando a cliente puder vivenciá-lo sem risco de aumentar a desesperança e ativar bloqueios.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Na psicoterapia de abordagem gestaltica com mulheres que apresentam queixas de disfunção sexual, propomos uma perspectiva de crescimento que vai além dos limites alcançados pela compreensão de conexões explicativas, vinculadas a conteúdos sexuais vividos no passado e, pela incorporação de novas respostas sexuais. Visa-se ao desenvolvimento da awareness e à reintegração dos processos emocionais, que estão interferindo na capacidade da cliente de fazer contato com a situação presente.

Destaca-se que o terapeuta precisa ter especial atenção à história de contatos da relação mãe-filha, e aos sentimentos de amor, ódio, culpa, medo e invasão inerentes a essa relação, que interferem na dinâmica afetiva e sexual atual e se apresentam como distorção de contato na relação terapêutica.

As técnicas utilizadas (focalização sensorial, relaxamento, dessensibização sistemática entre outras) são incorporadas no presente trabalho como recurso de expansão da awareness, portanto, elas não são incluídas como recurso para modificação de comportamento.

Acredita-se que, quando o foco da terapia está voltado para o crescimento pessoal como um todo, o desenvolvimento de potencialidades e a elevação da auto estima alcançados, promovem condições que permitem um alargamento dos limites da experiência de contato com a sexualidade, implicando num sentimento de maior liberdade e ligação com a vida.

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