MESA REDONDA
06 – PARTE II: BRINCANDO DE OPERAR: GRUPO DE
ACOLHIMENTO DE CRIANÇAS EM PROCESSO CIRÚRGICO
Autores: Bianca Lopes de Souza, Livia Cooper, Rosa Mitre, Celita Almeida,
Renata de Marca, Rafael Maia
INTRODUÇÃO
O presente trabalho refere-se à implantação de um projeto de acolhimento de crianças em processo cirúrgico e suas famílias, desenvolvido desde fevereiro de 2007, com financiamento da FAPERJ, no ambulatório de cirurgia pediátrica do Instituto Fernandes Figueira (IFF/FIOCRUZ). Este projeto foi pensado a partir da demanda da chefia médica da enfermaria de cirurgia pediátrica deste instituto ao Programa Saúde e Brincar. Percebendo o elevado grau de ansiedade das crianças e seus responsáveis no dia da operação, e o despreparo da equipe da enfermaria para lidar com o estresse e a angústia da família, a chefia da cirurgia reconheceu a necessidade de um trabalho que pudesse auxiliar a criança, sua família e a equipe de saúde ao longo deste processo.
A partir desta demanda, fui convidada pelo Programa Saúde e Brincar a escrever um projeto de acolhimento e preparação para estas crianças com orientação da Prof. Dra. Rosa Mitre. O Programa Saúde e Brincar, criado em 1994, tem a preocupação em auxiliar a criança e seus acompanhantes a elaborar e vivenciar o processo de adoecimento e hospitalização, através da promoção de atividades lúdicas nas enfermarias e ambulatórios do IFF. Isso significa dizer, que o projeto precisava ser escrito pensando como o brincar poderia auxiliar estas famílias a vivenciar a situação de hospitalização, operação e recuperação. A partir de minha vivência na Gestalt-terapia, a solução encontrada foi estruturar uma proposta de atendimento que tivesse como base o experimento gestáltico. Assim, as estratégias de intervenções utilizadas na estruturação do trabalho objetivavam, além do acolhimento, favorecer o contato da criança com seu processo cirúrgico, no sentido de possibilitar a ampliação da awareness e o fortalecimento do self destas ao longo do processo operatório.
Sendo assim, este artigo objetiva compartilhar esta experiência com outros profissionais da área de saúde, especialmente gestalt-terapeutas. No sentido de possibilitar o enriquecimento de nossa atuação no ambiente hospitalar. Este trabalho se justifica pela escassez de produção cientifica nacional sobre o tema, especialmente no âmbito da gestalt-terapia.
O presente artigo foi desenhado da seguinte forma: primeiro apresentamos uma breve revisão sobre a temática da preparação de crianças para cirurgia. Em seguida, apresentamos o nosso caminho e os conceitos que nos guiaram na estruturação desta proposta. Posteriormente, apresentamos nossa atual metodologia de trabalho, os resultados que temos conseguido e por fim algumas últimas considerações.
A EXPERIÊNCIA CIRÚRGICA INFANTIL: ALGUMAS CONSIDERAÇÕES
Sabe-se que a experiência cirúrgica é potencialmente traumática. Aos sentimentos de perda, somam-se a insegurança, o desconforto emocional, sentimentos de impotência, isolamento, medo da morte, da dor, da mutilação, de ficar incapacitado, de mudanças na imagem corporal, etc.
Quando os pacientes cirúrgicos são crianças, esta vivência pode ser emocionalmente ainda mais devastadora. Segundo Felder-Puig e col. (2003) a criança pode perceber a necessidade da cirurgia como uma punição, pode sentir-se intimidada pela separação da casa e pelo estranhamento do espaço hospitalar, além de poder apresentar desconfortos e dúvidas a cerca dos procedimentos a que será submetida.
Sentimentos de medo e ansiedade são reações consideradas normais no período pré-operatório. No entanto, na medida em que essas condições se elevam e se somam à tensão, estresse ou outras condições adversas do estado emocional, o paciente apresenta respostas organísmicas que podem prejudicar o seu processo cirúrgico. Crianças mais ansiosas durante o período pré-operatório exibem também comportamentos mais agitados durante o pós-operatório. Guaratini (2006) afirma que as principais conseqüências médicas para a criança com elevado grau de estresse durante o processo operatório são: indução anestésica tempestuosa, redução das defesas contra infecção e aumento no consumo de anestésicos no período intra-operatório. Felder-Puig e col (2003) complementam afirmando que algumas alterações de comportamento devido a perturbações ao longo do processo cirúrgico podem surgir em até duas semanas após a cirurgia. Segundo Moro e Módolo (2004), podem persistir por até um ano após a operação. Dentre estes comportamentos, Rice e col. (2008) citam como principais a presença de irritabilidade, desobediência, pesadelos, choros noturnos, ansiedade de separação, distúrbios alimentares e enureses noturna.
Para Guaratini(2006) alguns fatores podem prever graus elevados de ansiedade no período pré-operatório: temperamento prévio da criança, níveis baixos de sociabilidade, comportamento adaptativo, emocionalidade, impulsividade, experiência cirúrgica prévia, hospitalização, visitas conturbadas aos consultórios pediátricos e níveis elevados de ansiedade dos familiares.
É importante ressaltar que o grau de ansiedade dos pais influencia a ansiedade dos filhos. Segundo Li, Lopez e Lee (2007), a maioria dos pais relata apresentar dificuldades em ajudar seus filhos a passarem pela situação estressora que é a operação. Estes autores afirmam ainda que o envolvimento dos pais é fundamental para a redução da ansiedade das crianças na preparação no pré-operatório. Pois, como nos afirma Oaklander (1980, p. 275), “se os pais são capazes de confrontar abertamente os seus próprios sentimentos, a criança tem mais facilidade para ser aberta com seus próprios sentimentos e confusões”. Neste sentido, Hug e col. (2005) apontam a relevância de se estudar a percepção da família sobre a cirurgia. Aja visto que a resposta emocional das crianças é afetada pela percepção da família.
Moro e Módolo (2004) afirmam que as diferenças etárias influenciam na forma como cada criança experimenta o processo cirúrgico. Segundo eles, no período de 0 a 6 meses a maior ansiedade é dos pais, já que o bebê ainda não possui recursos para entender, nem mesmo lembrar cognitivamente de eventos desagradáveis, já que este registro é prioritariamente corporal. Entre os 6 meses a 4 anos a maior ansiedade concentra-se na própria ansiedade de separação. Entre 4 a 6 anos a criança já consegue compreender algumas explicações e a maior ansiedade concentra-se na preocupação com a integridade do corpo e mutilação cirúrgica. A partir dos 6 anos, toleram bem a separação, são mais capazes de compreender explicações, podem comunicar com mais facilidade seu medo de acordar durante a cirurgia ou não acordar. Na adolescência a ansiedade maior está no medo de perder o controle.
Da mesma forma, a diferença etária das crianças também é determinante no planejamento do período em que a preparação para cirurgia deve acontecer. Kain e col. (1998) recomendam que para crianças com 2 a 4 anos a preparação deve acontecer 1 a 2 dias antes da cirurgia e crianças com idades entre 5 e 12 anos, 5 a 10 dias antes da cirurgia.
Dessa forma, segundo Li e Lopez (2006) a resposta emocional das crianças a cirurgia precisa ser acessada por um instrumento multidimensional. Isto é, um instrumento capaz de abarcar a complexidade presente nesta vivência: intensidade da ansiedade presente, fantasias acerca do processo, expectativas em torno dos procedimentos, o significado simbólico da operação para criança e sua família, o impacto na qualidade de vida da criança, etc. A compreensão da resposta emocional da criança a cirurgia é essencial no planejamento e implementação das intervenções apropriadas a cada clientela. Mais do que informativos teóricos sobre a operação, ou inventários de estresse e ansiedade, é preciso criar um clima acolhedor, de confiança, onde a criança possa se sentir segura para dividir sua experiência, inclusive seus medos e fantasias. Tornando possível auxiliá-la na compreensão da situação vivenciada.
Neste sentido, atualmente vem sendo desenvolvido em diversos países diferentes estratégias de preparação de crianças para cirurgias. Segundo Kain e col. (2007) dentre as três estratégias de intervenção mais comuns são: administração de sedativos antes da cirurgia; autorização dos pais para estarem presentes na indução da anestesia; promoção de programas de preparação antes da cirurgia. Estes autores defendem que os efeitos destes programas são similares aos dos sedativos. Com o benefício dos programas terem custo reduzido para a instituição e nenhum risco para a saúde da criança.
Estes programas contam com os mais diversos instrumentos de intervenção. Felder-Puig e col. (2003), por exemplo, descrevem um programa de preparação que utiliza um livro infantil na preparação das crianças e das famílias. Estes autores defendem o uso do livro ilustrado como meio de antecipar para a família as possíveis situações a que serão submetidas, em linguagem acessível e lúdica. Já Hug, Tonz e Kaiser (2005) apresentam a utilização de um CD-ROM com informações sobre a cirurgia. Kain e col. (2004) citam a musicoterapia. Patel e col. (2006) apontam o uso do vídeo-game. Li, Lopez e Lee (2007) apresentam como instrumento o brinquedo terapêutico. Alguns autores descrevem mais de um instrumento no preparo das crianças e suas famílias. Por exemplo, Rice e col. (2008) descrevem o uso da apresentação de slides sobre o dia da operação, articulado com visitas as instalações hospitalares por onde a criança circulará e ainda o contato com alguns instrumentos médicos. Já Kain e col. (2007) descrevem uma proposta que entrega um kit de preparação para a família com: vídeo de 23 minutos com entrevistas com pais e crianças sobre o momento da anestesia; três folhetos sobre o que esperar no dia da cirurgia, como distrair seu filho e treinamento em casa de certos procedimentos do centro cirúrgico; máscara de anestesia, máscara comum e touca. Já Ellerton e Merriam (1994) apresentam a articulação entre a apresentação de um vídeo sobre o dia da operação, visita ao hospital e o brincar com os instrumentos médicos. Dito isto, fica evidente a grande variedade de alternativas encontradas nos mais diferentes locais para oferecer a criança e sua família algum preparo para a operação. No entanto, Kain e col. (2007) afirmam que os programas de preparação que apresentam resultado mais satisfatório são aqueles que articulam diferentes instrumentos e estratégias de intervenção e priorizam o brincar como mediador do atendimento.
Segundo Li, Lopez e Lii (2007), as estratégias que utilizam o brinquedo terapêutico são importantes na medida em que possibilitam a criança se divertir, diminuir a potencial carga estressora da experiência, aliviar a tensão reproduzindo o que acontecerá no procedimento e sentir-se mais no controle da situação. Isto porque, traz a possibilidade da criança interagir com o material e o ambiente hospitalar de uma maneira não ameaçadora. O uso das bonecas para explicar os procedimentos pode fazer com que complicados conceitos sejam facilmente entendidos.
CONCEITOS QUE NOS GUIARAM NA ESTRUTURAÇÃO DESTA PROPOSTA
A partir do que dizia a literatura, de um longo período de observação da enfermaria de cirurgia pediátrica e de entrevistas com enfermeiras, médicos, crianças e responsáveis. Reforçamos a necessidade da estruturação de uma proposta de intervenção junto a estas famílias, que fosse capaz de acompanhá-las ao longo do processo operatório das crianças. Pudemos confirmar a existência de uma enorme demanda da equipe e das famílias por um trabalho que pudesse aliviar a angústia das crianças especialmente no pré-operatório. Descobrimos que a angústia da criança, angustiava a equipe de saúde e mais ainda a família. De maneira geral, os responsáveis chegavam para a cirurgia com muitas dúvidas sobre os procedimentos e as rotinas do hospital. Sem conhecer a equipe de referência, nem mesmo o espaço onde ficariam durante a internação da criança. Percebíamos desconfiança, desconforto e muita insegurança tanto na família, quanto nas crianças. Embora a enfermaria fosse um lugar muito barulhento pelo intenso fluxo de pessoas, pela passagem de macas, pelos choros das crianças e apitos dos aparelhos médicos, a comunicação entre a equipe, as crianças e as famílias era muito silenciosa. Pouco se falava sobre a experiência cirúrgica naquele espaço e a sensação de acolhimento era praticamente inexistente.
Sendo assim, nosso trabalho teve início com a preocupação de acolher essas famílias na sua chegada ao serviço de cirurgia. Nossa motivação foi o desejo em conhecer melhor nossa clientela, e criar um espaço de troca de experiência e suporte emocional ao longo do processo cirúrgico das crianças. Para que elas se sentissem mais seguras naquele território. Entendemos que “acolher é cuidar, é amparar, é acompanhar, é respeitar. É a partir do acolhimento que nasce a confiança e, consequentemente, a entrega.”(Carné, 2002, p.41). Isto é, acreditamos que o acolhimento era parte do processo terapêutico e, portanto fundamental para que a criança e sua família pudessem vivenciar a experiência cirúrgica com mais confiança.
Nesse sentido, entendemos a necessidade de que o trabalho acontecesse exatamente onde estas pessoas estavam, ou seja, na sala de espera. Como nos propõe Carnè (2002, p.41), “A sala de espera é um local de informalidade e, ao mesmo tempo, lugar de acontecimentos relevantes, em que o ato de esperar produz um hiato que se situa entre o que está por vir e o que já foi vivido. É, também, um terreno de incertezas, expectativas e angústias, tornando-se palco das projeções de quem espera e é esperado. Esse tempo – cronológico e afetivo – que antecede a sessão representa momentos significativos, pois podem desencadear estados emocionais, carregados de subjetividade.”
A sala de espera do ambulatório de cirurgia foi o lugar onde encontramos o maior o número de crianças esperando. Muitas esperavam confirmar a necessidade da operação, outras o tipo e o dia da operação, algumas esperavam saber como estava sua recuperação e outras esperavam a alta do serviço. O Instituto Fernandes Figueira/FIOCRUZ é referência na atenção à saúde da criança, do adolescente e da mulher. Sua clientela caracteriza-se em geral pela alta complexidade das doenças. Por essas características, recebe crianças oriundas de diferentes localidades, muitas delas com indicações cirúrgicas de pequena, média e/ou alta complexidade. A sala de espera era o lugar onde esta diversidade de casos, pessoas e histórias se tornava mais evidente e localizável. Sendo um local muito fértil para a troca de experiências e para construção de redes de apoio. Neste sentido, decidimos estruturar nossa proposta num trabalho de grupo de sala de espera. Segundo Oaklander (1980, p.315) “O trabalho de grupo é a situação ideal para crianças que precisem praticar suas habilidades contactuais”. Para ela, “O grupo é um lugar para a criança tomar consciência de como interage com outras crianças, para aprender a assumir responsabilidade pelo que faz, e para experimentar comportamentos novos. Além disso, toda criança precisa de contato com outras crianças, para saber que as outras têm sentimentos e problemas semelhantes”. No caso de crianças em processo operatório este contato é ainda mais importante, na medida em que viabiliza a troca de conhecimento sobre esta vivência entre as crianças, e consequentemente a descoberta de instrumentos de enfrentamento da angústia e ansiedade presentes. Assim, optamos por estruturar nossa proposta a partir do conceito de grupo temático. Isto é, “ um tipo de grupo destinado a pessoas que desejam aprofundar-se em determinado tema (...)Todas as colocações devem girar sempre em torno do mesmo e único tema. A periferia poderá ser igualmente estudada, mas sempre em referência ao tema central, que permanece sempre figura”(Ribeiro, 1999 p. 171). Neste caso, o tema central seria a experiência cirúrgica. Por se tratar de um grupo de sala de espera, optamos por estruturá-lo também como um grupo aberto, isto é, “aquele em que os membros do grupo entram e saem com facilidade. Não existe um compromisso rígido de freqüência e de permanência. As pessoas desses grupos já sabem e aceitam o seu funcionamento dessa maneira. (...)Funcionam frequentemente como grupos de espera, de reflexão, onde um efeito terapêutico secundário pode acontecer e a prática mostra que acontece, pois basta que as pessoas se reúnam com sinceridade para que o encontro se torne viável”. ( Ribeiro, 1994, p.94)
Por tratar-se de um grupo de crianças, encontramos a necessidade de estruturar uma proposta que pudesse ser vivenciada ao longo do encontro. Algo que fosse mais do que a simples explicação dos procedimentos e das rotinas. Neste sentido nos fundamentamos no conceito de experimento. Na Gestalt terapia, segundo Polster e Polster (2001), o experimento é um meio de aprofundar o contato e uma tentativa de recuperação da conexão entre o falar sobre e a ação. Isto porque, o experimento é atuação. É mais que o discurso, é atenção focada naquilo que se faz quando se faz. É a integração entre o falar, o agir e o pensar. Para Zinker (2007, p. 145), “o experimento gestáltico é uma forma de pensar em voz alta, uma concretização da imaginação da pessoa, uma aventura criativa”. Segundo ele, os propósitos do experimento são: aumentar o alcance da awareness, ampliar o entendimento de si mesmo, expandir a liberdade de agir no ambiente com eficiência e aumentar o repertório de comportamentos numa variedade de situações. Zinker afirma que em grupo o experimento é poderosamente eficaz porque conta com o apoio da ampla criatividade de todos, e ainda, é apenas um caminho para iniciar e ampliar o processo de contato. Segundo ele, “O experimento se dirige ao cerne da resistência, transformando a rigidez em um suporte elástico para a pessoa. Não precisa ser pesado, sério, nem ter uma comprovação rigorosa; (...) não precisam brotar de conceitos; podem começar simplesmente como brincadeiras e desencadear profundas revelações cognitivas”. Neste sentido, o experimento gestáltico se mostrou integralmente coerente com a nossa proposta de intervenção. Revelou-se um meio interessante de possibilitar o contato de cada criança com suas vivências anteriores, expectativas, ansiedades e angustias presentes no aqui-e-agora, e ainda possibilitar a troca de experiências entre elas, no sentido de ampliar os instrumentos de apoio de cada uma e do grupo ao mesmo tempo. Mais do que isso, revelou o brincar como um meio de experimentação gestáltica.
Sendo assim, optamos por introduzir o brincar como base para toda a estruturação de nossa proposta de intervenção. Entendemos o brincar como:
“uma relação de total aceitação e confiança no encontro corporal de uma pessoa com outra; com a atenção posta no encontro e não no futuro; não no que virá, mas sim no simples fluxo da relação -fundamental para o desenvolvimento da consciência corporal e o lidar com o espaço. (...) É portanto inocente e transcorre sem tensão e angustia, como um ato que se vive no prazer e é o fundamento da saúde psíquica, porque se vive sem esforço mesmo quando no fim há cansaço corporal.” (Maturana e Verden-Zoller, 2004, pag. 230)
As crianças
são capazes de lidar com complexas dificuldades psicológicas através
do brincar. Elas procuram integrar experiências de dor, medo e perda.
Brincando a criança coloca-se num papel de poder, em que ela pode dominar
os vilões ou as situações que provocariam medo ou que a
fariam sentir-se vulnerável e insegura, como é, por exemplo, a
situação cirúrgica. Para Kishimoto (2000), a brincadeira
de faz-de-conta, também conhecida como simbólica, de representação
de papéis ou sóciodramática, é a que deixa mais
evidente a presença da situação imaginária. O faz-de-conta
permite não só a entrada no imaginário, mas a expressão
de regras implícitas que se materializam nos temas das brincadeiras.
Para Oaklander (1980, p.161),
“Nos jogos dramáticos criativos as crianças podem aumentar
a autoconsciência que possuem. Podem desenvolver uma consciência
total de si próprias – do corpo, da
imaginação, dos sentidos. O drama torna-se um instrumento natural
para ajudá-las a encontrar e dar expressão a partes ocultas e
perdidas de si mesmas, e com isso desenvolver força e identidade. Nos
jogos dramáticos criativos, as crianças são chamadas a
experienciar o mundo a sua volta, bem como suas próprias formas de ser.
No sentido de interpretar o mundo a sua volta e transmitir idéias, ações,
sentimentos e expressões, elas mobilizam todos os recursos que podem
reunir dentro de si: visão, audição, paladar, tato, olfato,
expressão facial, movimento corporal, fantasia, imaginação,
intelecto.”
Sendo assim, o brincar é uma linguagem de possibilidades, na qual a criança se sente autorizada e segura para vivenciar suas mais íntimas fantasias. É, portanto um potencializador do contato. Entendendo contato como “a consciência “de” e o comportamento “para” com as novidades assimiláveis, e a rejeição das novidades não assimiláveis” como definem Perls, Hefferline e Goodman (1997). Ou ainda, “o sangue vital do crescimento, o meio para mudar a si mesmo e a experiência que se tem do mundo” (Polster e Polster, 2001).
Por tudo isto, o brincar se revelou um rico instrumento de intervenção com crianças que experimentam situações de angústia e estresse. Nesse sentido, optamos por introduzi-lo em nossa proposta de intervenção. No nosso trabalho, desde o momento em que nos apresentamos até o momento em que nos despedimos utilizamos a linguagem lúdica como mediadora da nossa relação com as crianças, com as famílias e com a equipe de maneira geral. Nossos instrumentos, também são carregados desta forma de comunicação: utilizamos brincadeiras de apresentação, desenhos sobre o espaço hospitalar, contação de histórias infantis sobre a operação, brincamos de operar bonecos, nos fantasiamos de médicos, visitamos as enfermarias onde as crianças operam, cantamos músicas que nos ensinam a respirar quando estamos ansiosos, enfim, lançamos mão de uma rica gama de instrumentos lúdicos que potencializam o encontro durante os atendimentos.
O GRUPO DE ACOLHIMENTO E ACOMPANHAMENTO DE CRIANÇAS PARA CIRURGIA DO PROGRAMA SAÚDE E BRINCAR
O projeto conta com uma equipe interdisciplinar formada por uma psicóloga, duas terapeutas ocupacionais, dois estagiários de psicologia e outro de pedagogia. Nossa metodologia de trabalho consiste na realização de grupos de acolhimento para crianças em processo cirúrgico e seus familiares. A base do trabalho é o brincar. Estes grupos acontecem uma vez por semana por um período médio de três horas.
O ingresso no grupo pode se dar por encaminhamento médico ou por demanda espontânea da família do paciente. Trata-se de um grupo temático aberto, isto é, o foco da discussão é a operação. E as crianças podem entrar e sair do grupo quando desejarem. Não existe cobrança de freqüência, nem de permanência no grupo. O que mantém as crianças conosco é o desejo delas de permanecerem neste encontro.
A dinâmica do grupo segue um roteiro de proposta de atendimento que abarca dinâmicas de apresentação, desenho, contação de histórias sobre operação, brincar temático, visitas a enfermaria de cirurgia pediátrica e oferta de uma cartilha interativa com informações sobre a operação em liguagem acessível e lúdica. Para isto, utilizamos como instrumentos de trabalho: mobiliário infantil, material de reprodução gráfica (lápis de cor, giz de cera e papel ofício), avental contador de história, bonecas temáticas, instrumentos médicos de brinquedo, vestuário médico, e cartilha temática, criado pelas pesquisadoras. Concomitante ao atendimento às crianças, acontece o atendimento aos responsáveis, através de breves entrevistas individuais sobre a experiência cirúrgica daquela família. A criança é acompanhada no grupo antes e depois da operação. E sempre que desejar.
Os encontros acontecem na sala de espera do ambulatório de cirurgia pediátrica do Instituto Fernandes Figueira/ Fiocruz. Enquanto as crianças aguardam atendimento médico, podem participar das atividades conosco.
Participam do trabalho crianças entre 3 e 11 anos em: investigação cirúrgica, pré-operatório, internação cirúrgica e pós-operatório e suas famílias, irmãos inclusive. O trabalho aborda crianças com mal-formações congênitas que necessitam passar por várias operações; bem como crianças com indicações cirúrgicas pontuais. Crianças internadas na enfermaria de cirurgia pediátrica em pré¬operatório também são convidadas, quando liberadas pela equipe médica. Semanalmente são atendidas em média 20 crianças e suas respectivas famílias. Representando um total de cerca de 960 atendimentos anuais.
Após cada encontro é feito registro em um diário de campo dos atendimentos. Neste diário são registradas o número de crianças atendidas, as patologias e cirurgias de cada uma, a forma como cada uma esteve presente e contribuiu para o grupo, além de falas e observações trazidas por responsáveis ou membros da equipe médica do ambulatório. Para avaliação dos resultados, é feita uma leitura transversal do material registrado, seguindo a metodologia de análise de conteúdo proposto por Bardim (1979).
RESULTADOS
Os resultados aqui apresentados são produto de nossas observações no campo e de nossos registros dos atendimentos. Temos observado que, de maneira geral, as crianças que participam do grupo apresentam enorme prazer em brincar de operar e conversar sobre a operação conosco. Mostram-se receptivas ao encontro e abertas a dividir suas experiências. Quando internadas para a operação se remetem as histórias que são contadas no grupo e as brincadeiras que lá são realizadas. Em geral, apresentam-se mais colaborativas durante as consultas ambulatoriais e mais seguras durante o período de internação. Isso nos faz pensar que a nossa estratégia de intervenção vêm contribuindo para a criação de um vínculo de maior confiança entre esta clientela e a equipe da cirurgia pediátrica, como nos declarou uma cirurgiã: “Vocês não sabem, mas ver as crianças entrando no consultório sorrindo, vestidas de médico, têm aliviado a tensão da rotina do ambulatório para quem atende e deixado as crianças mais colaborativas. Todos ficamos menos angustiados”.
Durante os atendimentos é comum que as crianças expressem medos e fantasias sobre a doença, sobre o espaço, sobre a rotina e os procedimentos hospitalares. Isto aparece claramente no discurso com frases como, “operar é abrir a barriga e sangrar muito. Depois costura. E não pode brincar” dita por um menino de 6 anos em pré-operatório de uma hérnia. Ou ainda, “eles vão cortar o meu piru?” como nos perguntou um menino de 4 anos em pré-operatório de fimose. Mas também aparece na brincadeira e nos desenhos. Comumente durante o desenhar as crianças reproduzem seringas enormes, camas hospitalares, monstros no hospital, e mais raramente até pessoas mortas. Durante a brincadeira de operar elas também reproduzem nos bonecos o que acreditam que possa acontecer com elas. Todas as dúvidas e colocações são recebidas com muita espontaneidade e autenticidade. Acreditamos que é possível tratar da angústia da criança diante da operação de forma acolhedora, receptiva e verdadeira. Em hipótese nenhuma negamos os riscos que elas correm quando elas nos perguntam. Talvez seja essa veracidade que as deixa tão disponíveis para o encontro conosco.
Ao permitir que as crianças expressem seus medos e fantasias, temos observado que elas se tornam mais autorizadas a questionarem sua própria doença, os procedimentos, as rotinas e até as relações com outros membros da equipe. Durante os encontros é comum que as crianças em determinado momento contem suas experiências no espaço hospitalar e perguntem como será a operação, como será o corte, se elas sentirão dor, se elas irão dormir e depois acordar, se elas vão poder brincar e ir para a escola, etc. Acreditamos que por utilizarmos o brincar como linguagem mediadora desta relação, conseguimos trazer estas informações de forma acessível e vivencial. Assim, o brincar se mostra um facilitador do contato da criança com outras, consigo mesma e com a própria situação. Dessa forma, podemos afirmar que o trabalho vem favorecendo a sociabilidade e a troca de experiências entre estas crianças, seus familiares e outros usuários que vivenciam experiências similares. A medida que as crianças contam suas histórias e as representam durante o brincar, outras crianças e famílias recebem estas histórias e refletem sobres as suas próprias. Durante o grupo é comum uma criança tentar consolar a outra contando-lhe suas próprias experiências, o que sabe sobre a operação, o que ouviu de outras crianças no grupo, o que viu nos passeios na enfermaria, etc. De certa forma, o grupo funciona como uma rede de apoio entre as crianças, mas também entre os responsáveis. Certa vez nos disse uma mãe cujo filho participa do grupo “É bom saber que toda vez que tenho dúvidas ou preciso apenas desabafar posso contar com o grupo. Conhecer todo o processo e trocar experiências com outras mães fazem toda a diferença”.
Para os responsáveis o grupo funciona também como uma espécie de modelo. Ao verem como nós conversamos com as crianças sobre temas tão delicados, e ao perceberem como elas precisam falar do que elas estão pensando, como elas se tranqüilizam tirando suas dúvidas, os responsáveis se sentem mais encorajados a iniciarem estas conversas em casa. Reforçamos sempre a necessidade de serem autênticos e descobrirem sua forma de dialogarem com suas crianças a partir de seus instrumentos pessoais. A forma como o grupo conversa sobre a operação não é a única forma existente de lidar com esta problemática, é apenas a nossa forma. Assim, podemos afirmar que o trabalho vem possibilitando maior encorajamento dos pais para conversarem com a criança sobre a cirurgia.
De forma geral, o trabalho vem transformado a relação da criança e sua família com o espaço hospitalar, fortalecendo a autonomia e a segurança da família nesta instituição. Comumente ouvimos declarações dos responsáveis como esta, “Estou mais confiante na operação. Agora sei que este hospital está preocupado conosco.” Isso nos faz pensar que nossas estratégias também estão contribuindo de maneira significativa para a humanização destes atendimentos.
CONCLUSÕES
Assim como Zinker (2007) acreditamos que a gestalt-terapia é uma permissão para ser exuberante, sentir contentamento, para ser criativo. E este é sem dúvida um trabalho de criatividade. Utilizamos o brincar como suporte da nossa relação com as famílias, equipe e principalmente com as crianças. Estas estratégias vivenciais nos colocam em ação, em movimento. Assim, privilegiamos o encontro autêntico e espontâneo entre as pessoas. Porque acreditamos no potencial de saúde do ser humano. E principalmente porque entendemos que não é possível trabalhar com pessoas, qualquer que seja a temática central, se não de forma integral. Nesse sentido, o brincar e a gestalt-terapia conversam e compõe um rico cenário teórico e prático para a intervenção com crianças em processo cirúrgico.
Com este trabalho, pudemos observar que através do brincar livre, articulado com outros experimentos lúdicos, as crianças ampliavam seu potencial de fazer contato com a situação cirúrgica, com seus medos, fantasias, suas dúvidas. Assim tornavam-se mais aware de si, e a mudança de um estado de desconfiança e angústia para um outro de maior tranqüilidade e autonomia fluía de forma espontânea. Bem como nos garante Polster e Polster (2001, pag.113) “A mudança é um produto inevitável do contato porque apropriar-se do que é assimilável ou rejetiar o que é inassimilável na novidade irá inevitavelmente levar a mudança. (...) A pessoa não precisa tentar mudar por meio do contato; a mudança simplesmente acontece”. É isso que experimentamos no grupo de acolhimento de crianças para cirurgia. Nosso trabalho de fato não se preocupou em mudar o estado de ansiedade das crianças, mas o fez na medida em que viabilizou o contato.
Paradoxalmente, não acreditamos na possibilidade de preparar alguém para o que ainda não aconteceu. Nem vemos muito sentido nessa demanda. Nossa intenção é auxiliar a busca de autonomia e empoderar essas crianças e seus familiares durante o processo operatório. Acreditamos que ao se sentirem participantes nas escolhas e caminhos do seu tratamento a criança e sua família podem se sentir mais seguras para enfrentar os desafios e angustias inevitáveis da experiência operatória.
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