MINI-CURSO 04

O SOFRIMENTO DO TERAPEUTA E A ARTE DE CUIDAR

 

Lilian Meyer Frazão


A proposta desta apresentação é tecer algumas considerações a respeito da importância e do papel do sofrimento do terapeuta no nosso oficio e de sua relação com o cuidar enquanto arte na psicoterapia.

Cuidar, no âmbito da psicoterapia – e talvez em todas as áreas em que ele se faça necessário -é uma tarefa complexa que envolve um sem numero de particularidades e singularidades.

É preciso que se tenha uma visão de homem, um modelo epistemológico, conhecimento dos fundamentos, um conceito de saúde e uma metodologia coerentes com esta visão de homem e este modelo epistemológico, além de um conjunto de técnicas que favoreçam o processo de cuidar dentro desta perspectiva.

Além disso, o processo de cuidar é constituído por várias e diferentes etapas, cada uma delas com suas singularidades e especificidades.

A procura por terapia por parte de um paciente envolve sempre algum tipo de sofrimento e de busca. Importante que possamos, num primeiro momento, receber o paciente, identificar e acolher seu sofrimento. Através da compreensão tentaremos estabelecer com ele algum tipo de vinculo, o que é possível através da empatia. Só então poderemos nomear e lidar com o que acontece.

Empatia vem do grego empátheia, que significa “entrar no sentimento” e tem a ver com a capacidade do terapeuta se colocar no lugar do outro a fim de apreender o modo como ela sente e vivencia suas experiências. A empatia requer também separação e diferenciação, uma vez que, tão importante quanto se colocar no lugar do outro é diferenciar que o terapeuta não pode realmente e efetivamente vivenciar aquilo que é vivido pelo outro. Trata-se de uma situação em que o terapeuta busca compreender o universo do paciente, vendo-o com os olhos do paciente, sem porém perder a noção de si mesmo, de suas singularidades e de suas diferenças. O terapeuta não é o outro, embora possa usar o recurso da empatia para compreender o outro.

Compreensão empática só é possível se o psicoterapeuta tiver uma presença genuína como pessoa, incluindo nisso seu próprio sofrimento. O contato com nosso sofrimento, enquanto pessoas e seres humanos, abrirá as portas de nossa sensibilidade para que possamos acolher e validar o sofrimento do outro. Acolhimento e validação não significam concordância ou aprovação, mas simplesmente reconhecer no outro a dor que ele sente e que é, por si mesma, legítima.

Acolhimento tem a ver com compaixão: a capacidade de partilhar sentimentos, de ser solidário e de se emocionar com e pela dor do outro.

O espaço terapêutico deve se constituir enquanto uma possibilidade de se relacionar com um outro de forma autêntica, a partir de sua própria humanidade em relação com a humanidade do outro (Frazão, 1999).

Como psicoterapeutas não somos, não podemos e nem devemos ser perfeitos. A perfeição nos afasta de nossa humanidade, único instrumento que realmente nos possibilita acessar o sofrimento alheio e usar de forma adequada e pertinente nosso conhecimento teórico e técnico.
Ocorre-me neste momento uma musica de Chico Buarque e Edu Lobo, cuja letra ilustra a natureza da humanidade da qual tanto precisamos para o exercício de nosso oficio. Diz a musica: (Ciranda da bailarina, Edu Lobo -Chico Buarque, 1982)


Procurando bem
Todo mundo tem perceba
Marca de bexiga ou vacina E tem piriri, tem lombriga, tem ameba Só a bailarina que não tem
E não tem coceira Berruga nem frieira Nem falta de maneira Ela não tem
Futucando bem Todo mundo tem piolho Ou tem cheiro de creolina Todo mundo tem um irmão meio zarolho Só a bailarina que não tem Nem unha encardida Nem dente com comida Nem casca de ferida Ela não tem
Não livra ninguém Todo mundo tem remela Quando acorda às seis da matina Teve escarlatina Ou tem febre amarela Só a bailarina que não tem Medo de subir, gente Medo de cair, gente Medo de vertigem Quem não tem
Confessando bem Todo mundo faz pecado Logo assim que a missa termina Todo mundo tem um primeiro namorado Só a bailarina que não tem Sujo atrás da orelha Bigode de groselha Calcinha um pouco velha Ela não tem O padre também Pode até ficar vermelho Se o vento levanta a batina Reparando bem, todo mundo tem pentelho Só a bailarina que não tem Sala sem mobília Goteira na vasilha Problema na família Quem não tem

Procurando bem Todo mundo tem...


Como terapeutas não podemos ser bailarinos... Tampouco devemos formar bailarino... É preciso usar aquilo que vivemos e experienciamos ao ter bereba, coceira, berruga e frieira para nos instrumentar e sensibilizar para acolher as berebas, coceiras, berrugas e frieiras dos pacientes que nos procuram.

É através da awareness do sofrimento experienciado com nossas próprias mazelas que nos instrumentamos para acolher e validar o sofrimento de nossos pacientes. Há um ditado chinês que diz: “Só o igual reconhece o igual”.

O conhecimento e o sofrimento experienciados através de nossas próprias mazelas torna-se possível através de um longo e profundo processo de auto-conhecimento,. Para isto torna-se necessário o processo pessoal de psicoterapia do terapeuta. Neste processo poderemos desenvolver nossos recursos perceptivos, que nos possibilitam nos darmos conta de nossas sensações, sentimentos, pensamentos, lembranças, desejos, fantasiais, etc. É esse dar-se conta que vai possibilitar atribuir sentido e significado às nossas experiências.

Não se trata de interpretar as nossas experiências e sim de ter contato com elas, reconhecendo seu sentido e também sua função. Mais do que interpretações ou explicações, precisamos nos debruçar sobre o o como, o o que e o para que de nosso próprio sofrimento. É uma forma de nos conhecermos e sabermos de nós. Ser o que se é, é diferente de ser o que se pensa que é.

É somente através desta experiência humanizadora que poderemos acessar a humanidade de nossos pacientes.

Ajuda-nos a compreender esta questão o mito de Quiron, um centauro, meio homem, meio cavalo que, diferentemente dos outros centauros que eram selvagens e violentos, foi civilizado, sábio e pacifico. Quiron era respeitado por seus conhecimentos de medicina e cirurgia. Quando Heracles perseguia o centauro Élato acidentalmente atingiu Quiron. A flecha não matou Quíron, pois, sendo filho de um titã, era imortal, porém provocou-lhe dores terríveis e incessantes e por mais que Quiron cuidasse, sua ferida mostrou-se incurável.

É deste mito que vem a famosa expressão “curador ferido” que nos revela a importância de termos e conhecermos nossas feridas, se desejarmos ajudar o outro na cura de suas próprias feridas.

Como já disse em uma palestra que proferi anteriormente nossas feridas não são apenas aprisionadoras e impeditivas (Frazão, 2006). Ao compreendê-las e acolhe¬las, dando-lhes sentido e significado, cria-se a condição para seu atravessamento. Não se trata simplesmente de superar nossas feridas... é no atravessamento delas que a dor e o sofrimento cumprem a função de nos humanizar, o que, no oficio de psicoterapeutas além de fundamental, é fundante, no sentido de que cria em nós a possibilidade de compreender e acolher o sofrimento do outro.
O processo de conhecimento de nossas feridas e sofrimento também possibilita que, na relação com nossos pacientes, sejamos capazes de perceber que nosso sofrimento, embora sendo da mesma natureza que o do cliente, dele se diferencia. Como disse Caetano Veloso “Cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é” (Dom de Iludir).

Ainda que possamos nomear da mesma forma algum sentimento – como, por exemplo, tristeza, ou mágoa, ou felicidade, ou alegria a forma de experienciá-lo é diferente em cada um de nós. Todos nós experimentamos alegria, mas para cada um a alegria é diferente, e única.

É preciso acolher a experiência do paciente tal como nele se manifesta, mas é preciso também honrar a maneira como ele a vivencia e compreende.

A diferenciação necessária entre paciente e terapeuta também favorece ater-se ao que aparece no e através do paciente, àquilo que se manifesta, ou como dizia Perls, ao óbvio. Favorece colocar entre parêntesis não apenas nossos julgamentos e pressupostos, mas também nossas experiências pessoais, de forma a nos tornar disponíveis e abertos para escutar e compreender o outro. É isto que chamamos de olhar fenomenológico, o que busca ver as coisas mesmas, as coisas tal como elas são para aquele que as experiencia.

Desta forma, dotados de humanidade e delicadeza, podemos verdadeiramente acolher aqueles que nos procuram em busca de ajuda.

É necessário também saber ouvir. Ouvir de forma atenta e disponível àquilo que o cliente nos traz. A escuta é necessária e essencial para possibilitar que o terapeuta dê conta de seu trabalho. Segundo minha amiga Beatriz Cardella ouvir é “Uma qualidade rara e esssencialmente terapêutica, pois é preciso despojar-se dos próprios ruídos, silenciar interiormente, para realmente ouvir alguém”.

Rubem Alves (1996, p. 25, apud Cardella) nos fala de forma poética dessa qualidade:
“ É preciso saber ouvir. Acolher. Deixar que o outro entre dentro da gente. Ouvir em silêncio. Sem expulsá-lo por meio de argumentos ou contra-razões. Nada mais fatal contra o amor que a resposta rápida... Há pessoas muito velhas cujos ouvidos ainda são virginais: nunca foram penetrados. E é preciso saber falar. Há certas falas que são um estupro. Somente sabem falar os que sabem fazer silêncio e ouvir.”

Antes de encerrar minha apresentação desejo voltar um pouco ao titulo desta mesa: A Arte de Cuidar. Por que será que frequentemente no âmbito da psicoterapia, e particularmente no âmbito da Gestalt-terapia, nos referimos ao cuidar como uma arte?

Nosso cuidar envolve não apenas um modelo epistemológico, conhecimento dos fundamentos, metodologia e técnicas. Por todas as questões que mencionei até aqui, -além de inúmeras outras que o tempo não me permitiu abordar -há na natureza do nosso cuidar, uma especificidade que o transforma em arte.... É a capacidade de combinar simultaneamente todos estes elementos -além de outros - tendo em vista as particularidades e necessidades de cada paciente, a cada momento do processo psicoterápico, assim como as possibilidades e limitações de cada psicoterapeuta.

Nas palavras de Bachelard: “A obra se desenvolve sem plano nem desenho prévios.” (p 43)
Cuidar, mais do que um ato, é uma atitude; uma atitude não apenas diante do paciente, mas frente aos Homens, ao mundo e aos Homens no mundo. É a atitude de cuidado que vai possibilitar a confiança do paciente. (Frazão 1999).

Importante que esta atitude seja verdadeira, uma vez que cuidado não é algo que possa ser simulado ou fingido. Parecer cuidadoso não é ser cuidadoso. É preciso diferenciar ser de parecer. De acordo com Buber (in Friedman, 1994, p.121) ao ser posso me doar ao outro espontaneamente, sem me preocupar com a imagem que o outro possa ter de mim. Ao parecer a preocupação é com aquilo que o outro possa pensar de mim, o que resulta em gestos calculados para parecer espontâneo, sincero, cuidadoso, etc. (Frazão, 1999)

O par terapêutico precisa ser harmônico e sintônico. Cabe ao terapeuta prover a relação de condições para a harmonia, no sentido de poder combinar e fazer bom uso das diferenças individuais de forma tal a promover crescimento e desenvolvimento. Cabe também ao terapeuta buscar sintonia com seu paciente afinando seu instrumento (como diriam os Polsters) de tal forma que suas notas possam repercutir no outro, promovendo, através de suas respostas e reações, uma reciprocidade que leva ao desenvolvimento do processo psicoterapêutico.

É justamente este complexo entrelaçamento de modelo epistemológico, conhecimento dos fundamentos, metodologia e técnicas com harmonia e sintonia que faz com que nosso oficio transcenda o campo da ciência e se aproxime do campo da arte.

Da mesma forma que a pintura implica um sutil equilíbrio entre cor, forma e volume; a musica um sutil equilíbrio entre notas musicais, ritmo e harmonia; a poesia um sutil equilíbrio entre palavras, conteúdo e pontuação; o cuidar envolve também equilíbrio e sutileza.

Equilíbrio e sutileza do nosso conhecimento, com nossas habilidades e limitações; equilíbrio e sutileza das nossas intervenções com as necessidades, possibilidades e potencialidades do cliente.

Às vezes, assim como na arte, nosso oficio implica em poder dizer o indizível, sem precisar nomeá-lo ou designá-lo. O silêncio em terapia, quer por parte do terapeuta, quer por parte do paciente, pode ser repleto de significado.

Como disse lindamente Bachelard: “... no silêncio da superfície, essa bolha balbucia, a planta suspira, o lago geme.” (p 6)

O entrecruzamento destes fios nos dará a tecetura que tornará único o trabalho psicoterápico com cada cliente, tornando-o assim uma obra... de arte.

BIBLIOGRAFIA

Alves, R. O Retorno Eterno. Crônicas. Campinas, S.P.: Papirus, 1996.

Bachelard, G. O Direito de Sonhar , Ed. Bertrand Brasil, RJ, 1991

Cardella, B.H.P. A Arte de Ajudar, Revista Arte-terapia: reflexões. Revista do Departamento de Arte-terapia do Instituto Sedes Sapientiae -SP, Ano III, n. 2, 1997/98.

Frazão, Reflexões sobre Relação Dialógica Apresentado na Conferência de Abertura do VII Encontro Nacional de Gestalt-terapia e IV Congresso Nacional da Abordagem Gestáltica, realizado em Goiânia, Goiás, de 8 a 12 de Outubro de 1999.

Frazão, L.M., Uma Reflexão a Respeito do Sagrado e do Profano na Clinica, palestra apresentada na Mesa de Abertura da V Jornada Paulista de Gestalt: “Gestalt-terapia: pés no aqui e agora... asas abertas à espiritualidade” realizada pelo Departamento de Gestalt-terapia, no Instituto Sedes Sapientiae, de 15 a 17/9/2006 sobre o tema “O Sagrado o Profano na Psicoterapia”.